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ARTIGO CIENTÍFICO: ATÉ QUE PONTO PAULO FREIRE TEM A VER COM O DIREITO? RESUMO: Este artigo procura defender uma nova visão de trabalho do Direito, não mais como campo árido de atuação “autônoma” por parte dos juristas, mas como um processo interdisciplinar de associação de várias áreas do conhecimento humano, aproximando o conhecimento jurídico da vida concreta. Para tal, a clara opção pelo campo pedagógico dentro do Direito funciona como uma demonstração prática (a partir da práxis dos juristas) do quão importante é um real comprometimento do profissional dedicado à Justiça para a construção de soluções que perpassem a mera retórica de um discurso crítico, mas que continua a ser mero discurso, e não diálogo. É a partir desta posição que trazemos a práxis pedagógica de Paulo Freire para o Direito, não mais como um belo conjunto de valores teóricos, mas como uma práxis eticamente comprometida com aquele que não tem seus direitos respeitados e garantidos. RETRANCA: Direito; Pedagogia; Filosofia da Libertação. ATÉ QUE PONTO PAULO FREIRE TEM A VER COM O DIREITO? Realmente é inconcebível imaginar qualquer tipo de contribuição que um pedagogo como Paulo Freire possa oferecer a uma melhor compreensão do Direito, ou como melhor aplicar suas idéias à vida concreta, principalmente se partimos de uma concepção “fechada” típica do antigo positivismo jurídico. O fato é que com a transformação do Direito de uma estrutura “pura” e auto-suficiente (como queria Kelsen) em um modelo flexível ao ponto de permitir ao juiz uma maior possibilidade para decidir cada caso concreto de acordo com seu entendimento, sempre amparado pela produção legislativa, faz com que o jurista desça do conhecido pedestal de onde se encontrava e passe a interagir com outras áreas do conhecimento, não mais como saberes “menores”, mas como Outros dialéticos, que colaboram no “des-velamento” do mundo. Áreas do saber até então renegadas pelos juristas, que só aplicavam a lei, passaram a ter primordial importância para uma melhor compreensão da realidade, numa nova corrente do pensamento jurídico que evidenciou a chamada teoria crítica do direito. Dessa forma, a filosofia, a sociologia, a história, a psicologia e também a pedagogia passaram a contribuir de forma muito especial para a formação de um profissional crítico e comprometido com uma justa utilização das normas, comprometido com as camadas populares. Esta “abertura ao Outro” por parte do mundo jurídico evidentemente faz com que determinados conhecimentos não sejam tão facilmente assimilados pelos estudiosos, levando em muitos casos a visões equivocadas e distorcidas de teorias de suma importância dentro das ciências humanas. Paulo Freire tem diversas contribuições a nos oferecer, mas estas precisam ser bem assimiladas, pois fazem parte de um conjunto de práticas de libertação do outro oprimido, seja o estudante em sala de aula (lembre-se as aulas integralmente teóricas e dogmáticas, que se tornam ainda mais carregadas no ensino do Direito), seja na relação com o leigo, que costuma se colocar em posição de inferioridade diante do profissional do Direito. Uma das idéias centrais do pedagogo (e que muito pode contribuir à metodologia do jurista comprometido com a libertação do oprimido) é a concepção bancária de diálogo. Trata-se esta de uma mera “transferência de conhecimentos” acrítica e anti-dialógica, pois não pratica a comunicação, mas apenas “dá comunicados”. É, portanto, a mera reprodução de idéias que não são contextualizadas, e que não podem ter qualquer relação com o real, pois não são assimiladas criticamente, quanto menos contextualizadas com a vida concreta. Parece muito claro que o atual ensino do Direito é permeado por esta forma de ensino, caracterizada pelo “depósito de conhecimentos” (daí o termo “bancário”). Aulas recheadas de conceitos abstratos e que não partem do real-concreto para recepcionar a teoria nada mais são que uma forma de desumanização do Outro, que não é reconhecido como sujeito crítico que também constrói o conhecimento, mas como um mero objeto cognoscível, que não interage dialeticamente, que não é contextualizado, enfim, que não é comprometido com a realidade. Em suma, o professor fala e o aluno escuta; o professor sabe e o aluno não sabe; o professor é o detentor da cultura que será introjetada no aluno, que não a tem. O mesmo vale na relação advogado/cliente (esta, inclusive, está tão permeada pela visão mercadológica de advocacia que é notória a dificuldade em se visualizar qualquer tipo de dialogicidade, neste processo específico). É preciso atentar, porém, que ter uma posição de libertação do Outro não significa meramente considerar este outro como alguém “capaz”, mas ainda assim aliená-lo do processo de transformação dialética do conhecimento. Frase das mais conhecidas de Freire nos é muito significativa, pois ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho; todos se libertam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Este dado é decisivo para percebermos que não basta uma pré-disposição de apenas um dos pólos do conhecimento em praticar o diálogo, pois este ocorre apenas em comunhão com o Outro, e portanto livre de qualquer tipo de hierarquia entre ambos. Ser dialógico não significa ser simpático, ou tratar o outro com polidez. Este é apenas mais um elemento que proporciona o diálogo, mas não é condição suficiente para a consolidação do processo dialético de libertação. Ser dialógico significa aprender com o outro, e para tal é necessário que o interlocutor se coloque em posição de extrema humildade durante o processo de construção do conhecimento, a ponto de admitir que sua verdade vale tanto quanto a verdade do Outro, devendo passar, ambas as duas, pelo processo crítico de problematização com o real, proporcionando a ambos a oportunidade de crescer intelectualmente em união, pois puderam conhecer realidades diferentes, alcançando então a verdadeira Alteridade. Para aquele que busca o diálogo, é necessário que se parta da realidade do outro para só então proporcioná-lo um conhecimento diferente, numa relação de tese e antítese que o leva a uma maior compreensão do real-concreto. Contextualizando: o advogado deve partir da “situação-limite” do leigo, que é uma idéia que apresenta uma contradição que deve ser problematizada, para o início do des-velamento do mundo (a idéia, por exemplo, de que “o direito só serve para os ricos” é um bom tema a ser discutido, até porque não deixa de ser uma constatação daquilo que ocorre de fato, mas que não teria, em tese, razão de ser); o professor deve, por sua vez, ao invés de depositar conceitos jurídicos vagos, partir da visão dos próprios alunos (encarados agora também como professores, porque o professor se coloca também na posição de aluno), juntamente com seus valores, para problematizar o real e chegar ao ideal-teórico, que passa a interagir verdadeiramente com o real-concreto, ao qual ambos voltam já de maneira crítica, concretizando o des-velamento do mundo. Vejam, portanto, o quão longe ainda estamos deste diálogo libertador. Dentro de um universo repleto de vaidades e de discursos demagógicos como é o Direito, a própria Filosofia da Libertação parece ameaçada de ser um mero recurso retórico de afamados juristas que não praticam verdadeiramente o diálogo. O próprio Paulo Freire, quando já afamado por suas idéias, fazia questão de discutir pessoalmente com aqueles funcionários que trabalhavam diretamente com os estudantes e populares (secretárias, faxineiras, etc), pois não via qualquer honra em se achar “superior” ao Outro. A propósito, antes de se tornar pedagogo, Freire se formou em Direito (fato surpreendente para muitos), porém abandonou a carreira de advogado após seu primeiro caso (que se tratava, pelo que consta, de uma ação de execuçãode dívida), pois não tinha “estômago” para lidar com situações em que o direito serve apenas àquele que pode pagar por ele, mesmo atentando contra os ideais de justiça e de garantia de direitos fundamentais. Há ainda outros elementos da teoria freireana que poderiam ser melhor difundidos neste espaço, porém, sabendo da grande dificuldade em se romper até mesmo com aquilo que parece ser dos atos mais simples compromissados com a humanização do conhecimento (qual seja, o abandono do método bancário de diálogo, em prol da construção de um conhecimento verdadeiramente democrático e dialético, porque concretizado dialogicamente com o Outro), certamente nos daríamos por satisfeitos (momentaneamente, é claro) quanto ao nosso papel de propor uma práxis verdadeiramente freireana, pois baseada em condutas éticas mínimas pautadas na valorização da cultura popular como instrumento de humanização do Direito, para que a teoria crítica não caia no abismo da retórica vazia e anti-dialógica. É possível sim ser coerente com a teoria de Paulo Freire também no Direito, seja como estudante (na extensão universitária), seja na docência ou na prática profissional. Para tal cabe atentar para o rigor teórico da sua prática, e ter a coragem de ser radicalmente coerente com tais ideais. Estes são apenas alguns dos primeiros passos que a pedagogia libertária nos sugere. Cabe a nós, portanto, reconhecer primeiramente a importância da pedagogia também dentro do Direito, pois estabelecemos relações pedagógicas com o Outro a todo momento, e, a partir de então, procurar formas de trabalhar eticamente em busca do rompimento de todo e qualquer tipo de relação de dominação do homem pelo homem, tanto no campo econômico quanto no campo político, filosófico e ideológico. Ninguém disse que seria fácil, mas de fato vale a pena tentar. DIEGO AUGUSTO DIEHL – SAJUP/UFPR SUGESTÕES PARA LEITURA: DUSSEL, Enrique D. Método para uma filosofia da libertação. São Paulo: Loyola, 1986. FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia – saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1999. LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. Brasília: Editora Brasiliense, 1995 MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. Lisboa: Estampa, 1994. SOUSA, José Geraldo (org.). O Direito Achado na Rua, Brasília: Editora UnB, 1990. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1994.
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