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Um Hamster

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Um Hamster
Daniel Pellizzari
Esta gaiola está tão suja, os jornais embolados, fedor de merda e mijo espalhados, eu sei, mas não posso limpar. Isso é função do meu Dono, mas Ele não faz nada. Talvez tenha enjoado de mim. Sei que isso acontece: primeiro sou uma novidade, depois cansam. Humanos. O que me resta é viver como posso aqui dentro, e confesso que até já me acostumei. Já li diversas vezes as mesmas notícias desta página policial, decorei os crimes em todos os seus detalhes. Pelo menos não são os anúncios dos classificados. Além do mais, é verão, e o chão de metal da gaiola não congela minhas patas.
Passo os dias zanzando de um lado para o outro. Não há muitas coisas para fazer em um espaço tão pequeno. De vez em quando afio meus dentes no canto esquerdo da gaiola, para que não cresçam demais e perfurem meu céu da boca, me dilacerando o cérebro. Se eu comesse mais, não precisaria fazer isso, mas o problema é que até de me alimentar Ele esqueceu. Lembro dos dias em que meus pote estavam cheios de comida, sementes de girassol cenouras alfaces laranjas maças, sempre. Às vezes até nozes, e era bom. Eu sentia aquele cheiro e corria aos potes, antes mesmo do Dono fechar a gaiola. Ele ria, enquanto eu enchia as bolsas de minhas bochechas com aquela fartura. Agora nem água eu tenho mais.
Ah, eu lembro de quando Ele trouxe amigos para me ver, e brincar comigo. Um deles me apertou demais e eu mordi, e então me colocaram de volta na gaiola. Mesmo assim continuei a ganhar comida e água, como sempre. Mas um dia o Dono sumiu. Nunca mais senti seu cheiro. Desde então fico aqui no meio desses jornais sujos e dos potes vazios, esperando. Já pensei em dar uma voltinha na minha rodinha, como sempre fazia, mas não tenho forças. Hoje decidi que não vou mais perambular pela gaiola, nem afiar dentes, nada. Ficarei quietinho aqui no meio da gaiola, esperando. É tudo que posso fazer. Talvez Ele esteja com vergonha de voltar. Pode ser. Se for isso eu prometo que o perdôo quando ele aparecer de novo, com nozes, água e o caderno de cultura. Admitirei até que O amo, juro. Mas Ele não volta, a porta do quarto não abre, não escuto nenhum ruído na casa, as janelas continuam fechadas. Não há de ser nada. Um dia Ele aparece.
Respiro fundo, me deito e espero.
PELLIZZARI, Daniel. Ovelhas que voam se perdem no céu. Porto Alegre: Livros do Mal, 2004.

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