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P ág in a2 José Severino Croatto HERMENÊUTICA BÍBLICA Para uma teoria da leitura como produção de significado Tradução de Haroldo Reimer Digitalizado por Eclesiano P ág in a3 SUMÁRIO Prólogo .................................................................................................................................................................................. 5 Introdução ...................................................................................................................................................................... 6 Hermenêutica Filosófica: Três Grandes Fases ................................................................................................. 6 1. A Era Moderna ................................................................................................................................................ 7 2. A Idade Média ................................................................................................................................................. 7 3. Filão de Alexandria ....................................................................................................................................... 8 Cinco Abordagens De Leitura Da Bíblia .............................................................................................................. 8 1. Realidade Presente como "texto" primário ........................................................................................ 8 2. Concordismo ................................................................................................................................................... 9 3. Métodos Histórico-Críticos .................................................................................................................... 10 4. Análise Estrutural ...................................................................................................................................... 11 5. A Hermenêutica .......................................................................................................................................... 11 I - DA SEMIÓTICA À HERMENÊUTICA .................................................................................................................. 13 1. A linguagem como sistema e como acontecimento .......................................................................... 13 2. A linguagem como texto e como escrita ................................................................................................ 14 3. A leitura como produção de sentido. O ato hermenêutico ............................................................. 17 4. Implicações da Leitura como Produção de Sentido .......................................................................... 20 a. Transformação e Ocultamento ............................................................................................................. 20 b. Dependência Textual ................................................................................................................................ 22 c. Apropriação do Sentido ........................................................................................................................... 24 d. A Função Hermenêutica da Distanciação ......................................................................................... 26 II - PRAXIS E INTERPRETAÇÃO ............................................................................................................................... 28 1. Do acontecimento ao texto .......................................................................................................................... 28 1.1. Acontecimentos Fundantes ............................................................................................................... 29 1.2. Cânon .......................................................................................................................................................... 32 2. O "adiante" do texto ....................................................................................................................................... 36 P ág in a4 3. A intratextualidade da Bíblia ...................................................................................................................... 38 3.1. Novo sentido em Novas Totalizações ............................................................................................ 38 3.2. A Bíblia: Um Texto Único .................................................................................................................... 40 4. A pertença e pertinência da Bíblia ........................................................................................................... 42 III - EXEGESE E EISEGESE .......................................................................................................................................... 47 1. A releitura da Bíblia é parte de sua própria mensagem .................................................................. 47 2. Atualização da Bíblia: iluminação da realidade? ................................................................................ 48 3. Revelação terminada ou aberta? .............................................................................................................. 49 4. A linguagem da fé ............................................................................................................................................ 53 5. Recontextualização do querigma bíblico .............................................................................................. 54 6. Sobre algumas objeções ............................................................................................................................... 55 Conclusão ..................................................................................................................................................................... 56 Vocabulário ...................................................................................................................................................................... 57 P ág in a5 PRÓLOGO O ponto de partida deste ensaio é a convicção de a Bíblia não ser um depósito fechado que já "disse" tudo. É um texto que "diz"; no presente, mas que fala como texto; não como uma palavra difusa e existencial que somente tem o sentido genérico de provocar uma decisão minha. A tensão entre ser um texto fixado em um horizonte cultural que já não é o nosso, e ser uma palavra viva que pode mover a história, somente se resolve através de uma releitura frutífera. Isto equivale a enunciar o problema da hermenêutica bíblica. Em uma pequena obra anterior,1 fizemos um exercício de hermenêutica sobre o tema do êxodo. Ante sua boa aceitação, sobretudo na prática teológica dos países oprimidos, decidimos ampliar e aprofundar muitos aspectos, invertendo, contudo, a ordem: se ali fazíamos uma prática hermenêutica com poucos elementos teóricos, aqui queremos expor muito mais uma teoria hermenêutica com exemplos tomados de muitos temas, não de apenas um, como era o do êxodo. Se naquela ocasião tomamos um só tema, fizemo-lo precisamente para mostrar como, por meio de reinterpretação, acontece o desenvolvimento do sentido de um acontecimento convertido em matriz querigmática. Este é um aspecto do fenômeno hermenêutico que convém destacar. Se agora vamos ocupar-nos com diversos temas bíblicos, é para mostrar que aquele fenômeno é ubíquo e que expressa um elemento essencial da experiência de fé de Israel e da primeira comunidadecristã. Não vamos inventar nada. A hermenêutica bíblica é simplesmente um método de leitura da Bíblia que necessita ser explicitado e organizado. Necessita ser explicitado, porque sempre se o tem praticado, porém muitas vezes sem reconhecê-lo. Veremos que não existe leitura que não seja hermenêutica. Sabê-lo já é um grande passo. Esse método necessita ser organizado para que se saiba como usá-lo e dar-lhe le- gitimidade. É um fato que, quando mais renovadora a vida cristã, conseqüentemente a teologia, tanto mais implicitamente se exercita a hermenêutica. É também um fato que esta renovação sofre resistência por uma prática e uma teologia tradicionais. Isto é muito mais visível nos contextos de dominação cultural, econômica, política e religiosa. Com isso já se levanta uma suspeita sobre quem é o verdadeiro destinatário da mensagem libertadora que a Bíblia propõe. Por isso há necessidade e urgência de possuir um instrumental teórico que nos permita exercitar uma releitura da Bíblia que nos possibilite explicitar a sua "reserva de sentido". Para muitos cristãos a Bíblia é antes um problema do que uma mensagem clara. Por sua origem distante de nosso tempo e espaço, com idéias antigas e muitas vezes díspares em seu longo trajeto literário, com um texto final freqüentemente difícil, o que contradiz a nitidez esperada de uma "mensagem", resulta pouco atraente na imediatez da práxis. Vale o que diz? É necessário que "diga" algo? Se é palavra de Deus, de que Deus trata? Do nosso ou dos hebreus? Surge uma infinidade de perguntas. 1 Liberación y libertad. Pautas hermenéuticas (Mundo Nuevo, Buenos Aires 1973; CEP, Lima 1978); em inglês: Exodus. A Hermeneutics of freedom (Orbis Book, N. York 1981); em português: Êxodo. Uma Hermenêutica da Liberdade (Ed. Paulinas, São Paulo 1981) 197 p. P ág in a6 INTRODUÇÃO "Hermenêutica" é o correlato do termo "interpretação", mais comum. Hermeneuo, em grego, é o equivalente de "interpretar". Em si, é a mesma realidade em dois vocábulos diferentes, grego o primeiro, latino o segundo. Porém, como este tornou-se um termo comum e, com isso, perdeu em precisão, prefere-se o termo "hermenêutica" para indicar sobretudo três aspectos que devem ser explicitados. Antes de tudo, o lugar privilegiado da operação hermenêutica é a interpretação dos textos. Mais adiante veremos que outras coisas implica esta afirmação. Em segundo lugar, supõe-se que o intérprete condiciona sua leitura por uma espécie de pré-compreensão, que surge do seu próprio contexto vital. Em terceiro lugar, o ato hermenêutico faz crescer o sentido do texto que se interpreta. Isto nem sempre se acha bem definido, mas será central no desenvolvimento do nosso trabalho. Cremos que toda interpretação, tanto de textos como de acontecimentos, inclui estes aspectos. Por conseguinte, nesta exposição não nos preocuparemos em distinguir os dois termos, nem os restringiremos aos textos. Sem com isso confundir as coisas, veremos que a interpretação dos textos supõe outro processo, a interpretação de determinadas práticas ou acontecimentos, e que a própria constituição dos textos se origina em uma experiência que é interpretada. Nisto vamos além da limitação que lhe dá, por exemplo, P. Ricoeur ao definir a hermenêutica como "a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação dos textos"2 Texto e acontecimento, ou práxis, já se condicionam mutuamente desde o ponto de vista hermenêutico. Isto se deve destacar justamente no caso da leitura da Bíblia que se faz a partir de uma prática da fé, e de uma Bíblia que remete para as grandes ações salvíficas de Deus. Com esta única frase assinalamos que a leitura dos textos bíblicos está circunscrita por dois momentos existenciais, ou seja, por dois pólos históricos. O texto está no meio. Isto já é uma maneira de valorizar a "centralidade" da Bíblia como texto, porém como texto alimentado em duas "vertentes" da vida. Não existe uma hermenêutica bíblica diferente de outra filosófica, sociológica, literária e outras. Há apenas uma hermenêutica geral, da qual existem muitas "expressões regionais."3 O método e o fenômeno coincidem em todos os casos. E verdade, contudo, que a hermenêutica bíblica tem uma característica talvez inédita por assumir textos de uma longa trajetória de criação e reelaboração, originados em um povo com um itinerário igualmente longo, unificado por uma concepção linear e teleológica da história que exige um grande trabalho interpretativo. Esta "fecundidade hermenêutica" será bem assinalada no decorrer deste estudo. HERMENÊUTICA FILOSÓFICA: TRÊS GRANDES FASES P ág in a7 Aqui não é o lugar para fazer uma história da hermenêutica geral, nem da hermenêutica bíblica em particular. Convém somente assinalar que a tematização da hermenêutica conheceu três momentos relevantes, que registramos em ordem temporal inversa com o fim de mostrar que aquilo que parece novo, de fato não o é tanto assim. 1. A ERA MODERNA Em um contexto filosófico, o problema se coloca a partir de Schleiermacher (ca. 1800) e Dilthey (ca. 1900), passando por Heidegger, depois por Gadamer e Ricoeur, com derivações para o campo teológico (Fuchs, Ebeling, Bultmann e a expansão pós-bultmaniana). Nos dois primeiros é interessante constatar sua preocupação com o que está atrás do texto (a história, o autor), por aquilo e aquele que se expressa em um texto, não por aquilo que este diz. Heidegger passa da epistemologia à ontologia. O "ser" que interroga é um ser-em (no mundo), situado, o qual se pré-compreende no ato de interpretar. Há um "estar-em" o mundo4 que condiciona a interpretação. Isto aponta contra a pretensão do sujeito de ser medida da objetividade, uma vez que à sua essência pertence o ser "habitante" deste mundo, o qual o circunscreve. Heidegger empreende o caminho até os fundamentos, porém não retorna à epistemologia. Gadamer destaca que o homem está dentro de uma tradição, e que o compreender é o resultado finito daquela tradição como forma de pertinência à história. A distância histórica entre o texto e o intérprete exige uma "fusão de horizontes", que é possível porque se está no interior da história. A contribuição de Ricoeur, que por sua vez relê Heidegger, consiste em haver um desvio pela lingüística para chegar a uma teoria frutífera da hermenêutica. As derivações para o campo teológico, acima apontadas, são anteriores a Ricoeur e estão impregnadas de uma supervalorização da Palavra bíblica como "acontecimento" presente (mais adiante falaremos, invertendo os termos, de um "acontecimento feito palavra." Estes pontos da reflexão sobre a hermenêutica contribuíram notavelmente para uma síntese filosófica que deixa suas pegadas na teologia. No entanto, não constituem novidade absoluta. 2. A IDADE MÉDIA 2 P. Ricoeur "La tarea de la hermenéutica", em: Vários, Exégesis. Problemas de método y ejercicios de lectura (La Aurora, Buenos Aires 1978) 219 - 243 (cf. p. 219). 3 P. Ricoeur o evidencia, Cf. art. cit., p. 220; Idem, "Hermenéutica filosófica y hermenéutica bíblica", ib., 263-Z77 (cf. p. 263s). 4 Se o alemão não conhece a distinção lexical entre "ser" e "estar", o português o conhece. Por então, traduzir o Dasein com o insuportável "ser aí" quando pode ser traduzido por "estar' ou "estar aí"? P ág in a8 Com efeito, durante a longa tradição medieval era comum a discussão teológicasobre os sentidos da Escritura. Junto ao sentido literal, ou acima dele, situava-se um sentido espiritual que recebia designações diversas (alegórico, místico, messiânico, cristológico, etc.). Típica foi a disputa sobre os quatro sentidos da Bíblia: literal, alegórico (= cristológico), moral (chamado "tropológico", ou seja, relativo aos costumes) e escatológico (denominado "anagógico", que "conduz para"). Surgiu uma infinidade de teorias. O significativo desse fato é que o pano de fundo é precisamente a hermenêutica: o texto do Antigo Testamento não se esgota em sua primeira intenção, mas diz algo mais. 3. FILÃO DE ALEXANDRIA Outra tentativa, mais antiga, de formalizar o problema hermenêutico foi a de Filão de Alexandria no século I a. C. Isto não somente porque interpretou as tradições hebréias a partir de um parâmetro grego (é típico o seu comentário a Gênesis, De Opificio Mundi, mas sobretudo pelo seu esforço em compreender o problema da linguagem.5 Dissemos que estes três momentos pertencem a tantas outras tentativas de tematizar o problema da interpretação de textos (históricos, bíblicos) ou da existência humana como tal. Muito bem: nem sequer isto é novo. O processo hermenêutico - ainda que não tematizado - é constitutivo de toda tradição, religiosa ou não. A Bíblia mesma não se explica sem esse processo. Porém, é no rabinismo da época intertestamentária onde se pode detectar a tentativa de ler um segundo sentido sob o primeiro sentido de um texto, um sentido profundo por detrás do sentido simples das palavras (derash e peshat na terminologia aramáica da época).6 Esta questão reaparecerá mais adiante quando falarmos do Targum e do Midrash. Esta breve retomada histórica motiva-nos agora a entrar no tema com uma preocupação diretamente bíblica. CINCO ABORDAGENS DE LEITURA DA BÍBLIA A Bíblia tem sido objeto de diferentes abordagens, todas elas objetivando explorar seu sentido ou sua mensagem. Algumas abordagens expressam o "problema" da leitura atual da Bíblia, outros buscam penetrar em seu conteúdo. Apontamos cinco aproximações genéricas: 1. REALIDADE PRESENTE COMO "TEXTO" PRIMÁRIO 5 Cf. KI, Otte, Das Sprachverständnis bei Philo von Alexandrien. Sprache als Mittel der Hermeneutik (Mohr, Tubinga 1968); I. Christiansen, Die Technik der allegorischen Auslegungswissenschaft bei Philo von Alexandrien (Mohr, Tubinga 1969). 6 Veja A. Díez Macho, "Deras y exégesis del Nuevo Testamento", Sefarad 35 (1975) 37-89; Id., EI Targum. lntroducción a las traducciones aramaicas de Ia Biblia (SCIC, Madrid 1979). P ág in a9 Frente ao texto da realidade presente, entendido como o "lugar teológico" privilegiado para descobrir o Deus que fala e interpela o homem, pode-se relegar a Bíblia a um segundo plano, entendendo-a como um texto "desatualizado". A realidade está tão carregada de significado que qualquer outro "significante" teológico resulta como secundário. Quando as opções estão claras, não faz falta alguma ir à Bíblia. Não é essa a atitude de muitos cristãos comprometidos com a luta revolucionária contra as estruturas injustas deste sistema em que somos obrigados a viver? Que mensagem "nova" lhes traz o Evangelho? A pergunta é sincera. Cremos, porém, que deixa entrever uma dificuldade metodológica para sair de uma leitura tradicional da Bíblia que a tem alienado da história real dos homens. O obstáculo é visível em alguns teólogos da libertação, que, mais do que outros, valorizam a práxis sócio-histórica como parâmetro da reflexão teológica. 2. CONCORDISMO Outro caminho consiste em assumir a Bíblia como ela é, buscando nela "correspondências" entre as nossas situações e os eventos nela relatados. Quando há coincidências, parece que Deus está falando através do "evento arquetípico." Logo à primeira vista, esta aproximação à Bíblia se evidencia como concordista. Bem, o concordismo (tão difundido, sobretudo nas leituras fundamentalistas do texto sagrado) é duplamente negativo: a) Reduz a mensagem a situações que têm equivalente na experiência de Israel ou da primeira comunidade cristã, como se Deus não soubesse falar ou revelar-se de outra maneira. É um reducionismo teológico. b) O concordismo torna a mensagem superficial, colocando-a ao nível de faticidade externa, confundindo o que acontece com seu sentido. O mesmo perigo existe quando, em algumas teologias, se busca uma continuidade entre as idéias do Antigo ou do Novo Testamento e as de uma cultura específica, por exemplo asiática, africana ou latino-americana. O que acontece onde não se verificam tais coincidências culturais, pontes entre a antropologia hebréia e a grega? Para os gregos, Deus seria quase irrevelável. De imediato, descobre-se que nas tradições africanas e em algumas pré-colombianas há muitas semelhanças com a cosmovisão hebréia. Confunde-se o querigma com seu revestimento cultural ou sua "contextualização". É verdade que a busca por "sintonias" entre a Bíblia e o contexto atual (cultural, mas sobretudo sócio-histórico) pode ser um ponto de partida para explorar a validade daquela para o homem de hoje. O que realmente é empobrecedor é o concordismo histórico e científico, que consiste em querer confirmar a Bíblia com determinadas descobertas das ciências modernas (por exemplo, as grandes eras geológicas e os dias da criação do mundo) ou então equiparar fatos históricos da Bíblia e de hoje. No primeiro caso, tal confirmação não existe; em ambos se esvazia o texto sagrado de seu conteúdo querigmático, tornando inútil qualquer tentativa hermenêutica para explorar o sentido mais profundo do texto. E pensar que a leitura concordista da Bíblia tem sido tão comum, inclusive rio âmbito do fazer teológico sistemático! P ág in a1 0 3. MÉTODOS HISTÓRICO-CRÍTICOS Os métodos exegéticos formulados pela moderna crítica bíblica abriram novas perspectivas de abordar a Bíblia, na medida em que, ao redescobrirem o horizonte histórico e cultural no qual a Bíblia se originou, possibilitam uma melhor contextualização do sentido origi- nal de cada passagem. A exegese crítica rompeu, em primeiro lugar, com as leituras ingênuas, "historicistas" e concordistas da Bíblia, as quais, conforme assinalamos no parágrafo anterior, despistam o sentido real do texto. Porém, amplia sobretudo a exploração dos textos. A crítica literária, a crítica das formas e dos gêneros, ou códigos literários, das tradições (orais e literárias), da redação, revolucionou os estudos bíblicos nas últimas décadas, sanando muitos defeitos da teologia cristã e, de forma indireta, gerando uma renovação em todos os campos da atividade teológica. Ao lado destes indiscutíveis benefícios que convertem os métodos exegéticos em conquista inestimável, o seu uso exagerado e às vezes reducionista comporta alguns riscos. Por um lado, mostram o "atrás" do texto atual, a arqueologia, deslocando a atenção do exegeta ou do leitor da Bíblia para um nível pré-canônico. O Pentateuco, por exemplo, é interpretado conforme as teologias "javista", "eloista", "deuteronomista", "sacerdotal" ou outras. Enfatiza-se o pré-texto. A partir da crítica literária, que permite identificar os passos da formação do texto, os outros métodos conduzem até as mais remotas origens e, através da história da redação, reconduzem até o estado presente de uma obra ou de parte dela. Este extenso arco, que sai do texto e volta até ele, é muito mais uma história do texto do que a exploração do seu sentido, ou pelo menos este se identifica com o sentido das camadas anteriores, caso nos sejam acessíveis. Não posso, sem embaraço, entender o Pentateucoà base do "javista"', etc., seja porque não sei quanto de sua obra foi mantida na redação atual, seja porque o autor do Pentateuco fez uma obra nova. O sentido, portanto, não está nos fragmentos usados, mas sim, na totalidade estruturada do novo. A crítica da redação reduz em parte este defeito. Porém, ao falar de "redator" em lugar de "autor" e ao designar-se como "história da redação", coloca mais ênfase na formação do texto do que no próprio texto. Por outro lado, a preocupação em fundamentar a verdade das ciências do espírito, tão própria da consciência ocidental desde alguns séculos,7 concentrou a atenção sobre o sentido literal, entendido como o sentido "histórico" (a própria designação de "método histórico-crítico" já o revela). Isto é uma forma de reducionismo.8 Por isso há o interesse pela intenção do "redator" deste ou daquele texto, o qual é contextualizado com todos os recursos possíveis. Este é importante, porque do contrário, conforme já assinalamos, desvirtua-se o processo por buscar o sentido na pré-redação. No caso de ênfase muito grande na intenção do autor ou do redator como sendo este o único sentido, corre-se o risco de enclausurar no passado a mensagem da Bíblia, entendida como "depósito" de um "sentido fechado", coincidente com o pensamento de seu redator ou então dos pré-redatores do texto atual. Cremos que a possibilidade significativa de um texto não termina aqui. Apesar de sua importância imprescindível, esta abordagem evidencia-se como parcial, especialmente para a teologia dos povos oprimidos. Por aqui é necessário passar, porém, não parar. 07 Para uma síntese do problema, cf. P. Ricoeur, "La tarea . . ." (cf. nota 2), p. 221ss. 08 B. S. Childs, "The sensus litteralis of Scripture", em: Vários, Beiträge Zur Alttestamentlichen Theologie: Festschrift. W. Zimmerli, (Vandenhoeck & Ruprecht, Gotinga 1977) p. 80-93, esp. 88ss. P ág in a1 1 4. ANÁLISE ESTRUTURAL Uma contribuição mais recente aos estudos bíblicos provém das ciências da linguagem, em particular da lingüística e da semiótica narrativa. A literatura e a ciência da linguagem sempre contribuíram positivamente para o conhecimento da Bíblia. O desenvolvimento recente da análise estrutural está sendo aplicado aos textos bíblicos com bons resultados. O estudo da chamada estrutura profunda, tanto narrativa (ações, funções) como discursiva (papéis te- máticos, eixos de sentido) ajuda a "centrar" o sentido de um texto. A estrutura de superfície, comumente chamada estrutura literária é, por outro lado, ainda mais fecunda pois nos dá certas chaves de leitura que são resultantes da codificação do texto. Enriquecedor como é, esse método é apenas um ponto de partida na busca pelo sentido. Mais adiante veremos como esse método presta benefícios. Em si mesmo, porém, é reducionista ao fazer a abstração da "vida" do texto, sua história, seu contexto cultural, social ou religioso. 5. A HERMENÊUTICA O quinto caminho para ter acesso ao querigma bíblico é o da hermenêutica. Esse é o tema do presente ensaio. Antes de tudo, porém, algumas considerações preliminares. Anteriormente fizemos alusão ao matiz do termo confrontado com o termo "interpretação". Mas, a noção bultmaniana de hermenêutica não é suficiente, nem o é a da "nova hermenêutica" de Fuchs, Ebeling ou seus continuadores.9 Que na leitura da Bíblia haja uma pré-compreensão (Voverständnis), isso é um dado comum e extremamente valioso para nós. Que seja um "acontecimento da linguagem" (Sprachereignis) ou da "palavra" (Wortereignis) em toda sua densidade presente, isso não a esgota nem é suficiente. Não se explicitam as condições objetivas da Bíblia enquanto linguagem, desvaloriza-se o referencial original do texto10 e se fomenta uma leitura individualista da Bíblia. Para compreender a hermenêutica em toda a sua riqueza e seu valor metodológico, é oportuno fazer um desvio pelas ciências da linguagem. Uma vez que a hermenêutica tem a ver com a interpretação de textos - ou de acontecimentos codificados na linguagem -, é mister situá-la sobre o fundamento da semiótica, a ciência dos signos, cuja expressão mais compreensiva é a linguagem em seu sentido restrito. Outra coincidência reside no fato de que tanto a hermenêutica como a semiótica preconizam a leitura como produção (e não repetição) de sentido. À primeira vista estamos diante de um paradoxo: A hermenêutica parece estar ligada à diacronia, ao devir do sentido, à semântica ou transformação do sentido das palavras ou dos 09 Para uma visão de conjunto, C. E. Braaten, History and Hermeneutics ( Lutterworth Press, Londres 1968) cap. VI; H. Kimmerle, "Hermeneutical Theory or Ontological Hermeneutics", em: History and Hermeneutics (Harper & Row , New York 1967) 107-121; J. M. Robinson e E. Fuchs, La nuova ermeneutica (Paideia, Bréscia 1967). 10 O que alguns chamam "o parâmetro ontológico (= histórico)" . Cf. R. Lapointe, Les trois dimensions de l'herméneutique (Gabalda, Paris 1967) p. 89ss. P ág in a1 2 textos, ao passo que a semiótica concede um lugar privilegiado à sincronia, à simultaneidade, às leis estruturais que dirigem a realização da linguagem. Falamos, porém, de "desvio", não de fusão nem de identificação. São enfoques diametralmente opostos, porém, não contraditórios, mas sim, convergentes. Ao regressar da semiótica à hermenêutica, respeitando a individualidade de ambas, esta última se evidenciará solidamente fundamentada. Empreendemos, pois, um longo caminho, ao final do qual a hermenêutica bíblica se mostrará melhor iluminada. Concluímos esta introdução resumindo os enfoques ou acessos ao texto bíblico (como a qualquer obra literária) com o esquema seguinte (os números remetem aos parágrafos do texto; chamará a atenção a exclusão do nº 2): Abordagens de Leitura do Texto (Bíblico) A figura indica que um texto pode ser examinado a partir diferentes ângulos, estudado com métodos diversos, que não se excluem mutuamente, mas que devem convergir para uma melhor compreensão da obra, em nosso caso a Bíblia. A única abordagem que não tem lugar aqui é a concordista (no 2), uma vez que não leva ao sentido, mas desvia dele. Métodos histórico-críticos (desde o texto até sua origem, e retorno ao texto) vd. n o 3 estrutura manifesta TEXTO componente Narrativo componente Discursivo estrutura profunda - vd. nº 4 Hermenêutica vd. n o 5 (não somente da realidade presente - vd. nº 1, mas a partir dela até o texto e retorno à realidade) P ág in a1 3 I - DA SEMIÓTICA À HERMENÊUTICA Nosso interesse está na hermenêutica, porém, como já anunciamos, esta deve inscrever- se parcialmente no vasto campo da ciência dos signos. Textos e acontecimentos humanos são signos que necessitam de interpretação. Aqui não é o lugar para um desenvolvimento amplo sobre a lingüística ou sobre semiótica. Basta assinalar alguns fenômenos da linguagem que nos auxiliem a compreender o fenômeno hermenêutico. 1. A LINGUAGEM COMO SISTEMA E COMO ACONTECIMENTO Na lingüística é comum fazer distinção entre "língua" (langue/language) e, "fala" (parole/speech). Aquela é o sistema de signos e leis que regulam a gramática e a sintaxe; uma espécie de "cânone" que estabelece as regras do sentido. Sua base é a estrutura que supõe diferenças, oposições e relações fechadas no interior de cada idioma, e que funcionam sincronicamente mais no nível inconsciente do que nonível reflexivo. Em determinado idioma, o repertório de signos lingüísticos é finito e fechado (há um limite de combinações). Subjacente a isso, no entanto, há uma polissemia potencial: "volume", por exemplo, faz pensar em um livro ou então em uma medida de capacidade na geometria. "Castanha" é um fruto ou uma cor. Em todos os idiomas há um determinado número de vocábulos polissêmicos. E não somente isso: mesmo os "monossêmicos", que são maioria, não dizem nada do jeito que estão codificados em um dicionário. Também uma frase que tem sentido lingüístico ( = o sentido é a relação entre significante - o signo ou vocábulo - e o significado ou conteúdo) pode ser equívoca quanto ao seu referencial extralingüístico. "Jesus Cristo nos salva" é uma frase correta, tem sentido gramatical e existencial, porém é equívoca em seu referencial (de que nos salva? quando? etc.). Falta algo que feche o sentido para uma determinada direção. Assim é a língua enquanto "competência", como dizem os lingüistas. Esse sistema de signos, no entanto, deve "ser ativado" quando o usamos para dizer algo sobre algo. Aí estamos já no momento da "fala", que pode ser entendido como o "acontecimento" da língua. E o ato que realiza as possibilidades possíveis através do sistema de signos. Três fatores auxiliam para "fechar o sentido" em uma única direção: a) O emissor ou locutor que seleciona os signos (palavras, frases, códigos ou gêneros literários possíveis em determinado idioma) que veicularão a mensagem; os signos somente se relacionam entre si, formando uma estrutura; por isso é fundamental identificá-la para poder decodificar uma mensagem. Disto advém a importância de toda a análise estrutural para a exegese bíblica como para a exegese de qualquer texto. b) Um receptor ou interlocutor determinado, a quem se dirige a mensagem codificada em uma determinada forma, e que saiba decifrá-la, operação instantânea que é uma das maravilhas da linguagem humana. P ág in a1 4 c) Um contexto ou horizonte de compreensão comum ao emissor e ao receptor, que permita fazer "coincidir" a referência ou denotação, aquilo sobre o que versa a mensagem. Sem esse contexto comum (lingüístico, cultural, social, geográfico e de tantas outras dimensões da realidade humana), a linguagem permanece sendo polissêmica. Pois bem, no ato do discurso - no "ato de fala" - deve haver clausura atual da polissemia potencial das palavras ou das frases. Do contrário é impossível falar, a não ser que se mantenha uma polissemia deliberada, como na poesia ou na linguagem simbólica. Mesmo neste caso, o contexto - e em todo caso o diálogo entre os interlocutores - ajuda a "fechar" o sentido de uma palavra ou de uma proposição. Do contrário, o discurso já não é mais um "dizer algo sobre algo". E esta é a intenção de quem fala, escreve uma carta a um amigo ou relata uma história a seus ouvintes. No "acontecimento da fala", o receptor da mensagem realiza um processo de assimilação ou captação do código lingüístico selecionado pelo emissor para sua comunicação. Tal como acontece na música, assim também se verifica na linguagem: a mensagem vem dada em uma "chave" ou código que o ouvinte identifica de imediato. De outro jeito não haveria compreensão. Confundir os códigos despista totalmente o direcionamento da mensagem. Da mesma forma como é necessário sintonizar a freqüência de onda num rádio, a mensagem também deve estar "em sintonia". Voltaremos a essa questão ao nos referirmos ao processo hermenêutico propriamente dito. Por ora recordemos somente que a leitura tradicional da Bíblia, ao interpretar todos os textos em "chave" histórica, tem falhado num ponto essencial. Em nenhuma outra literatura se cometeu erros tão elementares. É como se alguém escutasse todas as composições musicais em uma única chave ou segundo o sentido de um único gênero! Por isso votamos a assinalar uma vez mais a importância das ciências da linguagem - sobretudo da "semiótica narrativa", como veremos - para afirmar a sua validade para a compreensão de textos bíblicos. 2. A LINGUAGEM COMO TEXTO E COMO ESCRITA Da língua à fala, da competência à sua atualização, do sistema ao uso, tem lugar uma primeira distanciação, que marca o "fechamento" do sentido. Tal "distância" não é temporal nem espacial, é lógica. A linguagem, todavia, não termina nesta etapa. Com efeito, produz-se uma "nova distanciação" (que chamaremos de segunda), quando o discurso se cristaliza em um "texto" transmitido. Entendemos este vocábulo no seu sentido amplo, uma vez que um texto também pode ser oral. Um mito ou uma canção, por exemplo, costumam ser transmitidos de geração em geração por via oral, antes de serem fixados por escrito. Quase todas as narrações bíblicas foram de alguma forma tradições orais. E já eram "textos". Segundo a etimologia, texto é um "tecido", uma trama em que os elementos da língua (palavras, frases, unidades literárias e outros elementos) estão organizados segundo funções estruturadas que, como tais, produzem um sentido. P ág in a1 5 As leis lingüísticas da frase se repetem e se ampliam a nível de relato. Efetivamente há uma gramática e um sintaxe do relato.11 Aqui sublinhe-se novamente a estrutura com suas "diferenças" e relações e com um caráter de totalidade organizada. Um texto é algo estruturado e acabado. Tem limites e relações internas. Esta condição do texto tem conseqüências dignas de atenção, a primeira das quais é sua capacidade de dar sentido por aquilo que é, como codificação de uma mensagem. Em segundo lugar, o texto oral ou escrito se abre para uma nova compreensão graças a esta segunda distanciação já assinalada, que acontece entre a "fala" ou ato de discurso e a inscrição do sentido neste ou naquele texto. Esta distância tem lugar nos três fatores que antes contribuíam para o fechamento do sentido e agora contribuem para abri-lo. Vamos enumerá-los e explicá-los na mesma ordem: a) No texto desaparece o emissor original. O autor (se falamos de escritura) "morre" no próprio ato de codificar sua mensagem. A inscrição do sentido em um relato ou texto qualquer é um ato criativo, no qual, para dizê-lo simbolicamente, deixa-se a vida. Avaliar as conseqüências deste fenômeno é significativo para a hermenêutica que faz o desvio pela lingüística e invalida as tentativas de recuperar uma antiga formulação (veja Schleiermacher) ou o esforço dos métodos histórico-críticos de recuperar e fazer reviver o autor de um texto. b) Também o primeiro "receptor" ou interlocutor não está presente. Quem lê um texto escrito ou escuta um relato tradicional, um mito ou uma passagem bíblica, não é o seu primeiro destinatário (= narratário no léxico da semiótica). Esta troca dos destinatários da mensagem é muito mais evidente nos textos religiosos, míticos ou não, que pretendem ter uma significação permanente ao longo de gerações e séculos. c) Pela mesma razão, desvanece-se o horizonte do primeiro discurso, seja porque o contexto cultural ou histórico não é o mesmo, seja porque os destinatários atuais que recebem a mensagem têm um outro "mundo" de interesses, preocupações, cultura, etc. Estes três aspectos (muito assinalados por P. Ricoeur em seus últimos trabalhos de hermenêutica),12 tomados em conjunto, contribuem para compreender o processo hermenêutico. Com efeito, a) o autor desaparece como entidade que "fala", e a quem pode-se perguntar pelo sentido daquilo que "diz". Em conseqüência, o narrador não é uma pessoa de carne e osso, mas sim, um pressuposto lingüístico. Alguém narra ou escreve, porém somente no texto é possível reconhecê-lo. Essa ausência física é riqueza semântica.O fechamento do sentido imposto pelo locutor, modifica-se agora em abertura do sentido. O narrador é o próprio texto, não alguém de fora a quem se pudesse pedir explicações. Esta concentração no texto permite explorar as suas possibilidades significativas enquanto texto. b) Bem, o surgimento de um novo 11 É um elemento muito enfatizado na semiótica narrativa, analisado em detalhe por todos os que investigam a análise estrutural do relato (R. Barthes, T. Todorov, J. Kristeva, etc.). Para o caso da Bíblia, veja, por exemplo, J. Calloud, Structural Analysis of Narrative (Fortress Press, Filadélfia 1976). 12 P. Ricoeur, "Événement et sens", Archivio di Filosofia (1971) 15-34; Id., "La función hermenéutica de la distanciación", em: Vários, Exégesis (cf. nota 2), pp. 245-261, esp. p. 247ss. P ág in a1 6 receptor da mensagem, por sua vez situado em um novo horizonte de compreensão, distancia ainda mais o texto de seu marco original e do contato com seu autor. Quando alguém fala, transmite uma mensagem (linguagem locucional, como se diz), fá-lo, contudo, com força ou intensidade determinadas (linguagem inlocucional expressada pela entonação, pelos gestos, etc.) e com um efeito que faz parte da mensagem (linguagem perlocucional).13 Pois bem, na leitura de um texto perdem-se os dois últimos aspectos, pois, em ordem decrescente, mais dificilmente podem ser inscritos em um código. Por isso não é a mesma coisa ler ou escutar como primeiro destinatário ou como segundo. Nem mesmo escutar uma gravação repete a primeira enunciação; mesmo que não variem os destinatários, o contexto ao menos já não seria o mesmo e o texto produziria efeitos- de-sentido diferentes. Por sua vez, quando "escutamos'' um texto, aquele que fala é o texto e não aquele que o lê em voz alta para os outros. Este é apenas mais um dos destinatários! Tampouco fala o autor, pois esse já não está presente. Sua presença é tão aparente como dizer que o sol gira em torno da terra. Uma vez mais voltamos à autonomia do texto, que condicionará a abertura hermenêutica do ato de ler. Mas o que acontece então? Substitui-se o horizonte finito do autor pela infinidade textual. O relato se abre novamente a uma polissemia, que não somente é potencial como ao nível da "língua", mas sim potenciada por aquela rede de significado que é a obra. Por essa aber- tura do texto introduz-se o novo destinatário com seu próprio "mundo". Podemos entender que uma carta de Paulo dirigida a destinatários concretos (colossenses, romanos, etc.), onde o autor e seus leitores se referiam a um problema específico, teve que trocar de perspectiva quando se universalizou na igreja primitiva. Os novos receptores do texto não estavam delimitados pela leitura prévia dos cristãos desta ou daquela igreja, nem podiam perguntar a Paulo o que quis dizer nesta ou naquela frase. Todo texto está aberto a muitas leituras, nenhuma das quais é repetição da outra. Quanto maior a distância em relação ao autor, tanto maior dimensão adquire a releitura de um texto. Inversamente, quanto maior é a riqueza semântica de um relato, mais distante está o autor da mente do intérprete. Por essa razão, os textos sagrados ou os relatos míticos costumam ser anônimos. Isto não somente por às vezes serem criação progressiva de uma comunidade, mas sobretudo porque têm mais significação por aquilo que dizem do que por aquele que o diz. Parece que sua carga de sentido é mais densa quanto menos se sabe sobre seus autores. Assim, para o caso da Bíblia, não temos notícia de nenhum autor dos livros do Antigo Testamento e de poucos do Novo Testamento.14 É próprio (porém não exclusivo) dos textos religiosos a "atribuição" posterior a uma determinada figura (p: ex.: os Salmos de Davi, o Pentateuco de Moisés, a Sabedoria de Salomão, algumas epístolas do Novo Testamento a Paulo, etc.), quando esta já é significativa por alguma razão. Trata-se de um acontecimento hermenêutico que será esclarecido no decorrer do 13 J. L. Austin, How to do Things with Words (Harvard Univ. Press, Mass 1975); J, R. Searle, An Essay in the Philosophy of Language (CUP, Cambridge 1969) 14 O livro de Siraque ou Eclesiástico leva o nome de seu autor, mas no texto grego (da LXX) é Jesus, filho de Siraque (50.27; 51.30), no hebraico (canônico) é seu filho Simeão. O prólogo literário do tradutor diz ser do seu avó Jesus (v. 6). Essa dupla tradição é significativa. P ág in a1 7 desenvolvimento do nosso tema. Outra faceta do mesmo fenômeno é a ampliação de um texto de um determinado autor através de sucessivas releituras, sem que na tradição se modifique sua autoria. Este é o caso do Evangelho de Mateus e outros escritos do Novo Testamento. Mateus é autor do núcleo aramaico primitivo; a forma atual do primeiro evangelho é uma reelaboração subseqüente. Na tradição, porém, continua sendo o texto de Mateus (sobre essa questão, veja um pouco mais adiante, em I, 3, b). Para concluir esta parte, resumimos o tema com uma figura que retoma aspectos centrais do que tratamos: língua fala texto/escritura fonemas/termos sistemas frase uso/"acontecimento" relato códigos narrativos/estrutura repertório finito e fechado repertório infinito nome diz algo sobre algo para alguém diz algo sobre algo a uma infinidade de narradores atemporal passageiro Permanente polissemia clausura/fechamento polissemia 1ª distanciação 2ª distanciação 3. A LEITURA COMO PRODUÇÃO DE SENTIDO. O ATO HERMENÊUTICO Na semiótica diz-se que o sentido não é algo "objetivo" e palpável que está no texto em estado puro, de modo que o exegeta pudesse encontrá-lo graças a sua habilidade técnica e seus recursos filológicos e históricos. Se fosse assim, bastaria descobrir o sentido de um texto. Assim, P ág in a1 8 quando há muitas interpretações, todas menos uma estariam erradas. A decisão sobre qual é a verdadeira viria de uma "autoridade" extratextual. Em última instância, este esquema supõe que o sentido de um texto coincide com a intenção de seu autor e que o leitor atual repetirá a leitura que fizeram os primeiros destinatários. E assim nos atolamos no "historicismo" exegético. E o que é pior, a mensagem resulta atrofiada e não pode desprender-se em novas leituras criativas. Talvez até deixe de ser mensagem. O processo da reinterpretação é, sem dúvida, tão pujante que as tentativas de "fixar" o sentido de um texto bíblico acabaram terminando em fórmulas que, com o tempo, por sua vez necessitam ser relidas, o que significa que a pretensão de fechar o sentido de um texto é vã e irreal. De fato, toda leitura é produção de um discurso e, portanto, de um sentido, a partir do texto. Não se lê um sentido, mas sim um texto, um relato numa operação que coloca em ação a competência deste, estudada pela semiótica. Desta maneira, o texto se abre para diferentes organizações seletivas. Por um lado, a mesma análise estrutural do relato (programa narrativo: ações, funções) e do discurso (eixos semânticos, quadrado semiótico, verificação, etc.15, enquanto organização de um sentido em meio a outras possibilidades das palavras ou temas de uma determinada sociedade ou cosmovisão não dá resultados matemáticos senão que se diferencia segundo distintas combinações efetuadas. Acontece que a linguagem mesma combina tantos elementos sêmicos que nenhuma análise pode manifestá-los por completo. Como já assinala J. Greimas, a pluralidade de leituras sugeridas pelaprática semiótica não se deve ao fato de que um texto seja ambíguo, mas sim que é suscetível de dizer muitas coisas ao mesmo tempo.16 E isto apesar de que a análise estrutural não é propriamente a interpretação do texto, mas tão-somente uma etapa preparatória. Por isso acontecem, por outro lado, no nível propriamente interpretativo, leituras que se fazem a partir de diversas disciplinas. Um mesmo texto pode ter uma leitura fenomenológica, histórica, sociológica, psicológica, literária, teológica e outras mais. Cada uma das leituras do mesmo relato é uma produção de um discurso a partir desse texto. Isso é possível porque o discurso coloca em jogo uma pluralidade de códigos que cada leitura seleciona e organiza. Por sua vez, as leituras feitas a partir daqueles níveis não são exclusivas de um intérprete que descobre o sentido. Cada leitura é uma produção de sentido. Já sabemos que o autor "morre" em benefício daquilo que ele cria como texto: este inscreve em si mesmo - enquanto estrutura de códigos - a instância de produção e a instância de leitura e interpretação. Em outras palavras, faz-se polissêmico, mesmo olhando somente a partir do ponto de vista da semiótica. Tem várias possibilidades de sentido, que afloram quando se o lê selecionando os códigos nele armazenados. Se tiver experiência na leitura de textos, o leitor pode tomar consciência de que o fenômeno da leitura é assim. Porém, para completar nossas observações, poderíamos exemplificá-las com uma passagem bíblica. Tomemos por exemplo Jo. 1.35-51. Quanto se tem dito sobre este texto nos 15 Para estes termos, cf. Grupo de Entrevernes Análisis semiófico de los textos. Introducción-Teoria-Práctica (Cristiandad, Madrid 1982); Id., Signos y parábolas. Semiótica y texto evangélico. (ib. 1979); Vários, Iniciación en el análisis estructural (Verbo Divino, Estella 1980). 16 Cf. Signos y parábolas (nota anterior) p. 236. P ág in a1 9 comentários exegéticos e quanta inspiração tem recebido a prática cristã do seguimento a Jesus! Sempre se pode voltar ao texto e uma ou outra vez produzir sentido. Uma maneira de fazê-lo consiste em identificar os diferentes códigos que se entrecruzam nesta perícope. Tomemos o relato em sua forma atual e isolemos os papéis temáticos à medida em que vão entrando em cena. "No dia seguinte" liga com o relato anterior (v. 29, que, por sua vez, remete ao "quando" do v. 19) e se repete no v. 43 para então completar-se com a expressão "três dias depois" de 2.1. Este código, que parece artificial, vai tecendo uma teologia da primeira semana da nova criação, na qual o Logos é preexistente (Jo. 1.1) como a Palavra na criação do mundo (Gn. 1.1 na releitura do Targum). Este tema não está dito em uma fórmula assim como o acabamos de descrever, porém através da estrutura do relato; estrutura esta que, por sua vez, se combina com os outros códigos de maneira tal que mutuamente se dão sentido. Este é o jogo do relato. Logo segue uma situação de encontro humano: João encontra dois discípulos seus (v. 35b). Estes logo se encontram com Jesus (v. 39). Um deles, André, encontra-se com seu irmão Simão (v. 41a) e lhe testemunha que "encontramos o Messias" (v. 41 b). No v. 43 começa uma nova série de encontros: Jesus com Felipe, logo em seguida, este com Natanael e lhe diz: "encontramos aquele de quem escreveram... ," (v. 45). No final de cada série, o "encontrar" oscila entre o físico e o espiritual, sendo enfatizado o segundo com o sentido de "reconhecer" (o Messias, aquele de quem escreveram Moisés...). Tal "encontro" somente é possível em um plano superior. Muito bem, este deslocamento também se dá com outros códigos. Notável é o visualizar (ver, fixar-se) que; a partir de um simples plano corporal (vv. 36, 38, 39 x 2, 42, 46, 47, 50) até outro mais profundo (w. 48, 50 "verás coisas maiores"), termina com um "ver" teofânico (v. 51 ). É evidente que este motivo, nas seqüências seguintes, liga-se com o da aceitação dos sinais (cf. 2.1 1 e os outros relatos de milagres). Os sinais efetivamente "são vistos". Este "ver" joanino remete à fé, não em sua dimensão física (cf. v. 50 e seu correlato de 20.29),17 mas sim porque a encarnação da Palavra mediatiza as realidades da fé através das coisas humanas. Por isso há em João tanta relevância no tema da fé no Enviado. No nosso relato é visível também o código onomástico (há abundância de nomes próprios), em especial da dupla menção de "Jesus", definido como o filho de José, o de Nazaré (v. 45). Bem, no texto total do quarto evangelho, os personagens vão recebendo títulos ou identificações de valor teológico. Assim temos, portanto, o código das identificações, provavelmente o mais significativo neste lugar. Jesus é "cordeiro de Deus" (v. 36), "mestre" (v. 38, que mantém a forma hebraica rabbi para inseri-lo na tradição magisterial judaica e não confundi-lo com um didáskalos grego), "messias" (v. 41 ), "aquele de quem escreveram Moisés, na Lei, e os profetas (v. 45), "filho de Deus/ rei de Israel" (v. 49), "Filho do homem" (v. 51 ). Este número de seis identificações, que preparam para relatos posteriores, já é im- portante como simples registro. Isso, porém, não é tudo. Além disso estão dispostos nos lugares certos. Abrem e fecham o relato total dos w. 35-51. Cada série, presidida pela referência temporal "no dia seguinte" (w. 35-42 e 43-51 ), contém três identificações de Jesus e outra de um agente humano: Simão = Cefas/pedra, na primeira; Natanael = verdadeiro israelita, na segunda (w. 41 e 47). Na segunda série, as identificações de Jesus se contrabalançam com o "sentido" do AT e de Natanael como verdadeiro israelita, referência evidente ao "sentido" de Israel. 17 Na estrutura atual do quarto evangelho, Jo. 1-2 tem sua correlação em 20-21. P ág in a2 0 Por fim, existe um código de movimento (ir, vir, seguir: w. 37, 38, 39, 40, 43, 46) que remarca o seguimento a Jesus e que, por sua vez, semanticamente se contrapõe, porém teologicamente se complementa como o "ficar/permanecer" do v. 39. Este em outro nível, prepara o ménein ou "permanecer" em Jesus, tão tipicamente joanino. Pode-se, todavia, explorar ainda mais este relato tão bem "tecido" por diferentes códigos e tão fecundo à luz da semiótica. Manifesta-se aí a aventura de ler um texto como produção inesgotável de sentido e, portanto, como recriação constante da mensagem. Na parte II abordaremos outros caminhos de exploração da mensagem de um texto reforçados pela contribuição da semiótica. 4. IMPLICAÇÕES DA LEITURA COMO PRODUÇÃO DE SENTIDO Nesta relação entre semiótica e hermenêutica, entre força do texto e força da vida, verificam-se certos efeitos e certas exigências que convém expor para tomar melhor consciência dos alcances de uma leitura interpretativa dos textos bíblicos: a. TRANSFORMAÇÃO E OCULTAMENTO Em todo texto há um "adiante", esse mundo de sentidos que se abre em virtude de sua polissemia, potenciada por sua própria condição de estrutura lingüística e, como sabemos, pela "morte" de seu autor. O sentido está no texto e não na mente de seu autor. No texto, por sua vez, não está como entidade separável, mas sim "codificado" em um sistema de signos que constituem o relato e que "dizem algo sobre algo" por sua manifestação como determinado discurso. Em boa parte, isto resume os pontos anteriores. Agora queremos destacar até que ponto cada leitura de um texto que "diz" transforma aquilo que diz e aquilo sobre o que diz, ocultando precisamente esta transformação. Vamos tematizá-lo com os relatos intituladosde "Servo de Javé", de Dêutero-Isaías. As passagens em questão são Is. 42.1 -7; 49.1-9a; 50-4-1 1; 52.13- 53.12. Pressuposta esta uma independência original destes poemas com relação à composição de Isaías 40-55 (Dêutero-Isaías), e também da formação do atual "livro" de Isaías 1-66, é possível neles discernir um personagem de traços reais (de rei), que recebe de Deus a missão de libertar o povo de Israel cativa entre as nações. É perseguido e humilhado até a morte, ao final, porém, é exaltado. Seu sofrimento era vicário, uma vez que "eram nossos os males que levava, nossas as dores que suportava (53.4), por nossas transgressões foi entregue à morte (v. 8), carregou o pecado de muitos (v. 12)". O discurso é portador de um sentido que resulta da organização de códigos profundos (ações e funções) e de superfície (símbolos, recursos estilísticos, gêneros literários, etc.). O texto dá sentido pela disposição de tais significantes lingüísticos que remetem a significados que permanecem no interior do próprio relato, ainda P ág in a2 1 que não mais tenhamos notícias sobre seu "referente" extralingüístico (Joaquin? Zorobabel? O próprio Israel? Algum profeta? Um sábio?).18 Os métodos críticos da exegese bíblica nos ajudam a identificar, um possível referente para estes poemas, porém não está aí a chave de leitura. É apenas uma tentativa de recuperar o "atrás" do texto, a situação de vida que o originou como primeira produção de sentido. Importante como é a leitura "histórica" destes textos, permanecer nela é um risco que se deve evitar. O que se pretende, na verdade, é reduzir o sentido à sua primeira produção, e isso esgota o texto no momento em que começa a mostrar sua polissemia. E o mais sério é atrelar-se a uma forma de "historicismo" do qual logo surgem os concordismos exegéticos que, sob pretexto ingênuo de destacar a relevância da Palavra de Deus para o presente, imobilizam-na em sua primeira referência. Dessa maneira, práticas tão opostas como a exegese crítica e o concordismo fundem-se na tentativa de cristalizar o sentido dos textos. Com isso, por fim, privilegia-se o "referente" (fenômeno extra-língüístico) em detrimento do significado do próprio texto. Bem, é deste e não daquele que emanam as releituras. Eis aqui um princípio importante que novamente conjuga a semiótica com a hermenêutica. O "referente" de um texto é um fechamento de sentido no próprio momento de sua produção. Um texto, como toda linguagem em ação, somente pode comunicar uma mensagem através de alguma forma de clausura que lhe imprime justamente o "referente" extralingüístico, aquilo a que o texto se refere para dizer algo a alguém. Em contraposição, o próprio texto, enquanto estruturação, de significantes e significados que geram sentido, é polissêmico e demonstra uma tendência muito forte a não reter o "referente" histó- rico, sobretudo nos textos religiosos e naqueles que são interpretados uma e outra vez. Aquele acaba sendo um peso que necessita ser lançado fora. Cremos que este é justamente o caso dos cânticos do "Servo" dêutero-isaiânico. Por que não se reteve o personagem histórico a que se referiram alguma vez? Por que há necessidade de identificá-lo através de tantas hipóteses já conhecidas para compreender estes magníficos relatos? Hipóteses que, por seu lado, talvez nos remetem ao estado pré-redacional que não constitui o nível do texto querigmático atual. Saber se a figura do "Servo" era Joaquin ou algum outro personagem apenas esclareceria a gênese do texto, não, porém, o texto mesmo. É um erro de perspectiva. O próprio fato de que os poemas em questão não indicam o referente de maneira explícita deixa mais aberta a própria interpretação. A própria expressão poética e simbólica aponta para essa direção. Ainda que a favoreça, esta não é a única condição da polissemia do sentido. Os relatos são polissêmicos por sua própria estrutura lingüística. Assim projetam-se até o "adiante", reclamando a manifestação de um excesso-de-sentido. Por isso sua leitura será uma produção de sentido, nunca uma repetição do primeiro sentido. Isto é fundamental para entender o processo hermenêutico. Não é estranho, então, que nossos cânticos tenham sido relidos por gerações sucessivas em normas tão diferentes. Vamos apontar quatro etapas: 1. A recensão canônica já tem alguma marca de atualização do referente como recurso para fechar o sentido dos poemas. Em Isaías 49.3, o texto hebraico transmitido identifica o Servo com Israel ("E tu, Israel, és meu servo"). A nível de releitura não importa muito a contradição interna com os vv. 5-6, que mencionam seu envio para Israel. Para a crítica literária, trata-se de uma 18 Cf. ultimamente P. Grelot, Les poèmes du Serviteur. De la lecture critique à I'herméneutique (Cerf, Paris 1981) 67-73. P ág in a2 2 "glosa incoerente". Hermeneuticamente, essa glosa é rica como transposição do sentido a um referente atualizado pelas necessidades da comunidade que transmitiu o texto. 2. Na Septuaginta (LXX) predomina a interpretação coletiva: os poemas são constantemente referidos ao Israel perseguido da diáspora, deixando também claro a sua missão salvífica.19 3. O Novo Testamento novamente retoma a interpretação individual, favorecida pela própria simbologia dos textos, que falam de uma pessoa singular (isso não significa, digamo-lo uma vez mais, que os poemas se refiram a um indivíduo). Dessa forma, não é difícil passar à leitura cristológica. Essa releitura à luz do fato Crístico tem sido tão forte que impregna muitas páginas do Novo Testamento.20 4. O Targum de Jonatã (século II d, C.) retoma a exegese coletiva ( = Israel ) para Isaías 49.7; aplica ao Messias o oráculo de Isaías 42.l ss, ao profeta Isaías o texto do capítulo 50.4-11. Evita, no entanto, fazer qualquer alusão ao Messias no quarto poema (Is 52.13-53.12). Como foram possíveis tantas releituras de um mesmo texto sagrado, se de alguma maneira o texto não estava aberto? Pela mesma razão nós podemos relê-lo sem estar limitados pela leitura cristológica d Novo Testamento, entendida como definitiva e única para nós. O" ' próprio Paulo, no seu tempo, estendeu a si mesmo, como pregador perseguido, a figura do "Servo", luz das nações (GI 1.15; em um dos relatos lucânicos sobre a vocação de Paulo, Atos 26.18; e no episódio de Antioquia, At 13.47). Também hoje existem situações de pessoas, grupos ou povos que reclamam um nova interpretação destes poemas, que tão bem trasladam a presença de Deus e a confiança de quem trabalha em seu serviço. Todas estas releituras do texto dêutero-isaiânico não estão condicionadas pelo primeiro referente do relato, inexoravelmente perdido, mas pelo próprio texto em virtude se sua polissemia literária codificada. b. DEPENDÊNCIA TEXTUAL O que chama a atenção em toda interpretação de um texto é o fato de que ela necessita partir do texto. Não pode aparecer como um adendo arbitrário e acidental; ela pretende ser leitura do texto transmitido. Quando Jesus ressuscitou, dirigiu-se aos discípulos de Emaús e, para censurá-los ("Ó insensatos e lentos de coração para crer tudo o que os profetas anunciaram. Não era necessário que o Messias sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?" 19 Por exemplo, Is. 49.6b diz assim na LXX: "E eis que te estabeleci como luz das nações, para que sejas a salvação até os confins da terra" (o grifado marca o desvio em relação ao texto hebraico, modificando profundamente seu sentido). Cf. P. Grelot, op. cit., p. 82ss. 20 Lista de passagens e comentário à luzdo texto hebraico, em P. Grelot, op. cit., p. 138-189 (encontra no Novo Testamento reminiscências, imitações, citações diretas; os textos onde se retoma os Cânticos são: Paulo, Hebreus, 1 Pedro, Lucas e Atos, Mateus, João e (provavelmente) Marcos. P ág in a2 3 Lucas 24.25s), remete a um texto, o qual está interpretando. Muito bem, não existe nenhum relato profético do Antigo Testamento que contenha o referente messiânico que, segundo Lucas, Jesus afirma. Por outro lado, é evidente sua alusão aos cânticos do "Servo" de Isaías 40.45 (cf. também o v. 46 "assim está escrito que o Messias padeceria e ressuscitaria dentre os mortos ao terceiro dia"). É difícil crer que Lucas se faça eco da tradição rabínica sobre o Messias filho de José, Messias efraimita que, segundo alguns textos, deveria padecer.21 Evidencia-se, pois, clara- mente a dependência de Lucas em relação às tradições messiânicas davídicas (nascimento de Jesus em Belém; referências a Davi, Lc. 1. 32,69; 3.31; 20.41-44; teologia de Jerusalém). Por outro lado, esse recurso hipotético não é necessário. Para ser mais exato, a citação lucânica mostra um "remendo" ao texto profético que é efeito reversível tanto do fenômeno lingüístico da polissemia (cf. parágrafo anterior) como da dependência "textual" do ato hermenêutico. A releitura se faz "texto". A releitura que o Jesus de Lucas 24 faz de Isaías 53 é uma produção de sentido e se expressa como um discurso sobre um outro discurso anterior incorporado naquele. Em perspectiva, parece que houve um só discurso, um só texto. O texto grego da LXX que citamos na parte a) não é uma tradução mecânica do original hebraico, qualquer que tenha sido a recensão utilizada. É, isto sim, uma adaptação do original hebraico. E isto não por desconhecimento da língua hebraica naquele tempo. Mas por que então não verteram literalmente, deixando para um relato diferente a interpretação almejada? De forma alguma: a sua leitura se origina no texto isaiânico (e nunca como interpretação paralela) e, por outra parte, tem que expressar esse texto, consagrado pela tradição. O texto do LXX é, portanto, um discurso (no sentido semiótico da palavra) sobre um outro discurso (o texto de Isaías), que, porém, se manifesta como um único discurso (= o texto de Isaías). Pela mesma razão, a interpretação que Lucas põe nos lábios de Jesus remete ao texto de Isaías 53. Na versão targúmica deste poema há tantas divergências com relação ao hebraico que a fazem mais parecida a um midrash. Quem compara o texto hebraico com o aramaico, constata que talvez somente 50% deste último correspondem àquele.22 Apesar disto, convém destacá-lo, o texto assim apresentado é, na tradição rabínica, o texto de Isaías. Não interessa a pessoa histórica de Isaías. Interessa apenas esse texto canônico transmitido pela tradição e que é tido como "palavra de Deus". Disto advém a suma importância que tem toda leitura como leitura de um texto. Esse fenômeno - e já estamos no coração da hermenêutica - não faz outra coisa senão pôr em relevo duas coisas já reiteradamente expressadas: 1) que todo texto concentra uma polissemia que, 21 Veja R. Pietrantonio, "EI Mesías asesinado. EI Mesías ben Efraim en el evangelio de Juan", Revisfa Blblica 44,1, n° 5 (1982) 1-64 (resumo de tese) (para os textos targúmicos, p. 24ss). 22 Compare-se Is 50.4-5 no texto hebraico e no Targum: Hebraico: "O Senhor Javé me deu língua de discípulo para que faça saber ao cansado uma palavra de alento. Manhã após manhã, desperta meu ouvido para escutar como os discípulos. O Senhor Javé me abriu o ouvido" (queixa do servo perseguido). Targum: "Javé-Deus me deu a língua dos que ensinavam, para saber ensinar os justos que langüidescem pelas palavras de sua Lei, a sabedoria. Assim, cada manhã, envia cedo seus profetas no caso de que os ouvidos dos pecadores estejam abertos e que acolham seu ensinamento. Javé-Deus me enviou para profetizar". (queixa do profeta perseguido). Aí encontram-se apenas alguns vocábulos do texto original. Em realidade, é um meta-texto. Is 53.10, um texto tão decisivo na releitura cristológica do Novo Testamento, perde totalmente a sua fisionomia original. Coloquemos os dois textos em paralelo: Is 53.10 (hebraico) "Todavia agradou a Javé quebrantá-lo com dores. Se se dá a si mesmo em expiação, verá descendência, prolongará seus dias e o que agrada a Javé se cumprirá por sua mão." Is 53.10 (Targum) "Agradou a Javé refinar e purificar o resto de seu povo a fim de limpar suas almas dos pecados: verão o reino do seu Messias; multiplicar-se-ão seus filhos e filhas, prolongar-se-ão seus dias; e os que cumprem a Lei de Javé prosperarão se- gundo seu beneplácito." P ág in a2 4 por sua condição de "tecido" estrutural de códigos lingüísticos, abre-o até o "adiante"; 2) que toda leitura de um texto é uma produção de sentido em códigos novos que, por sua vez, geram outras leituras como produção de sentido e assim sucessivamente. A interpretação é um processo em cadeia, não repetitivo, mas ascendente. Há uma reserva-de-sentido sempre explorada e nunca esgotada. c. APROPRIAÇÃO DO SENTIDO A partir de um outro ponto de vista, a leitura como produção de sentido significa também uma apropriação do sentido. Estabelece-se uma espécie de dependência em relação ao texto interpretado e surge uma exigência de possuir todo o seu significado. Esse fenômeno é de uma violência tremenda na leitura de textos que têm muito impacto sobre a prática, como por exemplo textos religiosos, políticos ou ideológicos. A pretensão pelo sentido é totalitária e exclusiva: nada é compartilhado. Isto justamente por se tratar de uma "apropriação". Não se pode deixar fissuras para outras leituras. No próprio ato de afirmar implicitamente uma reserva-de-sentido inesgotável no texto, o intérprete procura esgotá-lo, não deixando nada para a outra leitura. Disto advém o "conflito de interpretações". Como cada interpretação crê ser a interpretação, não aceita a outra. Aí nasce a luta. Este é um fenômeno típico que resulta dos grandes textos que inspiraram movimentos históricos ou originaram grupos com uma cosmovisão própria. Pode-se exemplificá-lo com os textos de Marx, a tradição bíblica ou a hindu. Na Índia, doutrinas muito díspares entre si remetem-se aos livros sagrados dos vedas. É significativo o fato de que o vedanta, especulação filosófica que apenas ressoa como fazendo parte da doutrina religiosa dos vedas, porém, com uma distância de dois mil anos daquela, apresente-se como a interpretação daqueles. O seu próprio nome, vedanta (= "fim dos vedas"), expressa uma pretensão de esgotar o seu sentido. Os textos de Marx são eloqüentes com relação à luta interpretativa, ideológica, política, que seguem engendrando. Cada corrente marxista é, de acordo com sua própria avaliação, a leitura dos grandes textos de Marx. Citamos este caso, que não tem nada a ver com a religião, para mostrar com evidências claras que o agregamento de partes a um texto do passado não é própria da cosmovisão religiosa e que acontece também em uma práxis sócio-política que, aparentemente, nega toda outra fonte de significado que não seja esta mesma práxis. Voltemos agora aos poemas do Servo de Javé de Dêutero Isaías. As leituras praticadas pelas LXX, pelos essênios do Mar Morto (Qumrã), pela igreja primitiva (Novo Testamento) ou pelo Targum, não foram, para esses grupos, leituras "possíveis" entre outras, mas sim, foram o sentido do texto profético. Este aspecto totalitário da exegese é mais visível, por exemplo, na interpretação targúmica, onde se pode reconhecer uma polêmica anticristã,uma tentativa de bloquear a leitura cristológica desse texto tão carregado de significação. Dessa maneira, os tradutores do texto isaiânico ao vernáculo aramaico daquele tempo (a que se tem dado o nome P ág in a2 5 técnico de "Targum") despistaram toda referência possível de Isaías 53 ao sofrimento de um Messias individual. Assim não confirmaram uma exegese já atualizada pelos cristãos na pessoa de Jesus de Nazaré. E não se trata apenas de um fato ideológico. Foi facilitado pela condição do próprio texto, polissêmico por um lado, mas que produz somente um sentido enquanto estrutura narrativa orientada a "dizer algo sobre algo". Não existem sentidos múltiplos numa mesma leitura. A interpretação rabínica de Isaías 53 anula a que fizeram os primeiros cristãos; não a admite nem sequer como possível. E a leitura que aqueles praticavam, deslocava a anterior da LXX. Em outras palavras, toda leitura é "enclausuradora" de sentido. Que paradoxo esse jogo de alternância entre polissemia do texto e monossemia da leitura! (veja o diagrama no final desta parte I). Assim também a leitura da Bíblia feita pela teologia da libertação resulta conflitiva em relação a outras "apropriações" do sentido do querigma. Este fato supõe outras causas que comentaremos em seguida. A causa menos importante não é, porém, a que se fundamenta no caráter "enclausurador" de toda leitura. Isto é tão básico como O outro fenômeno (cf. b) da dependência em relação ao texto. Esta conjugação entre o sentido do texto e sua leitura "enclausuradora" pode chegar a situações extremas frente a outras leituras. Voltemos, porém, ao Targum de Isaías 53. A interpretação que este faz do texto de Isaías (e o relevante é que seja de Isaías!) não pode partir do texto hebraico desse profeta. A versão aramaica teve que modificá-lo estruturalmente, convertendo-o em outro relato, diferente do original, mas que é reproduzido na leitura sinagogal como o texto autêntico do profeta Isaías. Essa releitura (muito mais midráshica do que targúmica)23 segue sendo "enclausuradora", fazendo desaparecer o relato que permitiria outras leituras. O conflito de interpretações está aí vivamente expresso, porém não "dito". Alguém poderia até se perguntar pelo que pensavam os rabinos que conheciam também o texto hebraico, tão modificado na versão aramaica. Esta pergunta carece de interesse. O texto feito "tradição" e normativo já não era outro do que o texto do Targum. Era o texto canônico daquele momento. Não é o dirigente, mas a comunidade quem aceita um texto como normativo e atual. Coisa bem diferente acontece, quando se abandona o uso do Targum e se volta ao texto hebraico (quando o aramaico já não mais é a língua viva para o judaísmo palestinense). A polissemia dos poemas do "Servo" dá lugar a uma outra leitura que, por sua vez, intenta absorver todo o sentido. Nessa leitura tampouco cabe uma interpretação cristológica.24 Nós vamos nos deparar com o mesmo fenômeno, quando enfocarmos o ato hermenêutico a partir da perspectiva da práxis (parte II). Terminaremos com duas observações. Por um lado, o leitor há de ter-se dado conta de que o conflito das interpretações gera divisão, a qual nem sempre acontece no nível ideológico. 23 Targum significa a varsão (interpretativa) do texto hebraico ao aramaico; o midrash é a ampliação de um texto ou passagem até tomar um novo relato. Um e outro obedecem normas hermenêuticas, só que o midrash tem mais possibilidades de expandir-se e, portanto, de atualizar um texto. Cf. R. Le Déuat, "Un phénomène spontané de I'herméneutique juive ancienne: le "targumisme": Bíblica 52 (1971), 505-525; Id., "La tradition juive ancienne et I'éxegèse chrétienne primitive", Revue d'Histoire et de Philosophie Religieuses 51 (1971) 31-50; A. Díez Macho, cf. nota 6; E. Levine, "La evolución de la Biblia aramea", Estudios Bíblicos 39 ( 1981) 223-248 (aspectos interessantes sobre o Targum). 24 Nada estranha, neste sentido, que um H. M. Orlinsky negue o fundamento para uma leitura cristã de Is. 53. Cf. "The So- Called "Suffering Servant" in Isaiah 53", Vários, Interpreting the Prophetic Tradition (KTAV Publishing House, N. York 1969) 225-273; Id.. "The So-Called "Servant of the Lord" and "Suffering Servant" in Second Isaiah" na obra conjunta com N. H. Snaith, Studies on the Second Part of fhe Book of Isaiah (Brill, Leiden 1967) p. 66ss, esp. p. 73 e 118 (em suas expressões, Orlinsky está afirmando o princípio elementar da eisegese hermenêutica!). P ág in a2 6 Nem toda divisão, porém, é negativa. Pode também ser criativa. A grande unidade, às vezes, é amorfa, indolente. Por outro lado, a "apropriação" do sentido pretensiosa pela totalidade como é, nunca o é na realidade. Se há muitas interpretações de um mesmo texto, todas partem do mesmo texto, e então deve haver alguma forma de convergência. As leituras se comunicam subterraneamente. Isso faz com que a divisão que, para ser tal, deve gerar-se em algo comum, conserve sempre um fator de reunião. Também os mitos são conflitivos uns em relação aos outros. Ainda que se estruturem sobre o mesmo tema, cada um se cristaliza dentro de uma cosmovisão e pretende esgotar o sentido da realidade que interpreta. Comunicam-se, todavia, a nível dos símbolos que contém e ao nível de uma experiência humana profunda.25 d. A FUNÇÃO HERMENÊUTICA DA DISTANCIAÇÃO Antes de completar esta parte, convém fazer uma referência à função da hermenêutica da distanciação. Havíamos feito menção a uma dupla distância aberta entre a língua e a "fala", por um lado, e entre esta e o texto/escritura, por outro (veja o diagrama no final de I, 2). Se a primeira é formal, a segunda é concreta e, de alguma maneira, temporal e espacial. O desaparecimento do autor de um texto, o deslocamento dos destinatários, a troca do contexto de vida que engendra a pergunta sobre a mensagem, significam uma distanciação em relação à primeira produção de sentido, a do ato do discurso. Muito bem, quanto maior é a distância, maiores são as perspectivas de releitura do texto. Isto se fará mais evidente na parte II, 1, quando falarmos dos fatos fundantes de uma tradição. Por ora queremos indicar somente que uma terceira "distanciação" hermenêutica se produz entre o texto/Escritura e sua releitura (veja-se o diagrama seguinte, que completa o de I, 2). Esta distanciação se dá de uma leitura à outra: cada leitura parte do texto, porém esse efeito é aparente, pois está condicionada por aquela leitura que a precede e a qual justamente quer apagar. De fato, porém, absorve-a ou a suprime. Por isso, por mais conflitiva que seja, em cada leitura há algo de convergente. Por outro lado, a cadeia de releituras da Bíblia, ou de outro texto, significa, em última instância, uma acumulação de sentido. Quanto maior é a distância, mais fecunda pode ser a exploração da reserva-de-sentido do texto. Por causa disso se pode afirmar que a "distanciação" cumpre uma função interpretativa.26 A partir de um ponto de vista "historicista", este fenômeno assusta, porque parece que se perde em proximidade e em exatidão em relação ao sentido original. A partir de um ponto de vista hermenêutico, no entanto, é um fenômeno fecundo e criativo. Vamos constatá-lo novamente em II 1. Para resumir o que analisamos nesta parte I, completaremos a figura anterior: 25 Sobre o tema da comunicação subterrânea de mitos irredutíveis entre si, o que aqui fazemos valer para toda interpretação de fatos ou textos, cf. P.Ricoeur, La simbólica del mal (tomo II de Finitud y Culpabilidad) (Taurus, Madrid 1964) p. 649ss.
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