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ESTUDO DRUMMOND E DOM QUIXOTE E PORTINARI

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Em 1956, Candido Portinari pinta uma série de vinte e uma gravuras, focalizando
duas personagens da literatura universal: D.Quixote e Sancho Pança. Em 1972, por
ocasião da comemoração de seus 70 anos, Carlos Drummond de Andrade lança um
livreto com 21 poemas, alusivos às gravuras do amigo pintor e publicados no ano
seguinte com o título geral Quixote e Sancho, de Portinari, em As impurezas do
branco (1973). A construção dos poemas revela, certamente entre outras, duas
leituras do poeta: do texto de Cervantes (1605) e dos cartões da série Quixote, de
Portinari. Sob essa ótica, a elaboração dos poemas pressupõe modos diferenciados de
percepção do objeto de poesia pelo eu poético, um verbal e outro não-verbal,
dinâmica que produz, no entrelaçamento de visões, um Quixote renovado, para
deleite dos leitores de Cervantes, de Portinari e do próprio Drummond.
Os desenhos a lápis sobre cartão foram feitos em 1956, quando o pintor, atendendo a
um pedido da Editora José Olympio, começa a preparar uma série de desenhos para
uma provável edição brasileira de D. Quixote e que seria por ele ilustrada. Como o
projeto da Editora foi abandonado, somente no início dos anos 70, Drummond cria,
para a primeira edição do livro Quixote, os poemas que acompanhariam as criações
de Portinari. Além dos poemas, os desenhos são acompanhados por trechos da obra
de Cervantes, que serviram de inspiração para os traços do pintor. O livro, publicado
em 1973, pela Diagraphis, do Rio de Janeiro, foi relançado em 1998, sob os auspícios
da Petrobrás.
Os vinte e um poemas, todos nomeados e reunidos na composição Quixote e Sancho
Pança, de Portinari, mantêm uma coerência visível não só com os traços do pintor e
com a obra de Cervantes, mas, e principalmente, porque compõem um texto único,
pois, ainda que o poeta limite, no título, a criação do texto à leitura dos cartões de
Portinari, desde as primeiras linhas, o processo de construção desses poemas revela
um olhar singular de Drummond sobre o clássico espanhol.
Assim, Quixote e Sancho, de Portinari pode ser lido como um todo articulado e
coeso ou pode ser visto como uma série de poemas desvinculados e soltos, já que
todos têm sentido e constituem peças únicas. Com uma estrutura predominantemente
narrativa, o poema elabora a síntese da novela de Cervantes, com o apoio das
imagens de Portinari, mas o eu poético, diferentemente do que ocorre com a
narrativa, cujo narrador detém o domínio de voz e visão, assume em primeira pessoa
as emoções do fidalgo Quixote e de Sancho Pança, seu escudeiro. E é, justamente,
esse modo renovador de retomar perspectivas que torna a obra singular. Publicada na
fase de maturidade do poeta, revela todas as conquistas formais de sua poesia,
inclusive, os traços da poesia concreta. A diversidade de formas poemáticas constitui
a grande marca do texto: nele encontramos desde o soneto, I- Soneto da loucura,
espécie de introdução do poema; a balada renovada, VII- Coro dos cardadores e
fabricantes de agulha; poemas figurados, caso de III- O esguio propósito, até a
manifestação mais singular de traços do concretismo, como em V- Um em quatro.
Um trabalho de leitura da peça, levantando, integralmente, as referências de leitura
que a compõem, demandaria tempo e pesquisa mais apurada. Neste texto, propomos,
então, por razões de espaço, apenas um olhar introdutório sobre aspectos
significativos dos cinco primeiros poemas, I - Soneto da loucura; II- Sagração; III- O
esguio propósito; IV - Convite à glória e V- Um em quatro, que constituem uma
espécie de intróito à narrativa, um convite a um estudo mais profundo, podemos
assim dizer.
 
Parceria em traços e versos
O primeiro poema, Soneto da loucura, acompanha o cartão denominado D. Quixote
de cócoras com idéias delirantes e remete-nos à apresentação da personagem de
Cervantes, tomada pelo delírio, causado pelo excesso de leituras de novelas de
cavalaria. No texto do escritor espanhol, Quixote é focalizado por um narrador que,
de fora dos eventos narrados, em posição privilegiada, detentor do ponto de vista da
narrativa, observa todos os seus atos e pensamentos. A figura de D. Quixote
corresponde a de um fidalgo de nível médio, de vida austera, cujo comportamento é
alterado pela obsessão em imitar os feitos de grandes heróis de romances e novelas de
cavalaria, obras que lê com afinco e persistência:
Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro em
claro e os dias de escuro em escuro, e assim de pouco dormir e do muito ler, se lhe
secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. (Cervantes, 1981, p.30).
Nos traços do pintor, o desequilíbrio visível nos olhos enormes, arredondados e
desmedidamente abertos; no olhar vidrado de Quixote, que busca imagens no
horizonte; no gesto característico das mãos, que auxiliam o olhar perscrutador do
fidalgo, sedento de aventuras; o cabelo com aspecto de desgrenhado; o sentimento de
desamparo e solidão, perceptível na ausência de qualquer outro elemento no cenário.
Quixote está só; ninguém o compreende. No poema de Drummond, a escolha de uma
forma convencional de poesia, o soneto, para expor o reconhecimento da própria
loucura, pode ser explicada pelo desejo do poeta de acompanhar o estilo de
Cervantes, que usou sonetos laudatórios como forma de introdução à narrativa, entre
eles: Orlando Furioso - A Dom Quixote de La Mancha; Gandalim, escudeiro de
Amadis de Gaula, a Sancho Pança, escudeiro de Dom Quixote; Amadis de Gaula - A
Dom Quixote de La Mancha.
A construção do soneto revela um dado fundamental do texto como um todo: a
alteração do ponto de vista. O eu poético, ao substituir um narrador de terceira
pessoa, que, na narrativa de Cervantes, focaliza a personagem, provocando, de certo
modo, um distanciamento entre o eu que narra e o ele narrado, assume as
experiências e desejos de D. Quixote e passa a veicular em primeira pessoa os
devaneios e quimeras do fidalgo espanhol. Dessa maneira, o leitor sente-se mais
facilmente tocado pelas emoções que emanam do espírito da desventurada criatura.
Além do título do soneto, que aponta o estado de loucura de Quixote, na primeira
estrofe, a oposição entre a pobreza da casa (realidade) e a riqueza de sonhos (fantasia)
sintetiza a situação de conflito em que se encontra o eu poético, bem como seu desejo
de glórias que possam elevá-lo à condição de seus heróis, entre eles Pentapolim, o rei
dos Garamantas, que sempre entrava em combate com o braço desnudo, inimigo do
imperador Alifanfarrão, uma das muitas personagens criadas por sua mente
fantasiosa. É possível afirmamos também que o eu poético tem plena consciência
desse estado limite em que se encontra, entre a sanidade e a demência, pois, no que se
refere ao espaço onde vive, a casa real (pobre mas rica em sonhos), ele é capaz de
reconhecer que os odores também configuram essa dubiedade entre realidade e
fantasia, pois observa que, da cozinha, o odor é o do alho, muito apropriado às pobres
vivendas, semelhantes àquela em que vive, mas sua imaginação desmesurada sente
o olor da glória eterna. Esse estado dúbio, de semi-consciência, perdura até o final,
quando, para matar a fome, carência física de alimentos, janta nuvens, alimenta-se do
etéreo, aguardando o retorno da era dos grandes feitos e dos grandes cavaleiros, a
chamada Idade do Ouro e Sol.
 
I / Soneto da loucura
A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas 
eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.
Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no 
inferno.
Se da escura cozinha escapao cheiro de 
alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.
Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto e meu rocim, corisco, espada, 
grito,
torto endireitando, herói de seda e ferro,
E não durmo, abrasado, e janto apenas 
nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá nas alturas.
No cartão denominado D. Quixote cavaleiro andante, Portinari pinta a figura do
herói, de joelhos, recebendo, com ar de grande contrição, a ordem de cavaleiro
andante. Corresponde, na obra de Cervantes, ao momento em que, em uma venda,
que toma por um castelo, Quixote pede ao vendeiro, a quem considera um nobre
castelão, que o nomeie cavaleiro. Em uma cerimônia burlesca, incompatível, na Idade
Média, com o título de cavaleiro, o vendeiro, assustado com as sandices de seu
hóspede, procede à sagração de Alonso Quejana, transmutando-o em D.Quixote de
La Mancha:
Avisado e medroso, o castelão trouxe logo um livro, em que se assentava a palha e
cevada que dava aos arrieiros, e com um coto de vela de sebo que um muchacho lhe
trouxe aceso, e, com as duas sobreditas donzelas, voltou para o pé de Dom Quixote,
mandou-o por de joelhos, e lendo no seu manual (em tom de quem recitava alguma
oração devota), no meio da leitura levantou a mão, e lhe descarregou no cachaço um
bom pescoção, e logo depois com a sua mesma espada uma gentil pranchada, sempre
rosnando entre dentes, como quem rezava. (Cervantes, 1981, p.38 - 39)
É importante ressaltar que, na obra de Cervantes, esse momento é marcado pelo riso e
pelo burlesco, já que se trata de uma paródia do momento de sagração dos cavaleiros
medievais, nas novelas de cavalaria. A intenção do escritor espanhol era, de modo
irônico, quase sarcástico, denunciar a hipocrisia que o rodeava. Entretanto, não é esse
o sentimento que emana do poema Sagração, de Drummond. Nele, o eu poético, em
primeira pessoa, assumindo a visão de Quixote, apresenta de modo verdadeiramente
sagrado o episódio de sua ordenação como cavaleiro andante. São os sonhos do
cavaleiro da triste figura que se concretizam, como podemos ver pelo modo contrito e
respeitoso com que o fidalgo espanhol sintetiza suas emoções. O poema de
Drummond capta as filigranas de sentimentos que palpitam nas cores e formas de
Portinari, configurando-se a alquimia entre traços e versos, entre palavra e imagem.
Os versos iniciais do poema sintetizam a oposição entre a calma do ambiente exterior
e o efervescente interior do eu poético. A região da Mancha, de paisagem vasta e
ensolarada, clássica da Espanha, calma, contrasta com o interior conturbado (a
chama oculta) do eu poético, já que Quixote é a fremente Espanha interior. A Mancha
(Espanha interior), localizada no centro da Espanha, confunde-se com o âmago do eu
poético e ambos, espaço e criatura, tornam-se indissolúveis.
 II/ Sagração
Rocinante
pasta a erva do sossego.
A Mancha inteira é calma.
A chama oculta arde
nesta fremente Espanha interior.
De geolhos e olhos visionários
me sagro cavaleiro
andante, amante
de amor cortês e minha dama,
cristal de perfeição entre perfeitas.
Daqui por diante
é girar, girovagar, a combater
o erro, o falso, o mal de mil 
semblantes
e recolher no peito em sangue
a palma esquiva e rara
que há de cingir-me a fronte
por mão de Amor-amante.
A fama, no capim
que Rocinante pasta,
se guarda para mim, em tudo a 
sinto,
sede que bebo, vento que me 
arrasta.
De forma completamente livre, constituído por quatro estrofes, duas de cinco versos,
uma sétima e uma quadra, sem preocupação com esquemas definidos, seja quanto ao
número de sílabas poéticas seja quanto à tipologia de rimas, o poema condensa os
ideais do cavaleiro andante: o amor cortês, a dedicação a uma dama; o combate ao
mal, ao erro e ao falso; o desejo de reconhecimento por seus feitos e glórias: A fama
[...] sede que bebo, vento que me arrasta. O eu poético expõe-se aos olhos do leitor,
que aceita seus valores sem deles escarnecer, pois o tom predominante não é irônico
ou de sarcasmo, mas de confissão de ideais e dos seus mais recônditos sentimentos.
Já, no terceiro cartão de Portinari, D. Quixote a cavalo com lança e espada,
observamos uma alteração nos traços, que recuperam o riso no espírito do leitor, pelo
modo inusitado como é construída a figura. Tanto o pintor quanto o poeta elaboram
uma imagem quixotesca do fidalgo espanhol. Portinari acentua o humor da imagem,
carregando o traço caricato da personagem, visível na excessiva magreza e em sua
postura de combate: torto, caindo do cavalo, como que desequilibrado pelo peso e
tamanho das armas. Drummond, em O esguio propósito, abandona a primeira pessoa
e, o eu poético, focalizando a estranha criatura, endossa o caráter de humor presente
na imagem de Portinari. Assim, o emblema do cavaleiro andante, contrito e disposto a
respeitar e divulgar os valores do guerreiro medieval, é substituído por metáforas, de
base extremamente simples, provocadoras do riso: caniço de pesca; gafanhoto
montado; espectro de grilo; fio de linha. A forma do poema, quase figurativa, lembra
os traços em desalinho com que o pintor desenhou sua criatura. Aqui, não é Quixote
quem expõe suas emoções e sentimentos, mas ele é focalizado por um eu poético que
assume o olhar do senso comum.
 
III / O esguio propósito
Caniço de pesca
fisgando o ar,
gafanhoto montado
em corcel magriz,
espectro de grilo
cingindo loriga,
fio de linha
à brisa torcido,
 relâmpago
 ingênuo
 furor
de solitárias horas indormidas
quando o projeto a noite 
obscura.
Esporeia
o cavalo,
esporeia
o sem-fim.
O quarto poema, Convite à glória, acompanha o cartão Sancho Pança atende ao
chamado de D. Quixote e recupera, de forma dialogada, o encontro entre o fidalgo e
seu escudeiro, momento em que Sancho Pança, que assim se chamava o lavrador,
deixou mulher e filhos, e se assoldadou por escudeiro do fidalgo (Cervantes, 1981,
p.53). Ao conceder voz às personagens, o poeta permite que elas se revelem por
inteiro ao leitor, deixando transparecer claramente como o escudeiro é o oposto de
seu amo. Nas quatro primeiras estrofes, Quixote exorta Pancho a acompanhá-lo,
recorrendo a seus próprios valores: glória, reconhecimento histórico, grandeza
humana, amor. À descrição da possibilidade de acesso a um desses bens, o escudeiro
pergunta _ E de que me serve? e a nenhum deles o escudeiro se curva; mas ao
poderio do ouro e da esmeralda, sim. Se ao fidalgo interessavam as benesses da fama
e da glória, ao escudeiro, não. A forma encontrada pelo eu poético para enfatizar a
oposição entre os ideais de ambos foi a repetição da negativa de Sancho, em uma
espécie de refrão, que se inverte no último verso. Na fala de Quixote, com o recurso
aos versos mais longos e elaborados, ressoam os sonhos grandiosos e os desejos do
fidalgo; na de Sancho, representada pelo verso-refrão, pontificam a monotonia e a
repetição, confirmadas, inclusive, pela métrica popular do verso, a redondilha menor,
aspectos que revelam o caráter tosco do escudeiro. Diferentemente da forma
dialogada do poema, no texto de Cervantes, o narrador expõe, em discurso indireto, o
convite do fidalgo ao lavrador:
Dizia-lhe entre outras cousas Dom Quixote que se dispusesse a acompanhá-lo de boa
vontade, porque bem podia dar o acaso que do pé para a mão ganhasse alguma ilha, e
o deixasse por governador dela. (Cervantes, 1981, p.53)
 
IV / Convite à glória
_ Juntos na poeira das encruzilhadas 
conquistaremos a glória.
_ E de que me serve?
_ Nossos nomes ressoarão
nos sinos de bronze da História.
_ E de que me serve?
_ Jamais alguém, nas cinco partidas do mundo,
será tão grande.
_ E de que me serve?
_ As mais inacessíveis princesas se curvarão
à nossa passagem.
_ E de queme serve?
_ Pelo teu valor e pelo teu fervor
terás uma ilha de ouro e esmeralda.
_ Isto me serve.
O poema Um em quatro, que acompanha o cartão D. Quixote e Sancho Pança saindo
para suas aventuras, a seguir, estampa as conquistas da poesia concreta, na medida
em apresenta inovações em vários campos: no sintático, a ruptura total com a sintaxe
tradicional; no léxico, os neologismos; no fonético, a repetição sonora é a grande
chave. Mas o mais significativo é a abolição quase total do verso, no campo
topográfico, com o uso dos espaços em branco para intensificar o significado. Na
construção do poema, o verbal e o visual concorrem em pé de igualdade na luta pela
significação. As letras que iniciam e finalizam o alfabeto, opostas, portanto (A e Z),
são dispostas no texto de modo a representar as personagens Quixote e Sancho em
suas “afinidades díspares”; as minúsculas, logo abaixo, na mesma posição, referem-se
às montarias de cada um deles, o cavalo e o asno. As letras se juntam, primeiramente,
para formar o par homem-animal, A& b; Z&y, e, finalmente, os quatro viventes
unem-se pela busca dos mesmos ideais: quadrigeminados, um cavaleiro um cavalo
um jumento um escudeiro. Pelo trabalho de organização e disposição das letras, o
leitor pode visualizar as linhas que compõem a imagem pintada por Portinari. A partir
delas e em diálogo com o texto de Cervantes, Drummond expõe sua visão das quatro
criaturas, tão diferentes em seus próprios grupos: o fidalgo (A) e o escudeiro (Z); o
cavalo (b) e o asno (y). Entretanto, para o eu poético, as diferenças fundem-se em
uma semelhança: o mesmo desejo de aventuras e jornadas, unificado anseio.
 
V / Um em quatro
A Z
b y
 
A&b Z&y
 
Ab yZ
 
ABYZ
quadrigeminados
quadrimembra jornada
quadripartito anelo
quadrivalente busca
unificado anseio
um cavaleiro um cavalo um jumento um
escudeiro
Em síntese
A leitura dos cinco primeiros poemas que constituem Quixote e Sancho, de Portinari,
de Carlos Drummond de Andrade, pretendeu levantar elementos que pudessem
revelar de que modo o poeta procedeu à alquimia entre traços, versos e cores. Como
nos encontramos no estágio inicial da pesquisa, a leitura desses primeiros poemas e
cartões pode indicar formas e caminhos pretendidos para a continuidade deste
trabalho, ou, quem sabe, o estabelecimento de novos rumos. Esperamos que as
proposições aqui apresentadas possam evoluir para conclusões mais profundas e
abrangentes e que possam estar à altura dos traços e dos versos que compõem o
objeto de análise. De qualquer maneira, com este texto, visamos, sobretudo, chamar a
atenção para um poema quase desconhecido, que apresenta infinitas possibilidades de
leitura e deciframento. Desejamos não só chegar a bom termo em nossa pesquisa mas
também contribuir para que outros leitores e estudiosos da obra de Drummond
possam vir a tomá-lo como corpus para novos trabalhos.

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