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I N T R O D U Ç Ã O C R Í T I C A T E X T U A L ■ César Nardelli Cambraia Martins Fontes São Paulo 2005 C A P Í T U L O 1 I N T R O D U Ç Ã O 1.1. DEFINIÇÃO DE CRÍTICA TEXTU AL U m dado fundam ental para com preender o escopo da crí tica textual é o fato de que um texto sofre modificações ao longo do processo de sua transmissão. Para perceber de fo rm a descon traída essa questão , basta levar-se em conta a trad icional b rincadeira cham ada telefone- sem-fio: ao pé do ou v id o de q uem está ao seu lado, um a pes soa passa oralm ente um a m ensagem , a qual é repassada para a pessoa seguinte do c írcu lo em que se en co n tram , e assim su cessivam ente — mas, c o m o todos sabem , ao re to rn a r ao p r i m eiro emissor, a m ensagem nunca chega co m o foi. Pode-se dizer que se passa, mutatis mutandi, a m esm a coisa na transm is são de textos escritos. A cada cópia que se faz de u m texto, a constitu ição deste m uda — seja po r ato invo lun tário , seja po r ato vo lun tário de q u e m o copia. É ju stam en te p o r causa desse fato em p írico incontestável que a crítica textual se constituiu: seu objetivo prim ordial é a restituição da forma genuína dos textos. 2 ■ I N T R O D U Ç Ã O A C R Í T I C A T E X T U A L 1.2. A MOBILIDADE DOS TEXTOS As m odificações que os tex tos p o d em sofrer ao longo do processo de sua transmissão p o d e m ser d istribuídas em duas categorias: exógenas e endógenas. As modificações exógenas d erivam fu n d am en ta lm en te da corrupção do material u tilizado para reg istrar u m tex to : tan to da m até ria subjetiva (papiro, perg am in h o , papel, etc.) q u an to da m até ria aparen te (grafite, tin ta , etc.). Isto significa que, m esm o que n en h u m a cópia fosse feita de u m registre) o rig i nal de p u n h o do p ró p rio autor, ainda assim a transmissão des se registro poderia sofrer m odificações, pois furos no suporte p o d e m c ria r lacunas que ex ig irão o trabalho do c rítico tex tual para serem preenchidas. A c o rru p ção do m ateria l dá-se p o r vários m otivos: um idade, sol, fogo, insetos, vandalism o (razão pela qual, aliás, docum en tos originais dem andam co n dições especiais de conservação, de que, via de regra, apenas grandes b iblio tecas e arquivos d ispõem ). N o d o m ín io da língua portuguesa, há casos m u ito cu rio so s relacionados a essa questão da co rrupção do m aterial: p o dem -se citar, em especial, os cham ados Pergaminho Vindel e Per gaminho Sharrer. E m 1914, o livreiro espanhol P edroV indel deu notícia da descoberta de u m pergam inho co n te n d o não apenas o téx to de sete cantigas de am igo a tribu ídas ao trovado r m edieval M artin C o d a x mas tam bém a p a rtitu ra de seis delas (cf. V in del, 1914). Esse pergam inho, datável d o séc. X III, servia até então de forro a u m códice do séc. XIV, con tendo um a cópia do De Officiis de C ícero . O pergam inho , que se encon tra des de 1977 na P ie rp o n t M organ Library de N ova Iorque, to rn o u possível, pela p rim eira vez, c o n h e ce r a m úsica de cantigas de am igo, pois até en tão só se conhecia a m úsica de cantigas ga- lego-portuguesas de caráter religioso — mais especificam ente i n t r o d u ç A o ■ 3 as famosas Cantigas de Santa M aria, com piladas na co rte de A fonso X , o Sábio (1221-1284)'. Se, p o r u m lado, os furos que existiam no pergam inho não im p ed iram de to d o o c o n h e c im e n to do tex to das can tigas pelo fato de elas tam bém se encon trarem registradas no Cancioneiro da Biblioteca Nacional (ns. 1278 a 1284) e no Can cioneiro da Vaticana (ns. 884 a 890), p o r ou tro , o c o n h e c im e n to da m úsica não escapou à necessidade de conjecturas, pois um dos furos encon tra-se ju s ta m e n te na parte final de duas pautas da terceira cantiga. A propósito do tex to em si, veja-se, na figura 1, co m o o furo na m até ria subjetiva e lim inou par te da quin ta cantiga (na prim eira coluna, ao cen tro ). H istó ria sem elhante acon teceu décadas depois: em 1991, o estudioso am ericano H arvey Sharrer no tic iou a descoberta de u m perg am in h o que possuía não som en te o tex to de sete cantigas de am or de au toria do rei D. D inis (1261-1325) mas tam bém a sua partitu ra (cf. Sharrer, 1991). Esse pergam inho , datável de fins d o séc. X III o u p rincíp ios do XIV, fazia parte da capa de u m livro do C a rtó rio N otaria l de Lisboa copiado em 1571. N o v am en te ho u v e u m g rande achado, pois o p e r gam inho , q u e se en co n tra n o A rqu ivo N ac io n a l da T orre do Tom bo, em Lisboa, revelou pela prim eira vez a m úsica de can tigas de am o r (as de C odax e ram de am igo). T am bém no caso das cantigas de D. D inis, o con h ec im en to do tex to dessas com posições líricas que se tem atualm ente é m enos lacunoso do que seria se constassem apenas do refe rido p e rgam inho (m uito mais fragm entário que o localizado por V indel), pois elas encon tram -se registradas no Cancioneiro 1. A música das Cantigas de Santa Maria recebeu já duas propostas de interpretação quanto à partitura original: a de R ibeira (1922) e a de Anglès (1945-1964). A de M artin C odax foi estudada por M anuel Pedro Ferreira (1986). 4 ■ I NTRODUÇÃO À CRÍTICA TEXTUAL F ig u ra 1 - F ó lio 2 r d o Pergaminho Vindel (Fonte: Ferreira, 1986: 74-5) \ I NT RODUÇÃO ■ 5 da Biblioteca Nacional (ns. 524 a 529 e 520a) e n o Cancio neiro da Vaticana (ns. 107 a 113). D e m aneira igual, p o rém , a restitu ição das notações m usicais d em an d o u conjecturas. C o m o se vê, em am bos os casos os estragos no pergam i n h o im p ed iram a co n tin u id a d e da transm issão das no tações musicais em sua in tegridade. N o que se refere aos textos, em bora haja outros registros das referidas com posições, ainda as sim p o d e-se considerar ex istir um a perda, po is, do p o n to de vista de autoridade, os dois referidos pergam inhos, porque são os registros m ais an tigos, tê m mais valor n o processo de re constitu ição da form a genu ína dos textos do que os dois can c ioneiros citados, que parecem datar do séc. X V I. C ertam en te um caso q u e pode ser considerado exem plar em term os de perda p o r co rru p ção do m aterial é o da versão m edieval po rtuguesa do Merlim. E m 1979, o pesquisador catalão A m adeu-J. Soberanas trou xe a conhecim en to a descoberta de u m fragm ento do Merlim em p o rtu g u ês m edieval (cf. S oberanas^ l979 ). C o m o não se sabe de n e n h u m o u tro reg istro em língua po rtu g u esa desse texto, sua reconstituição in tegral é sim plesm ente impossível e a p ró p ria reconstitu ição apenas do tex to p o rtu g u ê s do frag m e n to é c e rtam en te b astan te lim itada. V eja-se abaixo, a tra vés de um dos trechos transcritos p o r Soberanas (1979: 191), com o o tex to apresenta lacunas ora passíveis de co n jec tu ra (en tre colchetes), ora p ra ticam en te irrecuperáveis (três p o n tos en tre colchetes): Qvãdo eles chegarõ a abadya e os ffrades uirõ os caua[lei]ros chagados, fforõ contra eles [...] e ffez[e]rõ [...] a hüa camara e [...] ffezerõlhys todo a[quel seruiço] que poderõ. Manhãa [...]oy manhaa espediusse a donzela [...] os caualeíros ffolgarõ [...] E quando uirõ [...]ryã caualgar [...]es e fforom [...]s come [...] (ms. 2434 da Bibl. da Catalunha, fól. 122v.b). 6 ■ I NTRODUÇÃO à c r í t i c a t e x t u a l N os três exem plos acima citados, um a cópia co m c o rru p ção m ateria l chegou até o presente, en tre tan to ce rtám en te m uitas ou trascópias corrom pidas de textos, as quais desapa receram n o curso do tem po, terão circulado no passado e ser v ido de m o d e lo para outras cópias, o que terá in te rfe rid o na transm issão in teg ral de m uitos textos. Já as m odificações endógenas são aquelas que derivam do ato de reprodução do texto em si, ou seja, do processo de reali zação de sua cóp ia em u m novo supo rte m aterial. As exóge- nas diferem das endógenas p o rque a o rigem destas é in te rna ao ato de cóp ia (depende de seu responsável), en q u an to a da quelas é ex te rna , na m edida em que não depende do seu rea lizador, pois, m esm o que este executasse a cóp ia c o m 100% de precisão, o resultado ainda assim estaria com prom etido , p o r defeito n o p ró p rio m odelo . As m odificações endógenas Mo dern ainda ser subdivididas em duas outras categorias: autorais e não-autorais. As m odificações autorais são realizadas pelo próprio autor in- —telectual da obra. D u ran te o processo de preparação da edição impressa de um a obra, é co m u m o a u to r receber as provas ti pográficas (impressão da prim eira com posição tipográfica fei ta a partir de u m original m anuscrito ou datilografado): nesse m om en to , sói acon tecer não apenas de o au to r retificar aqui lo que o tipógrafo tinha alterado p o r desatenção mas tam bém de ele p ró p rio , o autor, fazer novas in tervenções na fo rm a do tex to a n te r io rm e n te enviado à ed ito ra. E m u m passado mais rem o to era possível ainda que u m a u to r divulgasse sua obra através de cópias manuscritas em u m prim eiro m om ento , mas, p oste rio rm en te , tendo realizado m odificações na sua obra, d i vulgaria novas cópias, já co m alterações de sua au to ria . U m exem plo de m odificação au to ra l é o que aco n teceu com a obra Os Sertões, de Euclides da C u n h a (1866-1909). Se gundo esclarece W alnice G alvão (cf. C u n h a , 2003: 520-9), I NTRODUÇÃO · 7 essa obra foi publicada pela p rim eira vez em 1902 pela ed ito ra Laem m ert, tendo sido reeditada em 1903 e 1905 pela m es ma casa ed ito ria l. Foi, po rém , apenas após publicada a 4f ed., em 1911, já sob a responsabilidade da editora Francisco Alves, que se descobriu um exem plar da 3? ed. com em endas de p ró prio p u n h o do a u to r (cf. figura a seguir), alterações estas que foram in tegradas ao tex to apenas a p a rtir da 5? ed ., saída em 1914. A tu a lm en te o exem plar c o m em endas autografas está, no en tan to , desaparecido, mas ainda existe u m exem plar com a rep rodução dessas em endas realizada p o r F e rn an d o N e ry (depositado na A cadem ia Brasileira de Letras). A pós ter com parado as três p rim eiras ed ições e o exem plar c o m rep ro d u ção apógrafa das em endas euclidianas, G alvão ap u ro u a exis tência de nada m enos que em to rn o de 6 .000 variantes (sem se inc lu írem nessa cifra as co rreções gráficas e ortográficas). Ter consciência de que os au to res m odificam suas obras de um a edição para ou tra é especialm ente im p o rtan te , pois a diversidade fo rm al dos tex tos tem o rig em não apenas em lapsos de cópia m as tam b ém na m udança de v on tade do au tor (que dá o rigem às chamadas variantes de autor): a dificulda de, entretanto , está ju stam en te em se estabelecer com certeza quando se trata de u m caso e q u an d o de ou tro , especialm en te em relação a tex tos m u ito antigos. M odificações não-autorais são as que o co rrem sem a au to rização n e m o c o n h e c im e n to d o au to r, o u seja, são fruto da atividade de terceiros. Essas m odificações p o d e m ser subdiv id i das em voluntárias e involuntárias. São m odificações voluntárias aquelas que o c o rre m p o r ato deliberado de quem reproduz o texto. A razão p rin c ip a l para esse tipo de m odificação costum a ser a d iscordância ideo lóg ica , que se m anifesta, via de regra, através de censura (política, re ligiosa, etc.). 8 · I NTRODUÇÃO A CRÍTICA TEXTUAL Figura 2 - P ágina 140 da 3.* ed. d ' O s Sertões co m alterações autografas de E uclides da Cunha (Fonte: Cunha, 1946: VI) K 4 — 140 — 4e berrete Juncar 1 i crffceça. assaltando o visodants retar- I— f ditario, nas noites (nrtgnsrwf das sextas-feiras. de parceria com ® os labiskamens e m ulas tem cabeça noctivagos; tortos os roal- assombramentos, tortas as unlafO a do maldiclo ou do diabo — ■ . esse tragieo emissário dos rancores celestó»>eeeH*aie*a4^ na J . terra; aa reza» fconeag»»rt«» a 8. Ctmpeiro. canonisado m par-I------ 4 V C I ' * · P — © · — -r -------- — ----- ; i tibue. ao qual se acceodem vela» pelos campos, para que favo reça a descoberta de objectos perdidos; aa ^jqHtfura* listless para curar os animaesi, p a r v ^ « w * w » á < > seíSes; V-H todas as ^ieeef, torta» aa appiriçòee ph*nta»ticaa. todas as pro- I__1 pbeciaa esdrúxulas de messia» H .u daM ; 9 « romarias pi*- 1 dosas; · as miss6ès; e as penitencia». . . todas aa raanifesta- çdes comple nas de religiosidade indefinida, s io explicáveis. Nào seria difficil caracterisal-as como uma mestiçagem de crenças. Alli estâo. francos, o anthropismo do selvagem, o o/vju*lí M animismo do africano e, o que é mais, o proprio emo cional da raça superior, na época do descobrimento e d» CO lD DÍsaçio. Este ultimo é um caso notável da atavismo, na hlstoria. Considerando as agitações religiosas do tertio « oj evao- getisadores e messias singulares, que. tatermittentemente.j> y__ i atravessam, ascetas mortificados de frw n tò " /'. eocalçados sem- I ' pre pelos sequazes numeroso».que fsnatisapi. que arrastam, que dominam, que endoudecem — espontaneamente recordamos a phase mais critica da alma portuguesa, a partir do final <to século XVI, quando, depois de haver por momentos centrali- sado a historia, o mais interessante <to» povos eahiu. de subito, era decomposiçto rapida disfarçada pela cflrte oriental de D. Manoel. O povoamento do Brazil fez-se, intenso, com D. Joio l i t , precisamente ao fastigio rte completo desequilíbrio moral, quaadu «todos os terrores da Rdade-Media tinham crysutü· aado no catbolicisiso peninsular·. Para exem plificar censura, pode-se m encionar a p rim eira edição que A ugusto M agne fez do tex to m edieval po rtuguês da Demanda do Santo Graal em 1944. C e rta m en te p o r achar que certas passagens do tex to poderiam chocar o público, o I NT RODUÇÃO ■ 9 ed ito r sup rim iu -as do c o rp o d o texto, transferindo-as para um a seção final intitulada aditamento.Tbndo sido criticado p o r essa atitude, M agne preparou um a segunda edição, publicada em 1955-1970, em que não som ente recolocou no devido lu gar todas as passagens an te r io rm e n te deslocadas mas tam bém incluiu reprodução fac-sim ilar do m anuscrito para to rn a r evi d en te sua fidelidade a ele. Veja-se, a seguir, a rep ro d u ção de um excerto censurado na 1? ed. e de sua fo rm a integral na 2a (o excerto , do cap. LII, § 357, narra o en co n tro do jo v em rei A rtu r co m um a donzela): e dês í, foi-se contra a donzela e salvou-a; e ela se ergueu con tra èle e salvou-o muito apôsto; e el-rei se assentou e ela ou- trossi; e com eçaram a falar de-suü, e achou-a el-rei tam si suda e de tam booa palavra, que marivilha era, e foi em tam pagado, que a quis levar consigo; e entom aque-vos uü cava leiro já quanto de idade, que saiu da foresta assi desarmado como rei Artur (Magne, 1944, vol. II: 33, itálicos de Magne). e dês i, fo[i]-se contra a donzela e salvou-a; e ela se ergueu contra êle e salvou-[o] muito apôsto; e el-rei se assentou e^ela outrossi; e comcçarom a falai de-suü, e achou-a el-rei tam si sudae de tam booa palavra, que marivilha [era], e foi tam pa gado, qu ejouve com ela per força. E ela, que era menina ainda nom sabia de tal cousa, começou a braadar mentre ele jazia com ela, mais nom lhe houve prol, ca toda via fe z el-rei o que quis, e fez entom em ela uüfdho. E depois que houve feito seu prazer e a quis levar con sigo aque-vos uü cavaleiro já [quanto] de_idade, que saiu da foresta assi desarmado com o rei Artur (Magne, 1970: 89, tá- lico nosso). Trata-se obv iam ente de u m a cena forte, pois narra-se um estupro. Entretanto , não é possível fazer um a análise adequada do tex to po rtuguês da Demanda do Santo Graal levando-se em conta a edição com censuras: só se pode ter um a visão global 10 ■ I NTRODUÇÃO À CRÍ TI CA TEXTUAL e aprofundada do tex to m edieval português considerando to das as suas partes. C o n s titu e m m odificações involuntárias aquelas que o c o r rem por lapso de quem reproduz o texto. Esse dpo de modificação, conhecido trad icionalm en te co m o erro de cópia, foi já o b je to de diversos estudos, que p ro cu ra ram descrever e classifi car cada ca tego ria : tal e m p e n h o d e c o rre da consciência de que a identificação da o rigem de u m erro explica a na tu re za da d istorção e evidencia com o deve ser sanada na restitu i ção da fo rm a genu ína dos textos. C o m o no cap ítu lo 3 esse tem a será abordado detalhadam ente, apresenta-se aqui apenas um exem plo: o salto-bordão. Q u a n d o há no m odelo utilizado p ira a cópia duas palavras iguais em pontos diferentes de um a m esm a página de u m m anuscrito ou impresso, não raram ente costum a-se saltar o tex to que há en tre essas duas palavras. Isto dá-se p o rq u e o copista não percebe que, ao re to rn ar os olhos para o m o d elo , após ter reg istrado na sua cópia a p rim eira o c o rrê n c ia da palavra em questão , seus o lhos se fixam em um a palavra igual, mas em u m p o n to situado adiante no m o delo. V asconcelos (1949: 97), co m p aran d o dois incunábu los coevos da História de Vespasiano - u m com o tex to castelhano (Sevilha: P edro B ru n , 1499) e o u tro com o tex to p o rtu g u ês (Lisboa: V alentim Fernandes, 1496) - , verificou vários casos de sa lto -bordão . C onfira-se abaixo a rep rodução de u m ex ce rto d o cap ítu lo V II em ambas as línguas: e Gays el senescal se acordo X dixo a Jacob:Yo quero fablar con Pilatos»;Jacob le dixo: «Yo jre con vos»; e amos a dos vanse a Pilatos X fablaron le delante dei templo de Salamon (Foulché-Del- -------bose 1909: 14, itálico de Vasconcelos). E o mestre-salla acordou-se e disse a Jacob: Eu quero fallar com Pilatus... E fallaron lhe diante do templo de Salamom (Perei ra, 1905: 47). I NTRODUÇÃO · 11 Percebe-se que, no texto po rtuguês, houve a supressão da seqüência preservada no tex to castelhano (cf. trecho em itá lico): essa om issão deu-se ju sta m e n te p o rque a seqüência es tava en tre as duas ocorrências do n o m e Pilatos. E m se tra tando da lírica m edieval, no en tan to , as m odifi cações nos textos p o d em ter u m a o rig em mais com plexa do que sim plesm ente um lapso. C o m o assinala C unha (1985b: 36), as m odificações eram m otivadas ainda p o r dois fatores: a) a indiferença dos escritores medievais pela propriedade e pela originalidade da obra, que estimavam ver alterada ou acrescida (...); b) a transmissão oral, com a “ falsa reiterabilidade” que a ca racteriza. A atuação desses fatores, a que Z u m th o r (1981) cham ou de movência, tem naturalm ente im plicações para o processo de estabelecim ento de textos dessa época, pois, co m o já alertou C u n h a (1985b: 36), é preciso levar em con ta não apenas a existência de variantes (im putáveis aos copistas) mas tam bém de variação, isto é, m odificações decorren tes das diversas pe r fo rm ances de u m a poesia d ifu n d id a p o r um sécu lo e m eio sob a fo rm a cantada. S egundo A zevedo F ilho (1998: 268), tam bém em tex tos da lírica cam on iana é possível p e rceb er casos de “ interferência da m em ó ria em caso possível de trans missão o ra l” . M odificações não-au torais e m u m tex to p o d e m , p o r ve zes, im por-se de tal m aneira q u e acabam ob ten d o um a sorte mais afortunada do que a da fo rm a genuína. U m caso m uito interessante é o do tex to da Carta deAchamento do Brasil, re digida p o r PeroV az de C a m in h a e datada de 1500: M attos e Silva (1999 :134) cham a a a tenção para o fato de co m o um dado trech o da referida Carta, que tem circulado a tu a lm en 12 ■ INTRODUÇÃO À CRÍTICA TEXTUAL te de um a fo rm a quase cristalizada, sim plesm ente não existe no orig inal, pelo m enos dessa form a. N ão haverá u m falante cu lto de p o rtu g u ês que não co n h eça a expressão “ em se p lan tando, tu d o dá” (ou ainda “ aqui tudo , em se p lan tando, dá”), trad icionalm en te considerada parte da Carta de C am i nha. N o tex to g enu íno (fól. 13v, ls. 19 a 21), p o rém , o que há é “ em tal m aneira he graciosa que queren d o a aproueitar darsea neela tu d o per bem das agoas que te m ” (C am inha, 2001: 79). S egundo a referida pesquisadora, é b em provável que essa fo rm a derive de algum a leitura atualizada do tex to orig inal. D e qua lquer m aneira, não deixa de ser im pressio nante' com o esse bordão parafrástico acabou p o r se enraizar p ro fundam en te na cultura lusófona. O s exem plos apresentados acim a poderiam induzir o lei to r a achar que as m odificações oco rrem fundam entalm ente em relação a textos de épocas m uito pretéritas, mas não é ver dade: a m obilidade do texto m anifesta-se em qualquer época. Exem plos bastante curiosos da m obilidade do tex to no m u n do m o d ern o são apresentados p o r Garcia (2002: 92-3) no que diz respeito à m úsica popular brasileira: flagraram -se já diver sos casos em que in térpretes m odificaram o tex to genuíno . U m caso m u ito interessante é o relativo à canção Último D e sejo, de N o e l R osa: na estrofe “ E às pessoas que eu d e te s to / D iga sem pre que eu não p re s to / Q u e o m eu lar é o b o te q u im ” (cf. C hediak , 1991, vol. 2: 124 e 128), m uitos cantores alteram a ú ltim a frase para “ Q u e o m eu lar é u m b o teq u im ’ , subvertendo o sentido do texto. Se, no tex to orig inal, o can to r considera que o seu lar é fora de casa, é o bo tequ im ; já no tex to m od ificado a idéia suscitada parece ser a de que o seu lar é a sua p róp ria casa, mas ela assem elha-se a um b o tequ im . Enfim , de diversas ordens são as razões pelas quais os tex tos se m odificam ; e certam ente várias razões en trecruzam -se I NT RODUÇÃO ■ 13 no processo de transmissão de cada texto. Justam ente p o r isso, quan to mais c ien te o crítico tex tual estiver dessas possibilida des, tanto mais preparado estará para desvendar os m istérios da h istória da transm issão de cada texto . 1.3. CRÍTICA TEXTUA L, ECDÓTICA E FILOLOGIA Q u a n d o se fala em crítica textual, não raram en te d espon tam dois outros term os: ecdótica e filologia. N ão há atualm ente consenso2 sobre o cam po de conhecim en to que cada u m des ses três te rm o s designaria: o ra são tratados c o m o sinônim os, ora co m o denom inação de cam pos de co nhecim en to d istin tos ainda que in tim am en te relacionados. N o q u e se refere à expressão crítica textual, costum a-se em pregá-la em língua portuguesa com o designadora do cam po do c o n h e c im e n to que tra ta basicam ente da restituição da forma genuína dos textos, i. é, de sua fixação o u estabelecimento (cf. H ouaiss,1967, vol. I: 204; A zevedo Filho, f9 8 7: 15; Spi- na, 1994: 82). Já o te rm o ecdótica3 tem sido utilizado para nom ear o cam po de c o n h e c im e n to que eng loba o estabelecimento de textos e a sua apresentação, i. é, sua edição4 (cf. A zevedo Filho, 1987: 2. Este problem a term inológico, de que não padece apenas a língua portuguesa, foi ricam ente discutido por Carvalho e Silva (2002: 53-70). Segundo ele p róprio in forma, um a distinção entre crítica textual e ecdótica dataria, pelo m enos, de R e irach (1883: 31), onde se lê: “A Crítica dos Textos é a ciência das alterações às quais os textos estão sujeitos, dos meios de reconhecê-las e de remediá-las. A Ecdótica é a arte de publicar os textos” (tradução nossa). 3. Circula tam bém , apenas em português, a form a edótica, originalm ente utilizada por B ueno (1946: 144) e retom ada por Spina (1977, 1994). 4. A rigor, são distintos os term os edição e publicação: enquanto o prim eiro designa o estabelecim ento e a apresentação de um texto, o segundo designa sua composição tipográfica/eletrônica e impressão. 14 · INTRODUÇÃO Ã CRÍ TICA TEXTUAL 15; Spina, 1994: 82): nessa acepção, o te rm o abarca nSo ape nas o p rocesso de restitu ição da fo rm a genu ína de u m tex to mas tam b é m os p ro ced im en to s técn icos para ap resen tar o tex to ao público. Se, para os dois te rm os acim a d iscutidos, há u m ce rto li m ite nas oscilações de sua defin ição , pois, ainda q u e even tu a lm e n te sejam em pregados c o m o sinôn im os (cf., p. ex., H ouaiss, 1967, vol. I: 204), referem -se sem pre ao processo de edição de textos; o m esm o não se verifica, porém , em relação ao te rm o filologia^paca-o qual circulam definições m u ito dis tintas. N o Dicionário Houaiss (2001: verbete filologia) regis- tram -se qua tro significados para essa palavra: 1. estudo das sociedades e civilizações antigas através de do cumentos e textos legados por elas, privilegiando a língua escrita e literária como fonte de estudos 2. estudo rigoroso dos documentos escritos antigos e de sua transmissão, para estabelecer, interpretar e editar esses textos 3. o estudo científico do desenvolvimento de uma língua ou de famílias de línguas, em especial a pesquisa de sua his tória morfológica e fonológica baseada em docum entos escritos e na crítica dos textos redigidos nessas línguas (p. ex., filologia latina, filologia germânica etc.); gramática histórica 4. estudo científico de textos (não obrigatoriam ente antigos) e estabelecimento de sua autenticidade através da compa ração de manuscritos e edições, utilizando-se de técnicas auxiliares (paleografia, estatística para datação, história lite rária, econômica etc.), esp. para a edição de textos C o m o se pode ver, os conceito s acim a ora apresentam g rande afin idade c o m a defin ição de crítica textual adotada nesta obra (cf. significados 2 e 4), ora identificam -se ao estudo I NTRODUÇÃO ■ 15 de h istó ria da língua (cf. significado 3). N u m a con cep ção mais abrangente, relacionar-se-ia ainda ao estudo de civiliza ções, a partir de textos (cf. significado 1). A polissem ia do term o filologia não é, po rém , fen ô m en o m od ern o , pois, ao que parece, na G récia antiga, p e río d o em que teria sido cunhado , já apresentava sentidos diversos. D o p o n to de vista etim õlóg ico , a palavra filologia o rig in a - se, em últim a instância, do vocábulo grego φ ιλ ο λ ο γ ία , c o m posto de u m radical vinculado ao verbo φ ιλειν (“ am ar”) e de um radical relacionado do substantivo λόγος (“ palavra”): as sim sendo, a idéia básica o rig in a lm en te expressa pelo te rm o em questão seria “ am or à palavra” . Esse valor sem ântico básico não escaparia de sofrer deslo cam entos, pois verifica-se o em prego do referido te rm o com outros significados já em autores gregos dos sécs. IV—III a.C . Bailly (1950: 2076) lista os seguintes: 1. “ desejo de falar, pala v ró r io ” em L icônio , A th . 548a ; 2. “ gosto pela d ia lé tica” em Platão, Thacet. Í46a\ 3. “gosto pela literatura ou pela e ru d i ção” em A ristóteles, Probl. 18, P lu tarco M . 645c - p o r e x ten são, “ dissertação sobre u m assunto literário o u de e ru d iç ão ” em Isócrates, Antid. O deslocam ento p o r trás do sentido cons tatado em A ristó teles parece ser m eto n ím ico : suporia um trajeto com o “palavra” > “sentença” > “discurso” > “ conheci m en to ” > “ e ru d ição ” . A idéia de filologia com o “e ru d iç ã o ” parece ser a que está na base d o uso que E ratóstenes de C i- rene (c. 276-196 a.C.), um dos responsáveis pela B iblioteca da A lexandria n o E gito , fez ao se au to -in titu la r filólogo. S egun do o h is to ria d o r rom ano S u e tô n io (c. 6 9 -140 d .C .) , ao tra tar de L úcio A teio P retextato no tex to D e Grammaticis et Rhetoribus, E ratóstenes teria sido o prim eiro a ado tar a refe rida denom inação no m undo helênico, enquan to A teio o te ria feito no m u n d o rom ano: 16 · INTRODUÇÃO A CRÍ TICA TEXTUAL Phiioiogi adpellationem adsumpsisse videtur, quia sic ut Eratos thenes, qui primus hoc cognomen sibi vindicavit, multipli va- riaque doctrina censebatur5 (Tranquillus, 1960 [1991]: §10.4-5). Já no m u n d o m oderno , o te rm o filologia assumiria, acade m icam ente , u m significado mais restrito: testem unho disso é o fato de o alem ão F ried rich A ugust W o lf ter-se m atricu la do na U n iv e rs id ad e de G ò ttin g e n , em 1777, c o m o títu lo Studiosus Philologiae. Segundo H e rre ro (1988: 17), W o lf teria de fin id o filologia co m o o “ estudo do que é necessário para c o n h e ce r a c o rre ta in te rp re tação de u m tex to l ite rá r io ” . N o dom ín io lusófono, o term o filologia, ainda no séc. XV III, parecia con tinuar polissêmico, pois em Bluteau (1712 [2000], t.V I: 482) apresentam -se duas defin ições, um a mais am pla e ou tra mais restrita (nas três linhas finais a seguir): P h i l o l o g i a . He palavra Grega composta de Philos, Amigo, & Logos, discurso; & Philologia vai o mesmo que Estudo das le tras humanas, começando da Grammatica, (que antigamente era a parte principal da Philologia,) & proseguindo com a elo quenda Oratoria, & Poetica, com as noticias da Historia an tiga, & moderna, com a intelligencia, interpretação, & Critica dos Authores, com a erudição sagrada, & profana, & géralmen- te com a comprehensaõ, & applicação de todas as cousas, que podem ornar o engenho, & discurso humano. Rigorosamente fallando, Philologia he a parte das sciencias, que tem por ob jecto as palavras, & propriedades dellas. U m século depois o te rm o não deixaria de designar aquele c o n c e ito am plo, re lacionado à in te rp re tação de tex 5. “Vê-se [Ateio] ter assumido a denominação de filólogo, porque assim com o Era tóstenes, que prim eiro reivindicou este epíteto para si, era estimado por seu co nhecim ento m últiplo e variado.” i n t r o d u ç ã o ■ 17 to. Isto é o q u e se in fere da d e fin ição apresen tada p o r Sil va (1813 [1922], t. 2: 446): PH ILO LO G IA , s.f. A arte, que trata da intelligencia, e interpre tação critica grammatical, ou rhetorica dos Autores, das anti guidades, historias, &c. É possível constatar, p o rém , q u e em p rincíp ios do séc. X X esse te rm o p o d eria ser u tilizado en focando-se especial m en te o estudo da língua, ficando a in terp re tação dos tex tos co m o p arte acessória — isto dep reende-se de com o Lei te de V asconcelos (1911 [1959: 9]) definia filologia portuguesa: (...) o estudo da nossa língua em toda a sua amplitude, no telmpo e no espaço, e acessòriamente o da literatura,olhada sôbre tudo como docum ento formal da mesma língua. Essa concepção perduraria a in aa pelo m enos até m èados daquele século, pois Silva N e to (1956a: 15) re iterou , décadas depois, u m a defin ição de filologia portuguesa, bastante sem e lhante àquela, mas apresentada p o r C arolina M ichaêlis em suas preleções de 1911/1913 (cf. Vasconcelos, s.d.: 156) [o ex certo a seguir aparece de fo rm a idên tica nessâs duas obras]: (...) o estudo científico, histórico e comparado da língua nacio- t tôda a sua amplitude, não só quanto à gramática (foné- lorfologia, sintaxe) e quanto à etimologia, semasiologia, ias também como órgão da literatura e como manifesta- > espírito nacional. P o r vo lta dessa m esm a épo ca , p o rém , a defin ição de f i lologia c o m o estudo do tex to tam b é m existia, po is M elo (1952: 54-5) defendia ser a filologia portuguesa: (...) o estudo largo e profundo dos textos de nossa língua para atin gir em cheio a mensagem intelectual ou artística nêles contida. ,1nal tica, etc., li ção di 18 a INTRODUÇÃO Ã CRÍ TICA TEXTUAL A lguns anos antes, no en tan to , tam b ém circulava um a defin ição b e m mais am pla de filologia, pois B u e n o (1946 [1959: 22]) assim a delimitava: O conhecim ento da civilização de um povo, num dado m o m ento da sua história, através dos seus m onum entos literá rios (...) C o n te m p o ra n e a m e n te , o te rm o filologia, c o m o já se viu mais acim a p e lo verbe te do Dicionário Houaiss, c o n tin u a a ser em p reg ad o de fo rm a polissêm ica, mas há um a te n d ê n cia a se associar esse te rm o ao e s tu d o do tex to , rese rv an d o - se o te rm o lingüística para id en tif ica r o estudo c ien tífico da linguagem hum ana. Seguindo essa tendência, em prega-se aqui o te rm o filologia para designar o estudo global de um texto, ou seja, a exp lo ração exaustiva e c o n ju n ta dos mais variados as pectos de u m tex to : lingüístico , lite rá rio , c rítico -tex tu a l, só - c io -h is tó rico , etc. Para finalizar esta seção será de g rande proveito conhecíer u m pouco mais quais seriam as tarefas do crítico textual. U m a visão expandida dessas tarefas foi exposta de fo rm a bastante instru tiva p o r C arvalho e Silva (1994: 59-60): • A definição do conceito, do objeto, do m étodo e das fi nalidades da ciência e das diferentes épocas da sua evolução. • O estudo e classificação dos textos e das edições, e, nos casos de dúvida, a averiguação da sua autenticidade e a fun damentada identificação de textos apócrifos e de edições frau dulentas (contrafações). • O exame da tradição textual e da fidelidade das transcri- • A pesquisa da gênese dos textos, sem deixar de lado qual quer elem ento (inclusive fragmentos textuais) que possa con tribuir para as conclusões sobre o labor autoral. INTRODUÇÃO ■ 19 • A fixação de princípios que devem orientar o trabalho da reprodução e da elaboração de todos os tipos de edições de textos. • A aplicação de tais princípios e normas gerais a diferen tes tipos de textos, tendo em vista os contextos histónco-cul- turais em que estão integrados. • O estabelecimento de normas gerais e de normas espe cíficas para a conversão dos textos orais em textos escritos. • A indicação dos pressupostos filológicos para a boa rea lização da tradução dos textos. • A organização dos planos de publicação das obras avulsas ou das obras completas de determ inado autor, apoiada em ri goroso levantamento de dados histórico-culturais e biobiblio- gráficos; e a formulação de normas editoriais para cada caso em exame. • A preparação de edições fidedignas ou de edições críti cas, enriquecidas, sempre que recomendável, de estudos pré vios, notas explicativas ou exegéticas destinadas a valorizar o labor autoral. 1.4. CONTRIBUIÇÕES C o m certeza a con tribu ição mais evidente e im p o rtan te da crítica tex tua l é a recuperação do patrimônio cultural escrito de um a dada cu ltura. Assim com o se restauram p in turas, escul turas, igrejas e diversos outros bens culturais da h u m an id a de, a fim de que m an tenham a fo rm a dada p o r seu a u to r in telectual, igualm en te restauram -se os livros em te rm o s tan to físicos (recuperação da folha, da encadernação , da capa, etc.) q u an to de seu co n teú d o (recuperação dos textos). C onside rando que, após se te r restitu ído a fo rm a g enu í na de u m tex to escrito, ele é, via de regra, pub licado nova m ente, co n trib u i-se tam bém , assim, para a transmissão e pre servação desse patrimônio: co labora-se para a transm issão dos 20 · INTRODUÇÃO À CRÍTICA TEXTUAL textos, po rque, ao se publicar u m texto , este to rna -se nova m en te acessível ao público le ito r; e con trib u i-se para a sua preservação, po rque se assegura sua subsistência através de re gistro em novos e m odernos suportes m ateriais, que au m en tarão sua longevidade. N ão é necessário m uito esforço para se perceber a vasta extensão do d o m ín io do co n h ec im en to h u m ano que se b e neficia do exercício da crítica textual: basta dizer sim plesm en te que te m impacto sobre toda atividade que se utiliza do texto escrito como fonte. Exem plificar cada um a dessas atividades, sa lientando a im portância da utilização de textos fidedignos em cada caso, é u m a tarefa p ra ticam en te infindável, dada a vas tidão dessas atividades. N ão se pode, porém , deixar de m en cionar duas delas: os estudos lingüísticos e literários. N o d o m ín io dos estudos lingüísticos, os textos escritos, não raram ente, são utilizados com o corpus, isto é, fon te de dados para o co n h ec im en to da língua. U m a descrição lingüística só tem validade se, de fato, os textos adotados com o fonte de da dos espelharem o em prego efetivo da língua (ainda que ape nas na sua m odalidade escrita): textos com deturpações levam u m lingüista a considerar, com o atestação de um a palavra ou de um a estru tu ra lingüística, algo que é sim plesm ente erro de cópia e que, po rtan to , não reflete o uso real da língua. U m caso digno de m enção em língua portuguesa é o da palavra cofre: M achado (1995, vol. 11:177) registra no verbete respectivo a oco rrência dessa palavra já no séc. XfV, mais es pecificam ente na Demanda do Santo Graal. E n tre tan to , sabe- se, desde a resenha dessa edição feita p o r Piei (1945), que se trata de u m erro do editor: assim, em bora ten h a lido em -sua p rim eira edição “ Pois assi é, disse Galvam, eu irei buscar, p reto o u longe um cofre (...)” (cap. X L I, § 271; M agne, 1944, vol. I: 354 , itálico nosso), já na segunda edição leu c o rre ta I NT RODUÇ ÃO ■ 21 m ente “ Pois assi é, disse Galvam , eu irei buscar, p re to o u lo n ge u o soterre ( ...)” (M agne, 1970: 5, itálico nosso). O u seja, o que havia sido lido co m o um cofre era, na verdade, u o so terre (i. é , “ o n d e o e n te r re ” ), po is o cavaleiro G alvão estava p ro cu ran d o lugar para e n te rra r o rei B andem aguz, que aca bara de m orrer. Já n o d o m ín io dos estudos literários, os tex to s escritos são ainda m ais essenciais, já q u e são a p rin c ip a l fo rm a de expressão da lite ra tu ra — p rin c ip a l, m as c e rta m e n te não a ún ica , po is não se p o d e e sq u ec e r da lite ra tu ra oral, em que, aliás, se fu n d am e n ta a p ro d u ç ã o p o é tica p rim itiv a não apenas g rega na A n tig u id ad e m as tam b ém v e rn acu la r na Idade M éd ia . C o n s id e ra n d o , p o ré m , p a rtic u la rm e n te a li te ra tu ra escrita , a c o n tr ib u iç ã o da c rítica tex tu a l está em assegurar q u e o c rítico literá r io possa exerce r sua função c o m base e m u m te s te m u n h o q u e e fe tiv am en te rep ro d u z a fo rm a d o tex to q u e o a u to r lhe deu , ou seja, sua fo rm a g enu ína . A inda que se a rgum ente que é leg ítim o realizar um a aná lise literária voltada para a fo rm a co m o o p ú b lico -le ito r p e r cebe u m dado tex to in d e p e n d e n te m e n te de sua fo rm a ser genu ína o u não, tal a rgum en to não invalida o fato de que é ig u a lm en te leg ítim o realizar o u tro s tipos de análise, c o m o aquelas voltadas para o texto co m o ato de criação literária so- c io-h istoricam ente contextualizado, caso em que é fundam en tal saber se o tes tem unho do tex to em estudo é o u não fiel à form a que o a u to r lhe deu. C o m o exem plo ilustrativo para essa questão, pode-se citar a análise literá ria do poem a “ A p o ro ” , de C arlos D ru m m o n d de A ndrade (1902-1987), realizada p o r L im a (1968: 188-9). A pós apresen tar u m a transcrição desse poem a, da qual se re p roduz abaixo a p rim eira estrofe 22 ■ I NTRODUÇÃO À CRÍ TI CA TEXTUAL U m inseto cava cava sem alarme perfumando a terra sem achar escape. com en ta o crítico: “A escavação do inseto perfum a a terra, mas a escava sem perfurar, sem achar escape” (itálico de Lima). C onside rando a estrofe tal qual acim a reproduzida, não há abso lu tam ente nada que se possa ob jetar em relação ao co m en tá rio do crítico. O problem a está, po rém , n o fato de que essa estrofe apresenta um e rro rp o is^ -fe rm a que D ru m m o n d (cf. A ndrade, 1945: 54) havia lhe dado, com o se verifica na p rim eira ed ição da òbra em q u e veio a lum e (A Rosa do Povo), tin h a co m o terceiro verso o trecho “perfu rando a te r ra” . C o m o se vê, d ian te do tex to genu íno , o co m en tá rio do crítico deixa de te r validade: o c h o q u e de idéias assinalado, i. é, “ escava sem perfu rar” , sim plesm ente não existe naquela estrofe — há, na verdade, u m reforço, pois o inseto cava e, p o r :onseqüência , perfura. C o m o não consta em L im i (1968) a edição utilizada com o m odelo para a transcrição q u e reali zou , não é possível verificar a o rig e m da fo rm a n ã o -g e n u í- na. In d ep en d en tem en te da o rigem , é fato que a fo rm a “p e r- T jm ando” não parece ser a tribu ível a D ru m m o n d , o que significa q u e não p o d e ser considerada em um a análise de abordagem sócio -h istó rica, em q u e se leva em co n ta a v o n tade autoral. 1.5. TRANSDISCIPLINARIDADE U m a das característiqas mais instigantes da crítica textual é sua transdisciplinaridade. Para o efetivo exercício da fixação de tex tos é sem pre necessário u m co n ju n to m u ito diversifi cado de conhecim en tos, o que obriga o trânsito p o r diversas áreas do co n h ec im en to . INTRODUÇÃO a 23 H á algum as áreas em especial que têm im pacto d ire to so bre a atividade d o crítico textual: a paleografia, a diplomática, a codicologia, a bibliografia material e a lingüística. 1.5.1. Pa leografia A paleografia pode ser definida, de um a form a bastante bá sica, com o o estudo das escritas antigas. M o d ern am en te , apre senta finalidade tan to teórica q u an to pragm ática. A finalida de teórica m anifesta-se na preocupação em se en ten d er com o se constitu íram sóc io -h is to ricam en te os sistemas de escrita; já a finalidade pragm ática evidencia-se na capacitação de lei tores m o d e rn o s para avaliarem a a u te n tic id ad e de u m d o cu m en to , c o m base na sua escrita , e de in te rp re ta rem ade quadam en te as escritas do passado. Sua constitu ição com o cam po de co n h ec im en to sistem a tizado costum a ser situada no século X V II. E m viagem pela Europa, o jesu íta D aniel van P apenb roeck (1628-1714) teria constatado a ex istência de m u ito s d o cu m en to s falsos, o que o teria levado a escrever a ob ra Propylaeum Antiquarium circa Veri ac Falsi Discrimen in Vetustis Membranis (A ntuérpia, 1675), onde apresen ta c rité r io s para d iscern ir docum en tos falsos de verdadeiros: co m o subsídio a esse ju lg am en to , Papenbroeck apresenta u m a classificação das d iferen tes escritas. T en tando responder às críticas deste aos docum en tos da Abadia de Saint- Denis, o m onge bened itino Jean M abillon (1632-1707) redi g iu a ob ra D e R e Diplomatica Libri I V (Paris, 1681), em que avança a inda m ais na investigação dos tipos de escrita . O te rm o q u e n o m eia esse cam po de estudo só apareceria com a obra Palaeographia Graeca Sive de O rtu et Processu Litterarum Graecarum (Paris, 1708), escrita pelo tam bém b en ed itin o B er nard de M o n tfa u c o n (1655-1741). A relevância da paleografia para o crítico tex tu a l é bas tan te ev iden te : para se fixar a fo rm a genu ína de u m tex to , 24 ■ INTRODUÇÃO À CRÍ TICA TEXTUAL é necessário ser capaz de decod ificar a escrita em que seus testem unhos estão lavrados. É m u ito com um , aliás, existirem edições de tex to que apresentam falhas decorren tes de equ í voco na le itu ra do m odelo p o r p a rte do editor. D ada a im portânc ia das in form ações de natureza paleo - gráfica para a com preensão da leitura das fontes realizada pelo crítico textual, pode-se incluir em edições de tex to mais e ru ditas um a breve seção dedicada a com entários dessa natureza. Nessa seção costum a-se abordar aspectos com o os seguintes: a) classificação da escrita, localização e datação; b) descrição sucinta de características da escrita, a saber: a morfologia das letras (sua form a), o seu traçado o u ductus (or dem de sucessão e sentido dos traços de um a letra), o ângulo (relação entre os traços verticais das letras e a pauta horizontal da escrita), o módulo (dim ensão das letras em term os de pau ta) e o peso (relação entre traços finos e grossos das letras); c) descrição sucinta do sistem a de sinais abreviativos em pregado na referida escrita; d) descrição dos outros e lem en tos não-alfabéticos-exis— tentes e de seu valor geral: núm eros, diacríticos, sinais de p o n tuação, separação vocabular in tra linear e translinear, paragra- fação, etc.; e) descrição de pontos de dificuldade na leitura e as so luções adotadas. E m bora haja hoje em dia d isponível no m ercado b ib lio grafia in tro d u tó ria em paleografia relativam ente variada (p. ex., Batelli, 1999; S tiennon, 1999; C ence tti, 1997; Bischoff, 1997;Terrero, 1999), obras em língua portuguesa o u voltadas para a escrita latina no m undo lusófono são m uito raras: den tre os textos mais gerais, podem -se citar C ruz (1987), Santos (1994, 2000) e B erw anger <5c Leal (1995). Sua leitura, porém , deve ser com plem entada com a prática efetiva de contato com tex tos lavrados nas mais d iferen tes escritas, o que p o d e ser I NTRODUÇÃO ■ 25 feito u tilizando-se as reproduções fac-sim ilares presentes nos álbuns de paleografia6 voltados para docu m en to s p o r tu g u e ses e /o u brasileiros, tais com o B u rn a m (1912-1925); C osta (1997);V alente (1983); N unes (1984); Dias, M arques & R o drigues (1987); e A cioli (1994) - in felizm ente quase todos esgotados, mas encontráveis em bibliotecas acadêm icas. 1.5.2. D iplom ática Pode-se defin ir basicam ente a diplomática c o m o o estudo -de~dommentos (em especial, os ju ríd ico s). D eve-se en te n d e r aqui p o r documento, em um sen tido estrito, toda notícia escrita de algum acontecimento. As origens da diplom ática estão fortem ente entrelaçadas com as da paleografia, já que os tratadosmais antigos visavam a o rien tar a avaliação da autenticidade de docum entos legais, tanto através de sua escrita quando de sua form a e de seu c o n teúdo. Seu estabelecim ento com o cam po de conhecim en to sistemadzado rem onta, assim, à já m encionada disputa entre Papenbroeck e M abillon (podendo ser atribuída a este, em sua já referida obra de 1681, a cunhagem do nom e desse cam po). O s co n h ec im en to s d ip lom áticos são especialm ente re le - vantes para o crítico textual que edita docum entos. A decifra- ção e a rep rodução de um d o c u m e n to p o d e m ser realizadas com m ais segurança e p rop riedade quando se tem consciên cia de c o m o eram produzidos os d o cu m en to s , em que clas ses se d istribu íam e com o se estru tu ravam in te rn am e n te , so b re tu d o p o rq u e apresentavam constan tes form ais em term os tan to estru tu rais q u an to lingüísticos. ▼ T ▼ ▼ ▼ 6. D e m uita utilidade são tam bém os dicionários de abreviaturas: para abreviaturas latinas, pode-se consultar Cappelli (1995); e para portuguesas, N unes (1981) e Fle- chor (1991). 26 ■ I NTRODUÇÃO À CRÍ TICA TEXTUAL Tratados in tro d u tó rio s m o d ern o s de d ip lom ática aplica dos especificam ente a docum entos portugueses parecem ine- xistir, mas p o d em -se o b te r in fo rm ações relevantes em M ar ques (1963-1971 , vol. 1: ^23 -8 ), B erw anger & Leal (1995) e C ru z (1987); um a visão histórica recen te dessa disciplina em P ortugal aparece em C o e lh o (1991). D ada essa escassez no d o m ín io lusófono, pode-se reco rre r à leitura de obras basea das especialm ente no d om ín io hispânico, o que p e rm ite a in da que se tenha u m a visão ib ero -ro m ân ica do tem a: a tual m en te en co n tram -se disponíveis m anuais espanhóis co m o o de Tam ayo (1996) e Terrero (1999). 1.5.3. Codicologia A codicologia consiste basicam ente no estudo da técnica do livro manuscrito (i. é, do códice). Esse te rm o , que te m sua pa te rn id ad e re iv ind icada p o r D a in (1975: 76), é em p reg ad o atualm ente, p o rém , em um sentido mais estrito do que aque le postu lado p o r q u em o cu n h o u . D a in (1975: 77) co n sid e rava co m o m issões e d om ín io da codicologia a h istó ria do m a nuscrito , a história das coleções de m anuscritos, investigações sobre a locaüzação atual dos m anuscritos, problem as de cata logação, repertórios de catálogos, o com ércio dos m anuscritos, sua utilização, etc., sendo do escopo da paleografia o estudo da escrita e da m atéria escriptória, da confecção do livro e de sua ilustração, e o exam e de sua “arqu ite tu ra” ; mas obras mais re centes ten d em a redistribuir as tarefas dos dois cam pos do co nh ec im en to m encionados: Lem aire (1989:3) postula dever a cod ico log ia fixar-se sob re tudo em co m p reen d e r os diversos aspectos da confecção m aterial p rim itiva do códice. Para o c rítico textual, a cod ico log ia é de g rande relevân cia, pois fo rnece inform ações que p e rm item com preender al gum as das razões pelas quais os tex tos se m odificam n o p ro INTRODUÇÃO · 27 cesso de sua transmissão. Saber, p. ex ., que nos antigos rec in tos em que se realizavam as cópias (cham ados scriptoria) havia o háb ito de se desm em brar u m có d ice para que suas partes (os cadernos) pudessem ser rep roduzidas s im ultaneam en te p o r diferentes copistas perm ite ao crítico textual elaborar h i póteses sobre p o r que certas cópias tê m seu tex to em ordem diferente de outras: possivelm ente p o rque, ao se rec o m p o r o códice u tilizado c o m o m odelo , te r iam o c o rr id o equívocos na ordenação de suas partes. A lém de perm itir um a com preensão mais profunda do processo de transmissão dos textos, os conhecim entos cod ico- lógicos tam bém são utilizados mais pragm aticam ente na des crição de códices, a qual deve constar na edição de textos pre servados em m anuscritos. C o m o orien tação para essa descri ção cod ico lóg ica , apresenta-se na pág ina seguinte u m guia básico7 (outros m odelos p o d e m ser consultados em Bohigas, M undó & Soberanas, 1973-1974, e em R uiz , 1988: 316-40). O guia de descrição apresentado a seguir cobre aspectos es senciais de um códice, mas p o d e natu ralm ente ser estendido com a inclusão de detalhes que a to rn e m mais abrangente: p o de-se, p. ex ., inclu ir um diagram a c o m a com posição dos ca dernos, id en tif ican d o a natu reza das faces dos p e rg am in h o s (carne x pêlo), rebarbas de fólios sem sua parte solidária, ir regularidades, etc.; podem -se ainda acrescentar o incipit e o explicit de cada tex to , aspecto im p o rta n te para tex tos até en tão desconhecidos; e diversos ou tros aspectos. Por ou tro lado, é possível, em n o m e da concisão, sup rim ir alguns dados e eli m inar os títu los dos itens de descrição , organizando assim as in fo rm açõ es e m u m parágrafo b astan te c o m p a c to (sistem a c o rre n te em g randes catálogos de m anuscritos). 7. C ertam ente m uitos dos term os empregados neste guia não são de dom ín io geral, mas grande parte deles será explicada na seçao 3.2, mais adiante. 28 ■ INTRODUÇÃO A CRÍ TICA TEXTUAL Guia Básico de D escrição C od icológica 1. Cota: cidade em que se encontra o códice; nome da insti tuição; coleção de que faz parte; e número ou sigla de identificação. 2. Datação: explícita (transcrever, informando fólio e linha em que consta) ou inferida (apresentar justificativa). 3. Lugar de origem : explícito (transcrever, informando fó lio e linha em que consta) ou inferido (apresentar justifi cativa) . 4. Folha de rosto: transcrição. 5. Colofao: transcrição. 6. Suporte material: papiro (papiráceo), pergaminho (mem- bra-náceo) ou papel (cartãceo) — sendo membranáceo, infor mar animal, espessura, cor e obediência à Lei de Gregory; sendo cartáceo, informar tipo, linhas-d’água (direção e dis tância entre pontusais e vergaturas), filigrana (descrição da figura). 7. Com posição: número de fólios; número e estrutura dos ca dernos (bínio, térnio, quatemo, etc.); formato (in-fólio, in-4?, in-8 o, etc.) e dimensão dos fólios (altura x largura, em milímetros). 8. O rganização da página: dimensão da mancha; número de colunas; número de linhas; pautado ; numeração (foliação [número só no recto do fólio] ou paginação [número no rec to e no verso]); reclamos (ausência ou presença, localização na página e freqüência); assinaturas (presença ou ausência, sistema). 9. Particularidades: miniaturas (capitulares ornamentadas); iluminuras; marcas especiais (carimbos, ex-libris, assinaturas pessoais, etc.). 10. Encadernação: tipo (original ou não-original); dimensão; material; natureza e cor da cobertura; decoração; texto na capa; nervos no lombo. 11. C onteúdo: identificação dos textos do códice por fólio(s), informando autor e obra. 12. D escr ições prévias: bibliografia. I NTRODUÇÃO ■ 29 C o m o sugestão b ib liográfica in tro d u tó r ia sobre c o d i cologia, p o d e m -se c ita r D ain (1975), P e trucc i (1984), R u iz (1988) e L em aire (1989), além dos ricos vocabulários da área preparados p o r M uzere lle (1985), em francês, m as já co m tradução para o espanhol datada de 1997, e p o r A rnall i Juan (2002), em catalão, p o rém c o m ín d ice de c o rre sp o n d ên c ia para o espanho l, francês e italiano. N o d o m ín io lusófono, o único volum e publicado co in dados afins parece ser o de N as cim en to & D io g o (1984). 1.5.4. B ibliografia material U m cam po de c o n h ec im en to análogo ao da cod ico log ia é a bibliografia material, que consisteno estudo da técnica do li vro impresso. E m bora os estudos sobre im prensa em si não sejam tão re centes, data de p o u c o a constitu ição de um a abordagem des se tem a d ire tam en te ligada aos problem as de transm issão dos t e x tQ S . M uito s dos trabalhos que co n trib u íram para essa nova abordagem derivam especialm ente da experiência de estudio sos de língua inglesa na prática de edição e análise de textos literários dos sécs. X V I e X V II. Ó e n tre esses estudos, t e r ta - m en te destacam -se trabalhos c o m o G reg (1914), M cK errow (1927), B ow ers (1949, 1959, 1964) e Gaskell (1972). C o m o já disse m eta fo ricam en te G reg (1914 [1967: 47]), é apenas através da aplicação de u m m éto d o bibliográfico rigoroso q u e a ú ltim a gota de in fo rm ação pode ser extraída de u m d o c u m e n to literário. D e n tre os in strum en tos desse i, in c lu e m -se n a tu ra lm e n te as técnicas de descrição •áfica, as quais já foram m in ucio sam en te tratadas p o r (1949). E m bora não haja aqui espaço para discutir de- n e n te os diversos aspectos a que se deve dar especial m étodcj b ibliogr Bowers talhadar 3 0 m I NT RODUÇÃO À CRÍTICA TEXTUAL atenção na investigação do livro impresso, não se p o d e deixar d« listar iten s que devem ser observados em sua descrição8: G uia B ásico de D escrição Bibliográfica 1. Identificação: nome do autor; título da obra; nom e do edi tor; local de publicação; nome da editora e data de publicação. 2. Folha de rosto: transcrição. 3. C olofão: transcrição. 4. Suporte material: tipo de papel; linhas-d’água; filigrana. 5. C om posição: números de fólios ou de páginas; número e estrutura dos cadernos; formato e dimensão dos fólios. 6. Tipografia: dimensão da mancha; número de colunas; nú mero de linhas; espécie e dimensão dos tipos; capitulares; numeração; reclamos; assinaturas. 7. Particularidades: decorações; ilustrações; marcas especiais. 8. Encadernação: tipo; dimensão; material; natureza e cor da cobertura; decoração; texto na capa; nervos no lombo. 9. C onteúdo: identificação das partes do texto por página. 10. E xem plar exam inado: cota e nome da instituição de tentora. 11. D escr ições prévias: bibliografia. A pesar de o livro m an u scrito se constitu ir p o r u m p ro cesso d istin to do im presso, há inegavelm ente diversos aspec tos com uns a am bos, com o se p o d e verificar através aa com paração deste ú ltim o guia e do exposto na seção an terior. Para ex em p lo in teressan te de descrição de livro m an u scrito e de impresso de um a m esm a trad ição em língua portugviesa, p o - de-se consu ltar o p rim eiro vo lum e da edição das Vidas e Ραι- s. C om o orientação para a realização de um a descrição bibliográfica, podem -se ain da consultar Dias (1994) e os dicionários de especialidade de Faria & Pericão (1988) e de Sousa (1989). I NT RODUÇÃO ■ 31 xões dos Apóstolos, de responsabilidade de C epeda (1982-1989): com o sua edição se baseia no tex to presente no códice alco- bacense C C X X X II /2 8 0 e no im presso de 1505, p recede o tex to c rítico um a m inuciosa descrição de am bos. N a tu ra lm en te um a descrição bibliográfica b e m executa da pressupõe fam iliaridade com a sua term inologia, ainda que esta não seja to ta lm en te consensual. Para se te r u m a idéia dos term os em pregados na iden tificação das partes p rinc ipais de u m livro im presso, po d e-se consu ltar a descrição figurativa a seguir (figura 3), adaptada para o português p o r N ascim ento & D iogo (1984). As seis obras citadas logo n o in íc io desta seção são sufi cientes para su p rir o in teressado de in fo rm ação sobre a b i b liografia m ate ria l, m as baseiam -se fu n d am e n ta lm e n te no livro im presso em língua inglesa; para os livros im pressos em língua po rtuguesa , não parece haver até o m o m e n to n e n h u m a obra in tro d u tó ria que siga a abordagem precon izada po r aqueles autores. E xistem , n o en tan to , bons títu los traduzidos para o p o rtu g u ês sobre o livro im presso. C f., p. ex ., M cM u r- trie (1982) e Febvre & M artin (1992). Especificam ente sobre a h is tó ria da im p ren sa em P o rtu g a l,-p o d e-se consu ltar, p. ex., A nselm o (1981,1991); e, no Brasil, M artins (1996), Sodré (1966), H allew ell (1985) e Paixão (1996). 1.5.5. L ingüística A lingüística, en ten d id a c o m o estudo científico da linguagem humana, tem , de todas as áreas já citadas, a relação mais óbvia e essencial c o m a crítica tex tual, pois os textos tê m com o p i lar a língua. C ertam en te o p rim eiro aspecto que deve ficar evidente é o fato de que a adoção de u m a m enta lidade p u ris ta ou n o r- m ativista q u an to à língua no exercício da crítica tex tual tem 32 ■ I NTRODUÇÃO λ CRÍ TICA TEXTUAL F ig u ra 3 - P a r te s p r in c ip a is d o liv ro (Fonte: Nascimento & Diogo, 1984: 98) Grxvura e descriçío adaptada de JOSÉ MARTÍNEZ DE SOUSA, D iccianario d e T/patrafía y d e i L ib ro , Barcelona, 1974. Partes principais do livro: 1. adorno, graça 2. tranchefila, sobrecabeçada, trin- cafio, requife 3. corte de cabeça 4. cantoncira, ponta 5. fólio 6. abertura, frente, goteira 7. anterrosto 8. guarda 9. corte de dianteira, goteira 10. corte de pé 11. meio lombo 12. lombo 13. entre-nervos 14. florão 15. rótulo 16. nervo 17. seixas 18. canto 19. plano (primeiro ou anterior ?£ segundo ou posterior) 20. charneira, bisagra 21. cartão 22. tela da cobertura 23. marcas de assinatura i escala (obtida com filetes na media- niz) 24. cadernos 27. gaza 26. tira de cartolina (falso lombo) 27. tftulo 28. fecho 29. legenda 30. gravura 31. margem interior ou medianiz 32. corandel (não confundir com intercolúnio) 33. margem de cabeça 34. coluna de texto 35. branco de separação de texto 36. margem de corte 37. sobrecapa, sobrecoberta, camisa 38. boca 39. margem de pé efeitos nefastos. A confusão de perspectivas (científica x p u - r is ta /no rm ativ ista ) co m p ro m ete se riam en te o resu ltado no estabelecim ento da fo rm a genuína de um texto, pois o críti- I NT RODUÇÃO ■ 33 co incau to acaba p o r fixar u m a fo rm a do tex to e m perfeita consonância c o m os padrões p recon izados pelas gram áticas norm ativas, mas co m p le tam en te d issonante dos padrões ge nu inam en te em pregados pelo a u to r do tex to em edição. N a realidade, é verificadam ente co m u m esse tipo de adul teração de textos no processo de edição, pois co m freqüência procura-se fazer co m que o tex to ed itado se encaixe nas n o r mas das gram áticas trad icionais. M e lo (1988: 18) c ita co m o exem plo de “ co rreção ” de form as genuínas o fato de m uitos editores m od ificarem , no tex to de Iracema, de José de A len car, a seqüência g enu ína “ O n d e vai” (no cap. I) p o r “ A onde vai” — ce rtam en te para subord inar o uso do advérb io à n o r m a trad icional de q u e onde se u tiliza para “situação” e aonde para “ d ireção ”9. D e n tre os vários ram os da lingü ística , p o d e -se d izer que aquele q u e te m m ais im pacto sobre a edição de tex tos é a lingüística histórica, pois a crítica tex tual debruça-se am iúde so bre textos do passado. O desenvolvim ento dos estudos d iacrô- nicos te m co n tr ib u íd o para a fo rm ação de um a visão mais realista e abrangen te da história das Unguas: a tualm ente os es tudos d iacrôn icos dialogam c o m diversas áreas, p e rm itin d e - um a percepção mais aguçada dos fenôm enos lingüísticos com o exem plo , p o d e -se citar a im p o rtân c ia dos estudosso - ciolingüísticos na com preensão da variação lingüística e, em especial, n o reco n h ec im en to da he te rogene idade co m o ca racterística constitu tiva da lin g u ag em (cf., p. ex .,W ein re ich , Labov & H erzog , 1968; e Labov, 1972). E m bora to d o crítico textual deva necessariam ente ter um a form ação lingüística am pla e variada, para a edição de textos 9. N orm a, aliás, em desacordo com a própria história do advérbio aonde, que desde sua origem no séc. X IV expressaria os valores de “situação” e “direção” (cf. C am braia, 2002a). 34 ■ I NT RODUÇÀO À CRÍ TICA TEXTUAL do passado deve ainda possuir conhecim en to aprofundado da língua da época. A aquisição desse c o n h e c im e n to dá-se efe tivam en te , e m especial, pe la le itu ra co n tin u ad a de tex tos da época, f id e d ig n a m e n te estabe lec idos. A esse p ro p ó sito , diz M elo (1952: 53): Urge que o filólogo e b lingüista procurem conhecer a língua, isto é, os textos, e não os gramáticos, muito menos os gramati- queiros: conhecer a língua, estudando-a com olhos de técnico e com olhos de artista. Sem dúvida é muito mais facil c<pnhecer meia dúzia de compêndios rançosos e sonolentos do que conhe cer a língua diretamente, pelos seus documentos e m onumen tos, — o que demanda uma vida inteira de devoção, — mas é êste o único e verdadeiro caminho do filólogo (itálico de Melo). E m b o ra não se possa deixar de adm itir que as gram áti cas tradicionais sejam relevantes no estudo de lín g u a10 (pois reg istram padrões que a tua[ra]m de fo rm a coerc itiva sobre ela), não se p o d e pensar que seu co n h ec im en to é suficiente para se saber com o a língua efetivam ente foi o u é usada: há, na verdade, nessas gram áticas um a mescla de descrição de fa tos reais de língua e de padrões preconizados, mas não neces sariam ente adotados pelos autores de textos. M o d ern am en te , no en tan to , além da leitu ra de textos do passado, o conhecim en to da língua de épocas pretéritas pode er com p lem en tado com a consulta a obras da especialidade, c o m o manuais introdutórios (p. ex ., B ueno , 1955; Silva N eto , 1957b; M e lo , 1971; C âm ara J r., 1976;Teyssier, 1982; F o n seca, 1985; C astro et a l , 1991)" e gramáticas históricas (p. ex., ▼ ▼ ▼ ▼ ▼ 10. Para o conhecim ento de gramáticas da língua portuguesa de 1500 a 1920, pode- se consultar a extensa lista preparada por Cardoso (1994: 19-139). 11. Tam bém de interesse são os volumes da História da língua portuguesa, coordena dos por Segism undo Spina: Spina (1987), Paiva (1988), M orei P in to (1988), M ar tins (1988), P in to (1988) e H auy (1989). N Λ N unes, 1919; Said Ali, 1931; C o u tin h o , 1938; W illiam s, 1961; H u b er, 1986). Aos títu los listados, p o d e riam ser na tu ralm ente acrescentados não apenas outros relevantes mas tam bém estudos de tem a particu lar, aqui om itidos em n o m e da concisão. N ão se pode, no entanto , deixar de fazer m enção aos dicionários, instrum entos de grande im portância: há os especi ficam ente etim ológicos (p. ex., M achado, 1952; C u n h a , 1982; C orom inas Pacual, 1980 -1991) e aqueles não necessaria m en te e tim o lóg icos mas de interesse h istó rico (p. ex ., B lu- teau, 1712-1721 , 1727-1728; Silva, 1789; V iterbo , 1798; Sil va, 1813). C o m o os d icionários têm sem pre suas lim itações, a consulta a glossários (que even tualm ente acom panham a edi ção de u m texto) costum a ser de grande auxílio: além dos vo lumes da coleção Dicionário da Língua Portuguesa: Textos e Voca bulários (Berardinelli, 1963; G om es Filho, 1963-1964; Pereira, 1964; R ossi, M ota , M atos & Sam paio, 1965; Pereira Filho, 1965; C u n h a , 1966; G rillo , 1966; C u n h a et a l , 1966; e B e rardinelli & M enegaz, 1968), há am plos glossários co m o do Cancioneiro da A juda (V asconcelos, 1920), das Poesias de Sá de M iran d a (C arvalho, 1953), das Cantigas de Santa Maria (M ettm an n , 1972), e da Vida e Feitos de Júlio~eésar (M ateus, 1974--199-2·)-:----------- - I NT RODUÇÃO ■ 35 I ( i
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