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Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 DITADURA E REPRESSÃO. PARALELOS E DISTINÇÕES ENTRE BRASIL E ARGENTINA JANAÍNA DE ALMEIDA TELES ∗ RESUMEN: Los modelos represivos utilizados por las dictaduras latinoamericanas vienen siendo objeto puntual de análisis por parte de historiadores y científicos sociales. En Brasil, la Comisión Nacional de la Verdad representa una posibilidad de que se reinterpreten los mecanismos específicos del modelo brasileño y sus relaciones con otros del Cono Sur. Esto demanda mayor profundización en el análisis de semejanzas y diferencias entre los modelos. El presente estudio procura satisfacer esa demanda, utilizando como referencia la obra de Pilar Calveiro, entre otras herramientas de reflexión. Entre las principales conclusiones se destaca el hecho de que las prácticas de tortura y represión circularon por el continente, siendo Brasil el principal polo de diseminación, más allá de la existencia estrategias diferenciadas en cuanto a la aplicación del terrorismo de Estado. Estas diferencias pueden ser señaladas cuando se compara Argentina, donde predominó el poder desaparecedor del Estado con Brasil, donde prevaleció el poder torturador. PALABRAS CLAVE: dictadura; represión en el Cono Sur; aparato represivo; modelos comparativos; memoria. ABSTRACT: The repressive models employed by dictatorships in Latin America have been subject of intense analysis by historians and social scientists. In Brazil, the National Truth Commission represents a possibility of shedding new lights over the specific mechanisms of the Brazilian repressive model and its relations with other models of the Southern Cone. This context demands a deeper look at the parallels and distinctions between these models. The present study aims to meet this demand using, among other reflexive basis, Pilar Calveiro's reference work. Among the key findings is the fact that torture and repression circled the continent having Brazil as the main dissemination pole, in spite of the existence of different strategies regarding the application of the state terror. These differences can be pointed out when comparing Argentina, where predominated the disappearing power of the state, and Brazil, where, in contrast, prevailed the torturing power. KEYWORDS: Dictatorship; repression in the Southern Cone; the repressive apparatus; comparative models; memory. RESUMO: Os modelos repressivos utilizados pelas ditaduras latino-americanas vêm sendo objeto de intenso escrutíneo por parte de historiadores e cientistas sociais. No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade representa uma possibilidade de que nova luz seja lançada sobre os mecanismos específicos do modelo brasileiro e suas relações com outros do cone sul. A ocasião demanda maior aprofundamento sobre os paralelos e distinções entre esses modelos. O presente ∗ Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: janateles@uol.com.br. Recibido: 12 de Mayo de 2014 | Aceptado: 4 de Julio de 2014. [99] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 estudo procura satisfazer essa demanda, utilizando entre outras bases reflexivas, a obra de referência de Pilar Calveiro. Entre as principais conclusões destacam-se o fato de que práticas de tortura e repressão circularam pelo continente, tendo o Brasil como principal pólos disseminador, a despeito da existência de diferenças de estratégia quato à aplicação do terror de estado, o que este artigo revela em relação à Argentina, onde predominou o poder desaparecedor, em contraste com o Brasil, onde prevaleceu o poder torturador. PALAVRAS-CHAVE: ditadura; repressão no Cone Sul; aparato repressivo; modelos comparativos; memória. CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO: Teles, Janaína de Almeida (2014) “Ditadura e repressão. Paralelos e distinções entre Brasil e Argentina”. Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina, Vol. 3, N° 4, pp. 99-117. Os modelos repressivos implementados na Argentina e no Brasil apresentam aspectos comuns a todas as ditaduras latino-americanas e distinções que os situam em polaridades no espectro desenvolvido pelos regimes militares do Cone Sul durante as décadas de 1960-1980. O conhecimento acerca destas aproximações e distanciamentos é, entre outras coisas, uma função do quanto se conhece acerca dos aparatos repressivos locais. Um número razoável de estudos dedicou-se à compreensão do modelo repressivo argentino, em contraste com o Brasil, onde estudos com este perfil permanecem escassos. Este ensaio visa à proposição de um quadro comparativo dos dois países, utilizando como pontos de partida um conjunto de entrevistas originais conduzidas pela autora junto a ex- presos políticos brasileiros e membros de suas antigas redes de solidariedade1 e o estudo de Pilar Calveiro “Poder e desaparecimento”, que oferece uma visão crítica e bastante pessoal acerca dos aspectos visíveis e invisíveis do aparato repressivo argentino. O caráter estratégico da tomada desta obra como referencial alinha-se à particular relevância que o tema da experiência individual das vítimas e algozes adquiriu desde a formação da Comissão da Verdade brasileira, em 2012, com vias à reconstituição factual da ditadura e à revelação da profunda dimensão da repressão empreendida neste país. Neste sentido, é interessante notar que Calveiro reflete de maneira sistemática sobre um tema que a envolveu pessoalmente durante a década de 1970, quando esteve presa em campos de extermínio argentinos como a Mansão Seré, a Delegacia de Castelar e a temida Esma (Escola de Mecânica da Armada). Sua capacidade de refletir sobre a formação da 1 Trata-se de um conjunto de 107 entrevistas realizadas com ex-presos políticos (80 delas gravadas em vídeo, somando mais de 300h – Projeto USP/Unicamp/Fundação Ford), advogados e militantes constituído ao longo da minha pesquisa de doutorado. Janaína de A. Teles Memórias dos cárceres da ditadura: as lutas e os testemunhos dos presos políticos no Brasil, Doutorado, História/FFLCH, USP, 2011. [100] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 lógica subjacente aos milhares de “desaparecimentos forçados” cometidos em seu país traduz o equilíbrio com que vem tratando esse resgate histórico. O processo de formação e estruturação do aparato repressivo brasileiro ganha nova luz sob a influência da obra de Calveiro. Paralelos e distinções tornam-se mais evidentes a partir da de sua leitura, assim como a percepção da necessidade de se investigar crimes envolvendo a cooperação dos órgãos de segurança dos dois países, tal como o desaparecimento do então marido da autora, Horacio Campiglia, no Brasil, em 19802. A partir do golpe argentino de março de 1976, a repressão deixou de girar ao redor dos cárceres, passando a ter como eixo de sua atividade repressiva o desaparecimento de pessoas, levado a efeito nos campos de extermínio. A estrutura do aparelho repressivo brasileiro não recorreu de maneira intensa a esse recurso, mas antes desenvolveu um modelo híbrido e bastante sofisticado de repressão, com várias instâncias e dispositivos para garantir a seletividade da morte de dissidentes e demais “indesejáveis”3. Retomando a noção de Calveiro de que a ditadura argentina representou um “poder desaparecedor”4, dir-se-ia que a repressão brasileira constituiu-se como um “poder torturador”5. Na Argentina, a figura do desaparecido e sua contrapartida institucional, os campos de extermínio, representaram uma mudança fundamental – deixaram de seruma das formas da repressão para se converter na modalidade repressiva do poder. Houve uma reorganização de elementos já existentes e a incorporação de outros: os campos foram o ambiente em que a operação cirúrgica, considerada necessária para salvar a sociedade da “subversão”, foi conduzida, visando a ordenação e o controle de toda a sociedade6. Nesse sentido, o disciplinamento da sociedade, típico das ditaduras latino- americanas, assumiu contornos de excepcional dimensão. Naquele país, o uso do conceito de campo de concentração para definir os locais de extermínio dos desaparecidos políticos e as analogias com os campos nazistas circulavam desde a publicação da famosa carta-denúncia de Rodolfo Walsh, de 24 de março de 1977, desaparecido desde então. A partir de 1983, a imprensa passou a divulgar abertamente estas analogias antes mesmo das eleições presidenciais que marcaram o fim da ditadura7. 2 C. Almeida; S. Lisbôa; J. De A.Teles; M. A. Teles (Orgs.) Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985), São Paulo: IEVE/Imprensa Oficial, 2009, pp. 704-707. 3 Janaína de A. Teles, op. cit. 4 Pilar Calveiro Poder y desaparición. Los campos de concentración en Argentina, Buenos Aires: Colihue, 2006, p.13. 5 Expressão tomada emprestada de Jean Amèry, cf. Jean Amèry Más allá de la culpa y la expiación. Tentativas de superación de una víctima de la violencia. 2ª ed., Valencia/Espanha, Pré-Textos, 2004, pp. 85, 93. 6 Pilar Calveiro, op. cit., p. 27. 7 Cf. Eduardo Luis Duhalde El Estado terrorista argentino Barcelona: Ed. Argos Vergara, 1983; no qual cita o relatório intitulado Comisión Argentina de Derechos Humanos: Informe del campo de concentración y Exterminio de "La Perla", Madrid, 1980; e tb. Flávio Koutzii Pedaços de morte no coração. Um depoimento de um brasileiro que passou quatro anos no inferno das prisões políticas da Argentina, Porto Alegre: LPM, 1984, [101] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 O Brasil, por outro lado, teve uma ditadura empenhada em ações repressivas seletivas, que preservou uma aparente normalidade institucional, com focos de ação violenta, os quais foram diferentemente orientados conforme o alvo e o período em questão. No que tange à organização do Estado, não houve uma simples continuação ou repetição aumentada de práticas antes vigentes, mas uma reorganização do aparelho repressivo previamente instalado. As Forças Armadas coordenaram e se envolveram efetivamente nesse aparato e assumiram o papel de polícia política, envolvendo-se com ímpeto singular na história do país na tortura a presos políticos e na execução de operações de repressão à população. Não foi mais do mesmo, nem um monstro engendrado na sociedade, como um corpo estranho a ela, mas um Estado estruturado para disseminar a obediência, eliminando oposições e divergências. Até hoje não foi possível fazer um levantamento abrangente das vítimas da repressão política brasileira, mas sabe-se que somente nos primeiros meses após o golpe de 1964 cerca de 50 mil pessoas foram presas no país8. A maioria das vítimas da repressão estatal era sequestrada e torturada, mas uma parte muito menor foi processada pela justiça militar e outra menor ainda foi condenada e permaneceu nos cárceres. Entre os condenados, alguns recursos de presos políticos encaminhados ao Superior Tribunal Militar (STM) lograram obter a redução de pena daqueles enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN). Esse cenário contrasta com o argentino, no qual entre 15 mil e 20 mil pessoas passaram pelos campos, sendo que 90% delas desapareceram sem deixar vestígios9. O projeto de repressão e controle brasileiro envolveu em sua complexa estrutura espionagem, polícia política, censura e uma sofisticada linha de propaganda política, que atuou agressivamente sob a referida atmosfera de aparente legalidade. Sob tal lógica, órgãos de informação foram criados através de leis, decretos e outros diplomas ostensivos, enquanto o sistema DOI-Codi (Destacamentos de Operações de Informações – Centros de Operações de Defesa Interna) teve origem em diretrizes secretas do Conselho de Segurança Nacional e de autoridades designadas pelo presidente da República10. Aliada a essa estrutura estava a face mais visível da repressão sustentada na legalidade de exceção, composta pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DOPS), existente desde os anos 1920; pela Justiça Militar, com competência para processar e julgar os enquadrados na LSN desde 1965; os Institutos Médicos Legais (IMLs); os cemitérios públicos; e os presídios. O sistema carcerário já existente foi reutilizado para punir, separar e isolar os dissidentes. O uso sistemático de valas clandestinas em pp.122-125; e Nilda Actis Goretta, e outros Ese infierno, Buenos Aires: Altamira, 2006, pp. 283-296; entre outros. 8 Maria Helena M. Alves Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984, p. 59. 9 Pilar Calveiro, op. cit., p. 29. 10 Carlos Fico Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar, Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 82. [102] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 cemitérios públicos de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco desmente as hipóteses de “autonomia” e de “excessos” dos setores ligados às práticas de tortura11. O resultado prático do funcionamento desta complexa e seletiva estrutura é numericamente impressionante. Das 17.420 pessoas submetidas aos inquéritos policiais com base na LSN entre 1964 e 1979, 6.385 (36,6%) foram indiciadas e 7.367 (42,3%) chegaram a ser acusadas judicialmente. Entre os réus, 2.828 (38,3%) foram condenados, sendo que, deste total, 1.948 (26,4%) receberam penas inferiores a cinco anos de reclusão12; enquanto os envolvidos na guerrilha, receberam múltiplas condenações, que chegavam a 90 anos de prisão, reforçando a ideia de seletividade mencionada anteriormente. A quantidade de vítimas de execuções extrajudiciais estabeleceu um padrão ainda mais seletivo – ao menos 437 pessoas foram assassinadas ou desapareceram por motivos políticos durante a ditadura13. Esse panorama alinha-se à máxima de que o poder esconde-se e revela-se naquilo que exibe e oculta, como assinala Calveiro14. Exibiu-se, no Brasil, como um sistema penal e no exercício supostamente legítimo da violência contra a influência do ‘comunismo internacional’, com o qual taxavam as ações da oposição, esquivando-se do diálogo. Paralelamente, escondeu-se em sua face notoriamente “vergonhosa”, a qual promoveu a difusão da “cultura do medo”, direcionando o estabelecimento de critérios para a ocultação ou divulgação das notícias sobre a tortura, os mortos e os desaparecidos políticos. O modelo argentino, cuja face de terror era tanto mais explícita, distribuía-se por um conjunto de centros clandestinos de tortura que Calveiro crê possuir características que nos permitem considerá-los verdadeiros campos de concentração e extermínio. A autora partiu das tentativas da ditadura argentina de implementar um poder totalizante e suas formas de castigo, repressão e normalização para estabelecer uma comparação com a experiência europeia, assinalando suas semelhanças15. Pode-se dizer que a premissa de Calveiro dialoga com a obra de Giorgio Agamben, autor que aprofundou o debate teórico sobre o desenvolvimento dos campos de concentração, notadamente, os nazistas. Para ele, a essência dos campos “[…] consiste na materialização do estado de exceção e na criação de um espaçoem que a vida nua [a vida puramente 11 Janaína de A. Teles Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos por “verdade e justiça” no Brasil. Mestrado em História Social, São Paulo, FFLCH/USP, 2005. 12 Arquidiocese de São Paulo, Brasil: Nunca Mais, 22ª ed., Rio de Janeiro, Vozes, 1989, pp. 15-16. 13 C. Almeida, e outros, op. cit. Estima-se que 7000 mil indígenas tenham sido assassinados durante a ditadura, cf. Lucas Reis, “Comissão apura mortes de índios na ditadura”, Folha de S. Paulo, 26 de Abr., 2014. Segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), 1.188 camponeses foram assassinados entre 1964 e 1986. Não há ainda, contudo, estudo conclusivo confirmando se a autoria desses crimes foi de agentes do Estado ou não. 14 Pilar Calveiro, op. cit., p. 25. 15 Idem, pp.39-40. [103] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 biológica] e a norma entram num limiar de indistinção [...]”16. O habitante dos campos era despojado de seu estatuto político, reduzido à vida biológica e privado de suas prerrogativas humanas17. Agamben assinala que desde o final do seculo XIX, os campos se caracterizaram como locais de internamento de civis considerados “indesejáveis”, em moldes “industriais”, com a justificativa de manter sob “custódia protetora” suspeitos, cujas ofensas não podiam ser provadas e que não podiam ser condenados pelo processo legal comum18. Influenciada pela perspectiva de Hannah Arendt19, Calveiro se propõe, particularmente, a fazer uma descrição dos campos de concentração argentinos. De acordo com ela, naquele país, eles se localizavam em dependências de órgãos de segurança e eram operados pelas polícias e Forças Armadas, sob a cadeia de comando militar. Os prisioneiros políticos dos campos eram identificados apenas por um número. Os sofrimentos eram compartilhados não apenas entre os sequestrados, mas também com a população em geral, posto que a estrutura dos campos permitia que fossem escutados os gritos oriundos dos maus-tratos, os quais eventualmente invadiam o mundo exterior. Afinal, “para disseminar o terror [...] é preciso mostrar uma fração daquilo que permanece oculto”20. Na Argentina, grosso modo, dir-se-ia que havia dois modelos de organização do espaço nos campos: o de celas e o de cubículos21. Nestes, os presos permaneciam sempre encapuzados e acorrentados pelos pés, obrigados a ficar deitados ou agachados, sem poder falar ou se mexer, geralmente mantidos em compartimentos sem teto, separados individualmente por divisórias de madeira de cerca de 80 centímetros de altura. Esses cubículos chamavam-se “cuchetas” e permitiam aos guardas ver os prisioneiros simultaneamente, como num panóptico, conforme o modelo da Esma. As celas, por seu 16 Giorgio Agamben Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Humanitas/UFMG, 2004, p. 181. 17 Idem, p. 178. 18 Em Cuba (1896) teriam surgido os primeiros campos de concentração, cf. Idem, p.173. Por definição, nos campos, a vida nua atinge sua máxima indeterminação, cf. Giorgio Agamben O estado de exceção, São Paulo: Boitempo, 2004, p.15. 19 Arendt classificou os campos em três categorias: Limbo, Purgatório e Inferno. O primeiro tipo foi criado para os que se tornaram supérfluos e inoportunos em geral; o segundo é representado pelos campos de trabalho da União Soviética; e o terceiro é representado pelos campos nazistas, destinados a causar o maior tormento possível. Cf. Hannah Arendt Origens do totalitarismo, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp.496-498. A autora se fundamentou também nos estudos de Michel Foucault sobre o poder e as instituições disciplinares. Ver Michel Foucault Genealogia del racismo, Madrid, La Piqueta, 1992; Michel Foucault Vigiar e Punir. História da violência nas prisões, 10ª ed., Petrópolis: Vozes, 1993. 20 Pilar Calveiro, op. cit., p. 44. 21 Note-se que, na Argentina, uma parte dos prisioneiros políticos foi submetida ao poder judicial e outra ficou à disposição do poder executivo sem sofrer processo judicial. Esse dispositivo legal “de exceção” foi criado pelo estado de sítio decretado por Isabel Perón em 1974 e mantido até as eleições de 30/10/83, quando teve fim a ditadura. Antes do golpe de 26/03/76, calcula-se que havia 1.500 presos políticos no país. A maior parte daqueles considerados “legais” foi presa no período anterior ao golpe, cf. Flávio Koutzii, op. cit., pp. 26-29. [104] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 turno, não passavam de um sistema de compartimentos pequenos, de ferro ou de madeira, feitos “para guardar e controlar corpos”22. Os prisioneiros eram submetidos a toda sorte de torturas, disciplina e crueldade. O objetivo era desumanizá-los por dias ou meses. E, ainda que tivessem diferenças, todos os campos coincidiam no principal – manter e alimentar o aparato do “poder desaparecedor” – o destino final era a morte, salvo em casos muito excepcionais23. Alguns poucos conseguiram fugir dos campos de extermínio; e outros, em pequeno número, foram libertados24. Os chamados “subversivos” eram considerados menos que seres humanos, conforme as palavras do general Ramón Camps, chefe da violenta Polícia da Província de Buenos Aires: “não desapareceram pessoas, e sim subversivos”25. A institucionalização dos campos formou uma “máquina de torturar, extrair informação, aterrorizar e matar”26. Nos campos argentinos, era suportada a morte lenta, dolorosa e sinistra conjugada com a tortura e o tormento indiscriminados e ilimitados, onde utilizava-se também o trabalho escravo. Tratava-se de um maquinário, que levou a uma dinâmica baseada na rotina, na burocratização e naturalização da morte, o que lhe dava a aparência de um dado em planilha. “A sentença de morte de um homem era só uma inscrição ‘QTH fixo’, sobre o prontuário de um desconhecido”27. Desde a experiência da Guerra da Argélia (1954-1962), sobretudo, considerava-se que a guerra subversiva necessitava de métodos excepcionais28. Era preciso erradicar, exterminar a ameaça subversiva – o que explica a ferocidade retratada nos testemunhos dos poucos sobreviventes. Um dia, chegava a ordem de traslado (transferência), com uma lista; às vezes ela já vinha pronta de fora do campo, como em La Perla (Córdoba), e o guarda organizava a fila e entregava os “pacotes”, nome pelo qual eram tratados os presos destinados ao desaparecimento forçado29. “Transferência” era o termo que indicava os procedimentos de matar e desaparecer com o prisioneiro. Sabe-se muito pouco sobre ela, mas era rodeada de tensão e violência. Em certos casos, os prisioneiros eram transportados para longe do campo e fuzilados. Enterravam-se ou queimavam-se os cadáveres, por vezes jogavam-nos na rua e simulavam tiroteios. O método adotado de maneira massiva foi o de jogar ao mar os prisioneiros 22 Pilar Calveiro, op. cit., p. 47. 23 Idem, pp. 31-32. 24 Idem, pp. 96-97, 119-124. 25 Idem, p. 37. 26 Idem, p. 32. 27 Idem, p. 34. De acordo com a organização Memoria Abierta, a Argentina contou com 560 campos de concentração e extermínio. Cf. <http://www.memoriaabierta.org.ar/ccd/index.htm>. Acesso em 10 de abril de 2014. 28 João Roberto Martins Filho “Tortura e ideologia: os militares brasileiros e a doutrina de guerre révolutionnaire (1959-1974)”, In: Cecília M. Santos, Edson E. Teles, Janaína De A. Teles (orgs.) Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil, São Paulo: Hucitec, 2009, v. 1, p. 194. 29 Pilar Calveiro, op. cit., pp. 36-38. [105] Taller (Segunda Época). Revista deSociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 adormecidos por soníferos, para onde eram transportados de caminhão ou de avião, nos chamados “voos da morte”30. “A aplicação do sonífero arrebatava do prisioneiro sua última possibilidade de resistência, além de lhe arrancar também seus mais elementares traços de humanidade: a consciência, o movimento”31. Amordaçados, adormecidos, manietados, encapuzados, os “pacotes” eram jogados ao mar ainda vivos. A determinação em anular as marcas da existência dos “subversivos” fez com que fossem organizadas maternidades improvisadas nos campos argentinos para que as prisioneiras grávidas tivessem seus filhos antes de serem assassinadas. As crianças foram criadas pelos militares e algozes de seus pais, para que crescessem educadas pela ideologia contrária, para que as marcas da presença e a herança dos pais não sobrevivessem nem nos filhos. Estima-se que haja 500 bebês “apropriados”, cuja identidade foi possível reconstituir em 110 casos32. O dispositivo dos campos se encarregava de fragmentar seu funcionamento, utilizando grande quantidade de pessoal especializado em distintas tarefas para, assim, “suspender” ou diluir responsabilidades morais33. Havia os grupos de tarefas, divididos entre os bandos que sequestravam e aqueles que faziam o “trabalho sujo”, os grupos de inteligência para manejar as informações e a tortura, conduzida sempre por um oficial; outros eram guardas que faziam a segurança e o controle dos prisioneiros; e havia ainda aqueles que os “transferiam”34. Os mecanismos para despojar as vítimas de seus atributos humanos facilitavam a execução mecânica e rotineira das ordens. Era um dispositivo montado para aquietar consciências, previamente treinadas para o silêncio, a obediência e morte, que se “encarregava de fracionar e segmentar seu funcionamento para que ninguém se sentisse responsável”35. Era parte do mecanismo a autorização dos superiores para reforçar a “aparência” de procedimento burocrático. “A autorização dos superiores hierárquicos ‘legalizava’ esses dispositivos, parecia justificá-los automaticamente [...]. O fato de fazer parte de um dispositivo apenas como uma de suas engrenagens criava uma sensação de impotência, [...] fortalecia a impressão de falta de responsabilidade”36. Havia uma relação de superioridade vaga, na qual não estavam declarados o nome ou sobrenome daqueles que cumpriam ordens nem de seus superiores. No Brasil, os DOI-Codis, a partir de 1970, foram os principais locais onde se dava a decisão sobre a vida e a morte dos dissidentes e perseguidos políticos e onde muitos deles foram 30 Horácio Verbitsky O voo, Rio de Janeiro: Globo, 1995. 31 Pilar Calveiro, op. cit., p. 38. 32 Cf. “Encontramos a la nieta 110”, Buenos Aires, 06 fev. 2014. Disponível em: <http://www.abuelas.org.ar/comunicados/restituciones/res140206_1040-1.htm>. Acesso em 20 de abril de 2014. 33 Pilar Calveiro, op. cit., p. 39. 34 Idem, pp. 37-39. 35 Idem, p. 38. 36 Idem, p. 39. [106] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 assassinados. No DOI-Codi do II Exército (São Paulo), por exemplo, pelo menos 105 pessoas foram vítimas de homicídio ou desaparecimento forçado, no período transcorrido entre junho de 1969 e dezembro de 197637. Tais locais constituíram-se na materialização do estado de exceção; neles a suspensão de direitos, a desumanização e a despersonalização dos prisioneiros buscaram transformá-los em corpos destituídos de autonomia, vidas torturáveis e matáveis, expostas aos limites da violência, da crueldade e do extermínio. De acordo com a Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei n. 898/1969), os presos políticos podiam ficar incomunicáveis por dez dias, sendo autorizado que permanecessem quarenta dias presos na fase de inquérito38, uma das lacunas na zona de indistinção entre o legal e a situação de fato, entre o que estava “dentro e fora” do ordenamento jurídico da ditadura39. Essas brechas legais, exterioridades jurídicas não passíveis de criminalização (Ato Institucional no. 5, art.11), abriram a possibilidade para todo tipo de prática clandestina dos órgãos repressivos, em especial a utilização da tortura – não legalizada pela legislação de exceção, mas permitida em função da generalização dessa zona de indistinção e da enorme ampliação do poder do Executivo. Após a edição do AI-5, o Estado constituiu essa rede de unidades secretas, institucionalizando a tortura e órgãos de segurança e informações “segundo parâmetros de extrema centralização e coerência”40. Com a consolidação do sistema DOI-Codi em âmbito nacional, observou-se em 1971 o início de um processo de mudança estratégica nos métodos de atuação do regime. A partir desse ano, proliferaram centros clandestinos de tortura e extermínio controlados pelo Exército, tais como a “Casa da Morte”, localizada em Petrópolis (RJ). A utilização sistemática do desaparecimento forçado, em consonância com essa mudança de estratégia, representou uma importante modificação com o objetivo de encobrir os crimes da ditadura, auxiliada pelas operações de infiltração de agentes policiais. As mortes, às claras, de alguns e o desaparecimento de outros eram parte de uma política global, cuja intenção era ocultar a realidade da tortura institucionalizada do regime e, ao mesmo tempo, forjar casos exemplares e uma permanente ameaça a todos41. Até então, a tendência do aparato repressivo era o assassinato de dissidentes (sobretudo sob tortura), cujo óbito era divulgado como morte em tiroteio, atropelamento ou suicídio e que eram enterrados como indigentes com nome e causa mortis falsos em cemitérios públicos. Em 1974, essa tendência foi suplantada pelos “desaparecimentos forçados”, que por sua natureza não precisavam ser “explicados” pelo governo42, tal como mais tarde se 37 C. Almeida; S. Lisbôa; J. De A.Teles; M. A. Teles (Orgs.) op. cit. 38 Arquidiocese de São Paulo, op. cit., p. 175. 39 Giorgio Agamben Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I, op. cit., p. 177. 40 Carlos Fico, op. cit., pp. 76-91. 41 Janaína de A. Teles Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos por “verdade e justiça” no Brasil, op cit. 42 Idem. [107] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 tornaria corrente na Argentina e em outros países da América Latina43. Naquele momento, não interessava divulgar a existência de guerrilhas, tanto para evitar o “efeito multiplicador da propaganda”44 quanto para diminuir a repercussão das denúncias de violações de direitos humanos no país e no exterior. A utilização sistemática do desaparecimento forçado se tornou estratégica para os órgãos de segurança também devido à necessidade de encobrir suas operações de infiltração, especialmente de militantes transformados em agentes policiais nesses centros clandestinos45. Esse processo ganhou força na repressão à Guerrilha do Araguaia, onde as operações de combate aos guerrilheiros assumiram grandes proporções, tanto em função da vastidão da área em que transcorreram, como pelo efetivo humano e material empregado. As operações militares na região tiveram início em abril de 1972 e culminaram em final de 1974, durante o período inicial do governo Geisel (1974-1979). O Araguaia representa um caso de aproximação com o modelo argentino de campos de concentração. Sua inspiração remonta aos campos que existiram no Brasil, com particular importância, entre os anos de 1920 e 1940. Estes foram utilizados contra os que participaram da “Revolta da Vacina”, em 1904, e nas revoltastenentistas dos anos 1920. Na Primeira República, desde 1922, o país esteve sob a vigência do estado de sítio em largos períodos e eram afastados da sociedade os considerados “indesejáveis” ou que promoviam “ameaça” à ordem estabelecida. Dessa forma, internaram dissidentes e revoltosos, mas também proletários, pobres e “vadios” que eram punidos com o desterro ou enviados a campos de concentração46. Durante a ditadura de Getúlio Vargas, o “Estado Novo”, dissidentes passaram a ser julgados pela justiça militar, e os internamentos e desterros “[...] atingiram em larga proporção cidadãos sem responsabilidade nas revoltas que motivaram o estado de sítio, e sem culpa formada”. A política de repressão à dissidência armada de 1935 tinha também como um dos seus objetivos principais atingir os pobres do Rio de Janeiro e São Paulo47. A partir de 1942, quando Getúlio Vargas passou a apoiar os “aliados” na II Guerra Mundial, os campos foram então utilizados para aprisionar alemães, italianos e japoneses, os chamados “súditos do eixo”48. 43 No ano de 1974, 54 militantes de diversas organizações sumiram sem deixar vestígios, sendo apenas dois considerados “mortos oficialmente”. Cf. C. Almeida, e outros, op. cit., p.529-603. 44 Cf. Declaração do coronel da reserva Jarbas Passarinho. In: S. Buarque; V. Carelli; P. Dória; J. Sautchuk História imediata. A guerrilha do Araguaia, no.1. São Paulo : Alfa-Omega, 1978, pp. 23-24. 45 Janaína de A. Teles Memórias dos cárceres da ditadura: as lutas e os testemunhos dos presos políticos no Brasil, op. cit., p. 86. 46 Paulo Sérgio Pinheiro Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil (1922-1935), São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 13-14. 47 Idem, p. 104. 48 Priscila Ferreira Perazzo Prisioneiros de guerra. Os “súditos do eixo” nos campos de concentração brasileiros (1942-1945). São Paulo: Humanitas-Imesp, 2009, p. 33. [108] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 Entre 1972 e 1974, os militares realizaram três campanhas no Araguaia para combater 70 guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PC do B) estabelecidos na região. As operações envolveram mais de 7.200 homens das três forças49, profissionais especializados, agentes infiltrados e o que havia de mais moderno em termos de armamento e logística. Em nenhum momento os militares deixaram a área. Cada fase foi executada por meio de diversas operações. Neste contexto, os campos de concentração vicejaram na região50. A base militar localizada na cidade de Marabá (Pará) utilizava três imóveis de apoio, sendo que a sede do Departamento Nacional de Estradas e Rodagens (DNER) – identificada como “Casa Azul” serviu de campo para onde foram levados e torturados guerrilheiros e moradores da região. A sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o presídio da Polícia Militar (PM) (ou do antigo grupamento de Tiro de Guerra) também foram usados para realização de “interrogatórios” e como prisão de suspeitos de participar ou colaborar com os guerrilheiros. Outra base importante ficava na localidade de Bacaba, no Km 68 da Rodovia Transamazônica, próxima a São Domingos do Araguaia (Pará), onde era o canteiro de obras da empresa Mendes Júnior, contratada para a construção dessa rodovia. Nessa base havia pista de pouso e uma grande área para a detenção de camponeses suspeitos, além de alojamentos para os militares e prisões para “interrogatórios”. Na cidade de Xambioá (então Estado de Goiás, hoje Tocantins), às margens do rio Araguaia, ficava outra base militar, que também tinha pista de pouso e funcionou como prisão e local de “interrogatórios”. Em Araguaína (Tocantins), constituiu-se outra base militar, entretanto menos citada nos relatos dos camponeses sobreviventes. Havia também pequenas bases em outras localidades, como nos lugarejos de Oito Barracas (município de São Domingos do Araguaia) e São Raimundo (próximo à divisa dos municípios de São Domingos e de São Geraldo do Araguaia), e na cidade de Araguatins (Tocantins), além de algumas bases temporárias montadas em propriedades privadas. As bases militares, ao menos em Bacaba e Xambioá, contavam com efetivos do Exército, Marinha e Aeronáutica, além da Polícia Militar local. A maioria dos lavradores e pequenos comerciantes da região foi levada presa para essas bases militares, do que se desprende a noção de que esta forma de repressão não apenas serviu ao massacre de guerrilheiros como afetaram profundamente a população local, produzindo vários danos materiais. Muitos moradores foram presos sem sequer compreender o motivo. Outros foram presos por terem deliberadamente aderido à 49 T. Morais e E. Silva Operação Araguaia. Os arquivos secretos da guerrilha. São Paulo: Geração Editorial, 2005, p. 236. 50 Pesquisas recentes indicam que, durante a ditadura, o uso de campos de concentração ocorreu em outros lugares, conforme o que aconteceu em Itaqui (RS) em 1964; cf. Juremir Machado da Silva “Campos de concentração em Itaqui (RS)”, Correio do Povo, Porto Alegre (RS), 209, 27/04/2011; Iberê Athaide Teixeira Nuvens de Chumbo sobre o Cambaí - a Queda de João Goulart, um Campo de Prisioneiros em Itaqui, Porto Alegre: Martins Livreiro, 2009. [109] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 guerrilha e ido morar na mata com os guerrilheiros51. Entrevistas coletadas e estudos recentes revelam que a relação entre os guerrilheiros e a população foi mais positiva e colaborativa do que originalmente subsumido pelos estudos mais conhecidos sobre o tema52. Após os sequestros executados pelos militares, muitos camponeses e comerciantes foram submetidos a espancamentos e outras torturas. Embora seja difícil identificar nos depoimentos dos sobreviventes o critério utilizado para empregar a tortura, parte considerável dos presos sofreu violências físicas, morais e psicológicas. Alguns morreram ou ficaram mutilados, vítimas de armamentos militares deixados na floresta53. Outros moradores mais próximos aos guerrilheiros, ou que conheciam bem a floresta, sofreram duras torturas para dar informações e aceitar trabalhar como guias do Exército nas buscas de guerrilheiros54. Houve um elevado número de pessoas sequestradas. Moradores declararam terem ficado presos junto com mais de 80 ou 90 pessoas detidas em Marabá. Um depoente registra ter contado, em Araguaína, 25 celas com mais de 50 pessoas presas em cada uma55. Alguns afirmaram que todos os homens foram detidos e que só não foram presos os que fugiram ou aceitaram colaborar com o Exército56. As mulheres ficaram sozinhas para cuidar da família e da roça, sendo que muitas foram para as cidades, com medo de serem assediadas ou feridas. Outros relataram que casas, plantações e árvores frutíferas foram queimadas para que os guerrilheiros ficassem sem apoio ou comida57. Mulheres foram presas e torturadas, outras chegaram a ser levadas com as crianças para exercer trabalho escravo nos acampamentos militares58. Outra forma de barbárie capaz de aproximar o Araguaia dos modelos de campos de concentração argentinos foi a “apropriação” de filhos de guerrilheiros. Sabe-se, na atualidade, que ao menos uma filha de guerrilheiro foi dada para adoção por um policial, 51 Pedro M. Silva (06 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, entrevista concedida a Janaína de A. Teles; Luiz Martins dos Santos (05 de Jul., 2001), Tabocão, município de Brejo Grande/PA, entrevista concedida a Janaina de A. Teles. 52 De acordo com Major Curió, um dos militares responsáveis pelo extermínio dos guerrilheiros, as investigações das FFAA revelaram que 26 camponesesaderiram à guerrilha, 194 moradores da região apoiavam diretamente o movimento e sua rede de apoio movimentava 258 pessoas. Leonêncio Nossa, Mata. O major Curió e as guerrilhas no Araguaia, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.132. 53 Este é o caso de Sabino Alves da Silva, morto quando mexia numa granada. Lauro Rodrigues dos Santos perdeu o braço. Cf. Lauro Rodrigues Santos (04 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, Depoimento concedido ao Ministério Público Federal (MPF). 54 Raimundo N. dos Santos (Peixinho) (15 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, entrevista concedida a Janaina de A. Teles. 55 José Rufino Pinheiro (05 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, Depoimento concedido ao MPF. 56 José Francisco Dionísio (06 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, Depoimento concedido ao MPF. 57 Margarida Ferreira Félix (02 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, Depoimento concedido ao MPF; João Vitório da Silva (05 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, Depoimento concedido ao MPF. 58 Alguns relatos dão conta que a mulheres de dois camponeses que aderiram à guerrilha, Batista e Pedro Carretel, foram presas, torturadas e obrigadas a trabalhar nos campos de concentração. [110] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 enquanto diversos outros casos permanecem sem a derradeira confirmação, a despeito da presença de indícios59. A partir da terceira campanha militar (1973-1974), a generalização da violência levou à eliminação indistinta de todos os guerrilheiros, mesmo quando presos com vida, acompanhada da decapitação de alguns e do desaparecimento de seus restos mortais. Muitos desses assassinatos ocorreram nos campos sediados em bases militares da região, como Xambioá, Bacaba e DNER/Marabá, onde uma parte significativa da população local foi enclausurada e torturada. Os campos de internamento da população tornaram-se campos de extermínio para os guerrilheiros. Em agosto de 1974, o general Ernesto Geisel iniciou a fase da chamada distensão política “lenta, gradual e segura”, que buscava atrair para si o status de “moderado”. Tal conjuntura foi acompanhada por um recrudescimento da repressão à Guerrilha do Araguaia e aos remanescentes da luta armada urbana, bem como pelo aumento da repressão sobre a oposição não armada, tais como membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), da Ação Popular Marxista Leninista (AP-ML) e militantes católicos60. Essa foi a forma encontrada pela ditadura para lidar com os problemas de legitimidade relativos ao declínio do “milagre econômico” e ao aumento das denúncias sobre os abusos aos direitos humanos, dentro e fora do país. Geisel tinha como objetivo, entretanto, emitir sinais claros de que eliminaria qualquer ameaça à distensão política e à ampliação da institucionalização do regime planejadas pelos militares. Assim, continuaram, em menor escala, as simulações de suicídios e mortes em tiroteio61. É de se notar que a estrutura repressiva utilizada no Brasil possuía diversas nuances conjunturais, enquanto mantinha suas características essenciais, a saber, seu caráter centralizado e seletivo, permeado por preocupações com a legitimidade institucional do regime ditatorial. A eficiência do sistema repressivo brasileiro fez com que fosse exportado para outros países, especialmente para o Chile e o Uruguai, a partir de 1973, conforme documento militar62. Essa influência do modelo repressivo brasileiro deve-se ao fato de ele ter servido, desde 1964, como um verdadeiro laboratório de experiências golpistas na região. Tratava-se de um sistema inspirado nos preceitos da guerra revolucionária, particularmente do 59 Há indícios de que 8 filhos de guerrilheiros foram apropriados pelos militares. Um exame de DNA confirmou que Lia Cecília (adotada por um policial) é filha do guerrilheiro Antonio Theodoro de Castro. Lucas Figueiredo “Os filhos do Araguaia. Chegam à justiça os primeiros casos de bebês sequestrados pela ditadura”, Carta Capital, 04/05/2011, pp. 24-26. Major Curió afirmou que Osvaldão (o guerrilheiro mais famoso) teve um filho com uma camponesa e que a criança foi adotada. Leonêncio Nossa, op. cit., p.111. Dina (a notória guerrilheira) estaria grávida quando foi presa. C. Almeida e outros, op. cit., p.582. 60 Janaína de A. Teles Memórias dos cárceres da ditadura: as lutas e os testemunhos dos presos políticos no Brasil, op. cit. 61 Janaína de A. Teles Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos por “verdade e justiça” no Brasil, op. cit. 62 Carlos Fico Como eles agiam, Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 135. [111] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 Destacamento Operacional de Proteção (Détachement Opérationnel de Protection – DOP) – unidade especial de interrogatório do Exército francês –, conforme destacado por João Roberto Martins Filho63. Muitas dessas experiências envolveram intercâmbios internacionais com torturadores norte-americanos e seus pares franceses, entre outros, que foram exportadas para a América Latina64. Estes influenciaram a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), a qual fundamentou o empenho dos Estados Unidos em diversas conspirações golpistas na região a pretexto de salvar o Ocidente do comunismo, conforme documentos revelados nos últimos anos65. No contexto deste intercâmbio latino-americano, algumas diferenças fundamentais entre a repressão política argentina e a brasileira foram preservadas: a repressão política na Argentina atingiu essencialmente os militantes, mas alcançou uma periferia muito ampla de pessoas direta ou indiretamente vinculadas a eles; seu objetivo maior era o extermínio de toda e qualquer dissidência. A relativa arbitrariedade na escolha de quem sequestrar proporcionava a disseminação do terror na sociedade, gerando uma ameaça constante e generalizada66. Os campos, concebidos como depósitos de corpos passivamente entregues à espera da morte, aceitando em filas a injeção de sonífero (pensando ser vacina), foram possíveis pela disseminação generalizada do terror, por meio da tortura e despersonalização do prisioneiro. “Mortos que caminham”, de acordo com a expressão do sargento Elpidio Rosario Tejeda, de La Perla67. No Brasil, não se conhecem testemunhos de lugares onde os prisioneiros eram sistematicamente mantidos encapuzados em tempo integral, acorrentados sentados ou deitados, identificados apenas por números, como ocorreu na Argentina. Descrições, feitas na Justiça Militar, de sobreviventes sequestrados e levados para o “Sítio 31 de Março” relataram, porém, que ali foram mantidos acorrentados, nos intervalos da tortura, pelos tornozelos e pulsos, em argolas de ferro fixadas na cama ou em blocos de cimento num quarto com janelas lacradas. Outro sobrevivente narrou que, além de ser torturado no pau-de-arara e sofrer sessões de “afogamento” num rio próximo, foi pendurado pelos pés, permanecendo suspenso por longos períodos68. Na Argentina, destacam-se a extensão e profundidade do trabalho de despersonalização dos prisioneiros, que os transformava em mortos-vivos antes de matá-los, bem como a prática dos desaparecimentos em massa. 63 João Roberto Martins Filho, op. cit., p. 194. 64 Marie-Monique Robin Escuadrones de la muerte. La escuela francesa, Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2005. 65 Cf. site da ONG National Security Archive (NSA): <http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB465/>; <http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB118/index.htm>. Acesso em 10 de abril de 2014. 66 Pilar Calveiro, op. cit., pp. 45-46. 67 Idem, pp. 56, 62. 68 Arquidiocesede São Paulo, op. cit., pp.243-6. [112] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 Já no que se refere às convergências repressivas, é de se notar que, ainda que de maneira menos disseminada do que na Argentina, locais clandestinos de tortura e extermínio existiram por aqui, sendo a “Casa da Morte” a mais conhecida69. Coordenada pelo Centro de Informações do Exército (CIE), era parte constitutiva do sistema DOI-Codi. Esses locais clandestinos representavam o aspecto mais invisível, obscuro e desconhecido do funcionamento dos órgãos de segurança do período. Em alguns casos, o sequestrado tornava-se um desaparecido político, mas tais locais eram importantes também para a tortura de militantes que, porventura, eram vistos como potenciais colaboradores, os infiltrados (denominados “cachorros”). Pretendia-se aplicar-lhes o máximo de sofrimento, sem testemunhas, para tirar toda a sua vitalidade e obter algum resultado operacional. O caso das torturas levadas a cabo na casa de Petrópolis é emblemático, tal como revelado pelos relatos da ex-prisioneira Inês Etienne Romeu, única sobrevivente entre pelo menos onze presos desaparecidos, que resistiu durante 96 dias a enormes pressões e sofrimentos voltados à sua desestruturação psíquica e emocional, visando sua colaboração e retratação pública70. O terror de Estado nos dois países pode ser assim considerado como parcialmente sobreposto. Semelhanças conviveram com diferenças consideráveis que, no caso dos campos de tortura e extermínio, têm muito a ver com a extensão e massividade empregadas na Argentina. Nesse país, “o eixo do mecanismo desaparecedor era a obtenção da informação necessária para multiplicar os desaparecimentos até acabar com o ‘inimigo’71”. No modelo brasileiro, por sua vez, o foco era a seletividade e a obtenção de informações para desestruturar os grupos oposicionistas. Enquanto, no Brasil, os campos do Araguaia estiveram restritos geograficamente, os argentinos distribuíram-se por todo o país visando exterminar os “indesejáveis”. A centralidade da atividade de inteligência era semelhante nos dois países72, como atesta o poder operacional do “Batalhão de Inteligência 601” (sob controle do Exército) durante 69 Alguns depoimentos de presos políticos dão conta da existência de outros centros clandestinos de tortura: a “Casa de São Conrado” e a “Casa do Alto da Boa Vista”, Rio de Janeiro (RJ); a “Casa dos horrores”, próxima a Fortaleza (CE); uma casa e o Colégio Militar, em Belo Horizonte (MG); as casas do Ipiranga e da av. 23 de maio, em São Paulo (SP); o “Sítio 31 de março”, em Parelheiros (SP), e a casa de Itapevi (SP). Cf. Janaína de A. Teles Memórias dos cárceres da ditadura: as lutas e os testemunhos dos presos políticos no Brasil, op. cit., p.113 e Arquidiocese de São Paulo, op. cit., pp. 239-246. Havia outras casas em Jacarepaguá, Rio de Janeiro (RJ); em Itaipava (RJ) e no Rio Grande do Sul, segundo o coronel reformado Paulo Malhães, do CIE. Em 25/04/2014, Malhães apareceu morto; o caso não foi esclarecido. Cf. Rodrigo Martins e Marcelo Auler “Uma voz sufocada. A estranha morte de Malhães, um dos raros torturadores dispostos a falar, representa revés na busca da verdade”, Carta Capital, 07/05/2014, no. 798, pp. 22-29. 70 Inês Etienne Romeu “Relatório Inês: dossiê da tortura”, Pasquim, Rio de Janeiro: n. 607, 12 a 18 jan. 1981, p.4-5 e 26. 71 Pilar Calveiro, op. cit., p.56. Destaques da autora. 72 Agradeço a Melisa Slatman pelas observações relativas à centralidade da atividade de inteligência na Argentina. [113] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 a ditadura argentina73. No Brasil, a tortura era amplamente disseminada, diferenciando-se do modelo argentino por voltar-se à desestruturação dos grupos oposicionistas e à produção de “provas” para a Justiça Militar74. Embora buscasse produzir o máximo de tormento no prisioneiro, na maior parte das vezes o objetivo final do “poder torturador” não era a morte ou o desaparecimento. Não apenas a morte, mas a despersonalização do preso não chegou ao nível e ao grau de sistematização utilizados na Argentina, ainda que não se possa ignorar a existência de milhares de vítimas da tortura e de algumas centenas de mortos e desaparecidos políticos no Brasil75. Na Argentina, a tortura era usada de maneira irrestrita e ilimitada, não importando se deixava marcas, sequelas, lesões ou até se matava a vítima. A nudez, o capuz, as mordaças, os grilhões, a violação sexual de homens e mulheres assinalavam que as normas, as lógicas do mundo exterior e a própria humanidade estavam canceladas. O torturador não via o rosto da vítima, castigava um corpo sem face76. Buscava-se castigar as vítimas, desmembrando-as fisicamente em uma espécie de vingança, produzindo cicatrizes evidentes, sobrepujadas pela morte que, em geral, se seguia77. Os procedimentos da repressão política argentina, contudo, eram bastante similares aos da brasileira. Nos centros de tortura, tais como os DOI-Codis, era patente a fragmentação das tarefas de repressão, também era comum a ocultação dos nomes verdadeiros daqueles que torturavam e trabalhavam em contato direto com os presos. Os torturadores eram chamados por apelidos ou “nomes de guerra” como “Dr. Pepe” ou “Dr. Tibiriçá”, sempre fazendo alusão a patentes e cargos mais altos do que aqueles que efetivamente exerciam. Adotar a aparência de procedimento burocrático também fazia parte das práticas da repressão brasileira: havia a informação recebida e processada; formulários, dossiês e relatórios regulares que registravam nomes e números, ordens recebidas e cumpridas; turnos de guarda etc. Tudo muito impessoal, cada homem como uma peça de um mecanismo maior, que disseminava o terror. Nos DOI-Codi havia uma clara divisão de tarefas e setores compartimentados com distintas atribuições. Em São Paulo, por exemplo, três equipes de “interrogatório” se revezavam em turnos de 24-48 hrs. Elas, geralmente, não eram compostas pelos mesmos agentes das equipes de “busca e apreensão”. O trabalho de sistematizar as informações extorquidas nos “interrogatórios” era feito pelo setor de “informação e análise”, cuja sala ficava no mesmo corredor das salas de torturas. Divisão de tarefas que aumentava a eficiência e compartilhava responsabilidades. A confiança na impunidade dos torturadores 73 John Dinges Os anos do Condor. Uma década de terrorismo internacional no Cone Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 173. 74 Anivaldo Padilha (09 e 21 de Dez., 2009), São Paulo/SP, entrevista concedida a Janaína de A. Teles, Arquivo Audiovisual de Presos Políticos/AEL-Diversitas (USP). 75 C. Almeida, e outros, op. cit. 76 Pilar Calveiro, op. cit., p. 62. 77 Idem, pp. 32, 63, 65-66. [114] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 era enorme, tanto que muitos ex-presos políticos entrevistados não mencionam o uso de capuzes durante as sessões de tortura no DOI-Codi/SP78. Diferentemente da Argentina, a tortura no DOI-Codi/SP, por exemplo, poderia durar um período de uma semana a um mês, aproximadamente. A tortura era intensa nos primeiros dias e, gradualmente, ia diminuindo nas semanas seguintes. Houve casos, contudo, em que sua duração foi maior. Depois de um ou dois meses, em geral, o prisioneiro era levado para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social – a polícia política), onde poderia voltar a ser brutalmente torturado, o que gerava grande tensão entre os presos, ou, por vezes,voltar para o DOI. No DOPS, o preso poderia permanecer cerca de um até seis meses aproximadamente, até ser formalizado seu inquérito, quando era libertado ou enviado para algum presídio. Diversos relatos dão conta de que os prisioneiros permaneciam sem poder avistar-se com seus familiares ou defensores por meses e, somente após longo período de reclusão, iniciava a formalização dos processos na Justiça Militar. No DOI-Codi/SP, os presos não conseguiam fazer contato com familiares e advogados, na maioria das vezes isso ocorria somente no DOPS, depois de alguma espera. O isolamento era quase total. A espera para saber qual seria o destino do prisioneiro era outra forma de tortura e representava uma ameaça permanente, pois várias pessoas voltaram a ser torturadas depois da fase inicial de “interrogatórios preliminares”. A despeito das distinções em torno da extensão e massividade do aniquilamento dos presos, em ambos os países os torturadores se autodenominavam “Deuses”, donos da vida e da morte dos prisioneiros, visando demonstrar seu “poder absoluto” e expandir o terror. Aqui como na Argentina, muitas vezes, “a morte podia aparecer como uma liberação”79 para o prisioneiro que implorava para morrer durante a tortura80. Dir-se-ia que, no Brasil, os DOI-Codis funcionaram, em geral, em locais públicos, combinando atividades clandestinas com aquelas conferidas pela legalidade de exceção; enquanto que nas “Casas da Morte”, os órgãos de repressão atuaram na clandestinidade plena. Embora esses locais possam ser considerados campos, segundo a definição abrangente de Agamben, possivelmente a terminologia que mais leve em consideração as especificidades do sistema repressivo brasileiro seja a de “centros de tortura e de extermínio”. Excetuando-se, como já dissemos, o que aconteceu na região da Guerrilha do Araguaia. 78 Presos pelo DOI-Codi/SP em 1975 mencionaram o uso de capuz; prisioneiros do Rio de Janeiro também, mas não foi possível determinar os períodos ou locais onde essa prática era mais utilizada, cf. Janaína de A. Teles Memórias dos cárceres da ditadura: as lutas e os testemunhos dos presos políticos no Brasil, op cit. 79 Pilar Calveiro, op. cit., pp. 44, 54, 66. 80 Maria Amélia de A. Teles (15 de Ago., 2001), São Paulo/SP, entrevista concedida a Janaina de A. Teles; Rosalina de O. Santa Cruz (08 de Mai., 2009), São Paulo/SP, entrevista concedida a Janaína de A. Teles. AAPP/AEL-Diversitas (USP). [115] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 Na Argentina, não obstante o poder de aniquilamento do aparato repressivo, alguns sequestrados puderam preservar a consciência de si mesmos e o potencial crítico da realidade, evitando a “quebra” completa. As razões da sobrevivência foram múltiplas, a sobrevivência foi tão arbitrária quanto a lógica do poder concentracionário81. Uma das maneiras pelas quais os prisioneiros conseguiram evitar ou adiar sua quebra foi através da supressão de comparações entre o que viviam naquele momento e a realidade exterior. Essa supressão visava evitar a experiência mental disruptiva do universo do campo, substituindo-o na consciência por imagens de um lugar e estado de coisas exterior. O esquecimento que facilita à sociedade aceitar o desaparecimento também ajuda o prisioneiro a resistir e sabotar o mecanismo concentracionário. A lembrança do mundo exterior dói no prisioneiro, mas o salva da desintegração e o preserva do isolamento imposto. Os testemunhos dos sobreviventes revelam que havia uma obsessão nos campos, alguém deveria sobreviver para contar e construir uma memória sobre o terror82. Nesse sentido, diversos sobreviventes testemunharam no julgamento da Junta Militar em 1985; e vários deles têm testemunhado pela primeira vez após a retomada dos processos penais83. Depois da queda dos militares, a memória se tornou um importante instrumento de resistência contra o silêncio e o esquecimento, quebrando a lógica do “poder desaparecedor”. A despeito das desconfianças84, os sobreviventes foram cruciais para esclarecer o que ocorreu, assim como as buscas pelos vestígios dos restos mortais, fornecendo parte das provas do massacre coletivo ocorrido na Argentina. Recordar e reconstruir o que oconteceu tem permitido deslindar responsabilidades, nomes, militâncias e histórias85. Esse é outro aspecto que distingue os dois países. A transição política brasileira contrasta com o modelo argentino de memória, o qual inclui o amplo registro de testemunhos, seja através da formação de uma Comissão da Verdade (a Conadep) em 1984, seja pelo restabelecimento dos restos mortais dos desaparecidos ou pela realização de julgamentos penais, permitindo o conhecimento e a “oficialização” de meandros que o terrorismo de Estado procurou apagar86. 81 Pilar Calveiro, op. cit., pp. 159-160. 82 Idem, p. 161. 83 Carolina Varsky “El testimonio como prueba em procesos penales por delitos de lesa humanidad. Algunas reflexiones sobre su importancia en el proceso de justicia argentino.” In: CELS. Hacer justicia. Nuevos debates sobre el juzgamiento de crímenes de lesa humanidad en Argentina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2011, p. 50. 84 Ana Longoni Traiciones. La figura del traidor en los relatos acerca de los sobrevivientes de la represión, Buenos Aires: Norma, 2007. 85 Pilar Calveiro, op. cit., pp. 165-166. 86 Emílio Crenzel La historia política del Nunca Más. La memoria de las desapariciones em la Argentina, Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2008. [116] Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726 CONSIDERAÇÕES FINAIS A comparação dos modelos repressivos implementados no Brasil e na Argentina revela sobreposições parciais. Enquanto esta privilegiou a aplicação do “poder desaparecedor”, por aqui vingou mais intensamente a adoção do “poder torturador”. Por outro lado, em ambos os países houve assassinatos cometidos pelo estado, junto a outras sérias transgressões dos direitos humanos. A Guerrilha do Araguaia representa um caso de particular aproximação com o modelo argentino de campos de concentração, os quais fizeram parte da tradição repressiva no Brasil, ao longo do século XX. Outro aspecto digno de nota diz respeito ao contraste existente entre os dois países quanto à transição política e os respectivos modelos de memória. Não obstante a pouca presença de testemunhos na esfera pública brasileira sobre o período ditatorial, as experiências registradas tem demonstrado como as memórias da militância ou da guerrilha produzem um efeito catalisador de outros testemunhos e ajudam a esclarecer aspectos importantes da história factual. O resgate da experiência dos sobreviventes tem produzido condições oportunas para a compreensão de fatos de alta relevância histórica, tanto no caso argentino, quanto no brasileiro. Tal resgate é inexoravelmente dependente do contexto em que se produzem as experiências e no qual se atualizam. A maneira como as resgatamos e a apropriação que delas se fazem tecem os contornos desse resgate. Sutil é a fronteira entre o resgate que representa reapropriação da experiência e a reificação pura e simples da memória. Nesta perspectiva, destacamos que o trabalho da memória tem sido realizado por meio de processos judiciais ou extrajudiciais e de instrumentos capazes de promover o esclarecimento dos fatos e o acolhimento das narrativas das vítimas e de seus algozes, a exemplo do que (em tese) fazem as Comissões da Verdade. Muitas vezes, estes instrumentos são acionados simultanea ou posteriormente e atuam de maneira complementar, conforme ocorre, especialmente, na Argentina. Cabe considerara importância de novos estudos focados nestas comparações – sobretudo através da amplificação dos conhecimentos relativos ao modelo repressivo e à construção da memória da ditadura no Brasil – para a discussão acerca dos meios para se conservar essa memória, encontrar seus resquícios e, finalmente, sobreviver a isso tudo, produzindo consciência crítica e aprendizado. [117]
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