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NEAD Núcleo de Educação a Distância Disciplina de Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica NEAD Núcleo de Educação a Distância 2 Sumário (Unidade 3) APRESENTAÇÃO SINTÉTICA DA UNIDADE• HERMENÊUTICA JURÍDICA CLÁSSICA• 1. Conceito de Hermenêutica Jurídica 2. Objetos da Hermenêutica e da Interpretação Jurídicas 3. Fundamentos da Interpretação 4. Espécies de Interpretação e Sistemas Interpretativos 5. Aplicação e Integração do Direito 6. Aplicação da Hermenêutica na Teoria do Ordenamento Jurídico 6.1 O Problema da Unidade 6.2 O Problema das Antinomias 6.3 O Problema da Completude 6.4 O Problema da Relação com outros Ordenamentos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS• NEAD Núcleo de Educação a Distância 3 Apresentação Sintética da Unidade Em seguida, trataremos dos fundamentos da interpretação, abordando os seus aspectos ontológico, axiológico, gnosiológico e lógico. Depois passaremos ao estudo da classificação das espécies de interpretação e os sistemas interpretativos, considerando as suas fontes (autêntica e doutrinária), os recursos utilizados (gra- matical, histórica, lógica e sistemática) e ainda quanto aos seus efeitos (declarativa, restritiva e extensiva). Por fim, trataremos da aplicação e integração do Direito através da atividade interpretativa, destacando as correntes tradicionalis- tas, baseadas no normativismo, em confronto com as correntes contemporâneas, inspiradas no sociologismo. A principal função da interpretação jurídica é a de fazer a integração entre as diversas normas, realizando a chamada interpretação integradora, que é a garantia da plenitude do ordenamento jurídico. Desse modo, para que você compreenda melhor como ocorrerá o nosso estudo, faz-se importante conhecer o objetivo desta uni- dade. Acompanhe: Objetivo Definir a Hermenêutica Jurídica como método científico, • identificando suas técnicas e procedimentos. Olá! Começaremos agora a nossa terceira unidade da disci- plina de Hermenêutica Jurídica. Nesta unidade, abo rdaremos o conceito de hermenêutica jurídica, bem como o seu objeto e o objeto da interpretação jurídica, distinguindo as concep- ções normativista e egológica, subjetivista e objetivista. NEAD Núcleo de Educação a Distância 4 Unidade 3: Hermenêutica Jurídica Clássica TEMA: HERMENÊUTICA JURÍDICA CLÁSSICA 1 CONCEITO DE HERMENÊUTICA JURÍDICA Em uma expressão abreviada, a hermenêutica é a teoria da in- terpretação. No caso do Direito, a hermenêutica jurídica é a te- oria da interpretação das normas, condutas e práticas jurí- dicas. Todos os objetos que compõem a ciência do Direito devem, necessariamente, ser interpretados, da mesma forma que as nor- mas e os conteúdos jurídicos não têm sentido e não alcançam seu objetivo se permanecerem apenas como documentos escritos, pois o essencial do Direito é a aplicação prática. Toda aplicação prática de uma norma jurídica implica, obrigatoriamente em uma interpre- tação, pois o Direito existe para ser interpretado e é impossível por em prática um comando jurídico sem sua interpretação. Dada essa inevitabilidade da interpretação, enquanto compo- nente essencial da prática jurídica, a atividade interpretativa pre- cisa ser regrada, organizada, estabelecida em certos limites, pla- nejada, articulada, discutida, coordenada, avaliada, referenciada, e essa é a tarefa da hermenêutica jurídica. Ao longo da história, diversas foram as expressões teóricas da hermenêutica, evoluindo conforme a compreensão do próprio conceito de ciência e das suas diversas metodologias. Em parte, essa evolução foi apresentada na unidade anterior, a respeito da hermenêutica antiga. E a evolução das teorias contemporâneas da hermenêutica será estudada na próxima unidade. Isso vem demonstrar que não existe um conceito de hermenêutica jurídica predeterminado e permanente. Em cada época, de acordo com as variadas concepções cientí- ficas e metodológicas, vão se construindo também novos con- ceitos da hermenêutica, sendo este, portanto, um conceito dinâmico e evolutivo. Por essa razão, evitaremos as definições clássicas dos renomados mestres do passado, o que não signifi- ca deixar de reconhecer o esforço e a contribuição destes, mas ... NEAD Núcleo de Educação a Distância 5 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica ... pelo fato de não serem necessárias a memorização e a simples repetição do que outros já disseram, por mais insignes que eles tenham sido. Quando isso for pertinente, faremos as devidas menções com os respectivos comentários, porque assim é que se deve proceder de acordo com a mentalidade científica. Numa compreensão genérica do termo, podemos afirmar que a hermenêutica é o momento teórico que antecede a atividade prá- tica, e isso ocorre não apenas no Direito, mas em todas as áreas do trabalho humano, seja ele muscular ou intelectual, desde que a humanidade passou a se orientar pelo modo científico de agir no mundo, superando as ações arcaicas realizadas na base do impro- viso e da necessidade. Toda atividade prática humana necessita de um momento prévio de reflexão, planejamento, organização, sem o qual a prática ficará desorientada e muitas vezes infrutífera, com grande desperdício de materiais e energias. Quando se fala em “momento teórico”, não significa dizer que iremos simplesmente conhecer uma variedade de teorias e con- ceitos já elaborados por outros, isso ocorre apenas em parte. O fundamental desse que chamamos “‘momento teórico” é o exercí- cio de mentalização dos procedimentos que serão, posteriormente, adotados no decorrer da atividade prática. Tal como ocorre nos Exemplo Como exemplo, podemos citar o caso dos professores que se reúnem previamente para planejarem suas atividades de ensi- no; os agentes de vendas se reúnem previamente para discu- tirem e combinarem estratégias de abordagem; os jogadores profissionais se reúnem em concentrações com seus técnicos para traçarem o planejamento do próximo jogo, enfim, se co- gitarmos qualquer atividade humana que pretenda ser bem conduzida, esta deve ser precedida por um momento teórico onde as metodologias serão discutidas, avaliadas e planeja- das, sob pena de não se alcançarem os objetivos desejados. NEAD Núcleo de Educação a Distância 6 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica exemplos referidos acima dos vendedores, dos jogadores, o pla- nejamento estratégico das ações é indispensável para se alcançar as metas e os objetivos. Entendida dessa forma, a hermenêutica, enquanto momento teórico prévio da atividade prática, faz parte do dia a dia de todos os profissionais e não pode ser desconhecida e descartada pelos operadores do Direito. Na atividade profissional eficiente, qualquer que seja, o improviso é uma opção descartada pelo seu alto risco de insucesso e elevado custo material e pessoal. O bom êxito profissional está diretamente ligado ao bom planeja- mento das ações, e é para isso que estudamos a hermenêutica. 2 OBJETOS DA HERMENÊUTICA E DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICAS O objeto da hermenêutica jurídica é a interpretação do Direi- to. Já explicamos anteriormente a diferença entre hermenêutica e interpretação. Por sua vez, o objeto da interpretação jurídica é o texto legal e a norma jurídica, enquanto portadores de significados ou sentidos cuja compreensão se busca através de procedimentos específicos, que compõem os métodos e sistemas interpretativos. Quando se fala em texto legal e norma jurídica, esses conceitos devem ser entendidos dentro de uma acepção bastante ampla, que não se restringe ao conceito restrito de lei, pois na verdade todos os objetos do Direito são passíveis de interpretação. Essa concep- ção do direito é a teoria clássica da hermenêutica, também chamada de concepção normativa.Os textos, aqui entendidas como as expressões linguísticas orais ou escritas, são interpretados tendo em vista os fatos a eles relacionados. Por sua vez, os fatos são interpretados em relação Assim, a interpretação alcança, além das leis propriamente ditas, os diversos decretos e regulamentos, os costumes e negócios jurídicos, os tratados e convenções, os acordos e manifestações de vontade, os atos administrativos e jurisdi- cionais, os fatos sociais que são relevantes para o direito, a conduta humana em geral, individual ou coletiva. NEAD Núcleo de Educação a Distância 7 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica às normas pertinentes; fatos e normas são interpretados tendo em vista o contexto social em que se concretizam. Isso significa que os fatos recebem uma valoração na sua relação com a norma, em atendimento aos fins sociais desta e às exigências do bem comum (art. 5º, LICC). Constitui-se assim a célebre fórmula jurídica da tridimensionalidade do Direito, criada por Miguel Reale, ou seja, o Direito é fato, norma e valor. Contudo, no século passado, desenvolveu-se uma nova con- cepção do objeto da interpretação jurídica, concentrado não no conjunto de normas, mas na conduta do agente em relação a essas normas. Tal concepção, que destaca o aspecto humanista das normas jurídicas (as normas são feitas para serem cumpridas por pessoas e não apenas para constarem escritas num papel), foi desenvolvida por influência das teorias filosóficas de Heidegger e Gadamer, que enfatizaram o aspecto histórico e existencial da compreensão, refletindo também na interpretação e aplicação das normas jurídicas. Conhecida como concepção egológica do Direito, foi defen- dida pelo jurista argentino Carlos Cóssio, cuja teoria se fundamenta nos seguintes princípios: a norma jurídica é um meio através do qual conhecemos o verdadeiro objeto da interpretação, que é a conduta humana regrada pela norma. E o direito é um produto da evolução humana e tem por substrato uma determinada conduta, sendo as- sim um objeto egológico. O Direito não está na norma, e sim na conduta, por isso, não se interpreta a norma em si mesma, mas a norma enquanto determina a conduta das pessoas, e, assim, a hermenêutica é uma ciência existencial. O Direito, portanto, para Cóssio, é a conduta humana em interferência subjetiva, ou seja: Conduta• : porque expressa uma experiência de liberdade. Interferência• : porque se refere a um conjunto de ações possíveis. Intersubjetiva• : porque a ação de alguém que está impedida ou permitida por outro resulta em um ato conjunto de ambos. Essas duas posições (normativismo e egologismo) conti- nuam a polarizar os doutrinadores, alinhando-se estes em uma ou outra posição. De qualquer modo, a interpretação é o motor NEAD Núcleo de Educação a Distância 8 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica que propulsiona o ordenamento jurídico, tendo como combustível as energias mentais do intérprete, que se abastece de conteúdos culturais assimilados na sua vivência social e nos ensinamentos adquiridos nos cursos de formação. Esta “máquina” interpretativa funciona em todos os níveis da ordem jurídico-social. Assim, a interpretação do Direito pode ser entendida como um processo de conhecimento e captação do sentido das normas, de acordo com os parâmetros recomendados pela hermenêutica jurídica. No decorrer da história, essas recomendações hermenêuticas se ex- pressaram sob a forma de metodologias variadas, as quais podem ser agrupadas em duas grandes correntes doutrinárias: a subjetivista e a objetivista. Essa dupla perspectiva doutrinária não significa que estejam em total oposição, já que apresentam diversos pontos co- muns, distinguindo-se porém na definição daquilo que é fundamental para a construção do sentido mais adequado da norma. Reflexão Assim, o Constituinte interpreta os anseios da sociedade ao elaborar a Constituição; o Legislador interpreta a Constituição ao elaborar leis e normas de caráter geral; os Magistrados e Administradores interpretam essas normas gerais ao produzi- rem normas aplicáveis a casos particulares; os responsáveis pela execução desses instrumentos particulares interpretam as sentenças, os contratos, os atos administrativos, de modo a produzirem, na prática, os resultados jurídicos que eles deter- minam. A sociedade e os cidadãos, que são os clientes finais deste processo escalonado, fazem a sua parte conduzindo as suas ações individuais e sociais de acordo com esses parâme- tros, em vista do bem-estar social e da garantia da ordem e da segurança. Todo esse conjunto coordenado de forças movi- menta o dia a dia da sociedade e constrói o ambiente no qual as pessoas exercem suas profissões e executam suas rotinas individuais. Em tudo está presente e se manifesta, com maior ou menor evidência, o fenômeno da interpretação e assim a interpretação funciona como um eficiente instrumento de re- novação e atualização do ordenamento jurídico. NEAD Núcleo de Educação a Distância 9 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica Corrente Subjetivista Corrente Objetivista Defende que o fundamento • básico para a determinação do sentido da norma está na vontade do legislador (mens legislatoris). A missão do intérprete é descobrir • a vontade do legislador contida na lei, devendo esta funcionar como o parâmetro para a busca do seu sig- nificado. Sendo a ciência jurídica, por essência, uma ciência herme- nêutica, a interpretação da norma não pode desviar-se da vontade ou intenção do legislador, sob pena de desvirtuamento do seu sentido ori- ginal e, portanto, de constituir uma infidelidade com o seu mentor. Esta corrente defende ainda que a • interpretação deve seguir a regra ex tunc, isto é, desde então, desde a aprovação da norma, com destaque para a compreensão genética da norma, ou seja, a compreensão a partir da sua gênese, quando foi po- sitivada pela vontade do legislador. Defende que a base para a • apreensão do sentido da nor- ma está na vontade da própria lei (mens legis). A missão do intérprete é descobrir a • vontade da lei em si mesma, inde- pendente dos processos psicológicos de criação da norma pelo legislador. O intérprete deve procurar o sentido que foi objetivado pelo legislador no texto legal, que após aprovado pas- sa a ter uma existência autônoma em relação ao seu autor. A norma positivada tem um sentido próprio, determinado por fatores objetivos, que não estão necessariamente li- gados ao sentido original que o le- gislador pretendeu colocar no texto. Esta corrente defende ainda a inter-• pretação do tipo ex nunc, ou seja, desde agora, tendo em vista a situa- ção concreta na qual a norma é apli- cada, com destaque para a compre- ensão dos aspectos estruturais da composição do texto, ou seja, a cada vez que a norma vai ser aplicada, o intérprete vai encontrar nela conteú- dos específicos, que vão se revelan- do de acordo com o caso concreto, conteúdos esses que podem nem ter sido cogitados pelo legislador no momento de sua elaboração. NEAD Núcleo de Educação a Distância 10 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica O Prof. Cristiano José de Andrade (1992) destaca que, nos dias de hoje, essas duas correntes se associaram a uma terceira, o atualismo, transformando assim no subjetivismo atualista e no objetivismo atualista. Conforme o atualismo, o sentido da lei deve evoluir de acordo com o dina- mismo e a fluidez da vida humana, na sua evolução histórico-social. Conforme o subjetivismo atualista, a interpretação jurídica deve procurar descobrir aquilo que a vontade histórica do legisla- dor projetaria como solução jurídica, nas atuais circunstâncias, caso o legisladorfosse aprovar a lei neste momento. Trata-se, pois, de uma atualização da vontade do legislador, projetando-a para o caso concreto que está em análise. As considerações de caráter histórico, que ditaram a gênese da lei, serão levadas em conta para a deter- minação do seu significado atual. Já de acordo com o objetivismo atualista, o significado da lei deve ser buscado de acordo com o di- namismo da vida e a evolução da sociedade e atentando ainda para o fato de que as novas leis introduzidas pelo legislador atual podem colocar novos fatores capazes de influenciar a compreensão de leis anteriores, de modo a alterar-lhes o sentido original. E conclui o ci- tado professor (1992, p.23): “[...] Atualmente, a teoria objetivista, Depois de observarmos a diferença entre as correntes sub- jetivista e objetivista, percebemos que se trata de uma po- lêmica deveras insolúvel. Os objetivistas argumentam contra os subjetivistas que a “vontade do legislador” é uma mera ficção, pois de um modo geral esse “legislador” não é uma pessoa fisicamente identificável, constituindo de fato um ter- mo genérico e despersonalizado. Os subjetivistas, por sua vez, contestam os objetivistas dizendo que estes colocam a vontade do intérprete acima da vontade do legislador e, além disso, o que fazem é na verdade substituir o legislador pelo in- térprete, considerando-o mais sábio do que a própria norma. Segundo o Prof. Tércio Ferraz (1980), levados ao extremo, tanto um como outro, podem conduzir a situações indesejá- veis. O exagerado subjetivismo favorece o autoritarismo, ao privilegiar a figura do legislador; por outro lado, o exagerado objetivismo favorece o anarquismo e a insegurança social. NEAD Núcleo de Educação a Distância 11 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica com suas diversas variações, é amplamente dominante; integrada na ordem social, a lei com ela mutua significados”. No entanto, alerta ele, isso não significa dizer que existe um método de interpretação que deva ser preferido em relação aos demais na apuração do verdadeiro significado das normas, pois a melhor interpretação será sempre aquela que atingir uma maior convergência dos aspectos sistemático, teleológico e sociológico e, para isso, a flexibilidade interpretativa das leis impõe ao intérprete uma postura de liberdade, de modo que não fique preso a este ou aquele posicionamento doutrinário, sob pena de comprometer a legitimidade e autenticidade da sua tarefa. É aquilo que o jurista francês Recaséns Siches (apud ANDRADE, 1992) chama de “lógica do razoável”, a qual, aplicada ao Direito, vem superar a referida pluralidade de métodos, não deixando que a ciência jurídica se resolva através da preferência por este ou aquele outro método interpretativo. Manifesta-se aqui um terceiro elemento, que é a liberdade do intérprete, como outro pressuposto básico da her- menêutica jurídica, evidenciando assim o seu caráter deontológico, além dos aspectos dogmáticos e metodológicos já mencionados. 3 FUNDAMENTOS DA INTERPRETAÇÃO Os fundamentos da interpretação, como os fundamentos de qualquer atividade científica, são provenientes da filosofia e se distinguem em ontológicos, axiológicos, gnosiológicos e lógicos. Compreenda agora como ocorre cada um deles mais especificamente. A ontologia é a divisão da filosofia que estuda as essências mais profundas de todos os seres existentes, elevando-se até o estudo da própria essência do mundo, algo que na visão clássica da filosofia se identificava com a divindade e na visão da filosofia contemporânea se denomina simplesmente de “ser”. Quando se fala em “ser” en- tende-se aquilo que é, que existe realmente, não é mera suposição. O fundamento ontológico da interpretação significa que a norma e a conduta por ela determinada são realidades verdadeiras, algo que NEAD Núcleo de Educação a Distância 12 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica acontece no tempo e no espaço, uma ação humana realizada dentro da história e, portanto, sem repetição. Por isso, os fatos jurídicos precisam ser provados, não podem se fixar em meras hipóteses pro- váveis. O juiz não pode julgar uma causa baseado em presunções e indícios, por mais veementes que sejam. A verdade jurídica deve ser ontológica, isto é, deve fundamentar-se em ocorrências reais. A axiologia é a divisão da filosofia que estuda os aspectos valora- tivos dos objetos. Todos os atos humanos são carregados de valores e junto aos valores está associada a intencionalidade. Dizer que um fato é valorado significa dizer que a pessoa o faz conscientemente, sabendo do que se trata. O valor é a força que induz a conduta. O fundamento axiológico da interpretação indica que esta deve procu- rar descobrir os valores ocultos nos fatos e atos jurídicos. Dois fatos podem ser muito semelhantes na sua aparência externa, mas podem ter valorações totalmente diferentes, dependendo do contexto em que são praticados, por quem e para que são praticados. Toda conduta é valorada e toda interpretação deve elucidar os valores nela contidos. A gnosiologia é a divisão da filosofia que estuda o conhecimento humano, suas fontes, seus métodos, suas condições de veracidade e falsidade. O fundamento gnosiológico da interpretação diz respeito à necessidade de um máximo aprofundamento cognitivo dos fatos jurídicos, que não podem ficar apenas em noções superficiais. A instrução processual é o caminho para esta busca mais profunda da natureza dos fatos em análise. É ela que vai formar o convencimento do juiz. A lei processual e a ética profissional impõem ao magistrado a obrigação de esgotar todas as possibilidades envolvidas nos fatos. Daí porque se chama de “processo de conhecimento”, o juiz deve conhecer plenamente os fatos antes de emitir o seu julgamento. A lógica é a divisão da filosofia que estuda as regras do pensar correto, a adequação entre os pensamentos e a realidade, entre a linguagem e os fatos. A lógica procura esclarecer os mecanismos internos do nosso modo de pensar, de maneira a conduzirmos o nosso pensamento ao máximo grau de retidão e certeza. O fun- damento lógico da interpretação exige que esta guarde a devida coerência entre os fatos jurídicos, as normas a eles aplicáveis, os pedidos das partes e a decisão proferida pelo julgador. Tudo NEAD Núcleo de Educação a Distância 13 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica deve estar em perfeita harmonia e dentro dos respectivos limites. Não pode o juiz decidir contrário à prova dos autos; não pode a sentença tratar de matéria diversa do pedido; não pode a decisão ir além do pedido ou ficar além deste; não pode o juiz agir mo- tivado por sentimentos de simpatia ou antipatia, preferências ou interesses estranhos ao processo. A lógica é sempre o fio condu- tor do pensamento humano e perpassa também os componentes gnosiológico, valorativo e ontológico da interpretação. 4 ESPÉCIES DE INTERPRETAÇÃO E SISTEMAS INTERPRETATIVOS Mesmo sendo a interpretação um ato único, tradicionalmente, adotou-se o costume de distingui-la ou classificá-la, de acordo com as suas fontes, com os meios utilizados pelo intérprete e ainda com os seus resultados. Quanto às suas fontes, a interpretação pode ser autêntica ou doutrinal. Assim, podemos observar que: Denomina-se autêntica a interpretação que procede do • próprio poder que produziu a norma, cujo sentido e al- cance ele declara. Assim, só uma Assembleia Constituinte pode fornecer a autêntica interpretação da Constituição; as Casas Legislativas, das leis que elaboram; o Executivo, dos diversos decretos, regulamentos, portarias, etc. Vale ressaltar que a interpretação autêntica vincula-se ao juiz. Denomina-se doutrinal quando provém da livre reflexão • dos estudiosos do Direitoem suas obras de doutrina, sen- do que essa interpretação tem o valor apenas opinativo. Reflexão Vale ressaltar que a interpretação autêntica foi outrora a mais prestigiada de todas. Na época do imperador Justiniano, este rejeitava qualquer outra in- terpretação, que não fosse emanada dele próprio. Na Idade Média, a inter- pretação autêntica era atribuída ao Monarca, ao Príncipe, ao Senhor Feudal. ... NEAD Núcleo de Educação a Distância 14 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica ... Generalizou-se assim o princípio antigo de que interpretar compete a quem compete fazer a lei. Atualmente, esse tipo de interpretação está em franco desuso. As Assembleias Constituintes são temporárias e as Casas Legis- lativas são compostas em sua maioria por políticos profissionais, não por jurisconsultos. Daí porque não existe mais uma interpretação autêntica nesse sentido histórico, mas prevalecem, em geral, as interpretações dos diversos órgãos do Poder Judiciário, em todos os níveis de sua atividade. Desse modo, a partir do século XX, a interpretação autêntica tradicional passou a ser reconhecida segundo duas modalidades: a) a • legislativa, quando sobrevém uma lei interpretativa de outra anterior, (caso que muitos doutrinadores nem consideram assim, mas entendem tratar-se simplesmente de lei nova) ou por um decreto que vem regulamentar uma lei; b) a • jurisprudencial, que pela reiterada decisão uniforme dos tri- bunais pode vir a ser sumulada, ou mesmo não sendo sumulada, costuma ser adotada pelos órgãos judiciais dos escalões inferiores. Importante Importa mencionar ainda que uma interpretação doutrinária pode vir a tornar-se judicial, no caso do tribunal adotar, em suas decisões, ensinamentos de um doutrinador, conforme muitas vezes se observa nos acórdãos publicados. Por isso, atualmente o conceito vasto de ordenamento jurídico inclui, além da própria legislação, a jurisprudência e a doutrina. Quanto aos meios adotados pelos intérpretes, a interpretação se divide tradicionalmente em gramatical, lógica, histórica e sistemáti- ca. Esta classificação possui variantes, de acordo com as preferências doutrinárias, de modo que alguns entendem que o modo gramatical abrange também o filológico, o lógico abrange também o sociológico e o sistemático se estende para o teleológico. Sem adentrar nessas va- riações, abordaremos as quatro modalidades clássicas. Acompanhe: NEAD Núcleo de Educação a Distância 15 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica A interpretação gramatical ou literal concentra-se nas pala- vras da lei, buscando retirar delas o seu significado mais profundo, chegando por vezes ao exagero de polemizar por detalhes semânti- cos, até desvirtuado o próprio conteúdo linguístico do texto. Esta não realiza propriamente uma interpretação, mas uma exegese literal, na medida em que se preocupa apenas com o texto do dispositivo legal. Sua origem vem sobretudo pela influência dos estudos bíblicos e do trabalho dos glosadores medievais. No passado, a exegese lite- ral foi muito apreciada pelos especialistas, contudo, de acordo com o Prof. Carlos Maximiliano (2006, p. 92), “[...] fica longe da verdade as mais das vezes, por envolver um só elemento de certeza, e preci- samente o menos seguro.” Cabe ao intérprete ultrapassar esse limite para chegar ao campo vizinho, mais vasto e rico de aplicações prá- ticas. Atualmente, nenhuma corrente da hermenêutica recomenda a pura exegese gramatical dos textos, devendo esta ser um ponto de partida para a análise dos conteúdos normativos neles contidos. A interpretação lógica procura alcançar a coerência e o espí- rito da norma, em vista da sua aplicação social. Trata-se, portan- to, de uma interpretação complementar do caráter linguístico do texto legal, pois a concatenação do raciocínio e a coordenação das ideias contidas na norma devem seguir as regras do pensamento coerente. É do caráter lógico da interpretação que se deduzem algumas posições doutrinárias clássicas, como por exemplo, a de que não há palavras supérfluas na lei, todas elas carregam um sentido que deve ser buscado. Ou ainda a de que as palavras de- vem ser entendidas no seu sentido da linguagem comum ou na- tural, evitando-se exageros tecnicistas ou artificiais. É igualmente lógico que o legislador, ao elaborar a lei, visava ser entendido pelas pessoas para as quais a lei se destinava, e portanto serviu- se de elementos culturais comuns, que assim também devem ser entendidos. A lógica deve nos conduzir ao bom senso de entender a lei dentro da objetividade que o legislador nela colocou, porque nenhuma lei é feita somente para ficar escrita nos livros, senão para ser cumprida e bem cumprida. NEAD Núcleo de Educação a Distância 16 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica A interpretação histórica consiste em examinar os anteceden- tes e os preparativos da lei, as discussões que lhe deram origem, os fatos sociais relevantes que determinaram o seu surgimento, para que assim possam ser atingidos tanto a mens legislatoris (corrente subjetivista) quanto a mens legis (corrente objetivista). Antes da aprovação da lei, com certeza muitos debates ocorreram, em vista das necessidades sociais emergentes, e nessas discussões são en- contradas as verdadeiras motivações da lei, que muitas vezes nem chegaram a ser colocadas no seu texto. Quanto mais polêmico o tema abordado na norma, mais discussões ela suscita e mais tem- po demora para a sua aprovação. O melhor exemplo que se pode dar da interpretação histórica é o da importância do estudo do Di- reito Romano para uma melhor compreensão do nosso Direito Civil contemporâneo. Conhecer a evolução histórica dos diversos institu- tos jurídicos confere maior segurança e confiabilidade ao intérprete, quando se trata de aplicá-los aos fatos atuais. A interpretação sistemática procura compreender o signifi- cado das palavras na perspectiva do texto inteiro da lei, bem como a compreensão da lei na perspectiva do ordenamento como um todo, evitando-se interpretações de palavras ou frases isoladas do seu contexto. Um artigo de uma lei tributária deve ser interpreta- do de acordo com o formalismo próprio das regras referentes ao fisco e à administração pública; um artigo de uma lei previden- ciária deve ser entendido numa perspectiva mais ampla, socioló- gica, assistencialista; um artigo da Constituição deve ser sempre interpretado na perspectiva do contexto sociopolítico, como regra macro jurídica que alcança o todo da sociedade. Vale lembrar aqui a célebre máxima jurídica do jurista romano Celso: “é contrário ao direito tomar uma palavra da lei e interpretá-la sem considerar o texto inteiro da mesma lei”1. Em linguagem dos dias atuais, isso equivale a dizer: é contrário ao Direito interpretar uma palavra da lei sem levar em conta o texto completo da lei, o conjunto norma- tivo e os dispositivos constitucionais aplicáveis. Expressão na língua original: 1. Incivile est, nisi tota lege perspecta, una aliqua particula eius proposita judicare vel respondere. (Digesto 50,17,1) NEAD Núcleo de Educação a Distância 17 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica Convém atentar para o fato de que não se trata de quatro in- terpretações, mas de quatro modalidades ou aspectos de um mesmo ato interpretativo, os quais se comunicam e se com- pletam entre si. Em épocas históricas diferentes, essas modali- dades tiveram diferentes destaques. Durante um considerável decurso temporal, predominou a interpretação gramatical. A preferência demonstrada inicialmente pelos juristas por essa modalidade se deve ao uso maciço do direito romano entre os povos ocidentais, sobretudo no âmbito do direito civil. Já esta preferência pelo direito romano,no caso do Brasil, foi influen- ciada pelos juristas portugueses, desde o tempo colonial. Caracteriza-se pelo apego à formalística e pela redução do apli- cador do direito a uma espécie de autômato, interpretando um texto hoje como se vivesse há cem anos, desconhecendo completamente as mudanças históricas e a evolução da sociedade. Esta concepção de hermenêutica marcou diversas gerações de estudantes de Di- reito, baseada no método de exegese literal, o qual consistia em estudar os Códigos artigo por artigo, metodologia que ainda hoje se observa nas aulas de alguns professores e nas obras de certos autores da área jurídica. Saber citar de cor os artigos dos códigos era sinônimo de invejável conhecimento jurídico. Curiosidade Conforme o prof. Carlos Maximiliano (2006), até a segunda meta- de do século XVIII, não havia em Coimbra, principal centro de es- tudos jurídicos de Portugal, um curso específico de Direito Civil pá- trio. Este era ensinado à margem do estudo do Direito Romano. Somente em 1772, foi criada a cadeira de Direito Civil português. O citado professor, desde o princípio do século XX, já assumia uma posição de vanguarda. Dizia ele: mais do que uma interpre- tação literal, lógica ou sociológica, prevalece hoje a exposição sis- temática da norma, pela qual o jurista se serve do conjunto das disposições no sentido de construir um todo orgânico e metódico. ... NEAD Núcleo de Educação a Distância 18 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica ... Não basta a elaboração lógica dos materiais jurídicos para que se atinja o ideal da justiça baseada nos preceitos codificados. É necessário romper com a tradição formalista e engendrar uma nova lógica jurídica, baseada na justiça social. Para isso, é preciso compreender bem os fatos, mas também ser inspirado pelo nobre interesse dos destinos humanos, compenetrar-se dos sofrimentos e aspirações das partes no processo e, embo- ra sem se deixar arrastar pelo sentimento, aplicar a lei à vida real e fazer do Direito o que ele deve ser, uma condição da coexistência humana, um auxiliar da solidariedade social. E quanto aos seus resultados ou aos efeitos que provoca, a interpretação pode ser declarativa, restritiva ou extensiva. A interpretação declarativa é aquela em que a compre- ensão da norma se dá apenas pela literalidade. O texto da lei é tão claro que não demanda maior esforço para o seu entendi- mento. Outrora, existia um brocardo latino que dizia: in claris, cessat interpretatio (na clareza da lei, a interpretação é des- necessária). Atualmente, esse chamado “brocardo da clareza” perdeu sua força em vista dos modernos estudos da linguística, os quais vieram demonstrar que toda expressão escrita preci- sa ser interpretada, para que o seu significado se torne mais claro. A linguagem jurídica é a linguagem natural, comum da sociedade. A linguagem é por natureza ambígua e polissêmi- ca, devendo-se considerar as nuances regionais e históricas, que podem influenciar no significado das palavras. Isso é mais exigido quanto maior for a distância temporal entre a época em que a lei foi escrita e a época da sua interpretação. Assim entendida, a interpretação literal deve ser somente o início do processo complexo de busca da compreensão de um texto, não se esgotando nela o trabalho interpretativo. A interpretação é restritiva quando o intérprete reduz o alcance das palavras da lei, atentando para o espírito da lei, mais do que para o seu texto. É uma regra convencional da in- terpretação jurídica a que determina que onde não distinguiu o NEAD Núcleo de Educação a Distância 19 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica legislador, não deve distinguir o intérprete. É dessa modalida- de também o entendimento de que as normas administrativas e fiscais devem ser entendidas restritivamente, sempre que suscitarem dúvidas. É o caso também quando a lei enumera uma série de situações específicas, as quais são entendidas como taxativas, se a matéria for penal ou tributária. Da mesma forma, as normas constitucionais que restringem os direitos e garantias individuais devem ser entendidas restritivamente. Trata-se, como se pode deduzir, de uma atividade interpretativa extremamente flutuante nas suas determinações, dando mar- gem a diversos ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais. A interpretação extensiva, ao contrário da restritiva, é aquela que amplia o alcance do texto legal, dando-lhe maior elasticidade. Nas normas penais, pelo princípio da legalidade, evita-se fazer interpretações extensivas. Nas normas civis, já é possível aumentar o alcance das normas pelo uso da analogia. A interpretação analógica seria, portanto, um exemplo da inter- pretação extensiva, embora não se confunda com ela. A dife- rença é tênue e não é bem uniforme na doutrina, nas pode-se dizer que a interpretação extensiva ocorre quando o texto da lei é imperfeito e compete ao intérprete explicitar o seu conteúdo; a interpretação analógica ocorre quando o texto da lei é lacu- noso e o intérprete faria uma ampliação do seu conteúdo. De uma forma ou de outra, a interpretação extensiva se apoia em reflexões de ordem teleológica e axiológica. Exemplo Um exemplo dessa interpretação, nos dias atuais, é a aplicação de leis civis ou penais aos fatos ilícitos ou delituosos que ocor- rem no âmbito do mundo virtual, para os quais a legislação ori- ginária não foi orientada, até porque era impossível prevê-los. Outro exemplo elucidativo é o do reconhecimento do estado de pobreza, para fins de isenção de custas judiciais, no caso de pessoa jurídica pequena ou microempresa, quando a legislação explicitamente só prevê esta isenção para pessoas físicas. NEAD Núcleo de Educação a Distância 20 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica 5 APLICAÇÃO E INTEGRAÇÃO DO DIREITO A aplicação do Direito é uma continuidade da atividade in- terpretativa. A interpretação jurídica está direcionada a um fim, interpreta-se a norma sempre em vista de sua aplicação. Ao reali- zar a interpretação, o jurista pode ter em mente duas situações: um fato concreto, que é analisado e compreendido em • função da norma; ou um fato hipotético que é analisado e apresentado • como exemplo. De uma ou de outra forma, a interpretação sempre é re- alizada em vista da aplicação daquela norma que está sendo interpretada. A interpretação diante do fato concreto, para que a norma seja a ele aplicado, é feita pelo juiz, em sentido estrito, e em sentido mais amplo, pelos advogados das partes no processo. A interpretação diante do fato hipotético, para servir de exemplo aplicativo, é feita pelo doutrinador, pelo professor, pelo jurista que tem como objetivo uma atividade didático-pedagógica, acadêmica ou não. Em qualquer situa- ção, portanto, a finalidade da interpretação é a aplicação da norma, seja no campo fático, seja no campo hipotético. Este entendimento não é uniforme, contudo, na concepção tradicionalista do Direito, afirma-se a possibilidade da interpre- tação por si mesma, sem visar necessariamente a uma aplica- ção. Nas concepções mais contemporâneas, por vezes, ocorre o inverso disso, ou seja, juristas que defendem um modelo sociológico da interpretação jurídica afirmam uma identidade entre interpretação e aplicação. Essas duas posições opostas correspondem às concepções acima apresentadas sobre o ob- jeto da hermenêutica: concepção normativista (a primeira) e concepção egológica (a segunda). Por uma questão de coerência com o modelo jurídico vigente no Brasil, desenvol- vido após a Constituição de 1988, no qual são enfatizadas as dimensões socioculturais do Direito, dizemos que existe uma implicação necessária entre interpretação e aplicação. NEAD Núcleo de Educação a Distância 21Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica Uma interpretação pura, abstrata, independente dos fatos concre- tos ou hipotéticos não tem cabimento dentro dessa visão do Direito. Mesmo numa situação fictícia, como, por exemplo, quando os alunos participam de um tribunal do júri simulado, a interpretação terá sem- pre como finalidade a possível aplicação a um fato inventado. Uma mera interpretação formal, conceitual e literária, como puro exercício mental do doutrinador, levará a uma desvinculação da norma com a realidade social. Embora isso tenha sido feito no passado, não é mais compatível com os modelos hermenêuticos hoje recomendados. Ainda de acordo com o tradicionalismo, a aplicação do Direito seria uma operação lógica básica, entendida a sentença judicial como um silogismo aristotélico, no qual temos uma premissa maior (a norma), uma premissa menor (o fato) e uma conclusão (o dis- positivo). É a chamada concepção silogística da interpretação, segundo a qual a aplicação da norma ao fato pelo juiz é uma sim- ples subsunção lógica, sem qualquer interferência subjetiva. Esta concepção jurídica provém dos ensinamentos de Montesquieu, na época da Revolução Francesa, quando propôs a divisão dos poderes do Estado em três (legislativo, executivo e judiciário) e afirmou que o juiz é um mero aplicador da lei, ele apenas executa um comando que foi dado pelo legislador. É ele o autor da famosa expressão de que o juiz é simplesmente a “boca da lei”, criando aquela figura do juiz autômato, como um robô que apenas executa os preceitos legais sem interferir neles com o seu entendimento. Além do desprestígio que essa teoria traz para a personalidade do juiz, como se ele fosse um agente comandado pelo legislador, existe ainda uma falha imperdoável nela que é o desconhecimento de um dos aspectos fundamentais do Direito, que é a dimensão valorativa. O intérprete não avalia no texto legal apenas o contexto gramatical, mas principalmente o conjunto de significados sociais implícito nele. Enquanto produção cultural, o Direito terá sempre um componente sociológico axiológico que não pode ser descon- siderado. A concepção silogística ignora a teoria tridimensional do Direito, entendido como fato, norma e valor. NEAD Núcleo de Educação a Distância 22 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica De acordo com uma noção mais atual, a aplicação do Direito deve ser sempre um ato complexo, no qual, além da lógica do raciocínio, devem ser levados em conta os aspectos psicossociais da conduta humana, o contexto social da ocorrência do fato, os aspectos signi- ficativos descobertos pela interpretação, decorrentes de uma análise valorativa do conteúdo das ações em julgamento, levando o juiz a uma reflexão ponderada, de acordo com a sua percepção dos fatos e seguindo o seu convencimento consciente e responsável. Chama-se a esta a concepção dialética da aplicação do Direito, elaborada de acordo com os novos modelos hermenêuticos que passaram a se de- senvolver a partir do século XIX e têm a sua formulação mais conhe- cida nas teorias do jurista argentino Carlos Cóssio (teoria egológica) e do jurista brasileiro Miguel Reale (tridimensionalismo concreto). Uma aplicação puramente lógica deixa de considerar um dos componentes mais defendidos pelas modernas teorias jurídicas, que é a dimensão axiológica do Direito, sem a qual é impossível a existência do estado democrático de Direito, preconizada na Constituição Federal. Reflexão Consideremos agora a seguinte situação. De um lado, a Consti- tuição Federal de 1988 assegura (art. 5.º, XXXV) que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a di- reito. De outro lado, o art. 4.º da Lei n.º 4.657/42 (lei de introdu- ção ao Código Civil de 1916) dispõe que, quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. O magistrado tem, pois, obrigação de conhecer e decidir todos os fatos que lhe forem submetidos e se enquadrem no âmbito de sua jurisdição e competência, não podendo abster-se de julgar sob o pretexto de ser a lei obscura, omissa, ambígua ou por não ter previsto as circunstâncias parti- culares do caso concreto. Este é, com certeza, o momento mais criativo da utilização da hermenêutica jurídica, quando a inter- pretação proporciona a solução de casos não previstos na lei. Ao fazer isso, não estará o juiz substituindo a função do legislador criando nova lei, porque cada decisão judicial só tem alcance para as partes envolvidas. Mas não poderá escusar-se simplesmente ... NEAD Núcleo de Educação a Distância 23 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica A este fenômeno, os doutrinadores chamam de interpretação integradora, inspirada no princípio da plenitude do ordenamento jurídico. Teoricamente, o conjunto de normas de uma sociedade deve atender a todas as demandas que são encaminhadas pelos cidadãos ao Poder Judiciário. Se o Direito não pode deixar ne- nhum litígio sem solução, por outro lado, o legislador não tem como prever todas as hipóteses possíveis da conduta humana atuais e futuras. Por isso, a integridade lógica da ordem jurídi- ca não pode ser fundada apenas nas normas positivadas, mas compreende também a criatividade interpretativa dos operadores do Direito no sentido de tentar fazer o ordenamento atender, ao máximo grau possível, às solicitações consideradas legítimas da pessoa humana, em seu esforço também legítimo de proporcionar a mais saudável convivência na sociedade. O prof. Raimundo Falcão assim conceitua a interpretação integradora: [...] Entendemos por interpretação integradora aquela por cujo intermédio procuramos dar à linguagem sob que se estampa o ordenamento jurídico condições plenas de res- ponder às inquietudes e necessidades do homem em cada tempo (FALCÃO, 2004, p.224). A interpretação integradora, portanto, ao mesmo tempo que aplica a norma ao caso concreto, também completa as lacunas do ordenamento, porque o ordenamento jurídico é dotado de plenitude, implicando o conceito dinâmico e atual de algo em constante fazer-se no acontecer concreto de cada dia. Dessa forma, a interpretação integradora proporcionará a plenifica- ... de decidir invocando a ausência de previsão legal. Na verdade, ao apreciar o caso concreto, cabe ao juiz decidir se o silêncio da lei é proposital, o que tornaria o autor carecedor da ação, ou se é uma deficiência ocasional, porque o legislador não pode prever todas as situações possíveis, quando então ele aplicará a analo- gia, os costumes e os princípios gerais do direito, ou seja, aplica- rá o direito subsidiário e a equidade para aquele caso específico. NEAD Núcleo de Educação a Distância 24 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica ção teórica do ordenamento jurídico, conduzindo os interesses individuais em disputa a uma situação de justiça que mante- nha a justeza do sistema e a dignidade das pessoas. Importante A interpretação integradora é, portanto, a um só tempo lógi- ca e axiológica. É lógica enquanto resguarda a coerência das normas e completa as suas deficiências, de tal modo que ne- nhum fato social possa escapar ao seu alcance. É axiológica na medida em que, enquanto interpretação viva e completa, procura constantemente encontrar a melhor aplicação das normas em vista da verdadeira justiça social. A interpretação plena, lógica e axiológica desperta no intérprete a sua respon- sabilidade perante a sociedade. A interpretação integradora convida o intérprete a sair da estrita e direta relação norma- fato, vista isoladamente, e partir para um alargamento da percepção e da sensibilidade, expondo o leque de fatores e alternativas a serem considerados na interpretação.Conforme dito anteriormente, a interpretação integradora se fundamenta no princípio dogmático da plenitude do ordena- mento jurídico, entendido como o conjunto normativo formado pela Constituição, Legislação ordinária, costumes e jurispru- dência, dando enfoque ao Direito como um sistema complexo e dinâmico. Apesar de multifacetado, o ordenamento jurídico é uno e sistemático e assim deve sempre ser considerado. Nos últimos tempos, o jurista que tratou de forma exemplar so- bre esta matéria foi Norberto Bobbio, com a sua obra clássica Teo- ria do Ordenamento Jurídico, da qual abordaremos alguns conceitos básicos, a seguir. A reflexão de Bobbio ganha destaque no contexto das teorias jurídicas do século XX, porque foi elaborada após as profundas mudanças ocorridas na Europa e, em geral, no mundo inteiro, após a segunda grande guerra. Ele entende que se, no início do século XX, foi necessário eliminar qualquer juízo de valor para NEAD Núcleo de Educação a Distância 25 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica construir uma Teoria Científica do Direito, as novas realidades so- ciais surgidas após a Segunda Guerra Mundial levaram a concluir que a investigação jurídica deve buscar novas dimensões. Foi daí que surgiu o conceito de ordenamento jurídico, mais amplo e mais dinâmico do que o conceito tradicional de norma jurídica, que era o padrão anteriormente adotado. Vejamos os aspectos da teoria de Bobbio, que têm importante repercussão para a hermenêutica. 6 APLICAÇÃO DA HERMENÊUTICA NA TEORIA DO ORDENA- MENTO JURÍDICO Sendo uma realidade complexa, todo ordenamento jurídico enfrenta problemas para manter sua unidade, integridade e coe- rência. De início, consideremos que, em todo ordenamento, é ne- cessário que existam, além das normas de conduta propriamente ditas, as normas de estrutura ou competência, pois estas indicam os caminhos, os procedimentos e as condições que permitem a confecção de normas de conduta. Este conjunto de normas não pode ser elaborado por um único legislador, mas por delegação de competência, e as autoridades de diversos níveis que serão responsáveis pela elaboração das normas dentro da sua alçada. Disso resulta que todo ordenamento jurídico deve lidar constan- temente com quatro problemas básicos, os quais são sempre so- lucionados com a utilização dos procedimentos da hermenêutica. Os problemas do Ordenamento Jurídico derivam das rela- ções entre as normas. Em primeiro lugar, formando uma uni- dade, as normas possuem uma hierarquia dentro deste todo que é o Ordenamento e por isso, qualquer incoerência deve ser eliminada de imediato. Em segundo lugar, além do problema relacionado à formação da unidade, o Ordenamento também deve ser um Sistema no qual não podem haver antinomias. Normas em conflito comprometem a unidade e a coerência e devem ser ajustadas. O terceiro problema refere-se ao Orde- namento ser ou não completo, isto é, o dogma da comple- tude, no qual um ordenamento não pode possuir lacunas. Caso estas sejam detectadas, precisam ser logo resolvidas. Finalmente, um quarto problema é o da influência de um or- NEAD Núcleo de Educação a Distância 26 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica denamento sobre outro(s). A boa convivência social e a paz internacional dependem de um adequado ajuste dos diversos normativos. Todos os problemas eventualmente encontrados nestes campos mencionados requerem um trabalho herme- nêutico para a sua solução. 6.1 O Problema da Unidade As normas do ordenamento não estão todas num mesmo plano; há uma hierarquização normativa, ou seja, há normas inferiores e normas superiores, até chegar a uma norma suprema. Essa norma suprema ou norma fundamental é o plano unificador das normas num ordenamento ju- rídico. Todas as fontes de direito devem remontar a essa norma fundamen- tal. Sem ela, não haveria um “ordenamento”’, mas um “amontoado”’ de normas. Uma norma superior (Constitucional) conduz a uma norma inferior (Lei Ordinária) que conduz a um ato (ato executivo); e no caminho inverso, o ato executa uma norma inferior que executou uma norma superior es- tabelecendo a hierarquia do ordenamento. O grau executivo máximo (ato) não é produtor e o grau produtor máximo não é executivo. A construção do ordenamento tem uma estrutura piramidal, onde a norma fundamental ocupa o ápice e os atos executivos formam a base. Vista de cima para baixo, essa pirâmide mostra a escala de produção; vista de baixo para cima, a escala de execução. A produção fica designada como poder e a execução como dever, sendo estes dois conceitos correlatos den- tro da relação jurídica. Uma norma que pertence a certo ordenamento, para ser válida, é necessário que provenha de um poder legítimo e que poder, em última instância, é este senão a Norma Fundamental? Logo, uma norma só pode ser declarada válida se puder ser reinserida na Norma Fundamental. NEAD Núcleo de Educação a Distância 27 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica A Norma Fundamental corresponde a um postulado científico, ou seja, é uma exigência para fundamentar a validade do orde- namento jurídico, sendo ao mesmo tempo o princípio unificador das várias normas que compõem este ordenamento. A Norma Fundamental é, portanto, o postulado científico garantidor da unidade do ordenamento jurídico, devendo todas as demais normas estar alinhadas com ela. O procedimento hermenêuti- co competente para a depuração do ordenamento, com o ob- jetivo de manter-lhe a unidade e eliminar aquelas normas que se contrapõem à Norma Fundamental é o chamado controle da constitucionalidade das leis, que é realizado de modo concentrado pelo Tribunal Constitucional e, de modo incidental, pelos magistrados nos julgamentos dos casos concretos. 6.2 O Problema das Antinomias O Ordenamento Jurídico, além de unitário, também se apre- senta como um sistema, ou seja, como uma totalidade ordenada. Para isso, é preciso que as normas que o integram, além de se re- lacionarem com o todo, relacionem-se também entre si, mantendo a coerência nos dois níveis. A antinomia consiste no conflito entre normas incompatíveis entre si (uma obriga, outra proíbe; uma obri- ga, outra permite). Seguindo a tradição romanista, o ordenamento jurídico não tolera antinomias, mas entendido como um sistema dinâmico, elas podem ocorrer e deve-se usar da interpretação para resolvê-las, eliminando-as. Essa eliminação se dará pela supressão de uma das normas in- compatíveis, mas é necessário ter critério para essa eliminação e, para isso, a jurisprudência tem elaborado, ao longo da história, algu- mas regras que são geralmente aceitas, embora não resolvam todos os casos, pois que nem todas as antinomias são solúveis. As regras fundamentais de solução de antinomias são: o critério cronológi- co, critério hierárquico e critério da especialidade, seguindo a regra fundamental de dar a cada qual o que é seu por direito. NEAD Núcleo de Educação a Distância 28 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica Os critérios enumerados operam quando as normas são sucessivas ou de níveis hierárquicos diferenciados. Mas quando encontramos duas normas incompatíveis e contemporâneas, de mesmo nível hierárquico ou ambas gerais, como proceder para resolver a anti- nomia? Para isso, existe um quarto critério, que por ser razoável é amplamente utilizado, embora não se possa considerar como o mais justo na solução desta incompatibilidade sui generis. É o cri- tério relativo à forma da norma. Se uma norma é imperativa ou proibitiva e outra é permissiva, prevalece a permissiva, dentro do entendimento da interpretação mais favorável ser preferível à odiosa. Isso, porém, deve ser adotado com parcimónia, porque sempre o que é favorável auma parte será odiosa para a outra. No caso de nenhuma das normas em conflito serem permissi- vas, mas uma imperativa e outra proibitiva, a decisão é confiada à liberdade do intérprete, que resolverá conforme a oportunidade e aplicando o conjunto dos princípios hermenêuticos admitidos. Seja ele o juiz ou o jurista, poderá eliminar uma norma, eliminar as duas ou conservar as duas (demonstrar a incompatibilidade como aparente - interpretação corretiva). Esta última hipótese é a mais utilizada pelos intérpretes. Importante E se houver conflito entre os critérios? Sendo um conflito en- tre o Critério Hierárquico e o Critério Cronológico, prevalece Hierárquico ante o Cronológico, porque decidir o contrário atentaria contra a organização do sistema. Sendo um confli- to entre o Critério de Especialidade e o Critério Cronológico, deve prevalecer o de Especialidade, porém com bastante cau- tela, examinando-se a fundo a casuística. Sendo um conflito entre o Critério de Especialidade e o Critério Hierárquico, não há uma resposta padrão, no caso a decisão ficará a critério do intérprete, diante da análise das circunstâncias, posto que estão em jogo dois princípios basilares do ordenamento jurí- dico: a superioridade e a justiça. NEAD Núcleo de Educação a Distância 29 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica 6.3 O Problema da Completude A Completude do Ordenamento Jurídico consiste na existência de normas capazes de regular qualquer conduta humana. A falta de uma norma geralmente é considerada uma lacuna no ordenamen- to. A completude do ordenamento é mais que uma exigência, é uma necessidade, a condição indispensável para o seu funcionamento. Nos dias atuais, os juristas entendem a completude do orde- namento jurídico como um requisito meramente formal, dado que sob o aspecto material, sempre vão existir lacunas. O tipo clássico da lacuna se dá pela ausência da norma, chamado de lacuna real. Mas há outro tipo, aquele que se dá não pela falta de uma norma, mas por não haver norma justa a ser aplicada, ou seja, existe uma solução prevista, mas esta não é satisfatória. Estas lacunas pro- vêm da comparação entre o que o ordenamento jurídico é e o que ele deveria ser, sendo por isso chamadas de lacunas ideológicas. Todo ordenamento jurídico positivo tem essas lacunas ideológicas, são inevitáveis. Quando um jurista afirma que um ordenamento não tem lacunas, refere-se a lacunas reais, não ideológicas. As la- cunas reais são aos que efetivamente interessam aos juristas. A distinção entre lacuna real e ideológica é frequentemente expos- ta nos tratados como lacuna própria e imprópria. A lacuna própria se dá dentro do sistema, enquanto que a imprópria se dá devido à compa- ração do sistema com um sistema ideal. As lacunas impróprias só são completadas pelo legislador e as lacunas próprias podem ser completa- das pelo trabalho do intérprete e pela hermenêutica dos aplicadores. Para o preenchimento das lacunas, duas regras são comumente adota- das. Seguindo a terminologia adotada por Carnelutti (apud BOBBIO, 1999), chamaremos a esses métodos de heterointegração e autointegração. A heterointegração consiste na integração através do • recurso a ordenamentos diversos e utilização de fontes diversas da que é dominante. Autointegração é feita dentro do mesmo ordenamento, • recorrendo às mesmas fontes. NEAD Núcleo de Educação a Distância 30 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica A heterointegração tradicional baseava-se no recurso ao Direito Na- tural para sanar a incompletude do Direito Positivo. Aliás, esta era uma função típica reconhecida ao Direito Natural, por ser este considerado um sistema jurídico perfeito e aquele sempre imperfeito. Essa doutrina, contudo, foi abandonada nas codificações mais recentes, sendo substi- tuída pelo Costume como fonte subsidiária integradora (consuetudo pra- eter legem). Outra alternativa seria o recurso ao “poder criativo do juiz”, o chamado Direito Judiciário. Esta é uma sugestão polémica, porque nem todos os países reconhecem esse “poder criativo do juiz”, sendo mais comum nos países anglo-saxões, tendo seu exemplo antológico no Código Civil Suíço. Poderia ser ainda o recurso à opinião dos juristas, como fonte alternativa à lei e aos costumes, ou seja, o recurso da auto- ridade no Direito. Seria o Direito Científico, na expressão de Savigny. Curiosidade O Código Civil Suíço estabelece, no art. 1º, que em caso de lacuna da lei ou do costume, o juiz pode decidir como se fosse ele o legislador. Na prática, porém, constata-se que os juízes raramente utilizam essa prer- rogativa, o que demonstra o seu apego à tradição da autointegração. Uma das bases da autointegração é a analogia; a outra são os princí- pios gerais do Direito. Entende-se por “analogia” o procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamentado a mesma disciplina que foi dada a um caso regulamentado semelhante. A analogia é considerada o mais típico e o mais importante dos procedimentos de interpretação, tendo sido usada largamente desde o Digesto e em todos os tempos.2 Essa “semelhança” em que se fundamenta a analogia não pode ser uma semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante, que tenha sido a mesma causa que mo- tivou a decisão do caso análogo regulamentado, ou seja, a razão suficiente pela qual foi atribuída aquela solução ao caso análogo. Assim preceitua o Digesto (10.1.3): 2. Non possunt omnes articuli singulla- tim aut legibus aut senatus consultis comprehendi: sed cum in aliqua causa sententia eorum manifesta est, is qui jurisdictioni praeest ad similia procedere atque ita ius dicere debet. (Não podem todos os artigos isola- damente ser abrangidos pelas leis e pelos senatusconsultos: mas quando em alguma causa a opinião deles é conhecida, aquele que preside a juris- dição deve seguir por semelhança e do mesmo modo dizer o direito). NEAD Núcleo de Educação a Distância 31 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica Esta razão suficiente é o que comumente se chama de ratio legis, sendo denominada “analogia legis”. O raciocínio por analogia exige que os dois casos (o regulamentado e o não-regulamentado) sejam regidos pela mesma ratio legis. A “analogia legis” difere da “analogia iuris”’, pois a última busca a solução para uma lacuna em todo o ordenamento e não apenas em parte dele. A expressão “‘princípios gerais do Direito”’ é tradicional- mente denominada de “analogia iuris”’. Para Bobbio (1999), os Prin- cípios Gerais do Direito equivalem a normas e podem ser expressos ou não expressos. Quando expressos, não se pode falar em lacunas do sistema. Só se consideraria lacuna se, para um determinado caso, não existisse uma regra expressa, nem específica, nem geral, nem generalíssima. Mas há ainda os princípios que podemos considerar não-expressos, isto é, os que podem ser deduzidos por abstração das normas expressas. São aquelas normas generalíssimas formu- ladas pelo intérprete, na tentativa de alcançar o que se entende por “espírito do sistema”. De um modo ou de outro, o intérprete terá sempre uma solução para as lacunas no Ordenamento Jurídico. 6.4 O Problema da Relação com outros Ordenamentos O ordenamento jurídico padrão é o ordenamento estatal. Porém, além deste, haveria também os ordenamentos não-estatais, den- tre os quais podemos distinguir: Ordenamentos acima do Estado, como o ordenamento inter-1. nacional e, segundo algumas doutrinas, o da Igreja Católica. Ordenamentos abaixo do Estado, como os ordenamentos propriamen-2. te sociais, que o Estado reconhece, limitando-os ou absorvendo-os. Ordenamentos ao lado do Estado, como o da Igreja Católica, 3. segundo outras concepções, ou, também, o internacional, segundo a concepção chamada dualística.Ordenamentos contra o Estado, como as associações de 4. marginais, as seitas secretas, etc. NEAD Núcleo de Educação a Distância 32 Hermenêutica Jurídica Unidade III - Hermenêutica Jurídica Clássica A mesma imagem da pirâmide das normas pode ser aplicada para a formação de uma pirâmide de ordenamentos. Podemos ter, assim, rela- ções de coordenação ou de subordinação entre os ordenamentos. Rela- ções de coordenação se dão entre ordenamentos estatais posicionados num mesmo plano, isto é, onde haja regras de autolimitação recíproca; enquanto relações de subordinação se dão entre ordenamentos posi- cionados em patamares diferentes, como, por exemplo, entre o ordena- mento estatal e os sociais (sindicatos, partidos, associações), cujos esta- tutos, para terem validade, precisam ser reconhecidos pelo Estado. Importante No caso, entre o Estado e os Ordenamentos Menores, pode haver uma relação de recepção, o que dará ao Ordenamento Estatal um caráter de maior complexidade. Às vezes, porém, pode ocorrer o fenômeno do reenvio, pelo qual o ordenamento estatal se limita a reconhecer a validade do outro menor, no seu próprio âmbito. Exemplos são as regras de convivência e de comunicação em certos ambientes ou ativi- dades, como grupos étnicos. A reação mais frequente do ordenamento estatal frente aos ordenamentos menores tem sido a de indiferença, não as reconhecendo nem dando proteção, agindo apenas em caso de violação das normas gerais positivadas (caso de jogos e atividades esportivas). Mas, às vezes, pode ser também de recusa, como é o caso do duelo, válido no chamado código cavalheiresco. Por tratar-se de uma complexa diferenciação, os conflitos gerados nesta área sempre foram de difícil solução. Os caminhos possíveis são os da negociação, da diplomacia, da mediação. Quando esses não são viáveis, afastam-se todas as possibilidades jurídicas e a solução será buscada na base do confronto direto das forças. Assim, encerramos nossa terceira unidade. Lembre-se de com- plementar os seus estudos com a sua web-aula, lá você en- contra o conteúdo de forma reduzida, com um vídeo que trata sobre o ordenamento jurídico, além de um áudio resumo para fazer download. Nos encontramos na próxima unidade! Até lá! NEAD Núcleo de Educação a Distância 33 Referências Bibliográficas ANDRADE, Cristiano. O problema dos métodos na interpreta- ção jurídica. São Paulo: RT, 1992. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1999. FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. FERRAZ JR, Tércio. A ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980. GIORDANI, F. A.M. P. Estudos sobre a interpretação das leis. São Paulo: Ed. Copola, 1997. MAGALHÃES, Glauco. Hermenêutica jurídica clássica. Belo Hori- zonte: Mandamentos, 2003. MAXIMILIANO, C.. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. NEAD Núcleo de Educação a Distância 34 Créditos UNIVERSIDADE DE FORTALEZA Núcleo de Educação a Distância Coordenação Geral Carlos Alberto Batista Supervisão Administrativa Graziella Batista de Moura Supervisão de Desenvolvimento Liadina Camargo Lima Produção de Conteúdo Didático Antônio Carlos Machado Projeto Instrucional Andrea Chagas Alves de Almeida Roteiro de Áudio e Vídeo Andrea Chagas Alves de Almeida Produção de Áudio e Vídeo Régis da Silva Pereira Sávio Félix Mota Identidade Visual Viviane Claudia Paiva Ramos Programação Filipe Pinto Cajazeiras Diagramação de Material Didático Régis da Silva Pereira Sávio Félix Mota Revisão Gramatical Elane Silva Pereira NEAD Núcleo de Educação a Distância 35 Anotações
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