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15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 1/12 POLÍTICA EDITORIAL - NORMAS PARA PUBLICAÇÃO - CONSELHO EDITORIAL - EDITORIAL - QUEM SOMOS - CONTATO DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS LINGÜÍSTICOS - DIALETO CAIPIRA Página Inicial Especial - Acordo Ortográfico Agenda de Eventos Anais de eventos Artigos Artigos de I.C. Blog Entrevista Polêmica nas Letras Reflexão sobre o ensino de língua(s) Resenha Edições Anteriores Linguasagem em: (blog) Veja também Biblioteca Digital Mundial FILOSOFIA DA LINGUÍSTICA: TRÊS SAUSSURE(S)? Mônica Baltazar Diniz Signori (DL-UFSCar) Roberto Leiser Baronas (DL-UFSCar) Em última análise é somente o lado pitoresco de uma língua o que faz com que ela se distinga de todas as outras como pertencendo a um certo povo que tem certas origens, esse lado quase etnográfico, que conserva interesse para mim: e, precisamente, não tenho mais o prazer de poder entregar-me a esse estudo sem desconfiança, e de desfrutar do fato particular que se prende a um meio particular. Sem cessar, a absoluta inépcia da terminologia corrente, a necessidade de reformá-la e de mostrar para isso que espécie de objeto é a língua em geral vem estragar o meu prazer histórico, embora eu não tenha nenhum desejo mais caro do que não precisar ocupar-me da língua em geral. Saussure[1] ou De você sei quase nada Pra onde vai ou porque veio Nem mesmo sei Qual é a parte da tua estrada No meu caminho 15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 2/12 Ceditec Comunidade dos Países de Língua Portuguesa Dicionário de Termos Lingüísticos Domínio Público GEScom GETerm iLteC Institut Ferdinand de Saussure Portal de Periódicos Capes Será um atalho Ou um desvio Um rio raso Um passo em falso Um prato fundo Pra toda fome Que há no mundo Zeca Baleiro e Alice Ruiz [2] Quem é Ferdinand de Saussure? O que representa para a Linguística contemporânea? Um pensador sem dúvida nenhuma ultrapassado, autor de uma teoria alienada que delimitou como único objeto da Lingüística a língua[3], excluindo dos estudos linguisticos o discurso e, consequentemente, o sujeito e a história? A língua pela língua... Que pensamento mutilado é esse que orientou a consolidação de uma proposta científica em pleno século XX? Um teórico superficial, que sequer vislumbrou a complexidade do objeto de estudo que se propôs estudar, enclausurando a Linguística nos acanhados espaços da imanência? Como se circunscrever aos limites da língua e relegar a um plano indefinido, exterior à Linguística “propriamente dita” (CLG, 2000, p. 28), o discurso? Um pensador genial, que abordou a linguagem entrevendo sua complexidade? A língua e o discurso, a sincronia e a diacronia, o sintagma e o paradigma... Um pouco dos três? Como? O estudo deste pequeno artigo procurará desenvolver essas interrogações. Não tem o objetivo (pretensioso por demais!) de gerar conclusivas respostas[4]. Visa destacar algumas questões fundamentais da teoria saussuriana que, das mais variadas formas, estão presentes no desenvolvimento da Linguística contemporânea. Seja para ser aceito, seja para ser negado, Saussure é continuamente relido, e cada releitura tece suas próprias considerações: “cada época primou pela observação de determinados aspectos, cada tendência fez a sua opção por uma obra ou um problema em particular [...]; cada leitor, enfim, leu o “seu” Saussure” (Lopes, 1997, p. 142). Depois de um século de tamanhos desenvolvimentos da Linguística, ao lado de sua continuidade, cada vez mais se abrem espaços para retornos, espaços para (re)leituras, espaços criados pelo próprio Saussure, que não nos deixou “uma ciência plenamente madura, constituída, um corpo de doutrina consistente e consolidada. Na verdade, Saussure 15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 3/12 Portal de Revistas Científicas Persee Revue Texto! Texto livre TRIANGLE UEHPOSOL Universia não fez nada disso: ele nos deixou idéias – quer dizer, clarões de luz, sementes para germinar” (Lopes, 1997, p. 52). Para a breve discussão deste artigo, vamos dialogar com três obras: (i) As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure, (ii) o Curso de Linguística Geral e (iii) os Escritos de Linguística Geral. Em As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure, Jean Starobinski analisa a pesquisa de Saussure sobre os anagramas, que se realizou, provavelmente, entre os anos de 1906 a 1909[5]. Saussure preencheu mais de uma centena de cadernos[6] com esses estudos, interpretando “a poesia clássica como uma arte combinatória cujas estruturas desenvolvidas são tributárias de elementos simples, de dados elementares que a regra do jogo obriga todo conjunto a conservar e a transformar” (Starobinski, 1974, p. 113). Análises de versos saturninos (17 cadernos e um maço de papéis), de Homero (24 cadernos), de Virgílio (19 cadernos), da métrica védica (26 cadernos), e de outros tantos autores, encaminham-nos para a compreensão de que toda linguagem é combinação mesmo que não intervenha a intenção explícita de praticar uma arte combinatória. Os decifradores, cabalistas ou foneticistas, têm o campo livre: uma leitura simbólica ou numérica, ou sistematicamente atenta a um aspecto parcial, pode sempre fazer existir um fundo latente, um segredo dissimulado, uma linguagem sob a linguagem. E se não houvesse algarismos? Sobraria este interminável apelo ao secreto, essa espera da descoberta, esses passos perdidos no labirinto da exegese. (Starobinski, 1974, p. 113) O Curso de Linguística Geral, obra editada por Charles Bally e Albert Sechehaye, foi publicado em 1916, três anos após o falecimento de Saussure. Bally e Sechehaye compuseram o Curso de Linguística Geral com base em anotações feitas por um dos alunos de Saussure, em três cursos que ele ministrou em Genebra, entre 1906 e 1911. É considerada a obra inaugural da Linguística moderna e, sem desmerecer o trabalho de Bally e Sechehaye – pelo contrário, atentando para a importância de que a edição desse livro se revestiu –, não é possível deixar de mencionar o fato dessa obra – inaugural –, que norteia a fundamentação não apenas da Linguística, mas do Estruturalismo, que influencia a organização científica em várias áreas do conhecimento, não ter sido nem escrita nem revista por aquele a quem se atribui o corpo teórico ali apresentado. Saussure foi um pesquisador que não encontrou eco para suas reflexões em sua época, tendo podido construir bons diálogos em círculos restritos de “alguns ouvintes”, aos quais fazia-se “de surdo” (Starobinski, 1974, p. 113) diante das incitações para a publicação de seu trabalho: Saussure afastava-se da sua época na mesma medida em que se tornava pouco a pouco senhor da sua própria verdade, pois essa verdade o fazia 15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 4/12 rejeitar tudo o que então se ensinava a respeito da linguagem. Mas ao mesmo tempo em que hesitava diante dessa revisão radical que sentia necessária, não podia resolver-se a publicar a menor nota antes de haver assegurado,em primeiro lugar os fundamentos da teoria. (Benveniste, 1988, p. 40) Um homem sozinho dentro do seu pensamento durante quase toda a sua vida, não podendo consentir em ensinar aquilo que julga falso ou ilusório, sentindo que é preciso refundir tudo, cada vez menos tentado a fazê-lo, e finalmente, após muitos desvios que não podem arrancá-lo ao tormento da sua verdade pessoal, comunicando a alguns ouvintes, sobre a natureza da linguagem, idéias que não lhe pareciam jamais suficientemente amadurecidas para serem publicadas. Morreu em 1913, pouco conhecido fora do círculo restrito de seus alunos e de alguns amigos. Já quase esquecido de seus contemporâneos. (Benveniste, 1988, p. 48). Quando, em 1906, assume o cargo de professor titular na Universidade de Genebra, e tem a oportunidade de “dar a conhecer as idéias pessoais que amadurecera durante tantos anos” (CLG, 2000, p. 1), coloca-se, na verdade “diante de um dilema”: ou expor o assunto em toda a sua complexidade e confessar todas as minhas dúvidas, o que não pode convir para um curso que deve ser matéria de exame, ou fazer algo simplificado, melhor adaptado a um auditório de estudantes que não são lingüistas. Mas a cada passo me vejo retido por escrúpulos. (Saussure, em CLG, p. XVII) As dúvidas de Saussure, o objetivo de construção de um entendimento bem fundamentado diante da complexidade que a própria linguagem lhe apresentava (mais de um século depois a linguagem ainda representa para a Lingüística imensos campos a explorar), a ausência de eco suficiente entre seus contemporâneos o fizeram não publicar sua teoria que, não obstante, foi editada e trazida a público como sendo uma proposta pronta, acabada, do que deveria ser a Ciência Linguística. É inegável, contudo, a importância da edição do Curso de Linguística Geral para a divulgação de um pensamento que Saussure não publicou. Mas também é inegável a necessidade de recolocá-lo em cada época, buscando um lugar mais apropriado para idéias em franco desenvolvimento, amadurecimento, aprofundamento. Finalmente, os Escritos de Linguística Geral, trazendo o pensamento saussuriano como foi deixado por ele mesmo. A edição foi organizada por Simon Bouquet, a partir da descoberta, em 1996, de novos manuscritos saussurianos, em hotel da família de Saussure, em Genebra. Para quem teve sua formação linguística pautada pelas leituras do Curso de Linguística Geral, é impossível evitar uma reação de estranhamento quando se lê 15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 5/12 o trabalho de Jean Starobinski, As palavras sob as palavras, quando nos defrontamos com o Saussure dos anagramas. Logo no início dessa leitura, nos deparamos com as seguintes afirmações de Saussure, retiradas de “uma folha rasgada, não datada”: Para mim, quando se trata de linguística, isto é acrescido pelo fato de que toda teoria clara, quanto mais clara for, mais inexprimível em linguística ela se torna, porque acredito que não exista um só termo nesta ciência que seja fundado sobre uma idéia clara e que assim, entre o começo e o fim de uma frase, somos cinco ou seis vezes tentados a refazê-las (Saussure, em Starobinski, p. 11) Desconstrói-se diante de nós, conhecedores do CLG e de inúmeras (re)leituras dessa obra, a imagem de um Saussure seguro, definitivo, que se apresenta como o revelador de uma verdade única. Abre-se a imagem de um Saussure não inseguro, mas absolutamente exigente, amplo, profundo, em dificuldades para elaborar definições precisas e acabadas, expondo-nos, assim, a linguagem de maneira muito complexa. Abre-se a imagem de um Saussure envolto, em sua essência, com as questões de que a ciência linguística deveria se ocupar, longe da institucionalização, próximo das íntimas indagações, imagem que não podemos deixar de formar diante de um Saussure que se mostra por meio de uma folha rasgada, não datada: “Saussure sente a clareza escapar-lhe vendo-a, no entanto, oferecer-se tão próxima” (Starobinski, 1974, p. 12). É a linguagem que se apresenta a esse pensador, em suas múltiplas faces, todas o convidando para a busca da grande revelação: o que une tantas faces, o que faz todas elas serem únicas em sua diversidade? Impossível não nos perguntarmos sobre o Saussure que tão simplesmente afirmou, no CLG, ser a língua (e não o discurso) o objeto de estudo da Lingüística: “a língua só é criada com vistas ao discurso”, é a afirmação de Saussure que lemos em Starobinski (1974, p. 12). Será possível que esse mesmo Saussure teria feito a delimitação do objeto da Linguística sobre a língua, desconsiderando completamente o discurso? E as surpresas vão se sucedendo, página a página, desconstruindo um Saussure austero (austeridade que parece esconder a ingenuidade de um pensamento simplista), que delimitou com rigor o objeto de estudo da Linguística na língua. Aparece-nos um Saussure que se detém sobre o discurso, preocupado em compreendê-lo: “mas o que separará o discurso da língua ou o que, num dado momento, permitirá dizer que a língua entra em ação como discurso?” (Saussure, em Starobinski, 1974, p. 12) Seria isso mesmo? Teríamos um Saussure da língua e outro do discurso? Um Saussure, o que conhecemos, do CLG, e outro, dos anagramas, ou outro ainda dos 15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 6/12 Escritos de Lingüística Geral? Considerando as datas das pesquisas sobre os anagramas – de 1906 a 1909, com registros que indicam a continuidade do trabalho em 1910 – e da oferta dos cursos de linguística geral – de 1906 a 1911 –, podemos afirmar que Saussure, no mesmo período, estava elaborando a teoria anagramática e também os cursos a serem ministrados, preocupado, portanto, tanto com a língua quanto com o discurso: Mas o que é a língua separada do discurso? O anterior ao discurso é realmente a língua, ou não seria de preferência um discurso antecedente? A língua, simples repertório de conceitos isolados, separada do discurso (da fala) é uma abstração. A audácia de Saussure consiste em tratar essa abstração como uma matéria-prima. Não teria havido língua – para o linguista – se os homens não tivessem anteriormente discursado. (Starobinski, 1974, p. 12) Eis que se abalam as certezas construídas em torno de um Saussure que teria excluído o sujeito dos estudos lingüísticos ao excluir destes o discurso. Melhor formulada, “a pergunta que se coloca é”: o que existe imediatamente atrás do verso? A resposta não é: o indivíduo criador, mas: a palavra (ou parole, discurso) indutora. Não que Ferdinand de Saussure chegue ao ponto de apagar o papel da subjetividade do artista; parece-lhe, no entanto, que ela não pode produzir seu texto a não ser depois de passar por um pré-texto. Analisar os versos na sua gênese, não será, portanto, remontar imediatamente a uma intenção psicológica: antes será preciso pôr em evidência uma latência verbal sob as palavras do poema. (Starobinski, 1974, p. 107) Observamos, então, não a exclusão do sujeito, mas a colocação desse sujeito dentro de uma teoria linguistica, que não deve se confundir com uma análise psicologizante: O discurso, a parole, não deriva imediatamente da língua, deriva imediatamente de outro discurso anterior [...] em conseqüência, o criador do poema não é primordialmente o poeta que o redige, é um discurso outro, o discurso do outro, “inter-dito”. (Lopes, 1997, p. 87) Em outras palavras, Saussure não exclui o sujeito, mas o compreende na constituição da própria linguagem. Restaria-nos, das nossas certezas sobre Saussure, o Saussure“a-historicista”? 15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 7/12 Em seu trabalho sobre os anagramas que ainda estava em desenvolvimento em 1910, Saussure “esforçou-se para encontrar a prova de que os personagens e os acontecimentos lendários tinham fundamentos nos personagens e acontecimentos históricos (principalmente nas dinastias dos francos e dos borguinhões)” (Starobinski, 1974, p. 9). Dessas pesquisas, Starobinski extrai “a maior parte das reflexões teóricas de caráter geral”, que podem ser lidas nos manuscritos: Elas permitem captar a analogia surpreendente que marca as duas pesquisas onde Saussure, a partir de textos poéticos, se esforçou por estabelecer a intervenção de palavras, de nomes ou de fatos antecedentes. Caberia perguntar se as dificuldades encontradas na exploração da longa diacronia da lenda, e curta diacronia da composição anagramática, não contribuíram, como reação, para incitar Saussure mais resolutamente ao estudo dos aspectos sincrônicos da língua. Convém aqui assinalar que o Cours de Linguistique Générale, exposto entre 1906 e 1911, é em boa parte posterior à pesquisa sobre os anagramas. (Starobinski, 1974, p. 9) Não temos, ainda, como responder à pergunta de Starobinski (“é leitura para uma vida inteira”), mas ela nos re-encaminha para a nossa própria questão: o Saussure do CLG não é o mesmo Saussure dos anagramas? O Saussure da língua (e da sincronia) não é o mesmo Saussure do discurso (e da diacronia)? Por que teria Saussure reagido às dificuldades de ordem diacrônica com estudos “dos aspectos sincrônicos da língua”? Teria Saussure desistido da diacronia e, portanto, da história? Saussure, que tem sido renitentemente acusado de a-historicista [...] mostra aqui [a proposta da dicotomia sincronia/diacronia] que, ao contrário, sempre se preocupou com as transformações do sistema, preocupação essa característica da visada historicista: o que está em jogo, aqui, de fato, são dois diferentes conceitos de historicidade: a) o conceito de historicidade externa: [...] compreendem a evolução de uma língua a partir do modelo evolutivo-biológico vigente à época, como adaptação do domínio verbal às mudanças ocorridas no ambiente social em que a língua vive – transformação exogerada, produzida de fora para dentro do sistema; b) o conceito de historicidade interna, para a qual as transformações sofridas por um sistema linguístico entre dois de seus estados históricos sucessivos são endogeradas, produzidas dentro do próprio sistema pela transformação de um único elemento dele, que [...] vai repercutir no sistema todo, originando um novo estado histórico da língua, uma nova sincronia; o modelo saussuriano da concepção histórica não é mais evolutivo-biológico; é, antes, um modelo evolutivo-algébrico (“é interno tudo o que transforma o sistema em um grau qualquer”) (Lopes, 1997, p. 95-96) Assim, tanto a história quanto o sujeito devem ser entendidos como uma construção interna: assim como se buscou compreender o sujeito endógeno, da mesma forma buscou-se “o conceito de historicidade interna”. 15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 8/12 Resta-nos, por fim, a grande indagação: interna a quê? À língua? E voltamos ao ponto de partida, ao Saussure lido pelo CLG, o Saussure a-historicista, que exclui o sujeito. Seria preciso ser muito enraizado a certas concepções para não observar que, confrontando o Saussure dos anagramas com o Saussure lido via CLG, surge o Saussure dialético: O funcionamento dialético de suas dicotomias reflete o funcionamento dialético do pensamento que inspira toda a sua doutrina. Não lidamos aqui com uma simples minúcia, uma questão de detalhe, ou com o capricho de um pensamento lacunar tortuoso, que muitas vezes parece colocar “Saussure contra Saussure”, ou prendê-lo nas malhas de contradições insolúveis. Ao contrário, esse funcionamento cíclico está por toda a parte, essa concepção dialética é a própria substância da revolução epistêmica e metodológica dele. [...] pensar as suas dicotomias como antinomias puras, de termos irredutíveis um ao outro, significa paralisar o funcionamento dinâmico de um modo de pensar poderoso e corajoso, que, exatamente por ser dialético, fez dele um contemporâneo do futuro. (Lopes, 1997, p. 140-1) O Saussure dialético é o Saussure que propõe o sujeito e a história na língua que, por sua vez, só existe vinculada ao discurso, numa relação intrínseca, não superposta. O Saussure dialético é o Saussure que valorizou amplamente, profundamente a linguagem, trazendo para ela questões caras como as do sujeito e da história. E o que nos revelam os Escritos de Lingüística Geral? Podemos dizer que há muitas deformações existentes entre o pensamento saussuriano presente no Curso de Lingüística Geral (CLG) e nos Escritos de Lingüística Geral (ELG). Ao afirmarmos isso, não objetivamos restabelecer o que seria o verdadeiro pensamento saussuriano, trazendo ipsis verbis as palavras de Saussure, muito menos fornecer ao leitor uma exegese mais segura, mas evidenciar o quanto o CLG se distancia do pensamento do mestre genebrino. Uma das primeiras deformações existentes no CLG – mesmo considerando que, no seu prefácio, Charles Bally e Albert Sechehaye digam que a obra é uma reconstituição, uma recriação dos cursos de Saussure em Genebra – é o fato de que o livro é por eles apresentado como sendo de autoria do próprio Ferdinand de Saussure. Trata-se, na verdade, de um texto composto por Bally e Sechehaye a partir de anotações de um dos alunos que frequentou os cursos de Linguística Geral, ministrados por Saussure na Universidade de Genebra. É preciso sublinhar que nem Bally nem Sechehaye frequentaram esses cursos. Saussure, portanto, não é o autor do CLG, mas o professor que ministrou três cursos de linguística geral em Genebra, para um público bastante reduzido. Ainda a propósito da edição do CLG, há um fato muito importante que não é devidamente esclarecido por Bally e Sechehaye: o CLG foi organizado por eles a partir das anotações feitas por Albert Riedlinger com base no terceiro curso, que se 15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 9/12 deu em 1910/1911. Bally e Sechehaye deixam de mencionar que os outros dois cursos de linguística geral não serviram de fonte para a edição do CLG. Mantendo-nos no espaço de considerações sobre a autoria do CLG, citamos a ponderação de Charles Bally e Albert Sechehaye, feita no prefácio da sua primeira edição (2000, p. 1): [Saussure] lecionou três cursos de Linguística Geral, em 1906-1907; 1908-1909 e 1910-1911; é verdade que as necessidades do programa o obrigaram a consagrar a metade de cada um desses cursos a uma exposição relativa às línguas indo-européias, sua história e sua descrição, pelo que a parte essencial do seu tema ficou singularmente reduzida. (grifos nossos). Ora, não é possível pensar os três cursos de linguística geral, tal qual propostos por Saussure, separados da “exposição relativa às línguas indo- européias, sua história e sua descrição”. É justamente essa descrição que fornece a Saussure as bases epistemológicas para a proposição de uma ciência da linguagem distinta daquela que vinha sendo praticada até então no século XIX pelos comparatistas e pelos neogramáticos. Ou seja, essa descrição não é um desvio do que seria o principal tema saussuriano, como asseveram Bally e Sechehaye. Ela faz parte da essência mesmo desses cursos. Não há como pensar oscursos de linguística geral sem que se leve em consideração tal descrição das línguas indo- européias. Ademais, essa descrição não se apresenta como uma simples análise histórico-linguística, mas como uma epistemologia dos estudos linguísticos que o antecederam, sobretudo, os de gramática comparada. Outra deformação existente no CLG é o fato de que o pensamento saussuriano presente nos Escritos de Linguística Geral se inscreve num modelo galileano de ciência. Trata-se de um modelo científico baseado na experimentação dos fatos linguísticos, isto é, na literalização, na formalização e na refutabilidade das hipóteses que explicam o funcionamento das línguas. Literalização e formalização implicam uma matematização do funcionamento das línguas. Entretanto, a experimentação no pensamento saussuriano não deve ser entendida como sinônimo da mera observação de fatos linguísticos, mas como a transcrição da realidade fonológica, liberada de toda escrita comum, sendo dessa forma elevada à categoria de escrita científica. Os Escritos de Linguística Geral se apresentam inicialmente como um conjunto de perguntas, hipóteses preliminares, bastante gerais acerca do funcionamento das línguas. Num segundo momento, essas hipóteses são re-elaboradas em linguagem científica, literalizadas, formalizadas e submetidas a uma rigorosa testagem empírica com vistas à sua refutação. Não obstante, o modelo científico no qual se inscreve o Curso de Linguística Geral é o aristotélico, isto é, um modelo que parte da existência de um sistema linguístico completamente hierarquizado em que a teoria não é submetida aos critérios de literalização, formalização e refutabilidade. Esse modelo 15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 10/12 aristotélico que sustenta o CLG, baseado no que seria uma descrição fiel da realidade linguística, apoiado basicamente, por um lado, no observável e, por outro, no caráter de necessidade e de universalidade, é incapaz de deduzir objetivamente, rigorosamente, consequências verificáveis pela experimentação das hipóteses inicialmente postuladas. O que se busca então no CLG é um conhecimento da essência das causas linguísticas. Outra deformação, ainda, existente no CLG é o fato de que o pensamento saussuriano é apresentado como se estivesse pronto, acabado. A natureza inconclusa, às vezes vacilante, desse pensamento, manifestada abertamente pelo mestre genebrino tanto no ELG quanto nos cursos de lingüística geral não está presente em momento algum no CLG. Essa informação, extremamente pertinente, é silenciada. As passagens abaixo, extraídas inicialmente de Bouquet (2002, p. 68- 9) e posteriormente de uma carta de Saussure a Louis Gautier[7], evidenciam o inacabamento do pensamento de Saussure no ELG, nos cursos de linguística geral: A língua é cheia de realidades aparentes – enganosas, visto que são fantasmas criados por linguistas, aos quais esses linguistas se prendem. O que é fantasma, o que é realidade? (...) A linguagem é um objeto de miragens de todas as espécies. (...) Não há aqui nenhuma estrada traçada em que haja aqui e ali alguma ramificação, nem mesmo uma vereda que indique a direção a seguir. (...) Se o que eu quero dizer é verdade, não há um único ponto que seja o ponto de partida evidente. Vejo-me diante de um dilema: ou expor o assunto em toda a sua complexidade e confessar todas as minhas dúvidas, o que não pode convir para um curso que deve ser matéria de exame, ou fazer algo simplificado, melhor adaptado a um auditório de estudantes que não são linguistas. Mas a cada passo me vejo retido por escrúpulos. E, talvez a mais grave das deformações do CLG, dada a sua interferência no pensamento saussuriano, se refere ao fato de que Bally e Sechehaye desconfiguram o próprio fundamento da epistemologia saussuriana: o objeto da linguística. Nos manuscritos saussurianos, sobretudo, no capítulo que trata da dupla essência da linguagem, Saussure insiste no caráter inseparável da dualidade língua/fala: A linguística, eu ouso dizer, é vasta. Particularmente, ela comporta duas partes: uma que é mais próxima da língua, depósito passivo, outra que é mais próxima da fala, força ativa e verdadeira origem dos fenômenos que se percebem em seguida, pouco a pouco, na outra metade da linguagem (ELG, 2004, p. 273). Entretanto, no CLG, Bally e Sechehaye (2000, p. 27) afirmam que O estudo da linguagem comporta, portanto duas partes: uma, essencial, tem por objeto a língua, que é social em sua essência e independente do 15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 11/12 indivíduo; esse estudo é unicamente psíquico; outra, secundária, tem por objeto a parte individual da linguagem, vale dizer a fala, inclusive a fonação é psicofísica. (grifos nossos) Em momento algum no ELG Saussure vai entender o caráter dual da linguagem como sendo constituído por uma parte que é essencial e por outra que é secundária. Língua e fala, apesar das suas especificidades, são inseparáveis para Saussure. Quando Bally e Sechehaye compreendem a língua como a parte essencial da linguagem e a fala como secundária estão mutilando completamente o pensamento do mestre genebrino. Acrescente-se a essa mutilação o fato de que o enunciado “a Lingüística tem por único e verdadeiro objeto a língua encarada em si mesma e por si mesma” nunca foi proferido por Saussure, quer seja no ELG, quer seja nos cursos de lingüística geral. É urgente, portanto, que o pensamento saussuriano seja apreendido na sua totalidade, respeitando o seu caráter de inconclusibilidade. Isso não significa, de forma alguma, sugerir que cessem os questionamentos sobre esse pensamento. Mas é preciso, a todo custo, cuidar para que nossos estudos não continuem, como sabiamente dito por Edward Lopes, colocando “Saussure contra Saussure”. Referências BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral I. São Paulo: Pontes, 1988. BOUQUET, S. Introdução à leitura de Saussure. Trad. Carlos Salum e Ana Lúcia Franco. São Paulo, SP: Editora, Cultrix, 2004 a. _____ & Engler, R. Ferdinand de Saussure: escritos de linguística geral: Trad. Carlos Salum e Ana Lúcia Franco. São Paulo, SP: Editora, Cultrix, 2004 b. ____. De um pseudo Saussure aos manuscritos saussurianos originais. Trad. Roberto Leiser Baronas & Vanice Maria de Oliveira Sargentini, 2008 (mímeo). ____. Ontologia e epistemologia da Linguística nos textos originais de Saussure. Revue Texto! vol. XVIII nº 3 juillet, 2008. LOPES, E. A Identidade e a Diferença: raízes históricas das teorias estruturais da narrativa. São Paulo: Edusp, 1997. SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. 22 Ed. São Paulo, SP: Editora, Cultrix, 2000. 15/09/2016 LINGUASAGEM Revista Eletrônica de Popularização Científica em Ciências da Linguagem http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/polemica01 12/12 STAROBINSKI, J. As Palavras Sob as Palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure. São Paulo: Perspectiva, 1974 [1] Em Benveniste, 1988, p. 40 [2] Trecho da canção Quase Nada. [3] “Pode-se, a rigor, conservar o nome de Linguistica para cada uma dessas duas disciplinas e falar duma Linguística da fala. Será porém necessário não confundi-la com a Linguística propriamente dita, aquela cujo único objeto é a língua.” (CLG, 2000, p. 28). Observação: coerentemente com as discussões tecidas neste artigo, vamos citar como de autoria de Saussure apenas as passagens do Curso de Linguística Geral que sejam transcrições de trechos de manuscritos saussurianos. [4] Em A identidade e adiferença, Edward Lopes conta as composições “dedicadas a analisar, interpretar e avaliar os estudos feitos pelo professor de Genebra” e, em 1988, o número dessas composições já ultrapassava “largamente a imensa cifra de duas mil obras. [...] É leitura para uma vida inteira. Só por aí podemos aquilatar as dificuldades com que se depara aquele que tenta, hoje, avaliar com um mínimo de justeza o sentido da obra do mestre suíço”. (Lopes, 1997, p. 48) [5] “As pesquisas sobre os Niebelungen, em que Saussure esforçou-se para encontrar a prova de que os personagens e os acontecimentos lendários tinham fundamentos nos personagens e acontecimentos históricos [...] continuavam em 1910, como atesta a data (out. 1910) que figura excepcionalmente na etiqueta de um destes cadernos.” (Starobinski, 1974, p. 9) [6] “Esses cadernos, classificados por Robert Godel, encontram-se na Biblioteca Pública de Genebra. Estão distribuídos em oito caixas, cada uma designada por um registro diferente.” (Starobinski, 1974, p. 7) [7] Fontes manuscritas de Saussure, De Mauro, p. 30. Todos os textos publicados podem ser livremente reproduzidos, desde que sem fins lucrativos, em sua versão integral e com a correta menção ao nome do autor e ao endereço deste site. Siga a @linguasagem no Twitter o que é isso?
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