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normas pré-constitucionais

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7.4.1 Os limites jurídicos “internos” e as normas pré-constitucionais
No plano do direito interno, alguns adeptos da teoria material da constituição, que ganhou corpo na segunda metade do século vinte, passaram a rever a teoria clássica, reconhecendo etapas formativas e condicionantes, a primeira no poder constituinte material – nova idéia de direito – a segunda no poder constituinte formal, instrumento do primeiro, que lhe dá acabamento jurídico. Porém, o fizeram, como Jorge Miranda e Joaquim Canotilho, por exemplo, mirando para a transição política e para a “nova idéia de direito”, sem desenvolver mais profundamente o encadeamento e a natureza dos atos transitórios que estabelecem regras de procedimento para a escolha de representantes do povo, ou mesmo para ato unilateral de outorga, no período de governo “de fato”, o período de “hiato” constitucional. 
De fato, quando se examinam na experiência dos países contemporâneos os momentos de transição política, verifica-se com regularidade a existência de uma série de atos normativos transitórios, em geral, com vista ao processo de reconstitucionalização. Por exemplo, o ato convocatório da população, pelo Governo de fato, em geral, que fixa dia e condições para escolha de representantes em uma Assembléia Constituinte; o ato que define manifestação em plebiscito sobre a decisão de convocar a assembléia; o de estabelecimento do período e do local de reunião do corpo representativo; o de definição da extensão do corpo eleitoral; o das regras de sufrágio e de votação, do sistema eleitoral; o das garantias e dos debates eleitorais, da propaganda política, o das regras prévias de funcionamento da assembléia constituinte em um regimento interno, que são publicamente conhecidas, o da estipulação de referendo sobre o texto constitucional aprovado.
Outra categoria de norma pré-constitucional é igualmente condicionadora ou parcialmente determinante do conteúdo da futura constituição: esta tem conteúdo diretamente constitucional, porque estabelece desde logo definição de regime político, definindo explícita ou implicitamente que tal regime será adotado na constituição a ser debatida e votada. Estas normas são permanentes.
Ainda que com características especiais – transitoriedade, discricionariedade, tais atos possuem os elementos essenciais de uma regra jurídica, ou se se quiser, ato/regra jurídico. De fato, entre a manifestação e a exteriorização do poder constituinte material e a ação do poder constituinte formal, durante o hiato constitucional, há em geral, um rico e potencialmente instável período de deliberações que adquirem aspecto formal. Pode-se mesmo dizer que até às iniciativas de um poder não democrático-representativo se aplicam, dentro de certos limites, as considerações anteriores. Em geral, quando se dá uma constituição por outorga, o poder de fato ou de direito preexistente ao menos invoca regras de direito anteriores, às quais alega se subordinar. Importa assim destacar a existência das normas pré-constitucionais ou pré-constituintes. 
Pontes de Miranda, em seus comentários à Constituição de 1967, já advertia: “O período pré-constitucional tem sido negligenciado pelos investigadores”. E citava as convenções pactadas entre as forças emergentes, espelhando a necessidade de exame para melhor elucidação do conteúdo da nova constituição: 
“Exemplos: os atos dos governos provisórios de 1889-1891 e 1932-1934, no Brasil, tendentes à constitucionalização do país, supunham, respectivamente, a convenção (implícita) entre os republicanos que fizeram a revolução de 15 de novembro de 1889 e a convenção (implícita), entre os vencedores e os vencidos da revolução “constitucionalista” de São Paulo. A Constituição de 1934 foi, até certo ponto, a vitória do pensamento constitucionalizante de São Paulo e de Minas Gerais contra o espírito ditatorial, castilhista em alguns, disfarçada ou abertamente fascista noutros, do Rio Grande do Sul. Os atos da Presidência da República, de 29 de outubro de 1945 em diante, foram atos ditatoriais em constituição, apenas partilhada a ditadura entre o Exército e alguns membros do Poder Judiciário que a ditadura plasmara a seu jeito, em vez de entre a política do Rio Grande do Sul e o Exército.[...] Fato que deve, desde logo, prender-nos a atenção é o de não ter de constar da Constituição mesma o processo para a formação do poder constituinte. Há algo anterior que lhe serve de base.”. 
Quando Pontes de Miranda alude aos pactos políticos mencionados está se referindo a fatos designados por Jorge Miranda como poder constituinte material. Porém, para Pontes, estes pactos são parte do poder estatal, conceito que maneja e com que visa a elucidar parte do problema.
E afirma adiante, retomando a distinção anteriormente já exposta, que reputava fundamental, entre poder estatal e poder constituinte:
“Do que acima ficou exposto resulta: a) o poder pré-constitucional procede do poder estatal, como acontece ao poder constituinte, mas os dois são conceptualmente diferentes ou estão em dois momentos sucessivos; b) ao fixar limites ao poder constituinte, a lei pré-constitucional já contém regra constitucional, de modo que a lei pré-constitucional mistura regras pré-constitucionais e regras constitucionais; c) só se há de considerar estritamente pré-constitucional o que seja concernente à formação do poder constituinte, sendo regra constitucional qualquer enunciado sobre a formação e a atividade de algum poder constituído, inclusive se o poder constituinte se transforma em poder legislativo ordinário.”. 
Joaquim Canotilho� também examinou, embora brevemente, o problema das normas pré-constitucionais. Ele destaca dois tipos de decisão pré-constituinte, no processo prévio de transição : a) decisão política de elaborar uma lei fundamental, uma constituição; b) edição de leis constitucionais provisórias destinadas a dar forma jurídica ao “novo estado de coisas” e a definir as linhas orientadoras - procedimento constituinte propriamente dito. Na linguagem de Pontes de Miranda, a aludida decisão política faz parte do poder estatal.
Jorge Miranda�, por seu turno, afirma que 
“seja unilateral ou bilateral o ato constituinte, seja de base democrática ou autocrática, a formação de uma Constituição – e de uma Constituição definitiva, por maioria de razão – não pode fazer-se sem uma organização prévia e sem um enquadramento imposto pelo próprio princípio da legitimidade”.
	O mesmo autor afirma�, com muita propriedade:
“II- Chama-se pré-Constituição, Constituição provisória ou, sob outra óptica, Constituição revolucionária ao conjunto de normas com a dupla finalidade de definição do regime de elaboração e aprovação da Constituição formal e de estruturação do poder político no interregno constitucional, a que se acrescenta a função de eliminação ou erradicação de resquícios do antigo regime. Contrapõe-se à Constituição definitiva ou de duração indefinida para o futuro como pretende ser a Constituição produto final do processo constituinte [...]
	Por causa de tais funções, as normas da pré-Constituição adquirem valor reforçado no confronto das demais normas, não podendo ser alteradas ou derrogadas por normas posteriores a que não seja conferida função idêntica. E poderão até receber valor de normas formalmente constitucionais, recortando-se então, com mais nitidez, dentro do sistema jurídico.
	Da Constituição provisória ou pré-Constituição deve distinguir-se o fenômeno da entrada em vigor provisoriamente de determinados princípios ou normas constitucionais objeto de formação já durante o processo constituinte (assim, as “Bases da Constituição” aprovadas em 1821 pelas Cortes portuguesas); e deve ainda distinguir-se a subsistência provisória de normas constitucionais anteriores não contrárias aos novos princípios constitucionais (assim, em Portugal as normas da Constituição de 1933 ressalvadas pelo art. 1°, n° 3, da Lei n° /74, de 14 de maio).
	III – por vezes, a pré-Constituição define os princípiospor que deve pautar-se a Constituição formal a elaborar subseqüentemente: foi o caso da França em 1958 ou da África do Sul, com a Constituição interina de 1993 (com a qual depois confrontada a Constituição definitiva de 1996 pelo Tribunal Constitucional)”.	
Jorge Miranda afirma que não é de aceitar que o poder constituinte formal não possa adstringir-se a formas constitucionais. Este não carece de uma predeterminação de formas e processos vinda do poder constituinte material, dependendo pelo menos do enquadramento imposto pelo próprio princípio da legitimidade.
A doutrina não tem dedicado grande espaço ao estudo das normas transitórias em geral. Porém, ao contrário das aparências, elas se revestem normalmente de grande importância. Como afirmado, as normas pré-constitucionais são atos jurídicos atípicos, mas jurídicos. E como tal, condicionadores do exercício do poder constituinte formal e do conteúdo da própria constituição futura. Daí, a importância. As normas pré-constitucionais são todas aquelas formais que se dão após a quebra da própria constituição, num estado de fato transitório, não previstas na ordem constitucional, e tendentes a ordenar e encaminhar o processo de reconstitucionalização formal.
� Direito Constitucional e Teoria da Constituição, op.cit, edição de 1998, p. 71.
� Op. cit., p. 186.
� Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 368.

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