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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS E SOCIAIS - CCH LICENCIATURA EM HISTÓRIA MONOGRAFIA Reflexões sobre a Guerra de Jugurta e a decadência dos valores cívicos e morais da República Romana – TCC 2 Aluno (a): James Leal Borges Matrícula: n° 13216090237 Polo: Duque de Caxias 2017 James Leal Borges Reflexões sobre a Guerra de Jugurta e a decadência dos valores cívicos e morais da República Romana Rio de Janeiro 2017 1 Reflexões sobre a Guerra de Jugurta e a decadência dos valores cívicos e morais da República Romana James Leal Borges Monografia submetida ao corpo docente da Escola de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UNIRIO – como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Licenciado em História sob orientação do (a) Prof. (a) Mª Anna Carla Monteiro de Castro. Rio de Janeiro 2017 2 Reflexões sobre a Guerra de Jugurta e a decadência dos valores cívicos e morais da República Romana James Leal Borges Aprovado por: Profª Mª Anna Carla Monteiro de Castro Orientador (Mestre em História Social/UFF) Profª Dr.ª Juliana Bastos Marques Leitor Crítico (Doutora em História Social/USP) Rio de Janeiro 2017 3 Dedico este trabalho aos autodidatas, que através dos tempos proporcionaram a ampliação do conhecimento por sua dedicação intelectual espontânea e idealista. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço especialmente aos meus diletos companheiros de graduação, sem o apoio mútuo, a compreensão das dificuldades, a solidariedade nos piores momentos e a obstinação em alcançar um objetivo comum, não teria conseguido esta importante conquista. Essas pessoas maravilhosas e únicas, apaixonadas pelos estudos históricos como eu, foram fundamentais para a minha vitória, eu nunca imaginei que Deus me concederia o prazer de conviver nessa graduação com um grupo de colegas inigualável. “Feras da História”, André Luiz, Ana Cláudia, Davi, Eliane, Harley, Jefferson, Leandro, Leonilson, Lucão, Maxwell, Mendonça, Ruan, Valéria Graça, Valéria Oneto e Wilson, para sempre em meu coração. Também tenho que agradecer as minhas tutoras do Polo de Duque de Caxias, os debates realizados durante as tutorias foram essenciais para o entendimento do conteúdo das disciplinas, o incentivo para progredir e ampliar o desenvolvimento intelectual foi importantíssimo. Agradeço a minha orientadora, professora Anna Carla Monteiro de Castro, por todo o esforço e dedicação para que este trabalho fosse elaborado de forma correta, a professora Rafaela Paula da Silva, pelos valiosos ensinamentos sobre Historiografia, a professora Maria Helena Domingues, pelas importantes discussões sobre a interpretação dos textos históricos, a professora Rita de Cássia Santos Melo, pelos conselhos para a escolha do tema do TCC, enfim, a todas essas e outras maravilhosas docentes que guardarei sempre com carinho por todo o empenho em ajudar na minha formação acadêmica. Termino agradecendo aos meus familiares pela compreensão durante o período desta graduação e a todas as pessoas que colaboraram para que fosse possível realizar este empreendimento acadêmico. 5 O historiador pode aplaudir a importância e a variedade de sua matéria, mas, conquanto tenha consciência de suas próprias imperfeições, deve amiúde denunciar a deficiência de seus dados. (Edward Gibbon – História do Declínio e Queda do Império Romano) 6 RESUMO Este trabalho pretende, através da análise dos fatos ocorridos na guerra travada pela República Romana contra o rei da Numídia, Jugurta, fazer uma reflexão sobre a perda dos valores éticos, morais e cívicos ocorridos na sociedade de Roma, principalmente pelos principais atores políticos, decorrentes da expansão territorial ocorrida durante os séculos III e II a. C., que proporcionaram um grande desequilíbrio nas relações entre o patriciado e a plebe. Será destacada também a questão da corrupção como elemento propulsor dessa condição, sendo as ações de Jugurta para se manter no poder a comprovação explícita desses procedimentos escusos adotados. Palavras chaves: Jugurta, valores, corrupção 7 ABSTRACT This thesis intends, through the analysis of events in the war waged by the Roman Republic against the King of Numidia, Jugurtha, to make a reflection on the loss of ethical, moral and civic values in the society of Rome, especially regarding the main political actors, arising from territorial expansion during the centuries III and II b. c., which provided a great imbalance in the relationship between the patricians and the plebeians. We will highlight the issue of corruption as a propellant element of this condition, and the actions of Jugurtha to stay in power as the explicit proof of these shady procedures adopted. Key words: Jugurtha, values, corruption 8 SUMÁRIO Introdução.........................................................................................................................Pag. 10 Capítulo 1 – Os indícios da crise política e as origens do conflito.....................................Pag. 11 1.1 – A Guerra de Jugurta e as relações com a degeneração do sistema político da Roma Republicana – A participação de Salústio nesses eventos e suas motivações para escrever sobre o contexto de sua época......................................................................................Pag. 11 1.2 – Antecedentes do conflito – A personalidade de Jugurta e suas relações com a corrupção da elite política romana – O início da guerra...............................................................Pag. 14 1.3 – As tentativas de resolução diplomática para a questão da Numídia – As relações de patronato e clientela – A declaração de guerra da República Romana contra Jugurta........................................................................................................................Pag. 19 1.4 – As razões para a decadência cívica e moral – A excessiva concentração de terras em mãos do patriciado – As tentativas de Tibério e Caio Graco para a resolução do problema fundiário......................................................................................................................Pag. 22 Capítulo 2 – A continuação da guerra e as contradições da sociedade romana................Pag. 28 2.1 - As movimentações em Roma relativas a guerra na Numídia – A corrupção da classe política e sua importância no contexto do conflito – As dificuldades para o início efetivo das hostilidades contra Jugurta – A trégua e a suposta rendição de Jugurta firmada com Lúcio Béstia Calpurnio e suas consequências.........................................................................................Pag. 28 2.2 – O reinício das hostilidades sobre o comandode Espúrio Albino – A questão eleitoral – Decisões errôneas na condução da campanha militar – Problemas ocorridos em Roma devido aos acontecimentos na Numídia.........................................................................................Pag. 34 9 2.3 – Mudanças de rumo na condução das operações militares – O comando de Quinto Cecílio Metelo – Vitórias dos romanos e as movimentações de Jugurta – Indefinições para a finalização da guerra...........................................................................................................................Pag. 38 Capítulo 3 – Acontecimentos derradeiros da Guerra de Jugurta......................................Pag. 45 3.1 – As operações militares inconclusivas – A saída de Metelo – Mário assume o comando das tropas.................................................................................................................................Pag. 45 3.2 – A aliança de Jugurta com o rei Boco – As ações de Mário no campo de batalha – O refúgio de Jugurta na Mauritânia – As investidas para o término do conflito – A prisão de Jugurta e o fim da guerra – A hipótese sobre a morte de Jugurta.........................................................Pag. 53 Conclusão..........................................................................................................................Pag. 60 Fontes................................................................................................................................Pag. 61 Referências Bibliográficas................................................................................................Pag. 61 10 INTRODUÇÃO A “Guerra de Jugurta” é um dessas narrativas que prezam pela exposição dos elementos que caracterizam a degradação de um contexto social, onde existia anteriormente honorabilidade e orgulho pelas virtudes morais e cívicas, e que, através de um processo de enriquecimento material avassalador, perde-se estas referências éticas em troca da obtenção de prestígio e poder a qualquer custo, fazendo a necessidade de recursos financeiros para a obtenção de resultados eleitorais satisfatórios proporcionarem a aceitação de indignidades e rebaixamento de caráter daqueles que são responsáveis pela condução do bem estar público. De acordo com o relato de Salústio, Jugurta consegue estabelecer conexões com os setores corrompidos do “status quo” da República Romana, auferindo benefícios políticos que manterão por bastante tempo seu reinado na Numídia, independente das atrocidades e ilegalidades que tenha praticado. Esta história, ocorrida nos finais do século II a.C., apesar de ter em seu conteúdo opiniões que denotam juízo de valor e preferencias políticas do autor, serve para demonstrar a existência de uma crise na sociedade romana já evidenciada por episódios anteriores, como a rejeição violenta do patriciado à proposta de reforma agrária dos irmãos Graco. As reflexões sobre os seus acontecimentos são fundamentais para entender o que ocorreria posteriormente em Roma no século I a.C., onde o confronto entre os “optimae” e os “populares” seria responsável pela derrocada dos princípios republicanos e a personificação do poder através da ascensão de Augusto. No capítulo 1 será feita uma descrição dos fatores que ocasionaram a derrocada dos princípios republicanos em Roma e das causas que levaram a confrontação militar na Numídia devido as atitudes de Jugurta. No capítulo 2 a continuação da guerra e seus desdobramentos em Roma será relatado, com destaque para as movimentações dos principais atores políticos e seus procedimentos dúbios durante a campanha na Numídia, até que Quinto Cecílio Metelo assuma o comando das operações. No capítulo 3 as indefinições para o término do conflito causarão inquietações em Roma, fazendo com que Metelo seja afastado e Caio Mário seja designado pelo Senado como o novo comandante, que finalmente conseguirá finalizar a guerra e aprisionar Jugurta. 11 Capítulo 1 – Os indícios da crise política e as origens do conflito Neste início do trabalho será descrito como Caio Salústio Crispo esteve envolvido com a problemática política existente na República Romana durante o século I a. C., destacando que esta experiência seria fundamental para a elaboração do livro relacionado a Guerra de Jugurta, ocorrida no final do século II a. C., e de sua implicação nos acontecimentos referentes a decadência moral e cívica em Roma. Incialmente será feito um breve relato sobre a vida de Salústio, em seguida será descrito como o crescimento do território romano, resultado das conquistas militares durante os séculos III e II a. C., causariam uma mudança nas relações dentro da sociedade romana, devido ao enriquecimento material decorrente desse processo. Posteriormente será feito um relato sobre as relações históricas entre a Numídia e Roma, além de sua correlação com o surgimento de Jugurta e demonstrar o seu relacionamento inicial com os romanos, com destaque para questão da corrupção da classe política. Será feito um relato sobre as motivações que levaram ao conflito armado e os seus desdobramentos iniciais, para finalizar uma análise dos problemas agrários existentes em Roma e da tentativa de sua solução pela lei de reforma agrária elaborada por Tibério Graco, que provocaram grandes conturbações sociais dentro do contexto da República. 1.1 – A Guerra de Jugurta e as relações com a degeneração do sistema político da Roma Republicana – A participação de Salústio nesses eventos e suas motivações para escrever sobre o contexto de sua época. Os antecedentes históricos referentes ao episódio conhecido como guerra de Jugurta foram relatados por Caio Salústio Crispo (86-35 a.C.) numa obra literária em que o político e historiador romano descreve, utilizando como exemplificação o confronto militar ocorrido na Numídia no Norte da África, entre os anos de 112 a.C. e 105 a.C., as conturbações ocorridas no final do século II a.C. na Roma Republicana, resultado de problemas decorrentes pela degeneração dos antigos princípios cívicos seguidos pelos romanos, que foram responsáveis pelo engrandecimento territorial e a abrangência da influência política de Roma em praticamente toda a região do Mar Mediterrâneo. A vida do próprio autor está correlacionada com o desenrolar dos dramas políticos ocorridos no período posterior ao descrito no livro “Guerra de Jugurta”. Primeiramente devemos saber que Caio Salústio Crispo, de acordo com as fontes historiográficas existentes, foi um indivíduo pertencente a facção política dos “populares”, defensores de maiores concessões para a plebe romana em oposição aos “optimae”, que não queriam alterações no 12 “status quo” da República, devido ao grande poder concentrado nas mãos das classes senatorial e equestre, que ocupavam os altos cargos da magistratura em Roma e por isso detinham todo o poder decisório. Devemos ressaltar que a sociedade romana após a vitória final contra Cartago nas Guerras Púnicas (264-146 d.C.), conjunto de três confrontos militares entre Roma e a cidade de origem fenícia do Norte da África, e que era a grande opositora à expansão romana na região mediterrânea, modificou-se devido a opulência material decorrente desse triunfo. Suas consequências foram a ampliação do poder de Roma, resultante da sequência de vitórias contra os reinos helenísticos na Ásia Menor, culminando com a anexação do território da Grécia no ano da derrota final de Cartago naTerceira Guerra Púnica (146 a.C.). Estes fatores foram responsáveis por alterar o antigo espírito de austeridade existente entre os cidadãos romanos, provocando uma corrida desenfreada pela obtenção de enriquecimento como forma de galgar as mais altas dignidades republicanas, independente que fosse de maneira escusa. As repetidas vitórias permitiram a transferência para a Itália de grandes riquezas, dos tesouros acumulados no Mediterrâneo oriental. O erário público enriqueceu-se com a pilhagem dos povos conquistados; gradualmente, a esta forma de transferência de riquezas acrescentou-se o pagamento regular de impostos pelas províncias em que as regiões conquistadas foram transformadas. 1 Segundo as fontes historiográficas que citam sua vida, “ Gaio Salústio Crispo nasceu de família plebeia em Amiterno na Sabina, em 86(?) a.C.” (SILVEIRA, 2003: p. 12), ainda jovem foi para Roma com o intuito de desenvolver seus estudos, acabando por se ligar a já citada facção dos populares, cujo um dos seus grandes expoentes era Caio Júlio César. A partir daí as escassas informações existentes demonstram que Salústio passou a estar envolvido em todas as querelas políticas do período, presenciando a derrocada dos princípios republicanos em detrimento das decisões de cunho personalista. Este posicionamento demonstrado por Salústio em seus trabalhos literários torna-se de certa forma contraditória, pois ele próprio esteve ligado a umas das correntes políticas que lutavam pelo poder em Roma e foi um apadrinhado político de Júlio César, de acordo com os relatos existentes sobre sua vida. 1 (CORASSIN, Maria Luiza, A Reforma Agrária na Roma Antiga, Coleção “Tudo é História”, São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 15.) 13 Isto é demonstrado no decorrer de sua carreira, com ascensão política de Júlio César ao poder, Salústio seria nomeado governador da província da África Proconsular, isso teria aumentado o seu interesse pelo episódio envolvendo Jugurta, pois além de ter vivido na região onde aconteceram os fatos relativos a guerra, teria possivelmente tido acesso a documentos existentes em cartaginês que facilitaram suas pesquisas sobre o tema. Ironicamente, Salústio seria afastado do governo da África Proconsular com suspeitas de enriquecimento ilícito. O assassinato de Júlio César em 44 a.C. o fez se desiludir com as atividades políticas, provocando seu afastamento da vida pública, supostamente também para evitar possíveis retaliações. É deste momento em diante que Salústio passará a redigir suas “monografias históricas”, obras literárias em que através do estudo de caso de determinados personagens, como Jugurta e Catilina, descreverá suas opiniões sobre a perda gradativa da importância das virtudes e dos valores cívicos por parte dos homens públicos em Roma, destacando a valorização da individualidade em busca da obtenção do poder. O enfoque de Salústio está em fazer uma comparação nostálgica entre o passado virtuoso e glorioso da República Romana com a época decadente em que vive, ressaltando uma desilusão com os atuais rumos da política em Roma. Podemos fazer uma correlação entre a visão estabelecida sobre a derrocada da sociedade romana por Salústio com a de Tito Lívio, que também vai destacar a decadência dos costumes e das virtudes durante o século II e o século I a. C., porém, como resultado da ampliação territorial decorrente das conquistas militares, ressalta que o contato anterior com as populações helenísticas já havia deturpado o caráter austero e decidido dos cidadãos romanos que faziam parte das legiões. Quanto a Salústio, embora também esteja presente a ideia de que a opulência traga a corrupção, há uma diferença fundamental em relação a Tito Lívio, pois aquele atribui a decadência ao fim do metus hostilis, por causa da destruição de Cartago, o mais poderoso inimigo de Roma. Em Tito Lívio é possível ver essa degradação já ocorrendo antes, em razão de novos contatos nas guerras macedônicas. 2 ² (MARQUES, Juliana Bastos. Tradição e renovação da identidade romana em Tito Lívio e Tácito/ Juliana Bastos Marques. - Rio de Janeiro: Apicuri, 2013, p. 61.) 14 Todo este quadro de degradação descrito por Salústio terá no personagem de Jugurta a personificação do corruptor que demonstra todas as vicissitudes existentes na sociedade romana, através de seus constantes subornos a personagens da República para a manutenção do poder na Numídia, colocando em evidencia a dependência do sistema político romano dos valores materiais para sua sustentação. Bellum Iugurthinum, retrato de um confronto externo que, apesar de contar os elementos que fizeram parte do conflito, indica muito mais as mudanças na política interna e externa da sociedade. De forma que, quando se organiza as formas de lidar com o conflito contra os númidas, Salústio demonstra a corrupção da política romana e a sua influência nas decisões referentes à guerra. 3 1.2 – Antecedentes do conflito – A personalidade de Jugurta e suas relações com a corrupção da elite política romana – O início da guerra. A Guerra de Jugurta na realidade tem suas raízes em fatos históricos ocorridos cerca de um século antes do conflito. De acordo com o relato de Salústio, na época da Segunda Guerra Púnica (218-201 a. C.), a Numídia era aliada de Cartago no confronto contra Roma, este período das Guerras Púnicas encaminhou a futura vitória definitiva da República Romana sobre os cartagineses. Após Aníbal Barca permanecer por vários anos na Península Itálica e, apesar de seus grandes feitos militares, não ter conseguido derrotar definitivamente Roma, a luta transferiu-se para o norte da África, estratégia utilizada pelos romanos para deslocar o foco da luta do território próximo a Roma. Com isso Aníbal foi obrigado a retornar, pressionado também pela classe dirigente de Cartago, que considerava infrutíferos os esforços empreendidos por Aníbal na tentativa de vencer os romanos. Nesta conjuntura ocorria uma disputa dinástica pelo trono da Numídia que acabaria sendo vencida por Massinissa, que era filho do rei Gala ou Gaia. Este se aliaria aos romanos e teria participação na Batalha de Zama em 202 a. C., em que as legiões romanas ³ (SILVA, Daniela Barbosa da. Tempo e Memória em Bellum Catilinae e Bellum Iugurthinum de Caio Salústio Crispo [manuscrito] / Daniela Barbosa da Silva – 2014, p. 94.) 15 comandadas por Públio Cornélio Cipião derrotariam os cartagineses comandados por Aníbal, terminando a Segunda Guerra Púnica. Com este apoio a Numídia passaria a ser um protetorado romano, Massinisa deixaria o trono para o seu filho Micipsa no ano de 148 a. C., que manteria a premissa da aliança com Roma como primordial para a manutenção da independência e da sobrevivência política da Numídia. Com a morte de seus dois irmãos, Gurula e Mastanabal, Micipsa reinava tranquilamente sem nenhuma ameaça de oposição. Ele acabaria por adotar Jugurta, filho de Mastanabal, considerado de origem ilegítima, que acabaria vindo a se destacar na Numídia por sua dedicação as atividades físicas, como os exercícios de equitação e das artes militares, além do seu caráter voluntarioso, resoluto e carismático, fazendo com que angariasse a simpatia de grande parte da população. Quando Roma solicitou o auxílio de tropas auxiliares da Numídia para o cerco da cidadede Numância na Península Ibérica, Micpsa enviou para esta empreitada Jugurta. Além de poder colocar em prova seu valor e disposição para a luta armada supõe-se que, segundo Salústio, o rei da Numídia poderia, graças a alguma fatalidade, se livrar da presença de seu sobrinho na corte, que já se revelava de certa forma incomoda para os interesses de Micipsa. É justamente nesta campanha militar na Península Ibérica que Jugurta terá contato com os cidadãos romanos componentes de uma nova classe de nobres, “que anteponiam la riqueza a lo bueno y honesto; hombres intrigantes em Roma, poderosos entre los aliados, más célebres que honorables” (SALÚSTIO, 1971: p. 26), estes cidadãos fizeram a Jugurta propostas de apoio irrestrito aos seus interesses, alegando que na falta de Micpsa ele assumiria o trono da Numídia por sua capacidade de decisão e valor pessoal. Em troca desse auxílio, porém, era solicitado que Jugurta fosse benevolente financeiramente com seus aliados, concedendo a eles condições necessárias para a manutenção de sua posição social dentro da sociedade romana, principalmente o financiamento das caríssimas campanhas políticas da República. Podemos relativizar esta opinião expressa por Salústio sobre a corrupção de setores da classe política de Roma em “Guerra de Jugurta”, a expansão romana foi resultado não apenas do poderio militar da República, acordos e concessões foram necessários para que fosse conseguido o apoio de lideranças locais das regiões dominadas ou rivais dos inimigos de Roma, esta questão referente as supostas propostas de suborno feita por cidadãos romanos estaria inserida num contexto de conciliação através do estabelecimento de relações amistosas, em que concessões de ambas a parte eram necessárias. 16 E falar da guerra entre os romanos e os cartagineses ou entre os romanos e os macedonianos deixaria escapar completamente o que Políbio julga ser sua principal descoberta e a novidade de seu tempo: a simultaneidade de confrontos que envolvem protagonistas diferentes, desenrolando-se em lugares variados e repercutindo uns sobre os outros. Neste caso, é possível afirmar que o número de intervenientes é superior a dois lados ou também que há um só, visto que Roma, ao estender a sua dominação, constitui o traço de união ou atua como agente de ligação entre essas histórias, até então, locais e separadas. 4 Na sequência dos acontecimentos, Jugurta vem a se destacar por seu valor e méritos na campanha militar contra a cidade de Numância, ao final da contenda e com a vitória romana o comandante das forças romanas, Públio Cipião, filho do vencedor da batalha de Zama, condecorou Jugurta em público e o reverenciou por suas atitudes. Em particular Cipião recomendou a Jugurta que procurasse alcançar prestígio e glória através de suas virtudes e que não vinculasse o seu sucesso a concessão de benefícios escusos a determinados cidadãos romanos de conduta reprovável, já que ele deveria conseguir o reconhecimento de toda a comunidade que compunha a República Romana através de atitudes integras para obter na Numídia os direitos condizentes com sua capacidade de liderança. É preciso ressaltar que esta opinião expressa por Cipião se correlaciona com a importância do respeito das tropas em relação ao seu comandante como fator fundamental para que este conseguisse almejar destaque na política em Roma, dentro deste contexto veremos como Caio Mário pode ser considerado o primeiro grande líder político da República que soube explorar esta situação. Destacando que sua capacidade de estar sempre ao lado dos seus comandados, participando dos perigos decorrentes das batalhas e atendendo as demandas e solicitações da soldadesca, alavancaram sua carreira de forma brilhante. 4 (HARTOG, François – Evidencia da história: o que os historiadores veem / François Hartog; tradução Guilherme João de Freitas Teixeira com a colaboração de Jaime A. Clasen – 1 ed. 1 reimp. – Belo Horizonte: Autentica Editora, 2013 – (Coleção História e Historiografia / coordenação Eliana de Freitas Dutra, 5) p. 94 e 95) 17 O contato com os romanos aparenta, na narrativa salustiana, o começo de uma interação com aqueles membros da aristocracia que não se destacavam pela justeza e bom caráter e, esse contexto, denota uma mudança no próprio posicionamento de Jugurta frente a Roma e que irá transparecer quando, mais tarde, ele mesmo se encontra em conflito com os mesmos. 5 Em seguida Públio Cipião redige uma carta à Micipsa, em que destaca todas as qualidades de Jugurta e que o rei da Numídia deveria sentir-se orgulhoso pelo valor demonstrado por seu sobrinho em combate ao lado dos romanos, que procuraria obter do senado da República e do povo de Roma a aceitação do nome de Jugurta como um importante e valoroso aliado na Numídia, indiretamente dizendo à Micipsa que Jugurta deveria ser designado como um dos seus sucessores, ao lado dos seus filhos Aderbal e Hiempsal. Micipsa, de acordo com o relato do livro “Guerra de Jugurta”, concluiu que as palavras de Públio Cipião corroboravam com as informações que vinha recebendo sobre as ações de Jugurta na Península Ibérica, resolve então o colocar em seu testamento como um dos herdeiros do trono da Numídia. Passados os anos, estando Micipsa com o seu estado de saúde já prejudicado pelo avanço da idade e vendo que chegava próximo o seu falecimento, resolve reunir parentes e amigos, ao lado de seus filhos Aderbal e Hiempsal, para aconselhar à Jugurta como deseja que ele proceda à frente dos negócios da Numídia e em relação aos seus herdeiros diretos, e também dizer a Aderbal e Hiempsal que deveriam seguir o exemplo de Jugurta, procurando respeitar seus conselhos devido a sua maior experiência e idade. Pero antes que a éstos te toca a ti, Jugurta, puestos que los aventajas em edad y sabiduría, procurar que las cosas salgan bien. Porque en toda contienda el más fuerte, aunque sea el injuriado, parece que es el agresor porque es más poderoso. Y em cuanto a vosotros, Aderbal e Hiempsal, rspetad y venerad a este hombe insigne, imitad su valor y trabajad para que no se diga que mi hijo adoptivo es mejor que los hijos que engendré. 6 5 (Cf. SILVA, Daniela Barbosa da. Op., Cit., p. 94) 6 (SALUSTIO, Guerra de Jugurta – Texto latino com tradución literal y literária por Joaquín García Álvarez – 3ª edição – Madrid: Editorial Gredos S. A., 1971 p. 32) 18 Após este acontecimento não demorou muitos dias para o falecimento de Micipsa, Jugurta procurou logo se reunir com Aderbal e Hiempsal para definirem assuntos referentes a administração da Numídia. Ele propôs anular os atos de Micipsa dos últimos cinco anos, alegando que, devido à idade avançada e a seu precário estado de saúde, suas decisões eram passíveis de contestação. Hiempsal, o mais jovem dos filhos de Micipsa e menos afeito a divisão do trono da Numídia com Jugurta, concordou com esta proposição, alegando que a própria adoção de Jugurta como herdeiro fora realizada nos últimos três anos e seria também passível de anulação. Ao ouvir estas palavras Jugurta passou a preocupar-se com o que poderia acontecer futuramente, procurou esquematizar uma forma de vingar-se de Hiempsal o eliminando fisicamente, medida esta que lhe seria também proveitosa pois seria menos um a atrapalhar seus planos de assumir o poder total na Numídia. Como Hiempsal estivesse na cidade de Thírmida hospedado coincidentemente na casa do principal lictor de Jugurta, este conseguiuatravés dele cópias das chaves para que seus sectários entrassem no local e realizassem o intento de mata- lo. Após consumarem sua missão, os númidas presenteiam Jugurta com a cabeça de Hiempsal, de acordo com as determinações pré-estabelecidas. A notícia deste crime ao espalhar-se por toda a Numídia causou um temor generalizado em Aderbal e nos antigos súditos de Micipsa. Ocorreu uma divisão, em que a maioria da população númida ficou ao lado de Aderbal enquanto os mais beligerantes uniram- se a Jugurta. Este se aproveita para tomar várias cidades pela força enquanto outras se uniram a ele por vontade própia. Aderbal envia emissários à Roma para que o Senado fosse informado do assassinato de seu irmão e da usurpação perpetrada por Jugurta. Confiando no maior número de suas tropas, Aderbal resolve enfrenta-lo no campo de batalha, porém, ao ser derrotado, se refugia na província romana da África e dali resolve ir à Roma para relatar os fatos ocorridos. Temeroso das consequências das palavras de Aderbal perante o Senado, tentando se justificar e estabelecer definitivamente o seu poder na Numídia, Jugurta parte para a utilização da corrupção de membros do senado e dos nobres romanos propensos aos seus oferecimentos, lembrando do caráter desonesto demonstrado por aqueles cidadãos da República que conheceu na Península Ibérica. Com a morte do rei da Numídia, três serão os herdeiros, entre eles Jugurta. Diz-se que a possibilidade de governar tantos bens deturpa sua personalidade; no entanto, não é necessariamente de onde provem sua mudança que nos interessa e, sim, como essa transformação e leva a anunciar os romanos que procura para angariar a sua causa na guerra da 19 Numídia. Quando Jugurta inicia sua rivalidade contra Aderbal e esse sugere que se procure os romanos para conseguir apoio, por várias vezes Jugurta diz ser o apoio deles passível de compra. 7 1.3 – As tentativas de resolução diplomática para a questão da Numídia – As relações de patronato e clientela – A declaração de guerra da República Romana contra Jugurta. No início da disputa entre Jugurta e Aderbal pelo controle territorial da Numídia foram tentadas saídas de cunho diplomático, que envolveram a intermediação dos políticos de Roma, principalmente os membros do Senado. Segundo Salústio, Aderbal compareceu na assembleia senatorial e discursou longamente, alegou a antiga amizade existente com os romanos desde os tempos de seu avô Massinissa durante a Segunda Guerra Púnica, consolidada posteriormente durante o reinado de seu pai Micpsa. Ele solicita que os senadores intercedam para que seja coibida a sanha usurpadora de Jugurta, ressaltando que sua integridade física estava em risco enquanto não fossem cessadas as hostilidades e Jugurta afastado do poder. Aderbal, de acordo com o texto de Salústio, frisa a questão de existirem cidadãos de caráter corruptível ocupando cargos públicos na República, e que, graças as suas manipulações, decisões eram tomadas pelo Senado em benefício de Jugurta. Terminou solicitando a ajuda de Roma para a recuperação do trono da Numídia, afirmando que na realidade o território do reino pertencia aos romanos e ele apenas cuidava de sua administração, evitando que o crime, a injúria e usurpação perpetrados contra sua família por Jugurta prevaleçam. Ao término do discurso de Aderbal, os representantes de Jugurta desconsideraram o que ele havia falado, dizendo que a morte de Hiempsal fora causada por suas atitudes violentas na Numídia e que a guerra fora provocada por Aderbal, defenderam a conduta de Jugurta por seu histórico favorável em relação à República, quando havia lutado ao lado dos romanos na campanha do cerco da cidade de Numância. Após a saída de ambas as partes do recinto do Senado iniciaram-se as deliberações referentes ao caso, os partidários de Jugurta e grande parte dos senadores corrompidos pelo dinheiro desprezavam o discurso de Aderbal e exaltavam os méritos de seu patrono, fazendo o possível para defender a usurpação e os crimes cometidos por Jugurta. Uma minoria de senadores, que colocavam a honra e a justiça acima do dinheiro, defendiam o socorro à Aderbal e punir severamente o assassinato de Hiempsal, porém acabou sendo privilegiada a opinião dos que haviam sido beneficiados financeiramente. É bom destacar que esta disputa entre Aderbal e Jugurta significaria também uma uma cisão no Senado por 7 (Cf. SILVA, Daniela Barbosa da. Op., cit., p. 98) 20 interesses diferentes, apesar do relato de Salústio colocar em Jugurta a culpa pelos conflitos exitentes na Numídia é necessário fazer uma análise coerente e abalizada dessa situação, evitando a adoção de uma postura maniqueísta. É preciso destacar que a necessidade premente de verbas disponíveis pela classe política da República Romana estava relacionada com as eleições para os cargos da magistratura. Havia um gasto elevadíssimo para a formação de uma clientela de eleitores. Devido as constantes dificuldades da plebe para sobreviver, lembrando que Roma nunca desenvolveu atividades econômicas que propiciassem condições de sobrevivência para a maior parte de sua população, havia motivações para o recebimento desses favores. Este problema foi agravado também devido ao grande número de escravos que adentraram na República Romana, resultado da expansão das conquistas militares, por isso era necessário para a maior parte da plebe ter um patrono para a garantia das necessidades básicas. Em troca dessa dependência, os cidadãos plebeus deveriam ser eleitores do seu patrono, portanto quanto mais dinheiro houvesse para investir na manutenção de uma grande clientela maiores seriam as chances de eleger-se. Já os libertos também participavam ativamente do processo eleitoral de seus antigos senhores, muitos conseguiam enriquecer e ascender socialmente, porém a maioria permanecia ligada por laços de dependência e afetividade as suas antigas casas senhoriais. Além disso, a organização dos comícios exigia um grande investimento financeiro, isto explica porque os oferecimentos corruptores em ouro e prata de Jugurta eram tão bem aceitos por parte dos políticos romanos. “Jugurta havia aprendido mais do que arte militar na Espanha. Ele sabia que o sucesso e o fracasso em Roma dependiam de assumir um mandato e que as eleições, até mesmo para as magistraturas inferiores, eram incrivelmente caras”. (MATYSZAK, 2013: pos. 949/951) O Senado acabaria por decidir pela divisão da Numídia entre Jugurta e Aderbal. Nesta repartição, Jugurta acabaria ficando com a parte mais rica da Numídia e os representantes do Senado foram enviados à África para definir esta repartição do território. Depois de resolvida a questão da partilha do reino da Numídia entre Jugurta e Aderbal, os representantes do Senado de Roma se retiraram da África, fazendo que Jugurta chegasse a conclusão que seus temores eram infundados em relação a uma retaliação da parte dos romanos por causa de suas atitudes, Aquilo que lhe fora dito em Numância pelos seus amigos era verdade, ou seja, a sociedade de Roma era composta por cidadãos descomprometidos com o bem público em sua maior parte e que não era difícil conseguir seus intentos, desde que fosse pago o preço certo. 21 Este acordo durou por alguns anos enquanto Jugurta consolidava seu novo reino e o colocava em condições de lutar e por mais alguns meses depois disso, enquanto Aderbal continuamente se recusava a responder às provocações de Jugurta, cada vez mais violentas. Finalmente, Jugurta perdeu a paciênciae invadiu ostensivamente as terras de Aderbal, obrigando-o a retornar rapidamente à cidade-fortaleza de Cirta. 8 Na sequência dos acontecimentos, os romanos enviariam uma comissão para investigar o que estava ocorrendo na Numídia. Jugurta acabaria por conseguir contornar a situação, colocando a culpa em Aderbal pela agressão e que ele apenas estava se defendendo, conseguindo utilizar o seu prestígio na campanha militar na Península Ibérica e sua amizade com Públio Cipião para atenuar sua condição. Com o retorno da comissão para Roma, Jugurta recomeçou o cerco à Cirta, Aderbal recorreria desesperadamente de novo a intervenção romana, uma nova comissão foi enviada para a Numídia comandada por senadores experientes, como Marco Emílio Escauro. Jugurta mais uma vez evitou que essa comissão interferisse, após a saída dos embaixadores romanos do território da Numídia ele reinicia suas hostilidades voltando ao sítio de Cirta, agindo de forma beligerante e decisiva, consegue penetrar na cidade com suas forças e colocar Aderbal numa situação delicada. Em Cirta havia mercadores italianos que auxiliavam na resistência contra o cerco de Jugurta, estes confiando na honorabilidade do nome de Roma aconselharam Aderbal a render-se em troca de sua vida. Apesar de relutante ele aceitou o conselho, que infelizmente resultou em sua morte após ser torturado terrivelmente, Jugurta ordenou também a execução de todos os númidas adultos e dos mercadores italianos, sem se preocupar com as consequências. Quando a notícia da queda de Cirta chegou a Roma, em 112 a. C., a guerra tornou-se inevitável, até porque muitos dos defensores de Cirta haviam sido comerciantes italianos com amigos e patronos no senado. Quando o filho de Jugurta chegou para acalmar os romanos com 8 (MATYSZAK, Philip. Os Inimigos de Roma – Editora Manole – 2013 – Livro digital/ Kindle. pos. 953/955) 22 palavras gentis e muito dinheiro, recebeu a ordem de voltar para casa a menos que pretendesse oferecer uma rendição incondicional. 9 1.4 – As razões para a decadência cívica e moral – A excessiva concentração de terras em mãos do patriciado – As tentativas de Tibério e Caio Graco para a resolução do problema fundiário. Para fazer uma reflexão mais detalhada sobre as questões descritas por Salústio em “Guerra de Jugurta”, teremos que retornar à segunda metade do século II a. C. para relatar com mais abrangência a já citada degradação cívica e moral da República Romana, além da perda da sacralidade e magnitude dos cargos da magistratura. Devido à expansão territorial decorrente das conquistas ocorreria um grande acúmulo de terras públicas pertencentes à Roma. Nesse contexto haveria também um empobrecimento da maior parte do campesinato, devido ao longo período que os camponeses passavam nas legiões acabavam perdendo suas colheitas e eram obrigados a vender suas terras para os cidadãos ricos do patriciado, quando não eram ocupadas sem nenhum tipo de ressarcimento financeiro. A concentração fundiária nas mãos do patriciado seria responsável por uma modificação gradual das estruturas de poder dentro da República Romana, este processo levariam as futuras dissensões dentro da classe política e seria responsável pela dicotomia entre os defensores do poder nas mãos das famílias tradicionais e os da sua ampliação para a plebe. A República romana constituía-se essencialmente de uma comunidade de pequenos camponeses livres, proprietários das terras que cultivavam. O camponês romano era o cidadão; como tal devia defender sua pátria pelas armas. Em caso de guerra, ele deixava sua casa e seu campo; mas, terminada a campanha, retornava para fazer a colheita. É por isso que raramente se permitia que as campanhas militares se prolongassem muito após os primeiros dias de verão. As grandes guerras de conquista iriam modificar profundamente a estrutura social tradicional. Mesmo assim, permaneceu a idealização do “cidadão-soldado”. 10 9 (MATYSZAK, Philip. Op., cit., pos. 963/965) 10 (Cf. CORASSIN, Maria Luiza. Op., cit., p. 7 e 8) 23 Estas grandes modificações ocorridas dentro da sociedade romana causaram um empobrecimento em larga escala de maior parte da população, Roma sempre teve na agricultura a principal atividade produtiva e economicamente responsável pela manutenção do equilíbrio entre os diversos estamentos sociais. A concentração da maior parte da propriedade fundiária nas mãos do patriciado levaria ao inchaço populacional das cidades, isto geraria problemas desconhecidos anteriormente em Roma, mas a chamada crise do século II a. C. tem em seus desdobramentos a gênese da discórdia entre as facções políticas que emergiram de todo esse processo de mudanças. Paradoxalmente, o expansionismo que enriquecera o erário público de Roma e a tornara uma grande potência seria também o responsável por enfraquecer suas instituições. O Estado romano dispunha de consideráveis extensões de terras que caíram em seu poder após serem confiscadas aos inimigos. Um certo número de cidades itálicas aliadas, principalmente na Campânia e na Itália do sul, passaram para o lado de Aníbal; foram depois duramente castigadas por Roma, através do confisco de suas terras. Estas foram acrescentadas ao patrimônio público que Roma já havia adquirido no decorrer de século III, durante a conquista da Itália central e meridional. Na mesma época, sobretudo no início da segunda guerra púnica (principalmente de 216 a 210) o Estado precisou pedir empréstimos a particulares – aos cidadãos mais ricos, senadores e cavaleiros em primeiro lugar. O Estado aproveitou estas terras que caíram em seu poder para liquidar em parte as dívidas públicas. Tal medida foi muito bem recebida pelos credores; foram reembolsados com terras que após a guerra ficaram ainda mais valorizadas. 11 Outro fator primordial que alteraria as condições existentes na sociedade romana seria a utilização cada vez maior da mão de obra escrava. A escravidão na Antiguidade era resultado dos cativos apreendidos como prisioneiros de guerra, além de boa parte das populações das terras conquistadas que eram levados para Roma como butim de guerra. Existia a escravidão também por endividamento ou por punição por crimes cometidos, enfim a adoção dessa instituição em larga escala aprofundaria as dificuldades para a sobrevivência da plebe, 11 (Cf. CORASSIN, Maria Luiza. Op., cit., p. 14 e 15) 24 dentro de um contexto em que a acumulação material pelo patriciado ia criando um abismo social com consequências funestas para a República Romana. Outro efeito da escravidão foi diminuir a necessidade da exploração direta dos homens livres pobres, os quais foram utilizados apenas na guerra. Apiano refere-se à preferência dos proprietários romanos pela mão de obra escrava, pois os homens livres estavam sujeitos à convocação militar, e portanto não disponíveis como trabalhadores. Na verdade, a guerra colocou uma mão-de-obra escrava barata e abundante à disposição dos proprietários fundiários romanos. O resultado foi claro; a situação dos camponeses piorou. Muitos desses cidadãos- soldados que os romanos gostavam de chamar de “conquistadores do mundo” perderam suas terras e nelas foram substituídos pelos povos vencidos reduzidos à escravidão. 12 Segundo a interpretação de Salústio, este quadro viria a agravar-se apósa vitória definitiva conta Cartago na Terceira Guerra Púnica em 146 a. C., a partir daí a República Romana não teria mais um inimigo direto e potencialmente capaz de impedir a predominância de Roma no entorno do Mediterrâneo. Por volta do de 134 a. C., seria iniciado um movimento para tentar diminuir a discrepância existente entre os grandes proprietários e os camponeses expropriados de suas terras. Tibério Graco, originário de uma família patrícia, se elegeria tribuno da plebe e seria o responsável por elaborar uma lei que limitasse a propriedade fundiária da nobreza e redistribuísse parte das terras públicas pelo campesinato despossuído, que haviam se tornado membros da plebe urbana empobrecida. Pretendia diminuir o impacto do êxodo dessa população para as cidades e readequar a economia agrária romana nos seus antigos moldes, ou seja, retornando os pequenos agricultores a sua antiga condição. As cidades, particularmente Roma, incharam no início do século II, recebendo muitos dos sem-terra que foram sendo expulsos do campo devido à tendência da propriedade rural de concentrar-se nas mãos dos ricos. O aumento das despesas com “obras públicas” e em geral as maiores oportunidades de trabalhos na cidade, no artesanato, na produção de manufaturas necessárias, por exemplo, no exército, 12 (Cf. CORASSIN, Maria Luiza. Op., cit., p. 17) 25 favoreceram o processo de urbanização do proletariado rural. Por outro lado, a construção de grandes obras públicas, como aquedutos para atender o crescimento urbano, ou de templos e outros edifícios, em contínuo aumento no decorrer do século II, que tinham por finalidade política; mas não conseguiam criar uma alternativa permanente à base agrária da sociedade romana. 13 Apesar das aparentes boas intenções do projeto de lei agrária elaborado por Tibério Graco ele foi violentamente contestado pelos membros do Senado, os grandes proprietários fundiários que achavam que seriam prejudicados com esta redistribuição, por mais que fosse notório que a intenção era utilizar as terras públicas, pertencentes ao Estado romano e consequentemente da população de Roma. Tibério Graco e seus partidários fizeram o possível, dentro do ordenamento jurídico, para conseguir que fossem implementadas as medidas previstas na lei. Diante das dificuldades que surgiam, devido a oposição ferrenha da classe senatorial, acabaria ingerindo inclusive em assuntos fora de suas atribuições como tribuno da plebe, como a política externa, no intuito de solucionar todo este imbróglio. O curto espaço de tempo do mandato de tribuno da plebe, 1 ano, sem a possibilidade de reeleição imediata, foi um empecilho para que Tibério Graco conseguisse resolver todas as questões pertinentes a reforma agrária. Ele decidiu então recorrer a um princípio nunca utilizado anteriormente em Roma, a predominância da opinião popular, para conseguir ultrapassar este obstáculo e reeleger-se para o cargo, o que não seria aceito pela classe senatorial. Parte do Senado resolveu que a solução para o problema seria utilizar a violência para conter Tibério Graco e seus correligionários, durante o comício no Capitólio organizado para as eleições foi protagonizada uma grande carnificina, em que pereceu Tibério Graco e vários de seus seguidores. O Senado, reunido nas proximidades, aguardava o momento para intervir. Quando os inimigos de Tibério vieram informar ao Senado que ele havia levado a mão à cabeça para indicar que desejava a coroa. 13 (Cf. CORASSIN, Maria Luiza. Op., cit., p. 28) 26 (Plutarco, Tibério, XIX) e espalhou-se o boato de que ele expulsara os outros tribunos, que desejava se fazer proclamar tribuno sem eleição (Apiano, Guerra Civis, 15), não houve a preocupação em verificar se essas notícias eram verdadeiras. Um grupo de senadores propôs que se apelasse para a violência; o cônsul Múcio Cevola se recusou a ordenar a morte de um cidadão sem julgamento. Apesar disso, uma facção de senadores liderada por Cipião Násica, primo de Tibério, irrompeu para fora da cúria, a sede do Senado. Uma multidão de senadores e cavaleiros, acompanhados de seus clientes e escravos, invadiu o local dos comícios no Capitólio. A plebe não ousou opor-se, abrindo passagem. Foi um massacre, no qual Tibério e inúmeros partidários foram mortos. 14 A lei agrária de Tibério Graco não foi revogada, porém foi seus efeitos foram praticamente inócuos devido a ação dos senadores e demais membros da nobreza, que procuraram evitar que houvesse grandes alterações no contexto da sociedade romana. Cerca de 10 anos depois (123 a. C.) Caio Graco, irmão de Tibério, seria eleito tribuno da plebe e retornaria com os projetos de radicalizar a reforma agrária. Caio Graco já fazia parte anteriormente da comissão do senado que agilizava os projetos de implementação da lei agrária, não há indícios historiográficos mais detalhados sobre como ocorreram esses procedimentos, porém ocorreram demarcações das terras para a distribuição. Para conseguir obter êxito em suas demandas Caio Graco procurou atrair os membros componentes da classe equestre concedendo- lhes benefícios, como a participação no controle jurídico sobre os recursos destinados as províncias. Caio Graco procuraria ser mais atuante para implementar as modificações pertinentes a alteração do status quo da propriedade da terra, além disso havia uma preocupação com a sobrevivência da plebe, criando medidas que garantissem uma melhor qualidade de vida da população, “na qual o Estado distribuía mensalmente trigo a preço fixo e mais baixo que o de mercado para os cidadãos romanos” (CORASSIN, 1988: p. 58). Os membros do patriciado voltaram a reagir de forma violenta contra estas novas tentativas de implementação da reforma agrária e de outras melhorias para a plebe. Contestando as medidas de cunho popular tomadas por Caio Graco, as classes detentoras do poder utilizaram a convocação de uma assembleia popular para propor a revogação da criação de uma colônia 14 (Cf. CORASSIN, Maria Luiza. Op., cit., p. 54) 27 em Cartago, considerado um local amaldiçoado pelos romanos, para exacerbar os ânimos dos partidários de Caio Graco e iniciar um ataque contra eles. Caio e seus partidários retiraram-se para o Aventino, uma das colônias de Roma, procurando negociar uma rendição. No dia seguinte o cônsul ordenou o ataque. Tentando a fuga e em vias de cair nas mãos de seus inimigos, Caio fez-se matar por um seu escravo, Fúlvio Flaco também foi morto. Seguiu-se uma violenta repressão, numa onda de prisões, processos e exílios. 15 A partir desse momento inicia-se um processo de desqualificação dos princípios da lei agrária de Tibério Graco, os membros da nobreza conseguiram reverter os benefícios que favoreciam a plebe, isto aprofundou ainda mais a desigualdade entre os setores componentes da sociedade romana. No início dos acontecimentos relativos a Guerra de Jugurta, com os ânimos aflorados por causa dessas divergências, torna-se latente a divisão de interesses da classe dirigente da República Romana, estes fatores vão influir diretamente nos rumos dos acontecimentos e seriam fundamentais para a compreensão de certas atitudes e fatos ocorridos. Em Roma, dois reformadores de uma das principais famílias patrícias, os irmãos Graco, tentaram corrigir alguns desequilíbrios da justiçasocial que ameaçavam o estado romano. Eles encontraram intensa resistência daqueles que tinham interesses velados e que, de modo egoísta e corrupto, exterminaram não só o programa de reformas, mas também os dois irmãos. A morte de Tibério Graco em 133 a. C. marcou o início da lenta morte da República Romana. 16 15 (Cf. CORASSIN, Maria Luiza. Op., cit., p. 72) 16 (Cf. MATYSZAK, Philip. Op., cit., pos. 188/190) 28 Capítulo 2 – A continuação da guerra e as contradições da sociedade romana Neste capítulo será feita uma análise dos desdobramentos ocorridos em Roma após o início da guerra contra Jugurta e das contradições existentes entre os membros do Senado em relação ao posicionamento sobre o conflito, principalmente ressaltando a questão da corrupção e de sua relativa influência nos acontecimentos. Será destacada a indefinição da estratégia a ser utilizada pelas tropas enviadas para a Numídia, resultado da incapacidade demonstrada pelos comandantes designados para o início da campanha. Em seguida uma descrição sobre a mudança no desenrolar dos acontecimentos a partir do momento em que Quinto Cecílio Metelo assume o comando, referindo-se ao seu empenho no treinamento das tropas, na eliminação dos vícios, do reestabelecimento da disciplina e da resolução dos problemas de logística. Depois dos combates iniciais, em que a organização dos romanos vai superar as estratégias e os artifícios de Jugurta, a guerra entra em um impasse para a sua definição, pois apesar dos revesses os númidas continuavam resistindo, sendo necessário encontrar uma saída para a resolução do conflito. 2.1 – As movimentações em Roma relativas a guerra na Numídia – A corrupção da classe política e sua importância no contexto do conflito – As dificuldades para o início efetivo das hostilidades contra Jugurta – A trégua e a suposta rendição de Jugurta firmada com Lúcio Béstia Calpurnio e suas consequências. A notícia do assassinato de Aderbal ao chegar a Roma provocou alvoroço no Senado, onde os partidários de Jugurta tentaram contornar a situação, porém a intervenção do tribuno da plebe Caio Memmio, inimigo declarado do patriciado, impediu que discussões infindáveis protelassem a retaliação contra Jugurta. Neste momento o relato de Salústio em “Guerra de Jugurta” vai exemplificar a profunda divisão de interesses existentes na classe política da República, principalmente na questão referente às medidas urgentes que deveriam ser adotadas para a condução do conflito armado na Numídia. O Senado designou, segundo a lei Semprônia, a polemica regulamentação da propriedade fundiária criada por Tibério Graco, as províncias da Numídia e da Itália para os futuros cônsules Publio Cipião Nasica e Lucio Bestia Calpurnio. Cipião ficou com a Itália enquanto coube a Calpurnio a Numídia através de sorteio, assumindo assim o comando das ações militares contra Jugurta. A partir dessa definição inicia-se o processo de recrutamento do exército que irá combater no norte da África e da liberação das verbas necessárias para o financiamento dessa empreitada. Mais uma vez Salústio vai destacar a tentativa de Jugurta, 29 utilizando a disponibilização dos seus recursos materiais, para contornar esta situação complicada através da corrupção de membros da classe política senatorial. Seu filho vai a Roma com dois acompanhantes na tentativa de solucionar esta questão, porém, devido aos acontecimentos anteriores, o Senado decide não receber os enviados por Jugurta, dando um prazo de 10 dias para retornarem à Numídia. O relato de Salústio não pode ser levado ao pé da letra, Jugurta pode ter sido perito em enfiar dinheiro na bolsa dos senadores – era convicção nos tribunais romanos de que o fato de ter aceitado propinas em uma delegação para a África havia sido o que finalmente obrigara Opímio, o assassino de Caio Graco, a se retirar para o exílio. Mas os romanos tendiam a usar o suborno como uma escusa prática toda vez que a guerra, as eleições ou os vereditos da corte não tinham o desfecho que esperavam. Corrupção direta desse tipo era provavelmente menos comum do que alegavam.17 A relativização da questão referente a corrupção, utilizada por Jugurta para a manutenção do controle sobre os políticos de Roma, de acordo com o texto de Salústio, está inserida nas relações que os romanos procuravam estabelecer no período republicano para a manutenção da dominação de determinadas regiões, sem a efetiva necessidade do controle político e da manutenção de tropas no local. A Numídia era um reino independente, porém atrelado aos ditames políticos da República Romana desde o final da Segunda Guerra Púnica, o surgimento de Jugurta, como fator desestabilizador desta relação, vai demonstrar as fragilidades existentes dentro de Roma para que este sistema continue funcionando a contento, na medida em que o alargamento territorial aumenta as dificuldades para o efetivo controle por parte da classe senatorial e dos cônsules. Esses fatores vão causar uma indefinição por parte dos romanos na Numídia, apesar de iniciarem as ações de forma decisiva e contundente contra Jugurta. Lucio Bestia Calpurnio organizara seu exército escolhendo como lugar tenentes homens nobres e influentes, que seriam teoricamente fundamentais para a manutenção da austeridade durante a campanha, devido a uma suposta autoridade moral e caráter integro, estando entre eles o já citado senador Marco Emílio Escauro. Calpurnio conduz seus comandados da Itália ao Norte da África com determinação, consegue vitórias no campo de 17 (BEARD, Mary. SPQR: Uma história da Roma Antiga. São Paulo, Planeta, 2007. p. 263) 30 batalha e faz muitos prisioneiros, “pues nuestro consul estaba adornado de numerosas cualidades físicas y morales, pero su avaricia lo echaba todo a perder” (SALÚSTIO, 1971: p. 94). Mais uma vez entrará em cena no relato do livro “Guerra de Jugurta” a disposição dos recursos financeiros aparentemente infindáveis do rei da Numídia, que colocavam em cheque a honestidade dos políticos romanos e conseguiam modificar suas intenções. A disposição de Jugurta em continuar empregando a corrupção para evitar uma confrontação militar contra Roma novamente dá seus resultados, graças à ganância de Calpúrnio ele consegue atenuar as dificuldades decorrentes da guerra, este utiliza Escauro como cúmplice e executor dos seus projetos, ironicamente a suposta integridade e honestidade dos componentes escolhidos para esta campanha militar cai por terra diante da possibilidade de alcançar vantagens materiais. “Esta lamentável história no norte da África levantou grandes questões. Seria o Senado de fato capaz de conduzir o Império e proteger os interesses de Roma além- mar? Se não que tipo de capacidade era necessária, e onde poderia ser encontrada? (BEARD, 2017: p. 262). Jugurta consegue entabular as negociações para uma trégua através da concessão das exigências feitas por Calpúrnio, posteriormente será definida sua “rendição”, que na realidade, de acordo com o texto de Salústio, é uma grande farsa. A repercussão da forma como foi resolvido o conflito não foi positiva em Roma, em todos os locais da cidade a conduta do consul Lucio Bestia Calpurnio era discutida. A plebe estava indignada com o acordo firmado com Jugurta, havia indecisão no Senado sobre qual decisão tomar em relação ao caso, se seria justo julgar a conduta de Calpurnio, que tinha a reputação de Escauro parasalvaguardar sua conduta. Porém a postura de Caio Memmio, insuflando a plebe com discursos inflamados contra as irregularidades cometidas, colocava a dignidade da República acima dos interesses escusos, principalmente acusando a Calpurnio pelos fatos ocorridos. A fuerza de repetir estos discursos y outros por el estilo, Memmio persuade al Pueblo para que Lucio Casio, a la sazón pretor, sea enviado a Jugurta y lo conduzca a Roma bajo la garantía del Estado, a fin de descubrir más fácilmente, por sus declaraciones, los delitos de Escauro y los demás cómplices, a quienes acusaba de prevacaración. Mientras que esto sucede en Roma, los oficiales que Bestia había dejado em Numidia con el mando del ejército, siguiendo el ejemplo dado por su 31 general, cometieron muchos y muy escandalosos excesos. Hubo incluso quienes, ganados por el oro, entregaron los elefantes a Jugurta; unos los vendíam sus desertores, otros saquaban los pueblos con los que no estábamos em guerra: tan grande era la avaricia que, como una epidemia, se había apoderado de las almas!18 A proposta de Caio Memmio é aprovada pelo Senado, apesar da citada “consternação da nobreza” no texto de “Guerra de Jugurta”, o pretor Casio é enviado para entrevistar Jugurta. Este presumivelmente estava temeroso das consequências de um depoimento perante os representantes do povo romano, devido aos crimes que cometera. Casio consegue convence-lo a ir à Roma argumentando que seria melhor experimentar a clemencia em vez da cólera do povo romano, já que havia se rendido em seu nome, dando a sua garantia pessoal de que nada ocorreria com ele, garantia esta que Jugurta, segundo Salústio, desconfiava tanto quanto a do Estado, apesar da cumplicidade de vários membros do Senado em relação aos seus interesses e da incompetência já demonstrada para a resolução do problema da Numídia. Para Salústio, essa incompetência decorria de seu estreito elitismo e de sua recusa em reconhecer talentos fora de um pequeno grupo. A exclusão dos plebeus dos cargos políticos fora interrompida havia muito tempo, mas duzentos anos mais tarde – assim seguia a discussão – a nova aristocracia mista de patrícios e plebeus tinha se tornado extremamente exclusiva. As mesmas famílias monopolizavam os mais altos cargos e os comandos de maior prestígio, geração após geração, e não se inclinava a aceitar a entrada de “novos homens” competentes. O Senado era dominado pelo equivalente antigo ao grupinho dos veteranos.19 Esta presença de Jugurta em Roma demonstra o respeito que os romanos tinham pelos preceitos de sua legislação, a inviolabilidade de um indivíduo deveria ser respeitada estando ele sob a proteção da autoridade de um magistrado, não havendo a possiblidade de ser preso devido a esta imunidade. É um momento complicado politicamente para a República, a divisão de interesses entre os componentes do patriciado está cada vez mais explícita neste final 18 (Cf. SALÚSTIO. Op., cit., p. 112 e 114) 19 (Cf. BEARD, Mary. Op., cit., p. 262) 32 do século II a. C., a situação indefinida na Numídia é mais uma demonstração dessa dicotomia. Salústio em seu relato procura sempre destacar a existência de um setor corrupto do Senado que impossibilitava o andamento correto das ações, o que novamente vai ressaltar em seu texto quando Jugurta consegue corromper o tribuno da plebe Caio Bebio para vetar qualquer sanção imposta pela cúpula senatorial. Após o discurso de Caio Memmio era a hora de Jugurta responder as acusações, porém Caio Bebio, o tribuno da plebe anteriormente citado como corrompido pelo ouro de Jugurta, interrompe o interrogatório, manda que ele permaneça em silencio, apesar da irritação do povo presente à audiência, que indignado se manifestava contra a intervenção de Bebio. Esta interrupção favorável a Jugurta fez com que Bestia e todos os outros envolvidos renovassem seus ânimos para escaparem da punição por seus crimes. Fazendo uma pausa para uma reflexão sobre a construção da história da Guerra de Jugurta por Caio Salústio Crispo, não podemos nunca deixar de nos ater aos intuitos políticos inerentes a este relato. Escrito após o assassinato de Júlio César em 15 de março de 44 a. C., procura fazer uma defesa das propostas dos “populares” que almejavam, de acordo com os registros historiográficos existentes, uma melhor distribuição das benesses advindas do engrandecimento territorial da República Romana com a plebe, em vez de se limitarem ao grupo dos “optimae”, composto pela elite do patriciado, as classes senatorial e equestre. É sempre bom voltarmos a este tema para termos condições de compreender as motivações inseridas nesta obra literária e o papel que Salústio desempenhava nesta conjuntura. “Não é o corpus de análise do historiador que determina a estruturação de seu discurso e seu significado, mas antes a presença de elementos extra-epistêmicos, sobretudo éticos e estéticos”. (MELLO, 2009: p. 615) Por esta época vivia em Roma exilado, Masiva, filho de Gulusa e neto de Massinissa, que havia se refugiado na cidade após a tomada de Cirta e da morte de Aderbal devido a fazer parte do partido contrário as pretensões de Jugurta. Espurio Albino havia assumido o consulado em companhia de Quinto Minucio Rufo e induziu Masiva de solicitar ao Senado a coroa da Numídia, por ser descendente direto de Massinissa, opondo-se a Jugurta, que era visto como ódio e temor geral pelos crimes que cometera. Nesta parte do relato de Salústio vemos mais uma vez as ambições pessoais sendo o principal elemento propulsor das ações dos personagens, em detrimento dos interesses da República e da população de Roma, Espurio Albino desejava uma guerra, que o colocaria numa posição de destaque na conjuntura política existente, por isso queria que as coisas se 33 encaminhassem para um novo confronto na Numídia, sendo por sorteio esta província cabendo para a sua administração e para Rufo a Macedonia. A partir do momento que as pretensões de Masiva foram descobertas por Jugurta, sabendo que seus amigos nada podiam fazer para impedi-las por variados motivos, encarrega a Bólmicar, seu amigo mais íntimo e confidente, a contratação de indivíduos para executa-lo de maneira bem discreta, mesmo que isso não seja possível este assassinato deve ser executado de qualquer maneira. Bolmícar cumple inmediatamente las órdenes del rey y por medio de sujetos mestros en tales empresas, espía, las idas e venidas de Masiva, los lugares que frecuenta y las horas de las salidas; despúes le tiende la emboscada en el momento más oportuno. Uno de estos sujetos encargados de asesinar a Masiva le ataca demasiado imprudentemente y lo apuñala; pero el asesino es detenido y, a instancia de muchas personas, sobre todo del consul Albino, descubre el complot con sus declaraciones. Es acusado Bolmícar, más en virtude de la justicia y de la moral que por el derecho de gentes, pues había venido a Roma acompañado a Jugurta y este estaba protegido por el salvoconducto del Estado. En cuanto a Jugurta, aunque reo manifesto de tan grave delito, no cesó de negarlo insistentemente hasta que comprendió que por encima de su crédito y de su oro estaba el odio provocado por este hecho. Así pues, aunque al comienzo del proceso había entregado como garantía a cincuenta de sus amigos, más preocupado de su corona que de los amigos entregados como caución, despacha ocultamente al reo para Numidia, ante al temor de que, si Bolmícar era entregado ao suplicio em Roma,recelasen de obedecerle los demás vasallos. Él mismo le siguió pocos días después, por haber recebido del Senado orden de abandonar Italia. Se dice que, ya fuera de Roma, volvió a ella muchas veces sus ojos en silencio y que por último exclamó: “¡Ciudad venal y que perecería pronto si encontrase un comprador!20 Este retorno de Jugurta para a Numídia representará uma mudança na condução das operações militares por parte dos romanos, e em breve os seus resultados serão responsáveis por um impasse para a solução definitiva dessa guerra. 20 (Cf. SALÚSTIO. Op., cit., pag. 122 e 124) 34 2.2 – O reinício das hostilidades sobre o comando de Espúrio Albino – A questão eleitoral – Decisões errôneas na condução da campanha militar – Problemas ocorridos em Roma devido aos acontecimentos na Numídia. As hostilidades são reiniciadas na Numídia sob o comando de Espurio Albino, que procurou reorganizar as tropas romanas com o intuito de terminar a guerra o mais rápido possível. Jugurta permanecia com seus procedimentos dúbios, ora dando sinais que poderia render-se aos romanos, depois partindo para o ataque com o intuito de não desanimar seus comandados. Salústio chega a cogitar de uma possível conivência de Albino com Jugurta, devido a lentidão das ações militares, porém isto provavelmente era ocasionado pela ingerência dos assuntos políticos e não pela traição. Um dos fatores que desviavam as atenções de Albino eram a proximidade das eleições em Roma, ele voltou para a cidade por causa das realizações dos comícios deixando seu irmão Aulo no comando. A velha preocupação com as eleições para as magistraturas, cujo mandatos eram anuais, ocasionavam esta constante atenção dos comandantes militares com o que ocorria nos debates públicos em Roma, isto criava problemas para a elaboração das estratégias que deveriam ser tomadas para a condução das tropas no intuito de vencer a guerra. Porém, enquanto as discussões políticas em Roma atrasavam o início dos comícios, na Numídia, Aulo decide tentar a finalização do conflito pela força das armas ou através de um acordo de Jugurta, conseguindo extrair dele ainda uma grande soma em dinheiro. Ele coloca suas tropas em marcha no mês de janeiro, apesar da inclemência do inverno, cerca a cidade de Sutul, onde Jugurta guardava seus tesouros, apesar das dificuldades existentes, no intuito de conseguir apossar-se das riquezas existentes. Percebendo a incompetência de Aulo, Jugurta procura ganhar tempo e vai tergiversando com os romanos até conseguir se livrar da ameaça. Utilizando de seus emissários, Jugurta vai corrompendo centuriões e outros oficiais, promovendo uma cisão dentro das tropas romanas. Consegue afastar Aulo de perto de Sutul e desfecha um ataque de surpresa contra os romanos, em que a divisão das forças provocadas pela corrupção determina a derrota romana. Jugurta impõe suas condições para a rendição a Aulo, duras e humilhantes, que são aceitas por não haver outra opção de sobrevivência para os romanos, impondo sua saída da Numídia em 10 dias. O texto de Salústio continua realçando a questão da aceitação por parte dos romanos do suborno oferecido por Jugurta para contornar as situações conflitantes. A insistência com esta temática resulta na construção de uma narrativa repleta de exemplos indignos seguidos 35 pelos componentes da sociedade romana, especialmente a classe política. De que forma podemos estabelecer uma conexão com uma possível retratação da realidade? A verdade, portanto, pode até ser encontrada nas afirmações factuais, nos enunciados, enfim, nas partes dos discursos, já que se torna possível a verificação desta por meio de análise das fontes. Contudo, quando se trata da narrativa do discurso historiográfico, não há elemento que identifique ou estabeleça critério para se dizer qual é e qual não é o modo verdadeiro e correto de se organizar narrativamente uma dada massa de informações.21 E mais uma vez vemos no relato de Salústio a perda da credibilidade da classe política da República na condução dos negócios públicos, ele afirma que o conhecimento desses fatos em Roma causou uma grande consternação entre os cidadãos, que viam a glória das armas romanas humilhadas pela inexperiência de Aulo e por sua covardia, devido ao fato de preferir um acordo para salvar-se em vez de utilizar os meios militares para honrar o nome da República. Temendo as consequências da decisão tomada por seu irmão na Numídia, o consul Albino resolve consultar o Senado sobre a validade do tratado enquanto resolve recrutar novas tropas e pedir ajuda aos aliados para recomeçar a guerra contra Jugurta. A derrota romana não se deveu apenas a capacidade superior de Jugurta como general. Ele estava em terreno conhecido e as legiões, devastadoramente efetivas nas baixas planícies costeiras, tinham dificuldades no planalto elevado do interior da Numídia. Nesse local, uma mistura de arbustos e terreno acidentado dificulta o movimento. Os verões eram quentes e áridos e, na primavera e no inverno, os ventos frios sopravam do Mediterrâneo para as montanhas, trazendo chuvas que transformavam as poucas estradas em lama e cada leito de riacho em uma torrente. Os suprimentos vindos da costa tinham de ser levados 21 (MELLO, Ricardo Marques de. Da utilidade e desvantagem da história para Hayden White. Varia hist. [online]. 2009, vol.25, n.42, pp.611-634. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104- 87752009000200013&script=sci...tlng p. 620) 36 pelas montanhas com densa vegetação de coníferas e sempre vivas e que também eram densamente povoadas por bandidos prontos a atacar qualquer comboio com pouca guarda.22 A constatação dessas ocorrências em sequência favoráveis a Jugurta era resultado também do seu conhecimento do teatro das operações militares, as legiões romanas eram eficientes em terreno plano, porém em áreas irregulares, repletas de declives e elevações, além com um clima árido como na Numídia, favoreciam as estratégias e táticas de Jugurta. Além disso ele sabia como incentivar suas tropas para manter o moral elevado, especialmente da cavalaria, que era a principal arma que os númidas possuíam para superar as legiões. Nos locais em que o terreno era aberto, os romanos tinham de enfrentar a formidável cavalaria de Jugurta. Esses homens haviam sido cavaleiros nômades apenas há algumas gerações e se readaptaram facilmente a seu ambiente semidesértico. Com armaduras mais leves do que as de seus oponentes romanos, tinham mais mobilidade e conheciam o terreno muito melhor. Em resumo, Numídia não era um inimigo fácil para a força expedicionária romana.23 Em meio a todo este quadro de desentendimento e confusão existente, o tribuno da plebe Caio Mamilio Limetano coloca em votação pública um projeto de lei para uma imediata investigação sobre as responsabilidades daqueles que negociaram com Jugurta em detrimento do interesse da República. Na descrição feita em “Guerra de Jugurta”, os membros do Senado ficaram preocupados com o desenrolar desse processo, ou por temerem as consequências de atos desonestos ou pelos rumos que poderia tomar a indignação popular. A aprovação da lei foi seguida de agitações e dos caprichos da plebe, que assim como os nobres anteriormente haviam agido com insolência, agora havia uma predisposição para a vingança por parte da população.
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