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4 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. A CONTROVÉRSIA SIMONSEN - GUDIN: UMA INTERPRETAÇÃO PARA A HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO BRASIL José Alexandre Altahyde Hage1 Resumo Ao término da Segunda Guerra Mundial ocorreu relevante debate entre dois importantes analistas da economia brasileira, Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. O debate marcou a defesa que o primeiro fez do planejamento governamental como instrumento de industrialização e, por conseguinte, da melhoria do poder nacional brasileiro. Já o segundo, Gudin, defendeu a opinião de que o Brasil não deveria descuidar de suas vantagens adquiridas na agricultura e sua contribuição para a melhoria econômica. Trata-se de debate publicado pelo IPEA que ainda guarda importância para a atualidade. Palavras-Chave: Planejamento Governamental; Economia Internacional; Governo Vargas. La Controversia Simonsen – Gudin: Una Interpretación parala História delas Relaciones Internacionales de Brasil Resumen En el término de la Segunda Guerra Mundial ocurreun importante debate hecho por dos importantes analistas de la economía brasileña, Roberto Simonsen y Eugênio Gudin. El debate marca la defensa que e lprimero hace de la planeación gubernamental como instrumento de industrialización y, consecuentemente, la mejoría del poder nacional brasileño. Por su vez, el segundo, Gudin, defiende la opinión de que Brasil no debe descuidarse de sus ventajas adquiridas en la agricultura y su contribución para la mejoría económica. Se trata de debate publicado por IPEA que todavía guarda importancia para la actualidad. Palabras-Clave: Planificación Gubernamental; Economia Internacional; Gobierno Vargas. 1 Doutor em Ciência Política Pela Unicamp. Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, Campus Osasco. 5 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. Introdução Tivemos oportunidade de opinar em outro ensaio (HAGE, 2014) que não é evidente a confluência da teoria geopolítica com assuntos de economia, vale dizer, de industrialização. Ao menos no aspecto clássico da geopolítica, fundamentalmente europeu, a relevância da industrialização para a geopolítica não aparece em cores fortes. Halford Mackinder, por exemplo, apresentou em 1904, seu famoso texto sobre a Eurásia, em que definiu o poder terrestre como capaz de fazer da Alemanha, em aliança com a Rússia, a grande potência mundial ao neutralizar o poder britânico nos mares.2 Por conseguinte, a sensibilidade da geopolítica para com temas de economia era fraca, como na questão do modelo industrial a ser adotado em um determinado país ou de seus recursos naturais para uso industrial. Não estava em pauta se a industrialização era superior à agricultura. O que importava, à primeira vista, era a demografia, o tamanho do território e o posicionamento geográfico. Sim, a economia agrária era ponto de cálculo de poder do Estado, mas por causa do fornecimento de bens alimentares e não por seu valor em si, abstrato para o mundo da política à época. A Grã-Bretanha podia ser industrializada, mas dependia dos produtos agrários das colônias para o consumo interno e de seus mercados consumidores para a exportação de manufaturados. A confluência entre teoria geopolítica e economia passou a ocorrer com na Primeira Guerra Mundial e o conceito que nela se desenvolveu da guerra total, grosso modo, é aquela que envolve toda a sociedade e conta com uma estrutura produtiva que se torna trunfo para os exércitos no teatro de combate. Caminhões, tanques de guerra, fornecimento regular de petróleo, etc, são os novos elementos econômicos produzidos por uma economia mais complexa, que só pode ser encontrada em um país industrializado. 2 É fato que após a Segunda Guerra Mundial todo estudioso de geopolítica teria de ter algum aprendizado de economia, da importância da industrialização ou seus problemas para aquele tipo de Estado. Essa necessidade ocorreu porque não se poderia mais pensar o emprego da geopolítica sem o planejamento estratégico e o advento da tecnologia. O desenvolvimento do avião a jato serve como exemplo, já que ele passou a ser objeto de pesquisa para quem acredita que o poder aéreo é fundamental para a ascensão de uma potência. A brasileira Escola Superior de Guerra não descuidou desse debate. Nela se pode encontrar Golbery do Couto e Silva com seu O Planejamento Estratégico, em que versa sobre essa questão. O debate sobre a concorrência entre poder terrestre, naval e aéreo pode ser encontrado em Leonel Mello (1996). 6 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. Com efeito, na Segunda Guerra Mundial a importância da economia industrial aparece com todo o vigor, dando aos países do Hemisfério Sul o exemplo de progresso, eficiência e segurança fornecidos pelas grandes potências do Norte. Desta vez, gerar emprego em grande monta, promover uma economia de massa, produzir produtos complexos e substituir importações são temas que passam a integrar programas governamentais nos países periféricos. O Brasil não só se integra a esse debate, mas o faz em grande estilo, uma vez que havia participado do conflito na Europa. Os desafios para alcançar uma indústria de base e infraestrutura organizada pelo Estado; a importância de um moderno corpo de especialistas para o planejamento governamental; dentre outros, foram assuntos do célebre debate entre duas personalidades da política e da economia brasileiras. O encontro entre o professor carioca Eugenio Gudin e o senador por São Paulo, Roberto Simonsen, foi registrado nas Controvérsia Simonsen – Gudin, cujo objetivo fora auxiliar à Presidência da República na tomada de decisões mais corretas para o progresso econômico do Brasil. Embora o aspecto geopolítico ou de política externa não esteja de fato lavrado no debate entre os dois expoentes, isso não impede interpretações de nossa parte acerca do impacto das medidas propostas na inserção internacional do Brasil, sobretudo se teríamos como nação industrializada uma posição internacional mais relevante que de um nação agrária. O nascimento da controvérsia O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), órgão de assessoramento do governo brasileiro, relançou importante documento para se compreender a história político-econômica do Brasil. Trata-se de A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira, fruto do embate intelectual de dois grandes nomes da política nacional das décadas de 1940/50, Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. Com efeito, o documento não só ajuda na compreensão das questões nacionais da época, mas no entendimento das relações internacionais e de nossas possibilidades em obter melhor inserção internacional (SIMONSEN e GUDIN, 2010). O documento A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira conta com apresentação de João Paulo dos Reis Veloso, fundador do IPEA junto com 7 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. Roberto Campos. Veloso também foi ministro do Planejamento do governo Ernesto Geisel, onde ajudou a conceber o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND). Roberto Simonsen foi industrial, deputado federal e senador por São Paulo e fundador da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). No campo educacional foi o criador do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e de instituições de ensino universitário,da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (ESP) e da Faculdade de Engenharia Industrial (FEI). A primeira notabilizou- se por ser a primeira instituição superior de ciências sociais no Brasil, em 1933, inclusive convidando mestres norte-americanos e europeus. O segundo contendor, Eugenio Gudin, formou-se em engenharia pela antiga Escola Politécnica da Universidade do Brasil, atual UFRJ; interessou-se pela atividade empresarial, auxiliando investimentos internacionais no campo da energia elétrica e nos transportes, e foi delegado brasileiro no Fundo Monetário Internacional (FMI). Em 1954 foi ministro da Fazenda no governo de João Café Filho, que sucedera Vargas. Além disso, Gudin se notabilizou por iniciar o moderno ensino de ciências econômicas, desvinculado do direito e da engenharia, com a fundação do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ).3 O cerne do grande debate realizado nos anos 1944 e 1945, como assessores especiais em economia nacional e internacional para a Presidência da República, demonstra a defesa de concepções diferentes da política econômica. Simonsen, na condição de industrial e intelectual orgânico à favor da industrialização e do avanço técnico, pregava a existência do planejamento governamental e o aparelhamento burocrático à moda de Max Weber.4 Pregava ainda que o Brasil deveria ter eficiente corpo técnico (daí a criação da ESP) para melhor enfrentar as dificuldades e aproveitar as oportunidades que adviriam do novo sistema internacional montado pelos Estados Unidos ao fim da Segunda Guerra Mundial.. 3 É pertinente notar que as duas personagens também incursionaram no âmbito editorial. Simonsen é autor de Evolução Industrial do Brasil. E Gudin escreveu Princípios de Economia Monetária, entre outros. 4 Burocracia é definida como um corpo de funcionários públicos ou privados, cuja seleção é feita por meio de rigorosos testes de aptidão e competência. Uma vez empregado, o burocrata trabalha de modo impessoal e racional, sem atender a apelos emocionais ou pessoais na administração da empresa ou do Estado. O objetivo desse corpo profissional é servir com eficiência o empregador (WEBER, 1982). 8 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. O senador acreditava na pertinência de se obter corpo técnico moderno e eficiente no serviço público, que tivesse condições de mapear, estudar e compreender as grandes questões nacionais. Aproveitando o precedente aberto pela criação do Departamento do Serviço Público (DASP) no governo Vargas, nos anos 1940, Simonsen defendia a necessidade de se formar o Estado Planejador, não necessariamente estatizante, mas com uma autoridade que chamasse para si a responsabilidade de resolver problemas prementes que perturbavam o crescimento nacional, como a falta energia elétrica que à época estava completamente sob controle de empresas internacionais. Nesse ponto é importante sublinhar que a criação de instituições estatais na regulação da economia brasileira não se iniciam por causa das observações do senador. É claro que Simonsen traz novos elementos para a crítica nos anos 1940; contudo, o primeiro governo Vargas já se adiantava na busca de se obter instituições mais afinadas com aquilo que o presidente queria no clima do Estado Novo. Sobre isto, Sonia Draibe escreve que nos anos 1930 já havia iniciativas de uma moderna burocracia no Estado brasileiro com a criação do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), do Instituto da Borracha e o Instituto do Café (IBC). Não somente o período autoritário dava azo ao projeto getulista, a iminência da Segunda Guerra de igual forma contribuía para que o Estado brasileiro tivesse melhor assentamento na economia: Os processos originais de formação dos Estados nacionais e a elaboração dos primeiros códigos eram, de fato, um movimento de demarcação de soberania do Estado sobre ‘seu’ território, diante de processos similares e simultâneos de formação de outros Estados, em geral, num quadro de enfrentamento mútuo. Os códigos de florestas, no ocidente, constituíam recurso estratégico para a economia interna e a guerra; por isso, foram objeto de disputa entre os Estados em formação e o motivo de regulamentação precoce. (DRAIBE, 2004: 83). Talvez o ponto nevrálgico da questão fosse o déficit de saber técnico no âmbito da burocracia e/ou o intervalo na trajetória desenvolvimentista com a presidência de Eurico Gaspar Dutra, em 1946, cujo ímpeto industrializante fora menor que do período de Vargas. Gudin, não obrigatoriamente hostil ao pensamento de seu oponente, era da opinião de que o desenvolvimento e bem-estar viriam da promoção daquilo que é o valor comparativo brasileiro, a agricultura e pecuária. O 9 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. professor emérito da UFRJ não era, de fato, contra a industrialização, mas não era a favor de que ocorresse em detrimento da agricultura e dos parcos recursos econômicos federais. A industrialização deveria ser um processo natural da maturação da economia agrária – uma analogia do modelo clássico que ocorreu na Grã-Bretanha do século XIX. De certo modo, Gudin não contrariava o pensamento ricardiano, para quem a economia internacional cresce à medida que os países participam com aquilo que melhor sabem fazer.5 Como país peculiar no campo da agropecuária, à moda ricardiana, o Brasil deveria deixar que suas inclinações naturais tirassem proveito da base agrícola, aumentando a produtividade e a renda nacional para auxiliar na construção de um setor industrial moderno, mas que tivesse condições de sobreviver por conta própria, sem socorros financeiros ou protecionismos alfandegários. Podemos dizer que Gudin foi o representante do pensamento liberal no pós-guerra, que só teve paralelo com Octávio Gouvêa de Bulhões nos anos 1960 e Roberto Campos nos anos 1980. Segue Gudin: Eu não faço e nunca fiz guerra à indústria nacional (...). Seria um contrassenso não nos industrializarmos. Precisamos é de aumentar nossa capacidade agrícola, em vez de menosprezar a única atividade econômica em que demonstramos capacidade para produzir vantajosamente, isto é, capacidade de exportar. (SIMONSEN e GUDIN, 2010: n.d.). Mas por que os dois estudiosos da economia política se emularam nos anos finais da Segunda Guerra? Afinal, que motivos impulsionaram Simonsen e Gudin a um debate célebre que perdura, em parte, até hoje? Ao inaugurar a discussão das grandes questões econômicas nacionais, que escapasse das implicações pessoais e dos limites programáticos dos partidos (que foram cassados por Vargas), o embate intelectual foi animado por causa de um documento solicitado pelos governos Vargas e Roosevelt (Estados Unidos) sobre os problemas existentes no Brasil que abortavam a industrialização. Vale dizer, que progresso e industrialização nos países aliados eram convenientes para o período de conflito mundial. 5 Daí as vantagens comparativas do economista britânico David Ricardo que contribuem para a conformação da Divisão Internacional do Trabalho, premissa arduamente combatida pelo pensamento desenvolvimentista dos anos 1930 a 1960. 10 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. O Relatório Cook, de 1942, fruto da missão que leva o mesmo nome, foi encomendado pelos Estados Unidos ao levar em conta a posição do Brasil como membro dos Aliados contra o Eixo na Grande Guerra. Era necessário saber se realmente o país possuía condiçõesde lutar ao lado dos Estados Unidos e demais aliados contra o nazifascismo. A Missão Cook tinha duas preocupações. Primeiro, fazer levantamento da situação econômica do Brasil no que tange a matérias-primas estratégicas, como borracha e ferro, e infraestrutura para exportação. Era conhecido que havia as matérias-primas necessárias no país, mas as condições eficientes para fazê-las chegar aos países aliados ou transformadas ao teatro de guerra eram muito precárias. Essa questão atualmente é conhecida no Brasil como gargalo logístico, apontada como um dos problemas que atrapalham uma maior participação brasileira no comércio externo. A segundo preocupação da missão era diagnosticar o quadro de saúde e educação do brasileiro, para que os brasileiros pudessem apoiar os esforços de guerra na Europa. Mas se as condições físicas e educacionais do povo brasileiro caminhavam mal, então, fazia-se urgente tomar medidas para sanar os problemas. O Relatório Cook era da opinião de que um país das dimensões do Brasil evoluiria em todos os sentidos se adotasse a industrialização: Devido à sua pouca produção, às dificuldades na distribuição e ao relativo isolamento em que vivem muitos núcleos de sua população, uma parte substancial esta sofre de doenças, é subnutrida e insuficientemente educada. A industrialização do país, sábia e cientificamente conduzida, com um melhor aproveitamento de seus recursos naturais, é o meio que a Missão aponta para alcançar o progresso desejado por todos. (SIMONSEN e GUDIN, 2010: n.d.). Foi o Relatório Cook que impulsionou o embate entre Simonsen e Gudin. Ao chegar às mãos da Presidência da República fez com que o governo procurasse saber como superar questões tão sérias, algumas provenientes do século XIX, caso da desnutrição e da baixíssima escolaridade. Para os autores, esses males não se desvencilhavam do modelo econômico brasileiro, concentrador de renda e montado sobre a ineficiência técnica do setor. 11 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. Em realidade, mesmo a agricultura nacional tinha importância mais pela quantidade do que pela qualidade do seu trabalho. Portanto, deveria ser seriamente modificada. Na visão de Simonsen a superação dos males apontados aconteceria com uma transformação qualitativa da economia brasileira. Depois da crise de 1929 não havia mais pertinência de o Brasil continuar como essencial exportador de bens primários em troca de manufaturas. Aliás, a crise da Bolsa de Nova York apontava para outra questão, não havia mais razão de o Brasil continuar na antiga Divisão Internacional do Trabalho (DIT) em uma época em que o gerente do sistema internacional não mais expressava poder suficiente para protegê-lo. Referia-se Simonsen à Grã-Bretanha com seu livre-cambismo que, efetivamente, havia suportado até então o modelo de civilização ocidental, mas que, naquele momento, havia perdido vigor em virtude de novos desafios, como em face dos nacionalismos que nasceram da tragédia de 1914 (POLANYI, 2000). Independentemente dos motivos que levaram o liberalismo econômico ao ocaso nas décadas de 1930/40, Simonsen procurava ser pragmático, inclusive não ignorando que os Estados Unidos como novos gerentes não deixariam de usar o poder político para se proteger do desequilíbrio externo. Assim, não estava em pauta a moral do problema, se era certo ou errado o modelo econômico internacional da pax britannica, como denominara Polanyi, e sim constatar que quem saía perdendo eram os países do Sul, exportadores de bens primários: É realmente ilusório o enriquecimento de muitas repúblicas latino- americanas no período da guerra (...) verifica-se que, em números globais, comparadas as cifras referentes aos anos de 1938 a 1942, diminuiu o volume de matérias e matérias-primas exportadas das repúblicas latino-americanas para os Estados Unidos. O que se registrou, realmente, foi um aumento de exportação de alguns artigos e um acréscimo em muitos dos preços. (SIMONSEN e GUDIN, 2010: n.d.). No raiar da década de 1930 o nacionalismo havia ganhado vida a partir da crise programática do liberalismo britânico. Teve emergência o protecionismo econômico que, de alguma forma, legitimava atuações de políticas autônomas como as adotadas pela periferia capitalista da própria Europa. Por isso, o liberalismo e sua pregação virtuosa fora considerado instrumento ideológico das potências 12 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. tradicionais; ao mesmo tempo em que o protecionismo, e o componente intelectual que o cercava, era a busca de um lugar menor na ordem internacional. No livro Vinte Anos de Crise, Edward Carr descreve que o liberalismo, tout court, é visto por seus oponentes como ferramenta ideológica e de manutenção da realidade, benéfica ao bloco anglo-americano (CARR, 1981). Inclusive algumas potências que formariam o Eixo, usariam o protecionismo para alavancar atividades industriais e, partir daí, melhorar os índices de poder nacional, sobretudo militar. Não é muito lembrar o interesse que a Alemanha nazista demonstrou pelo Brasil, visto como mercado compensatório e antiliberal, em que Berlim ajudaria Vargas a construir a desejada grande siderúrgica em troca do fornecimento de matérias- primas para a Alemanha. Outro livro para compreender a atmosfera intelectual dos anos 1930 a 1950 e a militância pela industrialização dos países periféricos é A Construção do Terceiro Mundo, do americanista Josef Love, no qual faz um paralelo entre as raízes da fertilidade intelectual latino-americana sob inspiração da CEPAL com os esforços de industrialização feitos na periferia europeia, como a Romênia dos anos 1920. Love acredita que a gênese do pensamento cepalino para romper com a DIT tem um certo toque de protofascimo, que habitou os planos econômicos de Bucareste por meio da criação de sofisticada base burocrática no serviço público para que dirigisse a industrialização (LOVE, 1998). Foi essa atmosfera que inspirou Simonsen, o fundador da FIESP, a vislumbrar no planejamento governamental a ferramenta para a industrialização. Se industrializar em bens de capital era então passaporte para fazer com que um determinado Estado tivesse melhor inserção internacional: Impõem, assim, a planificação da economia brasileira em moldes capazes de proporcionar meios adequados para satisfazer as necessidades essenciais de nossas populações e prover o país de uma estruturação econômica e social, forte e estável, fornecendo à nação os recursos indispensáveis a sua segurança nacional e a sua colocação em um lugar digno na esfera internacional. (SIMONSEN e GUDIN, 2010, n.d.). Para Carr e Love, a industrialização era sinônimo de poder, elemento crucial para a ascensão de quem quer ser grande potência ao queimar etapas. Porisso, não 13 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. haveria muita possibilidade para um grande país agroexportador ascender internacionalmente, embora não devesse ser desprezado como fonte de recursos naturais. Ao ser convocado por Vargas, Simonsen aconselhou o planejamento para se industrializar. E para isto, deveria haver também novas políticas educacional, tarifária, agrícola e diplomática, que juntas concorreriam para fazer com que o Estado tirasse proveito da industrialização. Já Gudin, com o dissemos, não era antiindustrializante, apenas não se conformava com a ideia de que o Estado queimasse recursos intelectuais, políticos e monetários para o fomento daquilo que o moderno empresário, nacional e externo poderia encabeçarsem grandes tormentos. Sem que haja prova do interesse do fundador do IE sobre o grupo posteriormente apelidado de neoliberal, há apenas como dizer que Gudin foi a expressão nacional de Friedrich Hayek, quando passou a defender os perigos iminentes ao crescimento desmesurado do poder político (da burocracia) sobre a economia. Domínio que poderia migrar fatalmente para a política (HAYEK, 1985). Qual era o norte dos dois debatedores em questão? Em Simonsen o modelo a ser seguido, em principio, são os Estados Unidos com seu forte progresso técnico. Em todos os quesitos a economia norte-americana era muitas vezes superior à brasileira. Além da riqueza econômica e da eficiência produtiva aquele país também era inspirador pela qualidade de sua burocracia que, para Simonsen, era conhecedora das modernas técnicas de planejamento governamental, provadas inclusive em período de guerra. A economia estadunidense não era de livre mercado, mas planejada pelo poder público, e porisso podia unir o conveniente dos dois lados: os cuidados sociais com o direto de empreender. Em Gudin o modelo adotado era o argentino e o canadense, nossos “vizinhos ricos” da época. Havia à época a opinião de que a Argentina era aquilo que gostaríamos de ser, um país rico, bem alimentado por meio do que a natureza lhe propiciou: clima, terra e água em abundância. Buenos Aires havia tido o cuidado de tirar proveito de sua agricultura eficiente e produtiva, sua principal fonte de riqueza. O bem-estar de sua população não era proveniente de invenções e artificialismos que cegam a visão, mas sim daquilo que se convencionou chamar de vantagens adquiridas pela agricultura e pecuária. Se a Argentina for se aventurar pela industrialização o malogro seria certo, visto que sua concepção de mundo não 14 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. combina com coisas para as quais ela não tem competência (SIMONSEN e GUDIN, 2010). O período dourado do agronegócio argentino, ao menos em espírito, ainda se faz presente no cotidiano político e econômico do país platino. Sobre isso há duas implicações. A primeira é a de que os esforços industrializantes feitos pela sessão argentina da Cepal, no governo Perón, principalmente, nos anos 1950, contrariou a realidade das coisas, menosprezou as vantagens adquiridas para abraçar algo que a nação não tinha competência: a economia industrial. A industrialização, no fundo, havia trazido mais tormentos do que benefícios para a sociedade. A segunda implicação reside na ideia de que se a economia argentina era rica no período agrário, então por que não retomá-lo!? Aliás, o propósito de retomar o agronegócio nos termos da belle époque ganharia vida no movimento ditatorial da Argentina. Na primeira parte dos anos 1980 o ministro da Fazenda, Martinez de Hoz havia feito militância para diminuir a industrialização do país e retornar com toda força o agronegócio, dando a entender que a Argentina deveria procurar a “volta ao tempo perdido” onde fora mais feliz; ao contrário do caminho trilhado pelos militares brasileiros (HAGE, 2004). Caminhando para o desfecho deste ensaio, quais foram as consequências do grande debate sobre o planejamento governamental no Brasil entre Simonsen e Gudin? Considerando o apelo que a industrialização tinha para o poder nacional brasileiro, bem como para as relações internacionais, o presidente Vargas deu a entender que teria preferência pelo argumento do senador por São Paulo. Em 1950 Getúlio foi eleito democraticamente, mas Simonsen morrera em 1948.6 O governo Dutra (1946 - 1950) fora de relativa frustração para o desenvolvimentismo e para o planejamento governamental. O impacto da Guerra Fria e a política de alinhamento automático com Washington fizeram com que aquele governo atendesse as demandas da grande potência, como adotar o liberalismo econômico sem contrapartida. Houve no período a procura se de fazer o plano SALTE (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia), mas que não ganhou vida naquela administração por causa de empenho político, como escreve Reis Veloso na introdução de Controvérsia entre Simonsen e Gudin. 6 Gudin morreu em 1986. 15 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. O retorno de Vargas ao poder acalentaria o pensamento de Simonsen. Um princípio de planejamento, sob inspiração da CEPAL, fez com que o governo voltasse a abraçar o desenvolvimentismo. A criação da Petrobras, do CNPq, do BNDE, são alguns de seus componentes. A industrialização era sinônimo de sofisticação política e econômica. No campo das relações internacionais também o espírito do desenvolvimentismo ganhou espaço e fincou raízes. Amado Cervo e Clodoaldo Bueno (2002) são da opinião de que parte importante do desenvolvimentismo brasileiro no período não deixou de ser também mérito da Chancelaria. Quer dizer, o desenvolvimentismo econômico deveria ser também tarefa do corpo diplomático brasileiro em perceber o valor da industrialização e seu peso na configuração do poder nacional. Um Brasil industrializado poderia ter lugar de maior qualidade no sistema internacional. De certa forma, essa mensagem ainda ocupa a mente do Itamaraty. Apesar do mencionado acima, houve efetivamente derrota de Gudin sobre a pertinência da agricultura? De alguma forma, o pensamento do professor carioca ainda persiste, sobretudo em um momento em que a crise brasileira na atualidade só não se aprofunda em virtude da eficiência da economia primária de exportação. E o drama nacional pode aumentar se passarmos a considerar a relativa desindustrialização, a perda de competitividade no setor de transformação e o acanhamento do setor de bens de capital. Problemas que emergiram na vida brasileira nos últimos quinze anos. Considerações finais Se houve derrota intelectual de Gudin pelo fato de o presidente Vargas, e posteriores, terem preferido o planejamento industrializante de Simonsen, ela deve ser relativizada e compreendida em seu tempo. Isto porque, apesar de tudo, o Brasil nunca pôde se desvencilhar da economia agrícola; nem seria prudente. Ora o Brasil atende ao café e a cana de açúcar, ora a soja. Para que o governo Vargas pudesse adquirir capitais importantes na compra de bens duráveis e máquinas seria necessária a valorização do café brasileiro no mercado internacional. E há que se lembrar o empenho da Chancelaria para valorizar o café nos Estados Unidos (CERVO e BUENO, 2002). 16 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. A escolha de Simonsen sobre Gudin se deu pelo fato de que no pós-guerra não seria fácil defender a preeminência da economia agrícola sobre a industrial em um mundo em que o processo de descolonização se associava a ideia de mudança econômica para neutralizar o “sistema colonial”. Afinal, todas as potências eram industrializadas; seja industrializadas pelo modo clássico, como Reino Unido e Países Baixos, ou por meio da “via prussiana”, caso da Alemanha Imperial e do Japão, que é quando o Estado toma para si a direção do andamento progressivo da economia, liderando empresários. Então, não haveria justificativa para que o Brasil não se industrializasse, de um modo ou de outro. Em outro aspecto, na época da Controvérsia não havia avançado suporte tecnológico a serviço da agricultura, que aumentasse sua qualidade e produtividade. Não havia nos anos 1940, acreditamos que no mundo, algo que fosse análogo a Embrapa, fomentando tecnologia no campo. A fundação dessa empresa pública, em 1972, possibilitouque houvesse a revolução verde no cerrado brasileiro. Mais do que isso, houve melhora surpreendente na engenharia genética empregada para a criação de sementes mais resistentes a pragas e variações climáticas. Instituições sediadas em São Paulo, como Instituto Biológico, de 1927, ou o Instituto Agronômico de Campinas, de 1887, por mais dinâmicos que fossem não davam conta dos problemas e da percepção que a agricultura demandava nos anos 1940 e 1950. Na atualidade, não há uma forte linha mundial ou latino-americana que defenda a industrialização como meio de desenvolvimento e de melhor posicionamento no sistema internacional. Houveram iniciativas nacionais pontuais que voltaram a valorizar a industrialização, bem como o papel do Estado como agente dinamizador, como no governo Lula, mas sem desconhecer o papel do agronegócio, como a produção de etanol. A partir dos anos 1980 houve nova valorização da agricultura por causa da tecnologia nela empregada, dando novo valor agregado. No caso brasileiro o emprego da soja e da cana de açúcar são exemplares para afirmar a importância da economia agrícola como suporte para melhor participação no mercado internacional. Na afirmação do Brasil como fornecedor internacional de energia, o álcool combustível tem a ver com essa história. Por fim, o embate entre Simonsen e Gudin não fazia de seus autores seres tão divergentes como pode dar a entender à primeira vista. Em essência, os dois 17 Revista de Geopolítica, EDIÇÃO ESPECIAL, v. 8, n° 2, p. 04 - 17, jul./dez. 2017. combinavam com o princípio de que tanto na indústria quanto na agricultura deve haver um Estado eficiente e sabedor de sua missão na condução do país a um novo patamar no sistema internacional. A industrialização ou a agricultura não seriam suficientes para alcançar níveis positivos de bem-estar; eram apenas a base sobre a qual se construiria a educação de qualidade, a saúde garantida e uma melhor participação internacional. O debate ainda persiste. Referências CARR, Edward. Vinte Anos de Crise. Brasília: Universidade de Brasília, 1981. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. DRAIBE, Sonia. Rumos e Metamorfoses: Um Estudo da Constituição do Estado e as Alternativas da Industrialização no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2004. HAGE, José Alexandre Altahyde. As Relações Diplomáticas entre Argentina e Brasil no MERCOSUL. Curitiba: Juruá, 2004. _____. Economia e Geopolítica: Industrialização como Fator de Poder no Terceiro Mundo. In Meridiano 47. Vol. 15, nº 143. 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