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A questão da neutralidade na pesquisa jurídica . Maurício Lindenmeyer Barbieri Advogado Trabalhista em Porto Alegre/RS . . Introdução “Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto.” Assim HANS KELSEN começa o clássico Teoria Pura do Direito, em que procura escoimar o Direito de toda e qualquer influência de elementos que lhe são estranhos. Durante algum tempo a neutralidade do jurista foi apontada como uma virtude. De algum tempo para cá a neutralidade tem sido questionada e até por muitos tida como inexistente, conforme porteriormente se demonstrará.1 A regra jurídica não aparece sem causa. Um certo número de dados profundos são a verdadeira origem e explicam suas gêneses. Contudo, como explicar se tradicionalmete o nascimento de determinada regra de Direito ? Não se estuda o fenômeno social que deu origem à regra. Vai-se dizer que “a idéia de Direito” é que se exteriorizou, e não o fenômeno social que fez surgir a regra. Assim a ciência jurídica tradicioal é “representação”, e não “explicação”. Ou seja, estudam-se as instituições e a noção destas instituições como necessárias ao funcionamento social, mas não se explica o fenômeno, a raiz. Sobre imagens retiradas da existência e do desenvolvimento da organização da vida social (e não da explicação) que vai se fundar a ciência jurídica tradicional, criando-se condições para o idealismo. 2 Nesta visão, cria-se espaço para admitir (a inadmissível) neutralidade do legislador na feitura das leis, sendo estas abstratas e impessoais, do magistrado, na aplicação da lei ao caso concreto, e, também do doutrinador, no estudo do direito. A realidade jurídica passa a ser dissociada da sociedade onde se dão as relações sociais e por conseguinte, as relações jurídicas. Ora, sendo a sociedade um complexo de interesses e relações, por muitas vezes estes se apresentam de forma conflitante e antagônica entre si, veja-se, por exemplo, o interesse nas relações trabalhistas entre patrões e empregados, nas relações de consumo - vendedor e consumidor -, a necessidade de estabelecer regramentos para disciplinar interesses opostos, assumindo-se muitas vezes uma postura legal de proteção, a fim de tutelar uma das partes tida como mais fraca. Através da lei, por vezes, busca-se o equilibrio entre os contendores. Nesse contexto, não se pode pretender o Direito como ciência neutra, uma vez que ela nasce no seio da sociedade e a ela se volta, quando surgem os conflitos. Outras vezes, estes conteúdo protetivo não fica tão evidente, mas nem por isso, pode-se dizer que a lei por ser genérica é neutra, que a decisão do juiz não é resultado de suas condicionantes sociais, intelectuais e ideológicas, que o estudioso do Direito não sofre as influências do meio no qual está inserido. Dessarte, sendo o pesquisador ( ou o operador do direito) inserido em determinado meio social, com determinados postulados ideológicos, como fazer para que a pesquisa (poder-se-a falar em parceres, sentenças ...), não seja influenciado por este condicionates. Existe neutralidade ? Visando responder a estas indagações, formula-se o presente trabalho. Parte I. A neutralidade da pesquisa nas ciências sociais. Considerando que o Direito situa-se dentre as ciências sociais, a questão da neutralidade na pesquisa jurídica é controvérsia que inicialmente remete a uma problemática maior, qual seja: a neutralidade nas ciências sociais. É importante que o pesquisador mesmo assumindo compromissos político-ideológicos, que seria desde já assumir uma postura de não neutralidade, vise desenvolver um conhecimento objetivo da realidade concreta. 3 TÂNIA STERN 4, diz que a reflexão sobre a construção do conhecimento científico, leva-nos ao exame dos elementos constitutivos do conhecimento, da problemática neutralidade-objetividade e a questão da totalidade, uma vez que o pesquisador deve estar voltado para o poder explicativo de suas interpretações e conclusões. A autora citada ao discorrer sobre a relação entre sujeito-objeto de o conhecimento, assinala que o conhecimento, tal como a realidade não é algo estático, mas dinâmico, e assim deve ser entendido como entidade dialética e contraditória em seu processo de transformação. O processo da investigação nas ciências sociais pode ser entendido como um ato de conhecimento sobre a realidade social, orientado por uma fecunda relação entre a teoria, a observação e a interpretação. Tal processo é acompanhado, necessariamente, por uma vigilância epistemológica de todos os elementos de pesquisa. 5 Esta operação supõe o exercício da vigilância epistemológica em seus três graus: atenção sobre os fatos e acontecimentos relevantes para o objeto científico; o cuidado com a aplicação rigorosa dos métodos de investigação e de interpretação e a vigilância reaparece quando ela julga os métodos em si mesmos, como um momento de seu próprio procedimento e apreensão do real. 6 O conjunto de operações intelectuais assim desenvolvidas permitirá o reconhecimento dos obstáculos epistemológicos presentes nas teorias disponíveis, sobre um determinado objeto científico, sejam obstáculos provenientes do senso comum, ou advindos de um antigo conhecimento científico vulgarizado. O cientista social não tem somente o papel de descrever a realidade, empírica, a pesquisa participativa deveria partir do estudo de uma determinada comunidade e a ela voltar-se como forma de discussão e ação transformadora desta mesma realidade. Nesta perspectiva, a sociologia crítica desde a década de 60 tem se preocupado com os conceitos de compromisso e transformação, gerando muita controvérsia entre o limite entre ciência e ideologia. 7 Cabe ressaltar, por derradeiro, a questão da totalidade. Hodiernamente, com as crescentes especializações, os trabalhos científicos têm sido cada vez mais fragmentados. É importante destacar que a totalidade não será alcançada através de resultados parciais. Ressalte-se que a crítica ao mito da neutralidade não significa que se queira transformar o trabalho científico em uma opinião subjetiva do pesquisador, mas a partir do conhecimento dos diversos fatores que a este influenciam, ressaltar o ideal objetivo a ser perseguido. Parte II. A questão da neutralidade na pesquisa jurídica. Observa-se que as faculdades de Direito atualmente são mera reprodução de uma sabedoria codificada, que nasceu na segunda metade do século XVIII e é repetida até hoje, geração após geração, aula após aula. As faculdades de Direito, neste sentido, integram-se nas estruturas, à perfeição. Os técnicos do Direito, formados pelas Faculdades, são meros repetidores das estruturas jurídicas subservientes ao sistema. Não interessa a formação do jurista crítico, pois ele é naturalmente desobediente. Interessa o jurista formal, eficiente manipulador das leis. No treinamento da obediência supramencionado, o ensino jurídico é instrumento dos mais característicos e eficientes. Com mais razão, por ser a ponta de lança do sistema encarregado do controle final da sua eficiência, o Poder Judiciário é extensão agravada do ensino jurídico, eis que para ele converge a atuação de todos os profissionais do Direito, gerados por tal ensino. 8 A pesquisa jurídica é uma pesquisa eminentemente bibliográfica, sem se preocupar com os dados concretos da realidade social. Assim, por exemplo, na questão do acesso a justição não há preocupação em saber o número de conflitos que são levados ao Judiciário, e se não estariam os que não são levados, devido a descrença neste Poder, asuperá-los. A preocupação destacada por MAURO CAPELLETTI, com sendo com a justiça social, isto é, “com a busca de procedimentos que sejam conducentes à proteção dos direitos das pessoas comuns”. No Brasil, praticamente, inexistem estudos a respeito destas questões, de acesso a justiça, efetividade das decisões judiciais, etc. 9 A pesquisa, como foi dito, é bibliográfica, a jurisprudência legalista e bibliográfica e os professores tendem a reduzir as suas aulas às práticas forenses pessoais. Assim desenvolve-se um processo de não criação e reprodução da estrutura vigente que leva a sua própria manutenção. É a autopoiese do ensino jurídico. As escolas de direito foram reduzidas a meras escolas de legalidade, com a desvalorização total de disciplinas fundamentais A questão da totalidade foi abordada na primeira parte do trabalho e, agora, retoma-se a idéia. PLAUTO FARACO DE AZEVEDO10 ao tratar da limitação positivista e a cisão do discurso jurídico, reflexos na concepção do direito e no processo hermeneutico, o positivismo tecnocrático e a morte da cultura jurídica, assinala que o conhecimento do direito é compartimentado, dividindo-se em duas partes estanques, uma lógica, ocupando-se da ciência das normas, e, outra axiológica, a que incumbiria o trato dos valores tanto subjacentes quanto buscados pela ordem jurídica. “(...) Com o advento do positivismo, essa cisão procura assegurar-se foros de cientificidade, ao mesmo tempo em que se aprofunda, transmudando-se em dissenção ou oposição, na medida que declara-se incientífica com toda a contemplação valorativa e os espíritos procuram, conscientemente, limitar-se à investigação empírica do direito existente. O lugar da Filosofia do Direito passa a ser ocupado pela Teoria Gerla do Direito (Allgemeine Rechtslehre) e esta passa a representar o andar mais elevado e o mais recentemente construído da Ciência positiva do Direito.(...)” Pode-se afirmar, em síntese, que a redução gnoseológica resultou na elaboração de um discurso jurídico flagrantemente ideológico, cuja premissa fundamental consiste justamente na pretensão de conhecimento do direito separado de toda e qualquer ideologia. Nessas condições, o estudo e a investigação do direito se realizam em um sistema fechado, cujos pressupostos são aprioristicamente tidos como verdadeiros e cujo objeto mostra-se imune à crítica e distante dos problemas sociais e reais.” 11 Essa postura de neutralidade confera ao jurista aquilo que PLAUTO FARACO DE AZEVEDO denominou “um lugar seguro no condomínio do poder”. Cria-se com esta estrutura uma forma condicionada de reflexo no jurista, obrigando-os em nome de uma curiosa “cientificidade do direito”, a operar com se fossem máquinas, articulando conceitos, encadeando-os, estudando-os, estudando as leis do ponto de vista lógico-formal, ordenando-as, classificando-as sob diversas rúbricas e parâmetros, aferindo sua validade formal em face dos dispositivos constitucionais, conduzindo-os, afinal, em nome da neutralidade de seu labor científico, a omitir os juízos feitos a propósito de todo esse labor “científico”, a omitir os juízos feitos a propósito de todo esse labor ou de qualquer uma das partes. O trabalho do jurista esgotar-se-ia na análise das estruturas do direito positivo mediante um pensar circunscrito às categorias do direito positivo. Além, seria o trabalho dos filósofos ou sociólogos do direito que, a bem diser, não fariam parte da comunidade dos juristas. 12 Amilton Bueno de Carvalho, eminente Juiz de Direito gaúcho, escreve: “Parece-me claro que inexiste justiça neutra. A cegueira ou neutralidade só favorece aos fortes. Quem é cego ou “neutro” na disputa entre o opressor e o oprimido é alienado daquele” Vê-se, neste texto, a quem serve o mito da neutralidade política. Mais adiante, o articulista refere: ‘... no que atine ao Judiciário, que aprecia questões já ocorridas entre os litigantes, que está vinculado ao caso concreto, é na concretude que deve verificar se ocorre ou não a justiça. Do cotejo entre as classes em luta, das necessidades pessoais e objetivas dos litigantes, até das psicológicas, é que deve emergir ou não o justo” 13 No encerramento do artigo já mencionado de Amilton Bueno de Carvalho, ele denuncia: ‘Mas sub-repticiamente isso quer dizer que o magistrado (acrescentamos, o pesquisador, isolado na sua torre de marfim, de que nos fala Carlile), ao ser só, deve ficar distanciado do povo, o Juiz (pesquisador) perceberá com clareza a angústia popular e ficará contaminado por ela. E perto do oprimido, contagiado pelo seu sofrimento, evidente que tomará opção por ele. A solução encontrada é deixar o Juiz (pesquisador) só, fora do mundo, distante dos conflitos sociais, para não se dar conta do que acontece na história. Um juiz (pesquisador) desse tipo será, evidentemente, um frio aplicador da lei. A quem ele servirá ? 14 Seria ingenuidade achar que o sistema fosse descurar do pesquisador do Direito. O Direito, como fenômeno social, insere-se no contexto das oligarquias sociais, e, em conseqüencia, padece dos mesmos vícios que caracterizam a hipertrofia da tendência integrativa e a conseqüente atrofia da liberdade. Não é nenhuma novidade que o Direito visa à preservação das estruturas de poder. Toda e qualquer tentativa de questionar estas estruturas choca-se com o jurídico. 15 Se as oligarquias sociais superiores visam, ao longo da história do homem, à obediência das oligarquias sociais inferiores, é o Direito um dos seus instrumentos de manutenção de poder. Revelada a ideologia subjacente ao modelo tradicional, resta revelada a necessidade urgente de dotar o profissional do Direito em geral de conhecimentos culturais atualizados. Tal atualização é indispensável ao jurista, a fim de que este esteja ciente “sobre suas próprias opções pessoais e sobre o significado político do corpo profissional a que pertencem, com vistas a possibilitar-lhes um certo distanciamento crítico (verdadeira eqüidistância) e uma atitude de prudente vigilância pessoal no exercício de suas funções numa sociedade cada vez mais complexa e dinâmica.” 16 Denunciar as estruturas de alienação é somar-se a tarefa mágica de despertar da consciências: é dever primordial do jurista e pesquisador crítico. Fazer do seu trabalho um ato de recriação do Direito e do Jusito, é afirmar que a liberdade é um sonho possível e a justiça uma utopia factível em cada opção, como ato de construção de uma nova sociedade. Notas 1 Plauto Faraco de Azevedo, Crítica à Dogmática e hermeneutica jurídica, Fabris, Porto Alegre, 1989, José Eduardo Faria, A reforma do Ensino Jurídico, Fabris, Porto Alegre, 1987, Márcio Oliveira Pugina, Deontologia, Magistratura e Alienação, Revista Ajuris, 59/167. Rui Portanova, Motivações Ideológicas da Sentença. 3º edição, Livraria do Advogado, Porto Alegre. 2 Rui Portanova, opus cit, pág. 53 /54. 3 Linberger, Temis, A questão da Neutralidade na Pesquisa Juridica, (monografia). 4 Strern, Tânia, Cadernos de Sociologia, Porto Alegre, Vol. 3, nº 3, jan/julho, 1991, pág. 34. 5 Dos Santos, José Vicente Tavares., A construção da viagem inversa - ensaio sobre a investigação nas ciências sociais. Cadernos de Sociologia, Porto Alegre, Vol. 3, pág. 57, jan/jul, 1991. 6 Bourdieu, P. & Camboredon, J. Le métier de Sociologue. Paris, Mouton, 1973, pág. 117. Citado por José Vicente Tavares dos Santos, opus cit., pág. 56. 7 Nesse sentido, vale a pena consultar José Eduardo Faria, A Reforma do Ensino Jurídico, Fabris, Porto Alegre, 1987, 8 Pugina, Márcio Oliveira, opus cit. pág. 175 9 O problema é muito bem lembrado por Temis Limberguer. A questão da neutralidade na pesquisa jurídica (monografia). 10 Plauto Faraco de Azevedo, Crítica à dogmática e Hermeneutica Jurídica, Fabris, Porto Alegre, 1989,pág. 18. 11 Plauto Faraco de Azevedo, opus cit., pág. 20 12 Plauto Faraco de Azevedo, opus cit., pág. 20. 13 Amilton Bueno de Carvalho, Revista Ajuris 39/146. 14 Amilton Bueno de Carvalho, Revista Ajuris, 39/150. 15 Márcio Oliveira Pugina, opus cit., pág. 194. 16 Boaventura de Souza Santos, Introdução à sociologia da administração da Justiça. In: Direito e Justiça. A função social do Judiciário (org. José Eduardo Faria). São Paulo, Ática, 1989, pág. 53. . Informações bibliográficas: BARBIERI, Maurício Lindenmeyer. A questão da neutralidade na pesquisa jurídica . In: Âmbito Jurídico, mai/2001 [Internet] http://www.ambito-juridico.com.br/aj/ens0002.htm (ao citar este artigo, lembre-se de colocar a data de acesso).
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