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AULA 4 – REFLEXÃO SOBRE CIDADANIA PARA O DIREITO ROMAN0, DIREITO, ENTÃO Era algo como um patrimônio que se possuía. A partir desta forma de compreender o direito, estabelecia-se então o que se constituía em última instância as fontes dos direitos do homem: “três são, pois, as coisas que temos: a liberdade, a cidade, a família”. A liberdade era tida como a fonte radical dos direitos do homem; a “posse de uma família” e a “posse de uma cidade” (a cidadania) requeriam, para cumprir a finalidade de outorgar direitos ao homem, a existência prévia de liberdade. Desta maneira, os escravos, ao carecerem de liberdade, careciam também da qualidade de homens. Havia ainda seres humanos que, sem serem escravos, viam diminuída a sua capacidade de serem livres, como os estrangeiros ou os vencidos que se rendiam ao poder de Roma. A esses homens que careciam de uma pátria ou de uma cidade aplicava-se apenas o direito das gentes, o jus gentium. Por isso o Direito romano era privilégio do povo livre de Roma, dos cidadãos de romanos. Cidadania reporta-se primeiramente, nesse sentido, à condição de quem pertence a uma cidade e sobre ela tem direitos. A referência política para a época renascentista, nesta matéria, era a cidade estado clássica (a polis ou, sobretudo, a urbs), onde a soberania era exercida pelos cidadãos livres de uma cidade independente, por meio de um código legal válido inclusive para os territórios que se estendiam para além dos seus muros e que se encontravam sob o seu controle direto. NO RENASCIMENTO O debate político sobre o tema da cidadania (se assim podemos nomeá-lo, pois o termo é empregado aqui avant la lettre), dá-se basicamente em torno da interpretação da tese aristotélica da natureza política constitutiva do homem. Para São Tomás de Aquino e seu discípulo Ptolomeu de Luca, assim para o florentino Dante Alighieri, o Estado origina-se da natureza do homem, e não diretamente da vontade divina (a origem divina do estado constituía o fundamento da tese herética dos luteranos, que o Concílio de Trento procurou combater por meio do Decreto sobre a justificação). P. 107 – para a Prof Essa era a situação de alguns comunas do então chamado Reino Itálico. Juridicamente submetida ao Sacro Império Romano, a região acabou conquistando grande autonomia em face das fraquezas militares e financeiras do imperador. A mais espetacular manifestação da autoridade imperial era o fato de que, embora o Direito romano fosse aplicado em todos os seus domínios, no Reino Itálico seu poder era exercido por delegação: a continuidade do Império dependia do vicariato (isto é, o exercício de fato do poder em substituição ao do imperador), única manifestação de uma soberania afinal sem consequências, fórmula logo ultrapassada pela questão financeira subjacente. O imperador, aos olhos dos italianos, não era mais do que uma máquina capaz de legitimar e consolidar qualquer poder local adquirido em troca de dinheiro. Se não existe ainda a ideia moderna de cidadania no Renascimento, é certo, contudo, que ela começou a ser esboçada justamente nesse período em razão de um conjunto de circunstâncias. As antigas comunas italianas, cujas dimensões não ultrapassavam em geral o espaço delimitado pelos muros que circundavam essas cidades, foram aos poucos substituídas por senhorias que englobavam diversos burgos e cidades. A tese central diz respeito ao “desenvolvimento do indivíduo”: no caráter desses estados, repúblicas ou despotismos, está não a única, mas a principal razão para o desenvolvimento precoce dos italianos. Até então, o homem só estava consciente de si próprio como membro de uma raça, de um povo, de um partido, de uma família ou corporação – somente através de uma categoria geral. Foi o despotismo (p. 101) que se instalou com as senhorias que fomentou a individualidade ao mais alto grau, não apenas do tirano ou do condottiere, mas também dos homens que ele protegia ou usava como instrumentos – o secretário, o ministro, o poeta, o companheiro. Este seria o caso de Florença, durante o período de domínio da família Médici. A valorização recorrente da “república florentina” e a associação ali localizada entre desenvolvimento da individualidade e exercício da cidadania remonta, contudo, à própria época renascentista, Coluccio Salutati (1331-1406), eleito chanceler de Florença em 1375, elabora já a imagem dessa cidade como herdeira legítima da antiga Roma republicana. Salutati refutou em mais de uma ocasião as acusações de que o governo florentino seria um governo oligárquico, afirmando que Florença não era governada por apenas trinta pessoas, mas por milhares de cidadãos que se alternavam no poder. Organização da estrutura de poder em Florença: três poderes – o executivo, o administrativo e o legislativo. O que importa observar é que nem todos os cidadãos de qualificavam para ocupar esses cargos. Deles estava excluída a plebe, que correspondia à grande maioria da população, enquanto que o povo (o popolo, isto é, os artesãos e a pequena e média burguesia) encontrava-se reduzido a uma participação mínima. Se todo o povo possuía direitos políticos (em oposição à plebe, conforme definição romana antiga de civis), os próprios florentinos acrescentavam adjetivos que evocavam a realidade política da cidade e traduziam a exclusão e a hierarquia na esfera política: eles distinguiam assim entre o popolo grasso, o popolo medio, e o popolo minuto Literalmente: o povo gordo, povo médio e o povo miúdo. Em 1391, ano em que a base dos cidadãos que possuíam direitos políticos foi a mais ampla, contavam- se 6.310 indivíduos (o equivalente a 12% da população, aproximadamente). No auge da república florentina (entre 1494 e 1512, após o primeiro ciclo de dominação da família Médici), os artesãos e a pequena burguesia obtiveram o direito a voto no Conselho do Povo (então chamado Grande Conselho, Consiglio Maggiore): isso significava que aproximadamente 3.200 dos quase noventa mil habitantes que viviam na cidade tinham o direito de participar do Grande Conselho... Mas não dos conselhos restritos e demais cargos executivos. Na época da ascensão de Cosme de Medici ao poder (1434), duas mil pessoas aproximadamente eram elegíveis para as três magistraturas supremas. Foi manobrando dentro dessa estrutura que a família Medici conseguiu instaurar “um ciclo que lhe assegurou o controle permanente da senhoria, pedra angular do edifício florentino”, de maneira que, durante sessenta anos seguidos (entre 1434 e 1494), a “República oligárquica” florentina transformou-se numa “monarquia larvada”, um “sistema de governo pessoal que, ainda que conservando as aparências democráticas, esvaziou praticamente as instituições republicanas de toda a substância”. ANTES DE SER POLÍTICA, A EXCLUSÃO ERA Social. A República florentina era na realidade uma república oligárquica cuja máquina administrativa estava nas mãos de representantes da alta burguesia e das grandes famílias aliadas a ela. Aqui reencontramos a associação entre liberdade, cidade e família. Família, corporação, cidade: estas eram as unidades irredutíveis que determinavam a identidade de um indivíduo. A pertença a uma nação era ainda uma percepção distante. Um outro chanceler florentino, Leonardo Bruni, discípulo e sucessor de Salutati, dirá ainda que “todos os oprimidos, todos os banidos, todos os exilados, todos os que combatem por uma causa justa são idealmente florentinos. É interessanteobservar como esses chanceleres recuperam as distinções sociais romanas antigas entre os que tinham e os que não tinham direitos políticos e, no elogio e defesa do governo de sua cidade, entendem o direito de cidadania a uma parte expressiva de sua população. P. 101 – REFERÊNCIA PARA A PROFESSORA Leonardo Bruni considera ainda que a história de Roma como a mais clara comprovação da tese segundo a qual um povo necessariamente atinge a grandeza enquanto dispõe de liberdade para participar dos negócios do governo, e necessariamente se corrompe tão logo se vê privado dela. Florença não foi talvez o berço da democracia moderna, ainda que tenha sido certamente um dos berços do mercantilismo moderno. O chanceler Colucio Salutati assim se exprimia numa carta datada de 1401: “ Santa coisa é a peregrinação, mais santa todavia a justiça; santíssima, porém, segundo o nosso juízo, é o comércio [mercatura], sem o qual o mundo não poderia viver. A mercatura era, sem dúvida, a atividade mais considerada pelos florentinos que detinham, além do direito de cidadania, o exercício efetivo do poder da cidade. De fato, as únicas frações de classe que progridem neste período são aquelas associadas às atividades comerciais e financeiras. O comércio internacional, o desenvolvimento dos bancos e d indústria, toda essa efervescência capitalista que caracteriza os séculos XV e XVI beneficiam apenas a elas – exceção feita, talvez à Inglaterra. AO LADO DESSA FORÇA ECONÔMICA a força política se apropria dos corpos da cidade e dos Estados provinciais. Em resumo, uma burguesia ambiciosa de poder e de liberdades políticas opõe-se progressivamente a uma nobreza que perde pouco a pouco seus privilégios e a uma massa considerável de pessoas pobres, verdadeiro exercício revolucionário capaz de apoiar tanto as ambições burguesas como a autoridade real ou uma revolta camponesa. Essas grandes famílias que dominavam as instituições florentinas por meio de corporações de financistas, comerciantes, juízes e notários permitirão talvez o desenvolvimento do indivíduo no seu seio e nas suas esferas de atuação. Mas, sobretudo, elas vão patrocinar uma atividade fundamental da época renascentista, a descoberta do mundo, que logo conduzirá, por sua vez, à descoberta do homem. FAMÍLIA, COORPORAÇÃO, CIDADE ESTAS ERAM AS UNIDADES IRREDUTÍVEIS QUE DETERMINAVAM A IDENTIDADE DO INDIVÍDUO A PERTENÇA A UMA NAÇÃO ERA AINDA UMA PERSEPÇÃO DISTANTE.
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