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Hermenêutica Bíblica José Severino Croatto.pdf

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José Severino Croatto 
 
 
 
 
 
 
HERMENÊUTICA BÍBLICA 
 
Para uma teoria da leitura como produção de significado 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Tradução de Haroldo Reimer 
Digitalizado por Eclesiano 
 
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SUMÁRIO 
Prólogo .................................................................................................................................................................................. 5 
Introdução ...................................................................................................................................................................... 6 
Hermenêutica Filosófica: Três Grandes Fases ................................................................................................. 6 
1. A Era Moderna ................................................................................................................................................ 7 
2. A Idade Média ................................................................................................................................................. 7 
3. Filão de Alexandria ....................................................................................................................................... 8 
Cinco Abordagens De Leitura Da Bíblia .............................................................................................................. 8 
1. Realidade Presente como "texto" primário ........................................................................................ 8 
2. Concordismo ................................................................................................................................................... 9 
3. Métodos Histórico-Críticos .................................................................................................................... 10 
4. Análise Estrutural ...................................................................................................................................... 11 
5. A Hermenêutica .......................................................................................................................................... 11 
I - DA SEMIÓTICA À HERMENÊUTICA .................................................................................................................. 13 
1. A linguagem como sistema e como acontecimento .......................................................................... 13 
2. A linguagem como texto e como escrita ................................................................................................ 14 
3. A leitura como produção de sentido. O ato hermenêutico ............................................................. 17 
4. Implicações da Leitura como Produção de Sentido .......................................................................... 20 
a. Transformação e Ocultamento ............................................................................................................. 20 
b. Dependência Textual ................................................................................................................................ 22 
c. Apropriação do Sentido ........................................................................................................................... 24 
d. A Função Hermenêutica da Distanciação ......................................................................................... 26 
II - PRAXIS E INTERPRETAÇÃO ............................................................................................................................... 28 
1. Do acontecimento ao texto .......................................................................................................................... 28 
1.1. Acontecimentos Fundantes ............................................................................................................... 29 
1.2. Cânon .......................................................................................................................................................... 32 
2. O "adiante" do texto ....................................................................................................................................... 36 
 
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3. A intratextualidade da Bíblia ...................................................................................................................... 38 
3.1. Novo sentido em Novas Totalizações ............................................................................................ 38 
3.2. A Bíblia: Um Texto Único .................................................................................................................... 40 
4. A pertença e pertinência da Bíblia ........................................................................................................... 42 
III - EXEGESE E EISEGESE .......................................................................................................................................... 47 
1. A releitura da Bíblia é parte de sua própria mensagem .................................................................. 47 
2. Atualização da Bíblia: iluminação da realidade? ................................................................................ 48 
3. Revelação terminada ou aberta? .............................................................................................................. 49 
4. A linguagem da fé ............................................................................................................................................ 53 
5. Recontextualização do querigma bíblico .............................................................................................. 54 
6. Sobre algumas objeções ............................................................................................................................... 55 
Conclusão ..................................................................................................................................................................... 56 
Vocabulário ...................................................................................................................................................................... 57 
 
 
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PRÓLOGO 
 
 
O ponto de partida deste ensaio é a convicção de a Bíblia não ser um depósito fechado 
que já "disse" tudo. É um texto que "diz"; no presente, mas que fala como texto; não como uma 
palavra difusa e existencial que somente tem o sentido genérico de provocar uma decisão 
minha. A tensão entre ser um texto fixado em um horizonte cultural que já não é o nosso, e ser 
uma palavra viva que pode mover a história, somente se resolve através de uma releitura 
frutífera. Isto equivale a enunciar o problema da hermenêutica bíblica. 
Em uma pequena obra anterior,1 fizemos um exercício de hermenêutica sobre o tema do 
êxodo. Ante sua boa aceitação, sobretudo na prática teológica dos países oprimidos, decidimos 
ampliar e aprofundar muitos aspectos, invertendo, contudo, a ordem: se ali fazíamos uma 
prática hermenêutica com poucos elementos teóricos, aqui queremos expor muito mais uma 
teoria hermenêutica com exemplos tomados de muitos temas, não de apenas um, como era o do 
êxodo. Se naquela ocasião tomamos um só tema, fizemo-lo precisamente para mostrar como, 
por meio de reinterpretação, acontece o desenvolvimento do sentido de um acontecimento 
convertido em matriz querigmática. Este é um aspecto do fenômeno hermenêutico que convém 
destacar. Se agora vamos ocupar-nos com diversos temas bíblicos, é para mostrar que aquele 
fenômeno é ubíquo e que expressa um elemento essencial da experiência de fé de Israel e da 
primeira comunidadecristã. 
Não vamos inventar nada. A hermenêutica bíblica é simplesmente um método de leitura 
da Bíblia que necessita ser explicitado e organizado. Necessita ser explicitado, porque sempre se 
o tem praticado, porém muitas vezes sem reconhecê-lo. Veremos que não existe leitura que não 
seja hermenêutica. Sabê-lo já é um grande passo. 
Esse método necessita ser organizado para que se saiba como usá-lo e dar-lhe le-
gitimidade. É um fato que, quando mais renovadora a vida cristã, conseqüentemente a teologia, 
tanto mais implicitamente se exercita a hermenêutica. É também um fato que esta renovação 
sofre resistência por uma prática e uma teologia tradicionais. Isto é muito mais visível nos 
contextos de dominação cultural, econômica, política e religiosa. Com isso já se levanta uma 
suspeita sobre quem é o verdadeiro destinatário da mensagem libertadora que a Bíblia propõe. 
Por isso há necessidade e urgência de possuir um instrumental teórico que nos permita 
exercitar uma releitura da Bíblia que nos possibilite explicitar a sua "reserva de sentido". 
Para muitos cristãos a Bíblia é antes um problema do que uma mensagem clara. Por sua 
origem distante de nosso tempo e espaço, com idéias antigas e muitas vezes díspares em seu 
longo trajeto literário, com um texto final freqüentemente difícil, o que contradiz a nitidez 
esperada de uma "mensagem", resulta pouco atraente na imediatez da práxis. Vale o que diz? É 
necessário que "diga" algo? Se é palavra de Deus, de que Deus trata? Do nosso ou dos hebreus? 
Surge uma infinidade de perguntas. 
 
1
 Liberación y libertad. Pautas hermenéuticas (Mundo Nuevo, Buenos Aires 1973; CEP, Lima 1978); em inglês: Exodus. A 
Hermeneutics of freedom (Orbis Book, N. York 1981); em português: Êxodo. Uma Hermenêutica da Liberdade (Ed. Paulinas, 
São Paulo 1981) 197 p. 
 
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INTRODUÇÃO 
 
"Hermenêutica" é o correlato do termo "interpretação", mais comum. Hermeneuo, em 
grego, é o equivalente de "interpretar". Em si, é a mesma realidade em dois vocábulos 
diferentes, grego o primeiro, latino o segundo. Porém, como este tornou-se um termo comum e, 
com isso, perdeu em precisão, prefere-se o termo "hermenêutica" para indicar sobretudo três 
aspectos que devem ser explicitados. 
Antes de tudo, o lugar privilegiado da operação hermenêutica é a interpretação dos 
textos. Mais adiante veremos que outras coisas implica esta afirmação. Em segundo lugar, 
supõe-se que o intérprete condiciona sua leitura por uma espécie de pré-compreensão, que 
surge do seu próprio contexto vital. Em terceiro lugar, o ato hermenêutico faz crescer o sentido 
do texto que se interpreta. Isto nem sempre se acha bem definido, mas será central no 
desenvolvimento do nosso trabalho. 
Cremos que toda interpretação, tanto de textos como de acontecimentos, inclui estes 
aspectos. Por conseguinte, nesta exposição não nos preocuparemos em distinguir os dois 
termos, nem os restringiremos aos textos. Sem com isso confundir as coisas, veremos que a 
interpretação dos textos supõe outro processo, a interpretação de determinadas práticas ou 
acontecimentos, e que a própria constituição dos textos se origina em uma experiência que é 
interpretada. Nisto vamos além da limitação que lhe dá, por exemplo, P. Ricoeur ao definir a 
hermenêutica como "a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação 
dos textos"2 Texto e acontecimento, ou práxis, já se condicionam mutuamente desde o ponto de 
vista hermenêutico. Isto se deve destacar justamente no caso da leitura da Bíblia que se faz a 
partir de uma prática da fé, e de uma Bíblia que remete para as grandes ações salvíficas de Deus. 
Com esta única frase assinalamos que a leitura dos textos bíblicos está circunscrita por dois 
momentos existenciais, ou seja, por dois pólos históricos. O texto está no meio. Isto já é uma 
maneira de valorizar a "centralidade" da Bíblia como texto, porém como texto alimentado em 
duas "vertentes" da vida. 
Não existe uma hermenêutica bíblica diferente de outra filosófica, sociológica, literária e 
outras. Há apenas uma hermenêutica geral, da qual existem muitas "expressões regionais."3 O 
método e o fenômeno coincidem em todos os casos. E verdade, contudo, que a hermenêutica 
bíblica tem uma característica talvez inédita por assumir textos de uma longa trajetória de 
criação e reelaboração, originados em um povo com um itinerário igualmente longo, unificado 
por uma concepção linear e teleológica da história que exige um grande trabalho interpretativo. 
Esta "fecundidade hermenêutica" será bem assinalada no decorrer deste estudo. 
 
HERMENÊUTICA FILOSÓFICA: TRÊS GRANDES FASES 
 
 
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Aqui não é o lugar para fazer uma história da hermenêutica geral, nem da hermenêutica 
bíblica em particular. Convém somente assinalar que a tematização da hermenêutica conheceu 
três momentos relevantes, que registramos em ordem temporal inversa com o fim de mostrar 
que aquilo que parece novo, de fato não o é tanto assim. 
 
1. A ERA MODERNA 
 
Em um contexto filosófico, o problema se coloca a partir de Schleiermacher (ca. 1800) e 
Dilthey (ca. 1900), passando por Heidegger, depois por Gadamer e Ricoeur, com derivações para 
o campo teológico (Fuchs, Ebeling, Bultmann e a expansão pós-bultmaniana). Nos dois 
primeiros é interessante constatar sua preocupação com o que está atrás do texto (a história, o 
autor), por aquilo e aquele que se expressa em um texto, não por aquilo que este diz. 
Heidegger passa da epistemologia à ontologia. O "ser" que interroga é um ser-em (no 
mundo), situado, o qual se pré-compreende no ato de interpretar. Há um "estar-em" o mundo4 
que condiciona a interpretação. Isto aponta contra a pretensão do sujeito de ser medida da 
objetividade, uma vez que à sua essência pertence o ser "habitante" deste mundo, o qual o 
circunscreve. Heidegger empreende o caminho até os fundamentos, porém não retorna à 
epistemologia. 
Gadamer destaca que o homem está dentro de uma tradição, e que o compreender é o 
resultado finito daquela tradição como forma de pertinência à história. A distância histórica 
entre o texto e o intérprete exige uma "fusão de horizontes", que é possível porque se está no 
interior da história. 
A contribuição de Ricoeur, que por sua vez relê Heidegger, consiste em haver um desvio 
pela lingüística para chegar a uma teoria frutífera da hermenêutica. As derivações para o campo 
teológico, acima apontadas, são anteriores a Ricoeur e estão impregnadas de uma 
supervalorização da Palavra bíblica como "acontecimento" presente (mais adiante falaremos, 
invertendo os termos, de um "acontecimento feito palavra." 
Estes pontos da reflexão sobre a hermenêutica contribuíram notavelmente para uma 
síntese filosófica que deixa suas pegadas na teologia. No entanto, não constituem novidade 
absoluta. 
 
2. A IDADE MÉDIA 
 
 
2
 P. Ricoeur "La tarea de la hermenéutica", em: Vários, Exégesis. Problemas de método y ejercicios de lectura (La Aurora, 
Buenos Aires 1978) 219 - 243 (cf. p. 219). 
3
 P. Ricoeur o evidencia, Cf. art. cit., p. 220; Idem, "Hermenéutica filosófica y hermenéutica bíblica", ib., 263-Z77 (cf. p. 263s). 
4
 Se o alemão não conhece a distinção lexical entre "ser" e "estar", o português o conhece. Por então, traduzir o Dasein com o 
insuportável "ser aí" quando pode ser traduzido por "estar' ou "estar aí"? 
 
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Com efeito, durante a longa tradição medieval era comum a discussão teológicasobre os 
sentidos da Escritura. Junto ao sentido literal, ou acima dele, situava-se um sentido espiritual 
que recebia designações diversas (alegórico, místico, messiânico, cristológico, etc.). Típica foi a 
disputa sobre os quatro sentidos da Bíblia: literal, alegórico (= cristológico), moral (chamado 
"tropológico", ou seja, relativo aos costumes) e escatológico (denominado "anagógico", que 
"conduz para"). Surgiu uma infinidade de teorias. O significativo desse fato é que o pano de 
fundo é precisamente a hermenêutica: o texto do Antigo Testamento não se esgota em sua 
primeira intenção, mas diz algo mais. 
 
3. FILÃO DE ALEXANDRIA 
 
Outra tentativa, mais antiga, de formalizar o problema hermenêutico foi a de Filão de 
Alexandria no século I a. C. Isto não somente porque interpretou as tradições hebréias a partir 
de um parâmetro grego (é típico o seu comentário a Gênesis, De Opificio Mundi, mas sobretudo 
pelo seu esforço em compreender o problema da linguagem.5 
Dissemos que estes três momentos pertencem a tantas outras tentativas de tematizar o 
problema da interpretação de textos (históricos, bíblicos) ou da existência humana como tal. 
Muito bem: nem sequer isto é novo. O processo hermenêutico - ainda que não tematizado - é 
constitutivo de toda tradição, religiosa ou não. A Bíblia mesma não se explica sem esse processo. 
Porém, é no rabinismo da época intertestamentária onde se pode detectar a tentativa de ler um 
segundo sentido sob o primeiro sentido de um texto, um sentido profundo por detrás do sentido 
simples das palavras (derash e peshat na terminologia aramáica da época).6 Esta questão 
reaparecerá mais adiante quando falarmos do Targum e do Midrash. 
Esta breve retomada histórica motiva-nos agora a entrar no tema com uma preocupação 
diretamente bíblica. 
CINCO ABORDAGENS DE LEITURA DA BÍBLIA 
 
A Bíblia tem sido objeto de diferentes abordagens, todas elas objetivando explorar seu 
sentido ou sua mensagem. Algumas abordagens expressam o "problema" da leitura atual da 
Bíblia, outros buscam penetrar em seu conteúdo. Apontamos cinco aproximações genéricas: 
 
1. REALIDADE PRESENTE COMO "TEXTO" PRIMÁRIO 
 
 
5
 Cf. KI, Otte, Das Sprachverständnis bei Philo von Alexandrien. Sprache als Mittel der Hermeneutik (Mohr, Tubinga 1968); I. 
Christiansen, Die Technik der allegorischen Auslegungswissenschaft bei Philo von Alexandrien (Mohr, Tubinga 1969). 
6
 Veja A. Díez Macho, "Deras y exégesis del Nuevo Testamento", Sefarad 35 (1975) 37-89; Id., EI Targum. lntroducción a las 
traducciones aramaicas de Ia Biblia (SCIC, Madrid 1979). 
 
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Frente ao texto da realidade presente, entendido como o "lugar teológico" privilegiado 
para descobrir o Deus que fala e interpela o homem, pode-se relegar a Bíblia a um segundo 
plano, entendendo-a como um texto "desatualizado". A realidade está tão carregada de 
significado que qualquer outro "significante" teológico resulta como secundário. Quando as 
opções estão claras, não faz falta alguma ir à Bíblia. 
Não é essa a atitude de muitos cristãos comprometidos com a luta revolucionária contra 
as estruturas injustas deste sistema em que somos obrigados a viver? Que mensagem "nova" 
lhes traz o Evangelho? A pergunta é sincera. Cremos, porém, que deixa entrever uma dificuldade 
metodológica para sair de uma leitura tradicional da Bíblia que a tem alienado da história real 
dos homens. O obstáculo é visível em alguns teólogos da libertação, que, mais do que outros, 
valorizam a práxis sócio-histórica como parâmetro da reflexão teológica. 
 
2. CONCORDISMO 
 
Outro caminho consiste em assumir a Bíblia como ela é, buscando nela 
"correspondências" entre as nossas situações e os eventos nela relatados. Quando há 
coincidências, parece que Deus está falando através do "evento arquetípico." 
Logo à primeira vista, esta aproximação à Bíblia se evidencia como concordista. Bem, o 
concordismo (tão difundido, sobretudo nas leituras fundamentalistas do texto sagrado) é 
duplamente negativo: a) Reduz a mensagem a situações que têm equivalente na experiência de 
Israel ou da primeira comunidade cristã, como se Deus não soubesse falar ou revelar-se de 
outra maneira. É um reducionismo teológico. b) O concordismo torna a mensagem superficial, 
colocando-a ao nível de faticidade externa, confundindo o que acontece com seu sentido. 
O mesmo perigo existe quando, em algumas teologias, se busca uma continuidade entre 
as idéias do Antigo ou do Novo Testamento e as de uma cultura específica, por exemplo asiática, 
africana ou latino-americana. O que acontece onde não se verificam tais coincidências culturais, 
pontes entre a antropologia hebréia e a grega? Para os gregos, Deus seria quase irrevelável. De 
imediato, descobre-se que nas tradições africanas e em algumas pré-colombianas há muitas 
semelhanças com a cosmovisão hebréia. Confunde-se o querigma com seu revestimento cultural 
ou sua "contextualização". 
É verdade que a busca por "sintonias" entre a Bíblia e o contexto atual (cultural, mas 
sobretudo sócio-histórico) pode ser um ponto de partida para explorar a validade daquela para 
o homem de hoje. O que realmente é empobrecedor é o concordismo histórico e científico, que 
consiste em querer confirmar a Bíblia com determinadas descobertas das ciências modernas 
(por exemplo, as grandes eras geológicas e os dias da criação do mundo) ou então equiparar 
fatos históricos da Bíblia e de hoje. No primeiro caso, tal confirmação não existe; em ambos se 
esvazia o texto sagrado de seu conteúdo querigmático, tornando inútil qualquer tentativa 
hermenêutica para explorar o sentido mais profundo do texto. E pensar que a leitura 
concordista da Bíblia tem sido tão comum, inclusive rio âmbito do fazer teológico sistemático! 
 
 
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3. MÉTODOS HISTÓRICO-CRÍTICOS 
 
Os métodos exegéticos formulados pela moderna crítica bíblica abriram novas 
perspectivas de abordar a Bíblia, na medida em que, ao redescobrirem o horizonte histórico e 
cultural no qual a Bíblia se originou, possibilitam uma melhor contextualização do sentido origi-
nal de cada passagem. A exegese crítica rompeu, em primeiro lugar, com as leituras ingênuas, 
"historicistas" e concordistas da Bíblia, as quais, conforme assinalamos no parágrafo anterior, 
despistam o sentido real do texto. Porém, amplia sobretudo a exploração dos textos. A crítica 
literária, a crítica das formas e dos gêneros, ou códigos literários, das tradições (orais e 
literárias), da redação, revolucionou os estudos bíblicos nas últimas décadas, sanando muitos 
defeitos da teologia cristã e, de forma indireta, gerando uma renovação em todos os campos da 
atividade teológica. 
Ao lado destes indiscutíveis benefícios que convertem os métodos exegéticos em 
conquista inestimável, o seu uso exagerado e às vezes reducionista comporta alguns riscos. Por 
um lado, mostram o "atrás" do texto atual, a arqueologia, deslocando a atenção do exegeta ou do 
leitor da Bíblia para um nível pré-canônico. O Pentateuco, por exemplo, é interpretado conforme 
as teologias "javista", "eloista", "deuteronomista", "sacerdotal" ou outras. Enfatiza-se o pré-texto. 
A partir da crítica literária, que permite identificar os passos da formação do texto, os outros 
métodos conduzem até as mais remotas origens e, através da história da redação, reconduzem 
até o estado presente de uma obra ou de parte dela. Este extenso arco, que sai do texto e volta 
até ele, é muito mais uma história do texto do que a exploração do seu sentido, ou pelo menos 
este se identifica com o sentido das camadas anteriores, caso nos sejam acessíveis. 
Não posso, sem embaraço, entender o Pentateucoà base do "javista"', etc., seja porque 
não sei quanto de sua obra foi mantida na redação atual, seja porque o autor do Pentateuco fez 
uma obra nova. O sentido, portanto, não está nos fragmentos usados, mas sim, na totalidade 
estruturada do novo. A crítica da redação reduz em parte este defeito. Porém, ao falar de 
"redator" em lugar de "autor" e ao designar-se como "história da redação", coloca mais ênfase na 
formação do texto do que no próprio texto. 
Por outro lado, a preocupação em fundamentar a verdade das ciências do espírito, tão 
própria da consciência ocidental desde alguns séculos,7 concentrou a atenção sobre o sentido 
literal, entendido como o sentido "histórico" (a própria designação de "método histórico-crítico" 
já o revela). Isto é uma forma de reducionismo.8 Por isso há o interesse pela intenção do 
"redator" deste ou daquele texto, o qual é contextualizado com todos os recursos possíveis. Este 
é importante, porque do contrário, conforme já assinalamos, desvirtua-se o processo por buscar 
o sentido na pré-redação. No caso de ênfase muito grande na intenção do autor ou do redator 
como sendo este o único sentido, corre-se o risco de enclausurar no passado a mensagem da 
Bíblia, entendida como "depósito" de um "sentido fechado", coincidente com o pensamento de 
seu redator ou então dos pré-redatores do texto atual. Cremos que a possibilidade significativa 
de um texto não termina aqui. Apesar de sua importância imprescindível, esta abordagem 
evidencia-se como parcial, especialmente para a teologia dos povos oprimidos. Por aqui é 
necessário passar, porém, não parar. 
 
07
 Para uma síntese do problema, cf. P. Ricoeur, "La tarea . . ." (cf. nota 2), p. 221ss. 
08
 B. S. Childs, "The sensus litteralis of Scripture", em: Vários, Beiträge Zur Alttestamentlichen Theologie: Festschrift. W. 
Zimmerli, (Vandenhoeck & Ruprecht, Gotinga 1977) p. 80-93, esp. 88ss. 
 
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4. ANÁLISE ESTRUTURAL 
 
Uma contribuição mais recente aos estudos bíblicos provém das ciências da linguagem, 
em particular da lingüística e da semiótica narrativa. A literatura e a ciência da linguagem 
sempre contribuíram positivamente para o conhecimento da Bíblia. O desenvolvimento recente 
da análise estrutural está sendo aplicado aos textos bíblicos com bons resultados. O estudo da 
chamada estrutura profunda, tanto narrativa (ações, funções) como discursiva (papéis te-
máticos, eixos de sentido) ajuda a "centrar" o sentido de um texto. A estrutura de superfície, 
comumente chamada estrutura literária é, por outro lado, ainda mais fecunda pois nos dá certas 
chaves de leitura que são resultantes da codificação do texto. Enriquecedor como é, esse método 
é apenas um ponto de partida na busca pelo sentido. Mais adiante veremos como esse método 
presta benefícios. Em si mesmo, porém, é reducionista ao fazer a abstração da "vida" do texto, 
sua história, seu contexto cultural, social ou religioso. 
 
5. A HERMENÊUTICA 
 
O quinto caminho para ter acesso ao querigma bíblico é o da hermenêutica. Esse é o 
tema do presente ensaio. Antes de tudo, porém, algumas considerações preliminares. 
Anteriormente fizemos alusão ao matiz do termo confrontado com o termo "interpretação". 
Mas, a noção bultmaniana de hermenêutica não é suficiente, nem o é a da "nova hermenêutica" 
de Fuchs, Ebeling ou seus continuadores.9 Que na leitura da Bíblia haja uma pré-compreensão 
(Voverständnis), isso é um dado comum e extremamente valioso para nós. Que seja um 
"acontecimento da linguagem" (Sprachereignis) ou da "palavra" (Wortereignis) em toda sua 
densidade presente, isso não a esgota nem é suficiente. Não se explicitam as condições objetivas 
da Bíblia enquanto linguagem, desvaloriza-se o referencial original do texto10 e se fomenta uma 
leitura individualista da Bíblia. 
Para compreender a hermenêutica em toda a sua riqueza e seu valor metodológico, é 
oportuno fazer um desvio pelas ciências da linguagem. Uma vez que a hermenêutica tem a ver 
com a interpretação de textos - ou de acontecimentos codificados na linguagem -, é mister 
situá-la sobre o fundamento da semiótica, a ciência dos signos, cuja expressão mais 
compreensiva é a linguagem em seu sentido restrito. Outra coincidência reside no fato de que 
tanto a hermenêutica como a semiótica preconizam a leitura como produção (e não repetição) 
de sentido. 
À primeira vista estamos diante de um paradoxo: A hermenêutica parece estar ligada à 
diacronia, ao devir do sentido, à semântica ou transformação do sentido das palavras ou dos 
 
09
 Para uma visão de conjunto, C. E. Braaten, History and Hermeneutics ( Lutterworth Press, Londres 1968) cap. VI; H. 
Kimmerle, "Hermeneutical Theory or Ontological Hermeneutics", em: History and Hermeneutics (Harper & Row , New York 
1967) 107-121; J. M. Robinson e E. Fuchs, La nuova ermeneutica (Paideia, Bréscia 1967). 
10
 O que alguns chamam "o parâmetro ontológico (= histórico)" . Cf. R. Lapointe, Les trois dimensions de l'herméneutique 
(Gabalda, Paris 1967) p. 89ss. 
 
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2
 
textos, ao passo que a semiótica concede um lugar privilegiado à sincronia, à simultaneidade, às 
leis estruturais que dirigem a realização da linguagem. Falamos, porém, de "desvio", não de 
fusão nem de identificação. São enfoques diametralmente opostos, porém, não contraditórios, 
mas sim, convergentes. Ao regressar da semiótica à hermenêutica, respeitando a 
individualidade de ambas, esta última se evidenciará solidamente fundamentada. 
Empreendemos, pois, um longo caminho, ao final do qual a hermenêutica bíblica se mostrará 
melhor iluminada. 
 
Concluímos esta introdução resumindo os enfoques ou acessos ao texto bíblico (como a 
qualquer obra literária) com o esquema seguinte (os números remetem aos parágrafos do texto; 
chamará a atenção a exclusão do nº 2): 
Abordagens de Leitura do Texto (Bíblico) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A figura indica que um texto pode ser examinado a partir diferentes ângulos, estudado 
com métodos diversos, que não se excluem mutuamente, mas que devem convergir para uma 
melhor compreensão da obra, em nosso caso a Bíblia. A única abordagem que não tem lugar 
aqui é a concordista (no 2), uma vez que não leva ao sentido, mas desvia dele. 
Métodos histórico-críticos 
(desde o texto até sua origem, 
e retorno ao texto) vd. n
o
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estrutura manifesta 
TEXTO 
componente Narrativo 
 
componente Discursivo 
 
 
 
estrutura profunda - vd. nº 4 
Hermenêutica vd. n
o 
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(não somente da realidade 
presente - vd. nº 1, mas a partir 
dela até o texto e retorno à 
realidade) 
 
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I - DA SEMIÓTICA À HERMENÊUTICA 
 
Nosso interesse está na hermenêutica, porém, como já anunciamos, esta deve inscrever-
se parcialmente no vasto campo da ciência dos signos. Textos e acontecimentos humanos são 
signos que necessitam de interpretação. Aqui não é o lugar para um desenvolvimento amplo 
sobre a lingüística ou sobre semiótica. Basta assinalar alguns fenômenos da linguagem que nos 
auxiliem a compreender o fenômeno hermenêutico. 
1. A LINGUAGEM COMO SISTEMA E COMO ACONTECIMENTO 
 
Na lingüística é comum fazer distinção entre "língua" (langue/language) e, "fala" 
(parole/speech). Aquela é o sistema de signos e leis que regulam a gramática e a sintaxe; uma 
espécie de "cânone" que estabelece as regras do sentido. Sua base é a estrutura que supõe 
diferenças, oposições e relações fechadas no interior de cada idioma, e que funcionam 
sincronicamente mais no nível inconsciente do que nonível reflexivo. Em determinado idioma, 
o repertório de signos lingüísticos é finito e fechado (há um limite de combinações). Subjacente 
a isso, no entanto, há uma polissemia potencial: "volume", por exemplo, faz pensar em um livro 
ou então em uma medida de capacidade na geometria. "Castanha" é um fruto ou uma cor. Em 
todos os idiomas há um determinado número de vocábulos polissêmicos. 
E não somente isso: mesmo os "monossêmicos", que são maioria, não dizem nada do 
jeito que estão codificados em um dicionário. Também uma frase que tem sentido lingüístico ( = 
o sentido é a relação entre significante - o signo ou vocábulo - e o significado ou conteúdo) pode 
ser equívoca quanto ao seu referencial extralingüístico. "Jesus Cristo nos salva" é uma frase 
correta, tem sentido gramatical e existencial, porém é equívoca em seu referencial (de que nos 
salva? quando? etc.). Falta algo que feche o sentido para uma determinada direção. Assim é a 
língua enquanto "competência", como dizem os lingüistas. 
Esse sistema de signos, no entanto, deve "ser ativado" quando o usamos para dizer algo 
sobre algo. Aí estamos já no momento da "fala", que pode ser entendido como o "acontecimento" 
da língua. E o ato que realiza as possibilidades possíveis através do sistema de signos. Três 
fatores auxiliam para "fechar o sentido" em uma única direção: 
 
a) O emissor ou locutor que seleciona os signos (palavras, frases, códigos ou gêneros literários 
possíveis em determinado idioma) que veicularão a mensagem; os signos somente se 
relacionam entre si, formando uma estrutura; por isso é fundamental identificá-la para 
poder decodificar uma mensagem. Disto advém a importância de toda a análise estrutural 
para a exegese bíblica como para a exegese de qualquer texto. 
 
b) Um receptor ou interlocutor determinado, a quem se dirige a mensagem codificada em uma 
determinada forma, e que saiba decifrá-la, operação instantânea que é uma das maravilhas 
da linguagem humana. 
 
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c) Um contexto ou horizonte de compreensão comum ao emissor e ao receptor, que permita 
fazer "coincidir" a referência ou denotação, aquilo sobre o que versa a mensagem. Sem esse 
contexto comum (lingüístico, cultural, social, geográfico e de tantas outras dimensões da 
realidade humana), a linguagem permanece sendo polissêmica. 
 
Pois bem, no ato do discurso - no "ato de fala" - deve haver clausura atual da polissemia 
potencial das palavras ou das frases. Do contrário é impossível falar, a não ser que se mantenha 
uma polissemia deliberada, como na poesia ou na linguagem simbólica. Mesmo neste caso, o 
contexto - e em todo caso o diálogo entre os interlocutores - ajuda a "fechar" o sentido de uma 
palavra ou de uma proposição. Do contrário, o discurso já não é mais um "dizer algo sobre algo". 
E esta é a intenção de quem fala, escreve uma carta a um amigo ou relata uma história a seus 
ouvintes. 
No "acontecimento da fala", o receptor da mensagem realiza um processo de assimilação 
ou captação do código lingüístico selecionado pelo emissor para sua comunicação. Tal como 
acontece na música, assim também se verifica na linguagem: a mensagem vem dada em uma 
"chave" ou código que o ouvinte identifica de imediato. De outro jeito não haveria compreensão. 
Confundir os códigos despista totalmente o direcionamento da mensagem. Da mesma forma 
como é necessário sintonizar a freqüência de onda num rádio, a mensagem também deve estar 
"em sintonia". 
Voltaremos a essa questão ao nos referirmos ao processo hermenêutico propriamente 
dito. Por ora recordemos somente que a leitura tradicional da Bíblia, ao interpretar todos os 
textos em "chave" histórica, tem falhado num ponto essencial. Em nenhuma outra literatura se 
cometeu erros tão elementares. É como se alguém escutasse todas as composições musicais em 
uma única chave ou segundo o sentido de um único gênero! Por isso votamos a assinalar uma 
vez mais a importância das ciências da linguagem - sobretudo da "semiótica narrativa", como 
veremos - para afirmar a sua validade para a compreensão de textos bíblicos. 
2. A LINGUAGEM COMO TEXTO E COMO ESCRITA 
 
Da língua à fala, da competência à sua atualização, do sistema ao uso, tem lugar uma 
primeira distanciação, que marca o "fechamento" do sentido. Tal "distância" não é temporal nem 
espacial, é lógica. 
A linguagem, todavia, não termina nesta etapa. Com efeito, produz-se uma "nova 
distanciação" (que chamaremos de segunda), quando o discurso se cristaliza em um "texto" 
transmitido. Entendemos este vocábulo no seu sentido amplo, uma vez que um texto também 
pode ser oral. Um mito ou uma canção, por exemplo, costumam ser transmitidos de geração em 
geração por via oral, antes de serem fixados por escrito. Quase todas as narrações bíblicas foram 
de alguma forma tradições orais. E já eram "textos". Segundo a etimologia, texto é um "tecido", 
uma trama em que os elementos da língua (palavras, frases, unidades literárias e outros 
elementos) estão organizados segundo funções estruturadas que, como tais, produzem um 
sentido. 
 
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As leis lingüísticas da frase se repetem e se ampliam a nível de relato. Efetivamente há 
uma gramática e um sintaxe do relato.11 Aqui sublinhe-se novamente a estrutura com suas 
"diferenças" e relações e com um caráter de totalidade organizada. 
Um texto é algo estruturado e acabado. Tem limites e relações internas. Esta condição do 
texto tem conseqüências dignas de atenção, a primeira das quais é sua capacidade de dar 
sentido por aquilo que é, como codificação de uma mensagem. Em segundo lugar, o texto oral ou 
escrito se abre para uma nova compreensão graças a esta segunda distanciação já assinalada, 
que acontece entre a "fala" ou ato de discurso e a inscrição do sentido neste ou naquele texto. 
Esta distância tem lugar nos três fatores que antes contribuíam para o fechamento do sentido e 
agora contribuem para abri-lo. Vamos enumerá-los e explicá-los na mesma ordem: 
 
a) No texto desaparece o emissor original. O autor (se falamos de escritura) "morre" no próprio 
ato de codificar sua mensagem. A inscrição do sentido em um relato ou texto qualquer é um 
ato criativo, no qual, para dizê-lo simbolicamente, deixa-se a vida. Avaliar as conseqüências 
deste fenômeno é significativo para a hermenêutica que faz o desvio pela lingüística e 
invalida as tentativas de recuperar uma antiga formulação (veja Schleiermacher) ou o 
esforço dos métodos histórico-críticos de recuperar e fazer reviver o autor de um texto. 
 
b) Também o primeiro "receptor" ou interlocutor não está presente. Quem lê um texto escrito 
ou escuta um relato tradicional, um mito ou uma passagem bíblica, não é o seu primeiro 
destinatário (= narratário no léxico da semiótica). Esta troca dos destinatários da mensagem 
é muito mais evidente nos textos religiosos, míticos ou não, que pretendem ter uma 
significação permanente ao longo de gerações e séculos. 
 
c) Pela mesma razão, desvanece-se o horizonte do primeiro discurso, seja porque o contexto 
cultural ou histórico não é o mesmo, seja porque os destinatários atuais que recebem a 
mensagem têm um outro "mundo" de interesses, preocupações, cultura, etc. 
 
Estes três aspectos (muito assinalados por P. Ricoeur em seus últimos trabalhos de 
hermenêutica),12 tomados em conjunto, contribuem para compreender o processo 
hermenêutico. Com efeito, a) o autor desaparece como entidade que "fala", e a quem pode-se 
perguntar pelo sentido daquilo que "diz". Em conseqüência, o narrador não é uma pessoa de 
carne e osso, mas sim, um pressuposto lingüístico. Alguém narra ou escreve, porém somente no 
texto é possível reconhecê-lo. Essa ausência física é riqueza semântica.O fechamento do sentido 
imposto pelo locutor, modifica-se agora em abertura do sentido. O narrador é o próprio texto, 
não alguém de fora a quem se pudesse pedir explicações. Esta concentração no texto permite 
explorar as suas possibilidades significativas enquanto texto. b) Bem, o surgimento de um novo 
 
11
 É um elemento muito enfatizado na semiótica narrativa, analisado em detalhe por todos os que investigam a análise 
estrutural do relato (R. Barthes, T. Todorov, J. Kristeva, etc.). Para o caso da Bíblia, veja, por exemplo, J. Calloud, Structural 
Analysis of Narrative (Fortress Press, Filadélfia 1976). 
12
 P. Ricoeur, "Événement et sens", Archivio di Filosofia (1971) 15-34; Id., "La función hermenéutica de la distanciación", em: 
Vários, Exégesis (cf. nota 2), pp. 245-261, esp. p. 247ss. 
 
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receptor da mensagem, por sua vez situado em um novo horizonte de compreensão, distancia 
ainda mais o texto de seu marco original e do contato com seu autor. Quando alguém fala, 
transmite uma mensagem (linguagem locucional, como se diz), fá-lo, contudo, com força ou 
intensidade determinadas (linguagem inlocucional expressada pela entonação, pelos gestos, 
etc.) e com um efeito que faz parte da mensagem (linguagem perlocucional).13 Pois bem, na 
leitura de um texto perdem-se os dois últimos aspectos, pois, em ordem decrescente, mais 
dificilmente podem ser inscritos em um código. 
Por isso não é a mesma coisa ler ou escutar como primeiro destinatário ou como 
segundo. Nem mesmo escutar uma gravação repete a primeira enunciação; mesmo que não 
variem os destinatários, o contexto ao menos já não seria o mesmo e o texto produziria efeitos-
de-sentido diferentes. Por sua vez, quando "escutamos'' um texto, aquele que fala é o texto e não 
aquele que o lê em voz alta para os outros. Este é apenas mais um dos destinatários! Tampouco 
fala o autor, pois esse já não está presente. Sua presença é tão aparente como dizer que o sol 
gira em torno da terra. Uma vez mais voltamos à autonomia do texto, que condicionará a 
abertura hermenêutica do ato de ler. 
Mas o que acontece então? Substitui-se o horizonte finito do autor pela infinidade 
textual. O relato se abre novamente a uma polissemia, que não somente é potencial como ao 
nível da "língua", mas sim potenciada por aquela rede de significado que é a obra. Por essa aber-
tura do texto introduz-se o novo destinatário com seu próprio "mundo". 
Podemos entender que uma carta de Paulo dirigida a destinatários concretos 
(colossenses, romanos, etc.), onde o autor e seus leitores se referiam a um problema específico, 
teve que trocar de perspectiva quando se universalizou na igreja primitiva. Os novos receptores 
do texto não estavam delimitados pela leitura prévia dos cristãos desta ou daquela igreja, nem 
podiam perguntar a Paulo o que quis dizer nesta ou naquela frase. 
Todo texto está aberto a muitas leituras, nenhuma das quais é repetição da outra. 
Quanto maior a distância em relação ao autor, tanto maior dimensão adquire a releitura de um 
texto. Inversamente, quanto maior é a riqueza semântica de um relato, mais distante está o 
autor da mente do intérprete. 
Por essa razão, os textos sagrados ou os relatos míticos costumam ser anônimos. Isto 
não somente por às vezes serem criação progressiva de uma comunidade, mas sobretudo 
porque têm mais significação por aquilo que dizem do que por aquele que o diz. Parece que sua 
carga de sentido é mais densa quanto menos se sabe sobre seus autores. Assim, para o caso da 
Bíblia, não temos notícia de nenhum autor dos livros do Antigo Testamento e de poucos do 
Novo Testamento.14 
É próprio (porém não exclusivo) dos textos religiosos a "atribuição" posterior a uma 
determinada figura (p: ex.: os Salmos de Davi, o Pentateuco de Moisés, a Sabedoria de Salomão, 
algumas epístolas do Novo Testamento a Paulo, etc.), quando esta já é significativa por alguma 
razão. Trata-se de um acontecimento hermenêutico que será esclarecido no decorrer do 
 
13
 J. L. Austin, How to do Things with Words (Harvard Univ. Press, Mass 1975); J, R. Searle, An Essay in the Philosophy of 
Language (CUP, Cambridge 1969) 
14
 O livro de Siraque ou Eclesiástico leva o nome de seu autor, mas no texto grego (da LXX) é Jesus, filho de Siraque (50.27; 
51.30), no hebraico (canônico) é seu filho Simeão. O prólogo literário do tradutor diz ser do seu avó Jesus (v. 6). Essa dupla 
tradição é significativa. 
 
 
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desenvolvimento do nosso tema. Outra faceta do mesmo fenômeno é a ampliação de um texto 
de um determinado autor através de sucessivas releituras, sem que na tradição se modifique 
sua autoria. Este é o caso do Evangelho de Mateus e outros escritos do Novo Testamento. 
Mateus é autor do núcleo aramaico primitivo; a forma atual do primeiro evangelho é uma 
reelaboração subseqüente. Na tradição, porém, continua sendo o texto de Mateus (sobre essa 
questão, veja um pouco mais adiante, em I, 3, b). 
Para concluir esta parte, resumimos o tema com uma figura que retoma aspectos 
centrais do que tratamos: 
língua fala texto/escritura 
fonemas/termos 
 
sistemas 
 
frase 
 
uso/"acontecimento" 
relato 
 
códigos 
narrativos/estrutura 
repertório finito e fechado 
 
repertório infinito 
nome diz algo sobre algo para alguém diz algo sobre algo 
a uma infinidade de 
narradores 
 
atemporal passageiro Permanente 
 
polissemia clausura/fechamento 
 
polissemia 
 
 
1ª distanciação 
 
 
2ª distanciação 
 
 
3. A LEITURA COMO PRODUÇÃO DE SENTIDO. O ATO HERMENÊUTICO 
 
Na semiótica diz-se que o sentido não é algo "objetivo" e palpável que está no texto em 
estado puro, de modo que o exegeta pudesse encontrá-lo graças a sua habilidade técnica e seus 
recursos filológicos e históricos. Se fosse assim, bastaria descobrir o sentido de um texto. Assim, 
 
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quando há muitas interpretações, todas menos uma estariam erradas. A decisão sobre qual é a 
verdadeira viria de uma "autoridade" extratextual. 
Em última instância, este esquema supõe que o sentido de um texto coincide com a 
intenção de seu autor e que o leitor atual repetirá a leitura que fizeram os primeiros 
destinatários. E assim nos atolamos no "historicismo" exegético. E o que é pior, a mensagem 
resulta atrofiada e não pode desprender-se em novas leituras criativas. Talvez até deixe de ser 
mensagem. 
O processo da reinterpretação é, sem dúvida, tão pujante que as tentativas de "fixar" o 
sentido de um texto bíblico acabaram terminando em fórmulas que, com o tempo, por sua vez 
necessitam ser relidas, o que significa que a pretensão de fechar o sentido de um texto é vã e 
irreal. 
De fato, toda leitura é produção de um discurso e, portanto, de um sentido, a partir do 
texto. Não se lê um sentido, mas sim um texto, um relato numa operação que coloca em ação a 
competência deste, estudada pela semiótica. Desta maneira, o texto se abre para diferentes 
organizações seletivas. Por um lado, a mesma análise estrutural do relato (programa narrativo: 
ações, funções) e do discurso (eixos semânticos, quadrado semiótico, verificação, etc.15, 
enquanto organização de um sentido em meio a outras possibilidades das palavras ou temas de 
uma determinada sociedade ou cosmovisão não dá resultados matemáticos senão que se 
diferencia segundo distintas combinações efetuadas. Acontece que a linguagem mesma combina 
tantos elementos sêmicos que nenhuma análise pode manifestá-los por completo. 
Como já assinala J. Greimas, a pluralidade de leituras sugeridas pelaprática semiótica 
não se deve ao fato de que um texto seja ambíguo, mas sim que é suscetível de dizer muitas 
coisas ao mesmo tempo.16 E isto apesar de que a análise estrutural não é propriamente a 
interpretação do texto, mas tão-somente uma etapa preparatória. 
Por isso acontecem, por outro lado, no nível propriamente interpretativo, leituras que se 
fazem a partir de diversas disciplinas. Um mesmo texto pode ter uma leitura fenomenológica, 
histórica, sociológica, psicológica, literária, teológica e outras mais. Cada uma das leituras do 
mesmo relato é uma produção de um discurso a partir desse texto. Isso é possível porque o 
discurso coloca em jogo uma pluralidade de códigos que cada leitura seleciona e organiza. Por 
sua vez, as leituras feitas a partir daqueles níveis não são exclusivas de um intérprete que 
descobre o sentido. Cada leitura é uma produção de sentido. Já sabemos que o autor "morre" em 
benefício daquilo que ele cria como texto: este inscreve em si mesmo - enquanto estrutura de 
códigos - a instância de produção e a instância de leitura e interpretação. Em outras palavras, 
faz-se polissêmico, mesmo olhando somente a partir do ponto de vista da semiótica. Tem várias 
possibilidades de sentido, que afloram quando se o lê selecionando os códigos nele 
armazenados. Se tiver experiência na leitura de textos, o leitor pode tomar consciência de que o 
fenômeno da leitura é assim. 
Porém, para completar nossas observações, poderíamos exemplificá-las com uma 
passagem bíblica. Tomemos por exemplo Jo. 1.35-51. Quanto se tem dito sobre este texto nos 
 
15
 Para estes termos, cf. Grupo de Entrevernes Análisis semiófico de los textos. Introducción-Teoria-Práctica (Cristiandad, 
Madrid 1982); Id., Signos y parábolas. Semiótica y texto evangélico. (ib. 1979); Vários, Iniciación en el análisis estructural 
(Verbo Divino, Estella 1980). 
16
 Cf. Signos y parábolas (nota anterior) p. 236. 
 
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comentários exegéticos e quanta inspiração tem recebido a prática cristã do seguimento a Jesus! 
Sempre se pode voltar ao texto e uma ou outra vez produzir sentido. Uma maneira de fazê-lo 
consiste em identificar os diferentes códigos que se entrecruzam nesta perícope. Tomemos o 
relato em sua forma atual e isolemos os papéis temáticos à medida em que vão entrando em 
cena. "No dia seguinte" liga com o relato anterior (v. 29, que, por sua vez, remete ao "quando" do 
v. 19) e se repete no v. 43 para então completar-se com a expressão "três dias depois" de 2.1. 
Este código, que parece artificial, vai tecendo uma teologia da primeira semana da nova criação, 
na qual o Logos é preexistente (Jo. 1.1) como a Palavra na criação do mundo (Gn. 1.1 na releitura 
do Targum). Este tema não está dito em uma fórmula assim como o acabamos de descrever, 
porém através da estrutura do relato; estrutura esta que, por sua vez, se combina com os outros 
códigos de maneira tal que mutuamente se dão sentido. Este é o jogo do relato. 
Logo segue uma situação de encontro humano: João encontra dois discípulos seus (v. 
35b). Estes logo se encontram com Jesus (v. 39). Um deles, André, encontra-se com seu irmão 
Simão (v. 41a) e lhe testemunha que "encontramos o Messias" (v. 41 b). No v. 43 começa uma 
nova série de encontros: Jesus com Felipe, logo em seguida, este com Natanael e lhe diz: 
"encontramos aquele de quem escreveram... ," (v. 45). No final de cada série, o "encontrar" oscila 
entre o físico e o espiritual, sendo enfatizado o segundo com o sentido de "reconhecer" (o 
Messias, aquele de quem escreveram Moisés...). Tal "encontro" somente é possível em um plano 
superior. 
Muito bem, este deslocamento também se dá com outros códigos. Notável é o visualizar 
(ver, fixar-se) que; a partir de um simples plano corporal (vv. 36, 38, 39 x 2, 42, 46, 47, 50) até 
outro mais profundo (w. 48, 50 "verás coisas maiores"), termina com um "ver" teofânico (v. 51 ). 
É evidente que este motivo, nas seqüências seguintes, liga-se com o da aceitação dos sinais (cf. 
2.1 1 e os outros relatos de milagres). Os sinais efetivamente "são vistos". Este "ver" joanino 
remete à fé, não em sua dimensão física (cf. v. 50 e seu correlato de 20.29),17 mas sim porque a 
encarnação da Palavra mediatiza as realidades da fé através das coisas humanas. Por isso há em 
João tanta relevância no tema da fé no Enviado. 
No nosso relato é visível também o código onomástico (há abundância de nomes 
próprios), em especial da dupla menção de "Jesus", definido como o filho de José, o de Nazaré (v. 
45). Bem, no texto total do quarto evangelho, os personagens vão recebendo títulos ou 
identificações de valor teológico. Assim temos, portanto, o código das identificações, 
provavelmente o mais significativo neste lugar. Jesus é "cordeiro de Deus" (v. 36), "mestre" (v. 
38, que mantém a forma hebraica rabbi para inseri-lo na tradição magisterial judaica e não 
confundi-lo com um didáskalos grego), "messias" (v. 41 ), "aquele de quem escreveram Moisés, 
na Lei, e os profetas (v. 45), "filho de Deus/ rei de Israel" (v. 49), "Filho do homem" (v. 51 ). 
Este número de seis identificações, que preparam para relatos posteriores, já é im-
portante como simples registro. Isso, porém, não é tudo. Além disso estão dispostos nos lugares 
certos. Abrem e fecham o relato total dos w. 35-51. Cada série, presidida pela referência 
temporal "no dia seguinte" (w. 35-42 e 43-51 ), contém três identificações de Jesus e outra de 
um agente humano: Simão = Cefas/pedra, na primeira; Natanael = verdadeiro israelita, na 
segunda (w. 41 e 47). Na segunda série, as identificações de Jesus se contrabalançam com o 
"sentido" do AT e de Natanael como verdadeiro israelita, referência evidente ao "sentido" de 
Israel. 
 
17
 Na estrutura atual do quarto evangelho, Jo. 1-2 tem sua correlação em 20-21. 
 
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Por fim, existe um código de movimento (ir, vir, seguir: w. 37, 38, 39, 40, 43, 46) que 
remarca o seguimento a Jesus e que, por sua vez, semanticamente se contrapõe, porém 
teologicamente se complementa como o "ficar/permanecer" do v. 39. Este em outro nível, 
prepara o ménein ou "permanecer" em Jesus, tão tipicamente joanino. 
Pode-se, todavia, explorar ainda mais este relato tão bem "tecido" por diferentes códigos 
e tão fecundo à luz da semiótica. Manifesta-se aí a aventura de ler um texto como produção 
inesgotável de sentido e, portanto, como recriação constante da mensagem. Na parte II 
abordaremos outros caminhos de exploração da mensagem de um texto reforçados pela 
contribuição da semiótica. 
4. IMPLICAÇÕES DA LEITURA COMO PRODUÇÃO DE SENTIDO 
 
Nesta relação entre semiótica e hermenêutica, entre força do texto e força da vida, 
verificam-se certos efeitos e certas exigências que convém expor para tomar melhor consciência 
dos alcances de uma leitura interpretativa dos textos bíblicos: 
 
a. TRANSFORMAÇÃO E OCULTAMENTO 
 
Em todo texto há um "adiante", esse mundo de sentidos que se abre em virtude de sua 
polissemia, potenciada por sua própria condição de estrutura lingüística e, como sabemos, pela 
"morte" de seu autor. O sentido está no texto e não na mente de seu autor. No texto, por sua vez, 
não está como entidade separável, mas sim "codificado" em um sistema de signos que 
constituem o relato e que "dizem algo sobre algo" por sua manifestação como determinado 
discurso. 
Em boa parte, isto resume os pontos anteriores. Agora queremos destacar até que ponto 
cada leitura de um texto que "diz" transforma aquilo que diz e aquilo sobre o que diz, ocultando 
precisamente esta transformação. Vamos tematizá-lo com os relatos intituladosde "Servo de 
Javé", de Dêutero-Isaías. As passagens em questão são Is. 42.1 -7; 49.1-9a; 50-4-1 1; 52.13-
53.12. 
Pressuposta esta uma independência original destes poemas com relação à composição 
de Isaías 40-55 (Dêutero-Isaías), e também da formação do atual "livro" de Isaías 1-66, é 
possível neles discernir um personagem de traços reais (de rei), que recebe de Deus a missão de 
libertar o povo de Israel cativa entre as nações. É perseguido e humilhado até a morte, ao final, 
porém, é exaltado. Seu sofrimento era vicário, uma vez que "eram nossos os males que levava, 
nossas as dores que suportava (53.4), por nossas transgressões foi entregue à morte (v. 8), 
carregou o pecado de muitos (v. 12)". O discurso é portador de um sentido que resulta da 
organização de códigos profundos (ações e funções) e de superfície (símbolos, recursos 
estilísticos, gêneros literários, etc.). O texto dá sentido pela disposição de tais significantes 
lingüísticos que remetem a significados que permanecem no interior do próprio relato, ainda 
 
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que não mais tenhamos notícias sobre seu "referente" extralingüístico (Joaquin? Zorobabel? O 
próprio Israel? Algum profeta? Um sábio?).18 
Os métodos críticos da exegese bíblica nos ajudam a identificar, um possível referente 
para estes poemas, porém não está aí a chave de leitura. É apenas uma tentativa de recuperar o 
"atrás" do texto, a situação de vida que o originou como primeira produção de sentido. 
Importante como é a leitura "histórica" destes textos, permanecer nela é um risco que se deve 
evitar. O que se pretende, na verdade, é reduzir o sentido à sua primeira produção, e isso esgota 
o texto no momento em que começa a mostrar sua polissemia. E o mais sério é atrelar-se a uma 
forma de "historicismo" do qual logo surgem os concordismos exegéticos que, sob pretexto 
ingênuo de destacar a relevância da Palavra de Deus para o presente, imobilizam-na em sua 
primeira referência. Dessa maneira, práticas tão opostas como a exegese crítica e o concordismo 
fundem-se na tentativa de cristalizar o sentido dos textos. Com isso, por fim, privilegia-se o 
"referente" (fenômeno extra-língüístico) em detrimento do significado do próprio texto. Bem, é 
deste e não daquele que emanam as releituras. Eis aqui um princípio importante que novamente 
conjuga a semiótica com a hermenêutica. O "referente" de um texto é um fechamento de sentido 
no próprio momento de sua produção. Um texto, como toda linguagem em ação, somente pode 
comunicar uma mensagem através de alguma forma de clausura que lhe imprime justamente o 
"referente" extralingüístico, aquilo a que o texto se refere para dizer algo a alguém. Em 
contraposição, o próprio texto, enquanto estruturação, de significantes e significados que geram 
sentido, é polissêmico e demonstra uma tendência muito forte a não reter o "referente" histó-
rico, sobretudo nos textos religiosos e naqueles que são interpretados uma e outra vez. Aquele 
acaba sendo um peso que necessita ser lançado fora. 
Cremos que este é justamente o caso dos cânticos do "Servo" dêutero-isaiânico. Por que 
não se reteve o personagem histórico a que se referiram alguma vez? Por que há necessidade de 
identificá-lo através de tantas hipóteses já conhecidas para compreender estes magníficos 
relatos? Hipóteses que, por seu lado, talvez nos remetem ao estado pré-redacional que não 
constitui o nível do texto querigmático atual. Saber se a figura do "Servo" era Joaquin ou algum 
outro personagem apenas esclareceria a gênese do texto, não, porém, o texto mesmo. É um erro 
de perspectiva. 
O próprio fato de que os poemas em questão não indicam o referente de maneira 
explícita deixa mais aberta a própria interpretação. A própria expressão poética e simbólica 
aponta para essa direção. Ainda que a favoreça, esta não é a única condição da polissemia do 
sentido. Os relatos são polissêmicos por sua própria estrutura lingüística. Assim projetam-se até 
o "adiante", reclamando a manifestação de um excesso-de-sentido. Por isso sua leitura será uma 
produção de sentido, nunca uma repetição do primeiro sentido. Isto é fundamental para 
entender o processo hermenêutico. Não é estranho, então, que nossos cânticos tenham sido 
relidos por gerações sucessivas em normas tão diferentes. Vamos apontar quatro etapas: 
 
1. A recensão canônica já tem alguma marca de atualização do referente como recurso para 
fechar o sentido dos poemas. Em Isaías 49.3, o texto hebraico transmitido identifica o Servo com 
Israel ("E tu, Israel, és meu servo"). A nível de releitura não importa muito a contradição interna 
com os vv. 5-6, que mencionam seu envio para Israel. Para a crítica literária, trata-se de uma 
 
18
 Cf. ultimamente P. Grelot, Les poèmes du Serviteur. De la lecture critique à I'herméneutique (Cerf, Paris 1981) 67-73. 
 
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"glosa incoerente". Hermeneuticamente, essa glosa é rica como transposição do sentido a um 
referente atualizado pelas necessidades da comunidade que transmitiu o texto. 
 
2. Na Septuaginta (LXX) predomina a interpretação coletiva: os poemas são constantemente 
referidos ao Israel perseguido da diáspora, deixando também claro a sua missão salvífica.19 
 
3. O Novo Testamento novamente retoma a interpretação individual, favorecida pela própria 
simbologia dos textos, que falam de uma pessoa singular (isso não significa, digamo-lo uma vez 
mais, que os poemas se refiram a um indivíduo). Dessa forma, não é difícil passar à leitura 
cristológica. Essa releitura à luz do fato Crístico tem sido tão forte que impregna muitas páginas 
do Novo Testamento.20 
 
4. O Targum de Jonatã (século II d, C.) retoma a exegese coletiva ( = Israel ) para Isaías 49.7; 
aplica ao Messias o oráculo de Isaías 42.l ss, ao profeta Isaías o texto do capítulo 50.4-11. Evita, 
no entanto, fazer qualquer alusão ao Messias no quarto poema (Is 52.13-53.12). 
 
Como foram possíveis tantas releituras de um mesmo texto sagrado, se de alguma 
maneira o texto não estava aberto? Pela mesma razão nós podemos relê-lo sem estar limitados 
pela leitura cristológica d Novo Testamento, entendida como definitiva e única para nós. O" ' 
próprio Paulo, no seu tempo, estendeu a si mesmo, como pregador perseguido, a figura do 
"Servo", luz das nações (GI 1.15; em um dos relatos lucânicos sobre a vocação de Paulo, Atos 
26.18; e no episódio de Antioquia, At 13.47). Também hoje existem situações de pessoas, grupos 
ou povos que reclamam um nova interpretação destes poemas, que tão bem trasladam a 
presença de Deus e a confiança de quem trabalha em seu serviço. Todas estas releituras do texto 
dêutero-isaiânico não estão condicionadas pelo primeiro referente do relato, inexoravelmente 
perdido, mas pelo próprio texto em virtude se sua polissemia literária codificada. 
 
b. DEPENDÊNCIA TEXTUAL 
 
O que chama a atenção em toda interpretação de um texto é o fato de que ela necessita 
partir do texto. Não pode aparecer como um adendo arbitrário e acidental; ela pretende ser 
leitura do texto transmitido. Quando Jesus ressuscitou, dirigiu-se aos discípulos de Emaús e, 
para censurá-los ("Ó insensatos e lentos de coração para crer tudo o que os profetas 
anunciaram. Não era necessário que o Messias sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?" 
 
19
 Por exemplo, Is. 49.6b diz assim na LXX: "E eis que te estabeleci como luz das nações, para que sejas a salvação até os 
confins da terra" (o grifado marca o desvio em relação ao texto hebraico, modificando profundamente seu sentido). Cf. P. 
Grelot, op. cit., p. 82ss. 
20
 Lista de passagens e comentário à luzdo texto hebraico, em P. Grelot, op. cit., p. 138-189 (encontra no Novo Testamento 
reminiscências, imitações, citações diretas; os textos onde se retoma os Cânticos são: Paulo, Hebreus, 1 Pedro, Lucas e Atos, 
Mateus, João e (provavelmente) Marcos. 
 
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Lucas 24.25s), remete a um texto, o qual está interpretando. Muito bem, não existe nenhum 
relato profético do Antigo Testamento que contenha o referente messiânico que, segundo Lucas, 
Jesus afirma. Por outro lado, é evidente sua alusão aos cânticos do "Servo" de Isaías 40.45 (cf. 
também o v. 46 "assim está escrito que o Messias padeceria e ressuscitaria dentre os mortos ao 
terceiro dia"). É difícil crer que Lucas se faça eco da tradição rabínica sobre o Messias filho de 
José, Messias efraimita que, segundo alguns textos, deveria padecer.21 Evidencia-se, pois, clara-
mente a dependência de Lucas em relação às tradições messiânicas davídicas (nascimento de 
Jesus em Belém; referências a Davi, Lc. 1. 32,69; 3.31; 20.41-44; teologia de Jerusalém). Por 
outro lado, esse recurso hipotético não é necessário. Para ser mais exato, a citação lucânica 
mostra um "remendo" ao texto profético que é efeito reversível tanto do fenômeno lingüístico 
da polissemia (cf. parágrafo anterior) como da dependência "textual" do ato hermenêutico. A 
releitura se faz "texto". A releitura que o Jesus de Lucas 24 faz de Isaías 53 é uma produção de 
sentido e se expressa como um discurso sobre um outro discurso anterior incorporado naquele. 
Em perspectiva, parece que houve um só discurso, um só texto. 
O texto grego da LXX que citamos na parte a) não é uma tradução mecânica do original 
hebraico, qualquer que tenha sido a recensão utilizada. É, isto sim, uma adaptação do original 
hebraico. E isto não por desconhecimento da língua hebraica naquele tempo. Mas por que então 
não verteram literalmente, deixando para um relato diferente a interpretação almejada? De 
forma alguma: a sua leitura se origina no texto isaiânico (e nunca como interpretação paralela) 
e, por outra parte, tem que expressar esse texto, consagrado pela tradição. O texto do LXX é, 
portanto, um discurso (no sentido semiótico da palavra) sobre um outro discurso (o texto de 
Isaías), que, porém, se manifesta como um único discurso (= o texto de Isaías). 
Pela mesma razão, a interpretação que Lucas põe nos lábios de Jesus remete ao texto de 
Isaías 53. Na versão targúmica deste poema há tantas divergências com relação ao hebraico que 
a fazem mais parecida a um midrash. Quem compara o texto hebraico com o aramaico, constata 
que talvez somente 50% deste último correspondem àquele.22 Apesar disto, convém destacá-lo, 
o texto assim apresentado é, na tradição rabínica, o texto de Isaías. Não interessa a pessoa 
histórica de Isaías. Interessa apenas esse texto canônico transmitido pela tradição e que é tido 
como "palavra de Deus". 
Disto advém a suma importância que tem toda leitura como leitura de um texto. Esse 
fenômeno - e já estamos no coração da hermenêutica - não faz outra coisa senão pôr em relevo 
duas coisas já reiteradamente expressadas: 1) que todo texto concentra uma polissemia que, 
 
21
 Veja R. Pietrantonio, "EI Mesías asesinado. EI Mesías ben Efraim en el evangelio de Juan", Revisfa Blblica 44,1, n° 5 (1982) 
1-64 (resumo de tese) (para os textos targúmicos, p. 24ss). 
22
Compare-se Is 50.4-5 no texto hebraico e no Targum: 
Hebraico: "O Senhor Javé me deu língua de discípulo para 
que faça saber ao cansado uma palavra de alento. Manhã 
após manhã, desperta meu ouvido para escutar como os 
discípulos. O Senhor Javé me abriu o ouvido" (queixa do 
servo perseguido). 
Targum: "Javé-Deus me deu a língua dos que ensinavam, 
para saber ensinar os justos que langüidescem pelas palavras 
de sua Lei, a sabedoria. Assim, cada manhã, envia cedo seus 
profetas no caso de que os ouvidos dos pecadores estejam 
abertos e que acolham seu ensinamento. Javé-Deus me 
enviou para profetizar". (queixa do profeta perseguido). 
Aí encontram-se apenas alguns vocábulos do texto original. Em realidade, é um meta-texto. Is 53.10, um texto tão decisivo na 
releitura cristológica do Novo Testamento, perde totalmente a sua fisionomia original. Coloquemos os dois textos em paralelo: 
Is 53.10 (hebraico) 
"Todavia agradou a Javé quebrantá-lo com dores. Se se dá a 
si mesmo em expiação, verá descendência, prolongará seus 
dias e o que agrada a Javé se cumprirá por sua mão." 
Is 53.10 (Targum) 
"Agradou a Javé refinar e purificar o resto de seu povo a fim 
de limpar suas almas dos pecados: verão o reino do seu 
Messias; multiplicar-se-ão seus filhos e filhas, prolongar-se-ão 
seus dias; e os que cumprem a Lei de Javé prosperarão se-
gundo seu beneplácito." 
 
 
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por sua condição de "tecido" estrutural de códigos lingüísticos, abre-o até o "adiante"; 2) que 
toda leitura de um texto é uma produção de sentido em códigos novos que, por sua vez, geram 
outras leituras como produção de sentido e assim sucessivamente. A interpretação é um 
processo em cadeia, não repetitivo, mas ascendente. Há uma reserva-de-sentido sempre 
explorada e nunca esgotada. 
 
 
c. APROPRIAÇÃO DO SENTIDO 
 
A partir de um outro ponto de vista, a leitura como produção de sentido significa 
também uma apropriação do sentido. Estabelece-se uma espécie de dependência em relação ao 
texto interpretado e surge uma exigência de possuir todo o seu significado. Esse fenômeno é de 
uma violência tremenda na leitura de textos que têm muito impacto sobre a prática, como por 
exemplo textos religiosos, políticos ou ideológicos. A pretensão pelo sentido é totalitária e 
exclusiva: nada é compartilhado. Isto justamente por se tratar de uma "apropriação". Não se 
pode deixar fissuras para outras leituras. No próprio ato de afirmar implicitamente uma 
reserva-de-sentido inesgotável no texto, o intérprete procura esgotá-lo, não deixando nada para 
a outra leitura. 
Disto advém o "conflito de interpretações". Como cada interpretação crê ser a 
interpretação, não aceita a outra. Aí nasce a luta. Este é um fenômeno típico que resulta dos 
grandes textos que inspiraram movimentos históricos ou originaram grupos com uma 
cosmovisão própria. 
Pode-se exemplificá-lo com os textos de Marx, a tradição bíblica ou a hindu. Na Índia, 
doutrinas muito díspares entre si remetem-se aos livros sagrados dos vedas. É significativo o 
fato de que o vedanta, especulação filosófica que apenas ressoa como fazendo parte da doutrina 
religiosa dos vedas, porém, com uma distância de dois mil anos daquela, apresente-se como a 
interpretação daqueles. O seu próprio nome, vedanta (= "fim dos vedas"), expressa uma 
pretensão de esgotar o seu sentido. 
Os textos de Marx são eloqüentes com relação à luta interpretativa, ideológica, política, 
que seguem engendrando. Cada corrente marxista é, de acordo com sua própria avaliação, a 
leitura dos grandes textos de Marx. Citamos este caso, que não tem nada a ver com a religião, 
para mostrar com evidências claras que o agregamento de partes a um texto do passado não é 
própria da cosmovisão religiosa e que acontece também em uma práxis sócio-política que, 
aparentemente, nega toda outra fonte de significado que não seja esta mesma práxis. 
Voltemos agora aos poemas do Servo de Javé de Dêutero Isaías. As leituras praticadas 
pelas LXX, pelos essênios do Mar Morto (Qumrã), pela igreja primitiva (Novo Testamento) ou 
pelo Targum, não foram, para esses grupos, leituras "possíveis" entre outras, mas sim, foram o 
sentido do texto profético. Este aspecto totalitário da exegese é mais visível, por exemplo, na 
interpretação targúmica, onde se pode reconhecer uma polêmica anticristã,uma tentativa de 
bloquear a leitura cristológica desse texto tão carregado de significação. Dessa maneira, os 
tradutores do texto isaiânico ao vernáculo aramaico daquele tempo (a que se tem dado o nome 
 
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técnico de "Targum") despistaram toda referência possível de Isaías 53 ao sofrimento de um 
Messias individual. Assim não confirmaram uma exegese já atualizada pelos cristãos na pessoa 
de Jesus de Nazaré. E não se trata apenas de um fato ideológico. Foi facilitado pela condição do 
próprio texto, polissêmico por um lado, mas que produz somente um sentido enquanto 
estrutura narrativa orientada a "dizer algo sobre algo". Não existem sentidos múltiplos numa 
mesma leitura. A interpretação rabínica de Isaías 53 anula a que fizeram os primeiros cristãos; 
não a admite nem sequer como possível. E a leitura que aqueles praticavam, deslocava a 
anterior da LXX. Em outras palavras, toda leitura é "enclausuradora" de sentido. Que paradoxo 
esse jogo de alternância entre polissemia do texto e monossemia da leitura! (veja o diagrama no 
final desta parte I). 
Assim também a leitura da Bíblia feita pela teologia da libertação resulta conflitiva em 
relação a outras "apropriações" do sentido do querigma. Este fato supõe outras causas que 
comentaremos em seguida. A causa menos importante não é, porém, a que se fundamenta no 
caráter "enclausurador" de toda leitura. Isto é tão básico como O outro fenômeno (cf. b) da 
dependência em relação ao texto. 
Esta conjugação entre o sentido do texto e sua leitura "enclausuradora" pode chegar a 
situações extremas frente a outras leituras. Voltemos, porém, ao Targum de Isaías 53. A 
interpretação que este faz do texto de Isaías (e o relevante é que seja de Isaías!) não pode partir 
do texto hebraico desse profeta. A versão aramaica teve que modificá-lo estruturalmente, 
convertendo-o em outro relato, diferente do original, mas que é reproduzido na leitura 
sinagogal como o texto autêntico do profeta Isaías. Essa releitura (muito mais midráshica do que 
targúmica)23 segue sendo "enclausuradora", fazendo desaparecer o relato que permitiria outras 
leituras. O conflito de interpretações está aí vivamente expresso, porém não "dito". Alguém 
poderia até se perguntar pelo que pensavam os rabinos que conheciam também o texto 
hebraico, tão modificado na versão aramaica. Esta pergunta carece de interesse. O texto feito 
"tradição" e normativo já não era outro do que o texto do Targum. Era o texto canônico daquele 
momento. Não é o dirigente, mas a comunidade quem aceita um texto como normativo e atual. 
Coisa bem diferente acontece, quando se abandona o uso do Targum e se volta ao texto hebraico 
(quando o aramaico já não mais é a língua viva para o judaísmo palestinense). A polissemia dos 
poemas do "Servo" dá lugar a uma outra leitura que, por sua vez, intenta absorver todo o 
sentido. Nessa leitura tampouco cabe uma interpretação cristológica.24 Nós vamos nos deparar 
com o mesmo fenômeno, quando enfocarmos o ato hermenêutico a partir da perspectiva da 
práxis (parte II). 
 
Terminaremos com duas observações. Por um lado, o leitor há de ter-se dado conta de 
que o conflito das interpretações gera divisão, a qual nem sempre acontece no nível ideológico. 
 
23
 Targum significa a varsão (interpretativa) do texto hebraico ao aramaico; o midrash é a ampliação de um texto ou passagem 
até tomar um novo relato. Um e outro obedecem normas hermenêuticas, só que o midrash tem mais possibilidades de 
expandir-se e, portanto, de atualizar um texto. Cf. R. Le Déuat, "Un phénomène spontané de I'herméneutique juive ancienne: 
le "targumisme": Bíblica 52 (1971), 505-525; Id., "La tradition juive ancienne et I'éxegèse chrétienne primitive", Revue d'Histoire 
et de Philosophie Religieuses 51 (1971) 31-50; A. Díez Macho, cf. nota 6; E. Levine, "La evolución de la Biblia aramea", 
Estudios Bíblicos 39 ( 1981) 223-248 (aspectos interessantes sobre o Targum). 
24
 Nada estranha, neste sentido, que um H. M. Orlinsky negue o fundamento para uma leitura cristã de Is. 53. Cf. "The So-
Called "Suffering Servant" in Isaiah 53", Vários, Interpreting the Prophetic Tradition (KTAV Publishing House, N. York 1969) 
225-273; Id.. "The So-Called "Servant of the Lord" and "Suffering Servant" in Second Isaiah" na obra conjunta com N. H. 
Snaith, Studies on the Second Part of fhe Book of Isaiah (Brill, Leiden 1967) p. 66ss, esp. p. 73 e 118 (em suas expressões, 
Orlinsky está afirmando o princípio elementar da eisegese hermenêutica!). 
 
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Nem toda divisão, porém, é negativa. Pode também ser criativa. A grande unidade, às vezes, é 
amorfa, indolente. Por outro lado, a "apropriação" do sentido pretensiosa pela totalidade como 
é, nunca o é na realidade. Se há muitas interpretações de um mesmo texto, todas partem do 
mesmo texto, e então deve haver alguma forma de convergência. As leituras se comunicam 
subterraneamente. Isso faz com que a divisão que, para ser tal, deve gerar-se em algo comum, 
conserve sempre um fator de reunião. Também os mitos são conflitivos uns em relação aos 
outros. Ainda que se estruturem sobre o mesmo tema, cada um se cristaliza dentro de uma 
cosmovisão e pretende esgotar o sentido da realidade que interpreta. Comunicam-se, todavia, a 
nível dos símbolos que contém e ao nível de uma experiência humana profunda.25 
 
d. A FUNÇÃO HERMENÊUTICA DA DISTANCIAÇÃO 
 
Antes de completar esta parte, convém fazer uma referência à função da hermenêutica 
da distanciação. Havíamos feito menção a uma dupla distância aberta entre a língua e a "fala", 
por um lado, e entre esta e o texto/escritura, por outro (veja o diagrama no final de I, 2). Se a 
primeira é formal, a segunda é concreta e, de alguma maneira, temporal e espacial. O 
desaparecimento do autor de um texto, o deslocamento dos destinatários, a troca do contexto de 
vida que engendra a pergunta sobre a mensagem, significam uma distanciação em relação à 
primeira produção de sentido, a do ato do discurso. 
Muito bem, quanto maior é a distância, maiores são as perspectivas de releitura do texto. 
Isto se fará mais evidente na parte II, 1, quando falarmos dos fatos fundantes de uma tradição. 
Por ora queremos indicar somente que uma terceira "distanciação" hermenêutica se produz 
entre o texto/Escritura e sua releitura (veja-se o diagrama seguinte, que completa o de I, 2). Esta 
distanciação se dá de uma leitura à outra: cada leitura parte do texto, porém esse efeito é 
aparente, pois está condicionada por aquela leitura que a precede e a qual justamente quer 
apagar. De fato, porém, absorve-a ou a suprime. 
Por isso, por mais conflitiva que seja, em cada leitura há algo de convergente. Por outro 
lado, a cadeia de releituras da Bíblia, ou de outro texto, significa, em última instância, uma 
acumulação de sentido. Quanto maior é a distância, mais fecunda pode ser a exploração da 
reserva-de-sentido do texto. Por causa disso se pode afirmar que a "distanciação" cumpre uma 
função interpretativa.26 A partir de um ponto de vista "historicista", este fenômeno assusta, 
porque parece que se perde em proximidade e em exatidão em relação ao sentido original. A 
partir de um ponto de vista hermenêutico, no entanto, é um fenômeno fecundo e criativo. Vamos 
constatá-lo novamente em II 1. 
 
 Para resumir o que analisamos nesta parte I, completaremos a figura anterior: 
 
 
25
 Sobre o tema da comunicação subterrânea de mitos irredutíveis entre si, o que aqui fazemos valer para toda interpretação 
de fatos ou textos, cf. P.Ricoeur, La simbólica del mal (tomo II de Finitud y Culpabilidad) (Taurus, Madrid 1964) p. 649ss.

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