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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO CIESA – CURSO DE DIREITO DIREITO CIVIL II PROF. ANDRÉ BESSA Aluno(a): ___________________________________________________________________ Roteiro de Estudo nº 02: A POSSE (1ª PARTE) I – POSSE, PROPRIEDADE E DETENÇÃO: DISTINÇÕES Segundo o art. 1.196 do Código Civil, possuidor é todo aquele “que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Assim, para se chegar à definição de posse, é preciso, por força do citado dispositivo legal, relacioná-la inicialmente à propriedade, que consiste no mais amplo direito real, permitindo a seu titular USAR (colocar a seu serviço, de acordo com a finalidade da coisa), FRUIR (colher frutos, ou seja, benefícios econômicos) e DISPOR (emprestar, doar, vender, etc.) da coisa, assim como REAVÊ-LA de quem a tenha indevidamente (direito de sequela), nos termos do art. 1.228. Com base nisso, teria a posse aquele que age, em relação à coisa, como se dono da mesma fosse, por exemplo utilizando-a de acordo com suas conveniências, ou colhendo os respectivos frutos, de forma plena, ou não. É a posse, portanto, um estado de aparência, uma situação de fato entre pessoa e coisa, mas que o Direito protege, visando sobretudo a paz social, a harmonia entre as pessoas, já que, de toda forma, aparenta ser uma relação de direito. Se alguém, mediante violência ou na clandestinidade, se apodera de coisa que estava em poder de outrem, há uma quebra dessa paz, da ordem social e é, por isso que, desde a mais remota Antiguidade, o Direito impõe normas destinadas à proteção do possuidor, coibindo a violação ao seu estado de fato. Isso inclui até a autorização do uso da força, moderadamente, para a defesa ou recuperação imediata do controle material sobre a coisa. Podemos afirmar, também, que a posse representa a exteriorização da propriedade, fundada na vontade do possuidor; é o fato de se exercer as prerrogativas de um direito real. A propriedade, aliás, como efetivo direito, pode existir com a posse, ou não, mas enquanto não se demonstra o contrário, o possuidor presume-se proprietário. 2 A posse não se constitui num direito real, ideia que se corrobora pelas razões seguintes, entre outras: a) não consta no rol dos direitos reais, do art. 1.225 do CC; b) a Lei de Registros Públicos não prevê seu registro em cartório, ainda que incidente sobre imóvel (daí decorrendo a impossibilidade de ser oposta erga omnes); c) o art. 10, § 2º, do CPC, dispõe que “nas ações possessórias, a participação do cônjuge do autor ou do réu somente é indispensável nos casos de composse ou de ato por ambos praticado” – se a posse fosse um direito real, seria essencial a participação do cônjuge do interessado em ação versando sobre posse de imóvel, nos termos do art. 1.647, inc. II, do CC. Aliás, destaca-se na doutrina a compreensão de que a posse sequer é direito subjetivo (contra essa corrente: Caio Mário da Silva Pereira). Para Sílvio Rodrigues, Clóvis Beviláqua, Pontes de Miranda, entre outros doutrinadores, a posse é nada mais do que um fato, que conta com proteção do Direito. Mas é certo que pode constituir-se na base de um direito (jus possidendi = direito à posse, com fundamento na propriedade ou em outro direito, real ou pessoal) ou gerar direitos subjetivos por si mesma (jus possessionis = direito fundado no fato da posse autônoma; proteção possessória), que seriam, portanto, efeitos da posse. Há, outrossim, a chamada detenção ou tença, prevista no art. 1.198 do Código Civil, correspondente à situação, juridicamente irrelevante, em que alguém, chamado “fâmulo da posse”, “servidor da posse”, ou simplesmente “detentor”, exerce sobre determinada coisa a posse de outra pessoa, sob cumprimento de ordens ou instruções desta. É ato de subordinação, ou ainda de mera permissão ou tolerância. É caso de detenção, por exemplo, a relação entre um motorista particular e o automóvel que dirige; o mesmo vale para o caseiro em relação ao sítio, o policial em relação à arma da corporação, o hóspede em relação ao imóvel onde se encontra hospedado. Cabe ressaltar que o detentor, obviamente, não tem o direito de invocar qualquer tipo de proteção possessória em seu favor, uma vez que se trata apenas de um longa manus do possuidor. II - A PROTEÇÃO POSSESSÓRIA (INTERDITOS POSSESSÓRIOS) Com o propósito de coibir a violência, preservando a paz social, nossa legislação protege o efetivo possuidor contra os seguintes atos, atentatórios à posse (art. 1.210, caput, do CC): a) turbação = qualquer tipo de incômodo ou embaraço, direto ou indireto, ao exercício da posse (ex: demarcação indevida, derrubada de cerca, colocação de obstáculos à passagem do possuidor, etc.); b) esbulho = efetiva privação, subtração injusta da posse, contra a vontade do possuidor; c) violência iminente = ameaça à posse, ainda sem nenhum ato concreto. 3 Para defesa da posse, nas três situações antes descritas, existem determinadas ações, que se fundam exclusivamente no fato jurídico da posse – denominadas INTERDITOS POSSESSÓRIOS –, previstas no art. 1.210 do CC e nos arts. 920 e seguintes do CPC. Inclusive, na pendência de processo possessório, proíbe-se tanto ao autor como ao réu intentar ação paralela, de reconhecimento de domínio (art. 923 do CPC); da mesma forma, veda o § 2º do citado art. 1.210 do CC a alegação de propriedade (exceptio proprietatis), ou de outro direito sobre a coisa, a título de defesa do réu turbador ou esbulhador. Portanto, toda discussão em juízo possessório deve ter por foco exclusivo a posse enquanto fato, sendo irrelevante, nessa esfera, qualquer título alusivo à propriedade ou a outro direito (jus possidendi). Não se confere a ninguém, nem mesmo ao proprietário, o direito de molestar posse alheia. Se o proprietário não tem como provar ter sido injustamente desapossado da coisa ou não tem como demonstrar posse anterior, mas tem interesse em defender seu domínio contra quem indevidamente possua o bem, então deverá propor a ação real ou petitória cabível, que pode ser: a) uma ação reivindicatória - disponível ao proprietário que não tem a posse, mas quer essa posse fundamentando-se no seu direito de propriedade e no direito de sequela. Essa ação sustenta-se na Súmula 487 do STF (“Será deferida a posse a quem evidentemente tiver o domínio, se com base neste for disputada”) e pode ser movida contra todo aquele que indevidamente possua ou detenha a coisa. b) uma ação para entrega ou restituição de coisa certa - disponível ao proprietário ou titular de outro direito que nunca teve a posse, mas quer tê-la com fundamento no jus possidendi. Essa ação deve incorporar um pedido de busca e apreensão se a coisa for móvel, ou de imissão na posse quando se tratar de bem imóvel, nos termos do art. 461-A do CPC, caput e § 2º. É movida contra o alienante ou, de um modo geral, contra quem tenha se obrigado por contrato a entregar a posse da coisa (ex: promitente vendedor). Os interditos possessórios, por outro lado, são os seguintes: 1) AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE Para o caso de TURBAÇÃO. A ação segue o rito especial previsto nos arts. 926 a 931 do CPC, se intentada dentro de ano e dia da turbação (turbação nova), comportando expedição de mandado liminar de manutenção de posse, inaudita altera pars. Se intentada depois de ano e dia da turbação (turbação velha), a ação de manutenção de posse não perderá o caráter possessório, mas seguirá o rito ordinário, de acordo com o art. 924 do próprio CPC, com a ressalva de que, atualmente, esse rito comporta a antecipação de tutela, desde que presentes os requisitos doart. 273 do CPC. 2) AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE Para o caso de ESBULHO (arts. 926 a 931 do CPC). Aqui também, o rito é especial, comportando mandado liminar de reintegração, se a ação for intentada dentro de ano e dia a 4 partir do esbulho. Após esse período, a ação ainda é possível, porém pelo rito ordinário ou sumário, admitindo, se for o caso, antecipação de tutela. A reintegração de posse pode ser intentada não apenas contra o esbulhador diretamente, mas também contra o terceiro que, de má-fé, recebeu a coisa esbulhada (art. 1.212 do CC). 3) INTERDITO PROIBITÓRIO Proteção preventiva, para o caso de AMEAÇA da posse (arts. 932 e 933 do CPC). O procedimento, aqui, é sempre o especial previsto no CPC, uma vez que a ameaça é sempre atual, não cabendo sua classificação em “velha” ou “nova”. Note-se que, de acordo com o art. 920 do CPC, a propositura de uma ação possessória, em vez de outra, não obsta o conhecimento do pedido pelo juiz. Trata-se do princípio da fungibilidade dos interditos possessórios. Os interditos possessórios devem ser propostos no foro da situação da coisa (art. 95 do CPC). A qualificação do(s) réu(s) na ação possessória nem sempre tem como ser conhecida com precisão, razão pela qual sua deficiência não pode ensejar o indeferimento da petição inicial. Em todos os interditos possessórios, é lícito ao autor pedir, igualmente, condenação em perdas e danos, cominação de pena para o caso de nova turbação ou esbulho, e ainda desfazimento de construção ou plantação feita em detrimento de sua posse, nos termos do art. 921 do CPC. O art. 1.210, § 1º, do CC, autoriza a LEGÍTIMA DEFESA DA POSSE e o DESFORÇO IMEDIATO. Em face desse dispositivo, pode o possuidor usar dos próprios meios, da própria força, para manter-se na sua posse ou restituir-se da mesma, desde que o faça imediatamente, ato contínuo, e sem exageros. Quando duas ou mais pessoas disputam a posse, deve o juiz, na pendência da disputa judicial, manter na posse aquela pessoa que já está efetivamente com o bem, a menos que se prove que o obteve de modo vicioso (art. 1.211). As servidões aparentes (direitos reais de fruição sobre imóveis, visíveis e permanentes, como um aqueduto ou um caminho marcado) gozam, igualmente, de proteção possessória (vide Súmula 415 do STF). Não têm essa proteção a servidão não aparente, por lhe faltar sinal visível, a menos que o beneficiário da servidão disponha de título oriundo do possuidor do prédio serviente ou de pessoa de quem o possuidor recebeu o prédio (art. 1.213). III – ELEMENTOS DA POSSE: PRINCIPAIS CORRENTES DOUTRINÁRIAS Duas correntes, construídas no século XIX, servem ainda hoje de base à discussão sobre a posse: a SUBJETIVISTA, defendida pelo alemão FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY, e a OBJETIVISTA, do também alemão RUDOLF VON IHERING. 5 1) A CORRENTE SUBJETIVISTA Para Savigny, a posse seria o poder de dispor fisicamente da coisa, com a efetiva vontade do possuidor de tê-la como sua e defendê-la em face de outrem. Compor-se-ia a posse, assim, de dois elementos: um físico, a que Savigny denominou corpus e um moral, qual seja o animus. O corpus, afirmou Savigny, é o poder físico efetivo da pessoa sobre a coisa. O animus, por outro lado, que para o referido jurista constitui o fator mais importante, é o propósito do possuidor de ter, realmente, a coisa como sua. Por essa corrente, o locatário de um imóvel não teria a posse do mesmo, pois embora exista o corpus, ausente está o animus, já que o locatário deteria o imóvel em nome do proprietário. Faltando o animus, para Savigny, não se teria posse, mas detenção. 2) A CORRENTE OBJETIVISTA Maior crítico da teoria de Savigny, seu ex-aluno Ihering defendeu que o corpus não é tão somente o contato físico efetivo da pessoa com a coisa, mas a conduta de quem age como dono, a atitude exterior. Sob tal ótica, também poderia ser considerado possuidor quem, embora não tivesse eventualmente o contato direto com a coisa, mantivesse esta à sua disposição de alguma forma. Nesse contexto, de menor importância seria o animus, que já estaria, inclusive, inserido no corpus – este o único elemento visível e suscetível de comprovação. O possuidor não precisaria ter a vontade de estar com a coisa como dono, mas simplesmente a vontade de proceder habitualmente como procede o dono, ou seja, apenas de “agir como proprietário”, ainda sabendo, eventualmente, que não o é. Portanto, pela teoria de Ihering, são possuidores todos aqueles que têm o corpus por força de uma relação jurídica com o proprietário. É o caso do locatário, ou do comodatário, por exemplo. A Teoria Objetivista de Ihering foi aquela adotada, essencialmente, pelo Direito brasileiro, embora apenas excepcionalmente se considere, para certos efeitos, a teoria de Savigny (como no usucapião, em que se exige intenção de dono). A definição de posse verificada no art. 1.196 do Código Civil, aliás, bem reflete a teoria de Ihering. OBSERVAÇÃO Este material destina-se a mera orientação, não esgotando, em nenhuma hipótese, o respectivo conteúdo, cujo estudo deve ser complementado, com a doutrina, a legislação, a jurisprudência, eventuais anotações obtidas em sala de aula e exercícios. Dúvidas / críticas / sugestões: andrebessa@globo.com
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