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CULTURA RELIGIOSA Conselho Editorial EAD Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) Mara Lúcia Machado José Édil de Lima Alves Astomiro Romais Andrea Eick Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. ISBN: Edição Revisada APRESENTAÇÃO Prezado aluno, A experiência de mais de 16 anos de docência tem mostrado o fascínio dessa disciplina. O começo sempre é difícil. Existe uma resistência natural do aluno em estudar os conteúdos. O pré- conceito fica claro quando se define a disciplina como aula de reli- gião. Outros ainda pensam em catequese. Mas não será esse o nos- so objetivo. Vamos caminhar com cada um de vocês no sentido de construir uma reflexão madura sobre a vivência e o comportamen- to religioso das pessoas e a influência que a religião exerce sobre a vida de cada um de nós. Ao final de cada semestre, ficamos surpresos com a reação dos alunos. A maioria considera a disciplina muito interessante. É claro que alguns resistentes ficam indiferentes, pois não tiveram a cora- gem de abrir o coração e aceitar conceitos essenciais para se viver uma boa vida. Respeitamos esses posicionamentos. A ULBRA é uma universidade confessional. Está ligada a uma instituição religiosa. Mas nem por isso queremos impor o que pen- samos. Vamos apenas debater. Se pudermos ajudar-lhe com essa reflexão, com certeza o faremos. Você irá encontrar neste livro um panorama das maiores religiões do mundo. Notará a pluralidade religiosa e terá uma ideia da ri- queza de pensamento e valores das religiões estudadas. Também iremos estudar mais detalhadamente o cristianismo e a Reforma luterana, pois são movimentos que influenciaram diretamente na existência da Universidade Luterana do Brasil. Por fim, sempre é hora de estudar ética. Particularmente a ética cristã e os valores que ela pode acrescentar na vida de cada um de nós. 6 Nessa caminhada, muitos dos textos têm a participação de profes- sores de Cultura Religiosa que nestes 15 anos estão ao nosso lado. Citamos aqui Ronaldo Steffen, Jonas Dietrich, Valter Kuchenbec- ker, Egon Seibert, Ricardo Rieth, Valter Steyer, Thomas Heimann, Nereu Haag e Bruno Muller. Além desses, não podemos deixar de citar o capelão geral da ULBRA, pastor Gerhard Grasel, e o diretor do curso de Teologia da universidade, pastor Leopoldo Heimann. São pessoas que têm ajudado não somente a construir essa trajetó- ria em Cultura Religiosa como têm colaborado com o aprofunda- mento da reflexão e ajudado muitas pessoas. Prof. Douglas Moacir Flor SOBRE O AUTOR Paulo Augusto Seifert É mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e bacharel em Teologia pela Escola Superi- or de Teologia do Seminário Concórdia (RS) e em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).É professor nos cursos de Teologia e Filosofia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Ronaldo Steffen É bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia do Semi- nário Concórdia (RS) e professor do Curso de Teologia da Univer- sidade Luterana do Brasil (ULBRA). Douglas Moacir Flor É pós-graduado em Administração e Planejamento para Docentes pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) , e bacharel em Jornalismo pela Unisinos (RS) e em Teologia pela Escola Superior de Teologia do Seminário concórdia (RS).É professor nos cursos de Comunicação e Teologia da ULBRA. Thomas Heimann É mestre em Teologia pela Escola Superior de Teologia do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação- IEPG (RS), pós-graduado em Psico- pedagogia pelas Faculdades Integradas de Amparo (SP) , graduado em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) e bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia do Seminá- rio Concórdia (RS). É professor do Curso de Teologia da ULBRA e do Curso de Teologia da Escola Superior de Teologia (RS). SUMÁRIO 1 O FENÔMENO RELIGIOSO ............................................................................... 13 1.1 A religião no dia-a-dia ............................................................................. 14 2 HINDUÍSMO .................................................................................................. 33 2.1 História .................................................................................................. 33 2.2 Ensinamentos ......................................................................................... 34 2.3 Principais tendências .............................................................................. 41 3 BUDISMO ...................................................................................................... 44 3.1 História .................................................................................................. 45 3.2 Ensinamentos ......................................................................................... 46 3.3 Principais tendências .............................................................................. 50 4 ISLAMISMO .................................................................................................. 52 4.1 História .................................................................................................. 52 4.2 Ensinamentos ......................................................................................... 56 4.3 Principais tendências .............................................................................. 60 5 JUDAÍSMO ..................................................................................................... 61 5.1 História .................................................................................................. 61 5.2 Ensinamentos ......................................................................................... 64 5.3 Principais tendências .............................................................................. 69 6 CONFUCIONISMO, XINTOÍSMO E TAOÍSMO ...................................................... 70 6.1 Confucionismo ........................................................................................ 70 10 6.2 Xintoísmo ............................................................................................... 77 6.3 Taoísmo .................................................................................................. 79 7 CRISTIANISMO .............................................................................................. 85 7.1 História .................................................................................................. 85 7.2 Ensinamentos ......................................................................................... 94 8 A MENSAGEM CRISTÃ ATRAVÉS DAS PARÁBOLAS DE JESUS ........................... 101 8.1 A Bíblia, o livro sagrado do cristianismo ................................................. 101 9 LUTERO E A REFORMA .................................................................................. 108 9.1 Lutero e a Reforma Luterana .................................................................. 108 9.2 Igrejas cristãs de tradição reformada ..................................................... 114 9.3 Outras tradições religiosas .................................................................... 116 10 IGREJA LUTERANA E EDUCAÇÃO ................................................................. 122 10.1O passado ........................................................................................... 122 10.2 O presente .......................................................................................... 129 10.3 O futuro .............................................................................................. 134 11 AS RELIGIÕES NO BRASIL........................................................................... 135 11.1Catolicismo ......................................................................................... 135 11.2 Protestantismo de imigração ............................................................... 137 11.3 Protestantismo de conversão ............................................................... 137 11.4 Pentecostalismo ................................................................................. 138 11.5 Outras tradições religiosas .................................................................. 139 11.6 Espiritismo ......................................................................................... 140 11.7 Cultos afro-brasileiros ......................................................................... 144 12 CULPA E PERDÃO: UMA QUESTÃO EXISTÊNCIAL........................................... 152 12.1 A universalidade da culpa .................................................................... 152 12.2 Origem da culpa .................................................................................. 153 12.3 Culpa: um sentimento negativo ou positivo? ......................................... 154 11 12.4 Culpa e pagamento ............................................................................. 156 12.5 Culpa e religião ................................................................................... 157 12.6 Culpa e perdão .................................................................................... 160 13 A RELAÇÃO ENTRE FÉ E SAÚDE ................................................................... 163 13.1 Análise de um fenômeno religioso: doença mental ou possessão?Uma interpretação de práticas de libertação espiritual e exorcismo numa ótica multidisciplinar .......................................................................................... 165 13.2 Conclusão .......................................................................................... 171 14 ÉTICA ........................................................................................................ 173 14.1Ética e moral ....................................................................................... 173 14.2Valores ................................................................................................ 174 14.3 Consciência ........................................................................................ 177 14.4 Direito positivo e senso de justiça ........................................................ 177 14.5 Responsabilidade ............................................................................... 178 14.6 Livre-arbítrio ....................................................................................... 178 14.7 Ética religiosa e social ........................................................................ 179 14.8 Ética religiosa cristã ........................................................................... 180 14.9 Moral religiosa cristã .......................................................................... 183 14.10 Ética social cristã ............................................................................. 184 15 ÉTICA SOCIAL CRISTÃ APLICADA ................................................................ 185 15.1 Amor-próprio ...................................................................................... 185 15.2 Responsabilidade social ...................................................................... 186 15.3 Bioética.............................................................................................. 187 15.4 Casamento ......................................................................................... 187 15.5 Controle da natalidade ........................................................................ 188 15.6 Inseminação ....................................................................................... 189 15.7 Aborto ................................................................................................ 189 15.8 Eutanásia ........................................................................................... 189 12 15.9 Pena de morte..................................................................................... 190 15.10 Ecologia ........................................................................................... 190 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 192 1 O FENÔMENO RELIGIOSO E A EXPERIÊNCIA DO SAGRADO Paulo Augusto Seifert Ronaldo Steffen O desafio está posto: estudar religiões na universidade. A experiência tem demonstrado que não há unanimidade na aceitação da disciplina, pelo menos a princípio. Há resistências das mais diversas ordens. Des- de as econômicas até as de informação técnica, que não percebem, na disciplina, nenhum acréscimo para a complementação do curso em que o aluno está matriculado. Vez que outra, rompem ainda as ques- tões pertinentes à fé ou a ausência dela, professada pelo aluno e diver- gente daquilo que imagina que irá ocorrer na disciplina. O repto está assentado. Não há como voltar atrás. É prerrogativa da universidade. Recuar ou enfrentar é o elemento determinante. A essa altura, permita-nos contribuir para a sua decisão a partir de algumas considerações. Damos o braço a torcer e damos razão a você que tem resistência a essa disciplina sob a alegação que ela não contribui e nem acrescentará nada a sua formação técnica. Com exceção feita aos alunos matricula- dos no curso de Teologia, e para quem as informações da disciplina podem ser enquadradas como elementos técnicos importantes ao exer- cício da função, não é pretensão da disciplina acrescentar informações técnicas específicas a nenhum outro curso. Estamos em sintonia com aqueles que vislumbram algum valor nas questões religiosas, mas discordamos da análise puramente histórica dos movimentos religiosos. Acreditamos que a universidade é espaço privilegiado para o aprofundamento das ideias. Escapar da linha histó- rica de tempo e aprofundar ideias parece-nos um caminho concreto com vistas à busca da compreensão do Universo e do ser humano a partir das percepções espirituais e religiosas. 14 Lamentamos discordar daqueles que esperam que a disciplina seja um manual de catequese com vistas à conversão dos alunos ao cristianis- mo luterano. A plural sala de aula não é o espaço da catequese. É, sim, o momento de expor ideias, confrontar razões, trocar experiências, colocar os contraditórios e trocar vivências. É o espaço do encantamen- to com os caminhos que o ser humano tem construído ao longo de sua existência na tentativa de encontrar respostas religiosas satisfatórias a sua origem e ao seu destino. O que pretendemos é analisar os diversos cultos e práticas religiosas existentes no mundo considerando a confissão religiosa da instituição ULBRA (cristã luterana) como proposta ética para a sociedade na qual vivemos. Assim definido, o núcleo da disciplina está assentado no ser humano, singular e plural. Seja qual for o curso escolhido, não se pode escapar do fato inconteste de que não realizaremos nossas funções profissio- nais de forma isolada. A vida é relacional: ou interagimos, ou rejeita-mos, ou, ainda, buscamos compreender as razões alheias com o fim do bem-viver socialmente. Nessa perspectiva, não se pode ignorar que convivemos com seres humanos que possuem individualidades, independentes dos cursos profissionais para os quais se preparam. Respeitamos a confessionalidade de nossos alunos. Pretendemos, sim- plesmente, propor os valores ético-cristãos como alternativa de vida, individual e social: o fenômeno religioso. 1.1 A religião no dia-a-dia De algum modo, manifestações de natureza religiosa têm estado pre- sentes no nosso cotidiano. Pode-se, sem entrar em detalhes por ora, mencionar algumas áreas, alguns eventos e algumas práticas pessoais e sociais marcadas por ideias, ritos e símbolos consagrados ao campo religioso. Observem-se, de forma resumida, práticas familiares ligadas à tradição religiosa, como o casamento, o batismo, a morte e o velamento; com- portamentos de ordem pessoal, regrados por normas morais ditadas por alguma tradição religiosa; o comportamento de busca de ajuda divina diante de qualquer doença ou de situações difíceis na vida. As relações sociais mais amplas também estão marcadas por imperati- vos de ordem religiosa: no esporte, estamos acostumados, marcada- 15 mente no futebol, à cena de uma oração conjunta antes da entrada no campo; no campo musical, não são raras as menções que se fazem a personagens religiosos e até mesmo a sentimentos de ordem religiosa; no campo das artes, somos conduzidos a milhares de imagens nota- damente carregadas de simbolismo religioso dos mais diversos mati- zes; a literatura de natureza religiosa não tem deixado por menos e tem sido o mercado que mais cresce em termos de editoria nos últimos anos; adornos com diversos fins têm sido pautados por motivos religi- osos; o cinema tem sido pródigo nas temáticas de ordem religiosa; as novelas, fenômeno brasileiro que ganha o mundo, jamais tem deixado de lado alguma alusão, personagem e até mesmo a temática central ligada a fatos eminentemente religiosos; o papel-moeda, seja o dólar ou o real, tem feito menção a uma divindade; nossas vestimentas são conduzidas por modismos, de estilo ou de cores ou de tamanho em grande parte determinados por concepções religiosas; nossa alimenta- ção está em grande parte determinada por elementos de ordem religio- sa; o modo de expressar nossas ideias através da linguagem é, igual- mente, em grande parte, determinada por formas religiosas; o turismo religioso é hoje um grande filão na arrecadação de divisas para um município; a educação é fortemente marcada pelos valores que ela prega, quase sempre idênticos aos valores de ordem religiosa; a área da saúde, as ações que envolvem a dor, a vida e a morte foram e ainda são construídas com suporte religioso; nosso calendário, suas datas festivas e grandes eventos têm sua origem no meio eclesiástico; as diversas áreas do conhecimento humano, de uma ou de outra maneira, têm-se ocupado com a temática religiosa, como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a antropologia, a história, a medicina, a física, a arqueolo- gia, a geografia e assim por diante. Apesar das diferentes atitudes de repulsa que caracterizam a negação dos elementos religiosos, as menções apontam para o fato do ser hu- mano buscar ligar-se ao Transcendente como se mantivesse uma liga- ção umbilical da qual retira os elementos vitais para a sua existência. A questão que se coloca é a de como compreender essas ligações. Qual o fundamento capaz de sustentar uma avaliação compreensiva da junção ser humano - Transcendente? Há muitas possibilidades viáveis, tanto a partir das diferentes perspectivas e entendimentos religiosos quanto de escolas de reflexão filosófica. Além disso, importa considerar a relação que há, ou pode haver, entre a religião e as manifestações importantes do espírito humano. A título de introdução, consideremos como se relacionam religião e filosofia, religião e ciência, religião e moral, religião e teologia. 16 Religião e filosofia O que tem a filosofia a ver com a religião? Essa é uma pergunta impor- tante e cuja resposta não é óbvia ou simples. Ao longo da história do pensamento humano, vemos cooperação e competição entre ambas. Em certo sentido, a cooperação e a competição pressupõem a mesma concepção: a de que compete à razão filosófica provar a veracidade das ideias religiosas. Ou, dito de outra maneira, que compete à razão filo- sófica determinar se religião e superstição são a mesma coisa ou se são coisas distintas e separáveis. Posta a questão dessa maneira, temos duas respostas possíveis: ou a filosofia apresenta provas de que a religião é verdadeira ou a filosofia apresenta provas de que a religião não é verdadeira. Se for o primeiro caso, dizemos que há entre ambas cooperação; se for o segundo, que há competição. Quando se fala em provas, significa que qualquer pessoa racional deve concordar com o argumento, mesmo que não seja um argumento demonstrativo ao estilo da matemática, cujos cálculos, se bem feitos, dão um único resultado, e o sujeito que não percebe ou não concorda com o resultado é incapaz (um exemplo simples: 3 x 3 = 9, e não faria nenhum sentido alguém dizer: "Para você; para mim é 8"). O argumento deveria ser cognitivamente convincente. Aquele que não concorda com a conclusão, ou não compreende o argumento, ou está agindo de má-fé. Onde, porém, buscar tais provas? Historicamente, têm sido elas busca- das no raciocínio abstrato, na análise e comparação de ideias, na expe- riência sensorial, no senso comum, nas explicações científicas, no sen- timento moral. Diversos os pontos de partida, similaridade no modo de argumentar. Parte-se de elementos geralmente aceitos e, se for o caso, de verdades evidentes ou necessárias (que não podem ser nega- das), aplicam-se as regras básicas do raciocínio lógico, seja dedutivo ou indutivo, alcançando-se uma conclusão. Tal como se faz nos raciocí- nios comuns ou nos científicos. Se o propósito é mostrar que a filosofia justifica a religião e prova a existência de Deus (ou da realidade últi- ma), temos os argumentos ontológicos, teleológicos, cosmológicos, morais. Se o propósito é mostrar que a filosofia refuta a religião e pro- va que Deus não existe, temos os argumentos do mal, os argumentos evidencialistas, etc. Exemplo do primeiro tipo: observamos que a natureza exibe ordem e finalidade, como se fosse, por exemplo, uma grande máquina na qual as partes se ajustam umas às outras perfeitamente, de forma a fazer o 17 todo funcionar. Na nossa experiência, sempre que há ordem e finali- dade em algo, tal objeto foi pensado e realizado por uma mente inteli- gente. Logo, a ordem e finalidade que observamos no Universo indi- cam a existência de um criador inteligente. Este se chama Deus. Logo, Deus existe. Exemplo do segundo tipo: observamos que há muitos e diversos males no Universo. Se Deus fosse bom, ele desejaria eliminar todo o mal; se fosse onipotente, ele o faria. Como o mal existe, Deus não é onipotente ou não é bom, ou ambos. Como a religião afirma que Deus é bom e onipotente, logo Deus não existe. Mesmo aceitando que essa é a tarefa da filosofia, isso não quer dizer que o filósofo acredita que é assim que as pessoas aceitam ou recusam uma religião, com base em argumentos. As religiões seguem seu cami- nho independentemente disso, e a preocupação com argumentos justi- ficadores é, quando muito, secundária. Mas os argumentos mostrariam se as pessoas são racionais na sua crença. Por outro lado, pode ser que o pressuposto básico esteja errado, e não compete à filosofia funda- mentar ou provara verdade das crenças religiosas básicas. A tarefa da filosofia, em relação à religião, seria mais modesta. Atualmente, muitos filósofos, tendo em vista o desenvolvimento histórico das explicações filosóficas, julgam que a filosofia pode ajudar a melhor compreender as ideias religiosas e auxiliar as religiões a se livrarem de alguns ele- mentos supersticiosos indevidamente acrescentados à fé básica, espe- cialmente aqueles relacionados a confusões conceituais derivadas de um uso inadequado da linguagem ou à compreensão equivocada das teorias e hipóteses científicas, ou a preconceitos de natureza não religi- osa. Essa abordagem tem mostrado-se mais produtiva do que as outras duas opções. Religião e ciência E quanto à relação entre religião e ciência? Na maioria das vezes, quando isso é discutido, por ciência entendem-se as ciências naturais, como física, química, biologia. Há quem julgue que certas teorias cien- tíficas estão em direta contradição com a crença religiosa. Um exemplo contemporâneo pode ser encontrado na discussão entre evolucionismo e a teoria do desígnio inteligente, ou criacionismo. Se olharmos para o passado, este era o juízo feito por alguns acerca da relação entre helio- centrismo e o relato bíblico cristão sobre a criação e o papel do ser humano nela. Críticos religiosos do heliocentrismo, à época, julgavam que a teoria geocêntrica era, essa sim, compatível com a crença cristã, enquanto sua alternativa, incompatível. Hoje, nem mesmo grupos fundamentalistas percebem uma contradição, e muito menos as igrejas tradicionais ou os cientistas ateus ou agnósticos. 18 A situação com o evolucionismo é, sem dúvida, um pouco mais com- plicada. Pode-se, no entanto, dizer que isso se deve em boa parte às consequências filosóficas, morais, teológicas extraídas por alguns de seus defensores. Se esse tipo de argumento for legítimo, há um confli- to. Por outro lado, também parece que esse conflito é alimentado por uma interpretação literalista em demasia dos textos sagrados. Isso indica depender o conflito de certas concepções do alcance das teorias científicas (concepções essas que não são científicas no mesmo sentido em que o são as teorias) e de concepções hermenêuticas acerca de co- mo deve ser entendida a revelação. Contudo, tanto há teólogos quanto cientistas (crentes ou descrentes) que sustentam serem a ciência e a religião duas esferas explicativas completamente independentes e sem relação. Assim, não há como surgir qualquer conflito. É preciso preservar a integridade de cada esfera. Erram os teólogos que supõem poder extrair hipóteses científi- cas dos relatos bíblicos (no caso do cristianismo, mas o mesmo raciocí- nio se aplica a qualquer outra religião que tenha texto sagrado), e er- ram os cientistas que supõem poder extrair consequências morais, filosóficas ou religiosas das teorias e hipóteses científicas. Água e óleo não se misturam, mas, por isso mesmo, não são incompatíveis, e um não anula o outro. Essa tese da independência ou da integridade da ciência e da teologia pode ser mantida sem, no entanto, afirmar que são duas esferas com- pletamente separadas. Uma terceira abordagem sustenta a necessidade de integrar religião (ou, talvez melhor, teologia) e ciência em uma explicação mais abrangente. Essa integração seria sempre historica- mente condicionada, podendo e devendo ser revisada, na medida em que se alteram e progridem ambas as esferas. Essas considerações mostram que o conflito entre ciência e religião, ou o uso da ciência na religião, ou o uso da religião na ciência, não é algo que deva ser simplesmente aceito ou recusado. É preciso considerar atentamente qual teoria científica se tem em mente, qual interpretação teológica é suposta e qual visão geral da relação entre ambas é pressu- posta. Religião e moral Algo que chama a atenção de quem participa ou observa as religiões é a íntima conexão destas com a moral. Muitos procedimentos e discur- sos religiosos (praticados no âmbito das religiões organizadas, especi- almente) parecem consistir em admoestações para que as pessoas cor- rijam seu modo de vida e passem a agir de acordo com códigos morais 19 mais estritos, que não se restringem a proibir determinados atos, mas também exigem do crente ações positivas, de auxílio aos doentes, aos necessitados, por exemplo. Mesmo que haja diferença (embora não tão acentuada) entre os códigos morais professados por diferentes religi- ões, não há como afirmar que essa relação seja meramente circunstan- cial, como parece ser o caso da relação entre ciência (especialmente as chamadas ciências naturais) e moral. Como podemos explicar essa conexão íntima? Uma proposta de explicação procura reduzir a religião à moral. Isso significa dizer que o significado essencial da religião encontra-se na moralidade. A religião consistiria em uma forma disfarçada ou mais eficiente de induzir as pessoas a um comportamento ético desejável. Alguns pensadores sugeriram que há uma similaridade entre o papel das religiões e o ensinamento moral de uma criança. Assim como se faz necessário por vezes ensinar bons modos a uma criança na base de punições ou estórias fantasiosas, há pessoas (e são elas muitas) que precisam receber as ideias morais acompanhadas de alguma estória cósmica ou divina. Caso contrário, não compreenderão e não se sub- meterão à norma moral. Mas uma vez que se tornam maduras e autô- nomas, percebem que a moral se mantém por si mesma. Podem, então, abandonar a religião. Esse tipo de explicação pressupõe a falsidade das estórias e/ou ideias religiosas. Se aceita por alguém, esta pessoa deixa de ser, em um senti- do mais forte, religiosa. Esse resultado não quer dizer que a explicação esteja equivocada. Contudo, podem ser mencionadas outras objeções que mostrariam a inadequação de tal hipótese. Primeiro, não faz jus ao fenômeno religioso. Mesmo que a moral seja parte integrante das reli- giões, não é tida como única, nem como a principal. Outros elementos importantes são a estética, os ritos, os mistérios, a ação de Deus na história (no caso das religiões teístas). E, prestando atenção ao discurso religioso como tal, o que parece ser o mais importante está naquilo que se poderia chamar de 'realidade última', o verdadeiro por trás das aparências, o efetivamente real, o fundamento de tudo que existe (va- mos chamar isso de 'o elemento metafísico'). Por exemplo, no cristia- nismo considera-se como o mais importante saber quem é Deus, quais seus atributos, qual sua relação conosco. Se o Deus cristão fosse apenas um princípio moral, ou o princípio do bem, o cristianismo perderia muito de seu sentido. Mesmo que alguém julgue ser o cristianismo, em última análise, falso, dizer que sua essência é a moralidade constitui uma simplificação grosseira; além disso, para dizer que o cristianismo é falso, é preciso supor a seriedade do elemento metafísico. Acrescente- se ainda que uma crítica feita constantemente por pessoas que conside- 20 ram os relatos religiosos como fantasia refere-se à crueldade e violên- cia que as religiões exibem, ao terror mental que exercem sobre os crentes, à sua intolerância. Se tal crítica faz sentido, é justamente por- que a conexão entre moral e religião não pode ser adequadamente explicada como se a essência da religião fosse a moral. Outra explicação, e favorecida pelos religiosos, está em que o elemento metafísico provê o fundamento da moral. A moral depende da religião e lhe dá o suporte real de que ela necessita. Como a moral não é descri- tiva, mas normativa, diz como devemos agir ou que hábitos virtuososdevemos cultivar, não seria ela capaz de responder à questão sobre sua própria validade. Se alguém pergunta por que deve ser moral, é preci- so apontar para algo fora da moral, para a realidade, para as coisas como elas realmente são. Devemos ser morais porque assim é o mun- do. Por exemplo, o cristão deve observar o decálogo porque Deus assim o quer, ou porque Deus criou o mundo de tal forma que a inob- servância dos princípios e regras morais afeta e perverte toda a nature- za. Mas há outra alternativa de compreender a relação entre moral e reli- gião, pela qual nenhuma delas serve de razão ou fundamento da outra, embora permaneçam intimamente ligadas. A religião não é uma forma mítica de impor regras morais, nem necessita a moral de um funda- mento religioso; ambas são autônomas, sem que isso implique qual- quer moral ser compatível com qualquer religião. Religião e teologia Muitas vezes, os termos teologia e religião são considerados como sinônimos. Contudo, convém distingui-los para melhor compreender o fenômeno religioso. Teologia é um termo grego e significa "conheci- mento sobre Deus". Hoje em dia, é comum a distinção entre teologia natural e teologia revelada. Teologia natural refere-se àquele conheci- mento sobre Deus que se baseia na experiência comum, quando, por exemplo, observamos o mundo ou quando consideramos nossos sen- timentos internos e na racionalidade, enquanto teologia revelada refe- re-se àquele conhecimento sobre Deus que se baseia em alguma mani- festação direta da divindade. E no que isso difere de religião? A diferenciação pode ser especialmente útil para aquelas religiões que têm um texto sagrado e/ou uma tradição considerada normativa. As- sim, religião consistiria no conjunto de verdades reveladas (por exem- plo, no cristianismo, que Deus é triúno, que Jesus é Deus encarnado) de forma clara e não simbólica, enquanto teologia significaria a refle- xão organizada e sistematizada da revelação. Além disso, haveria os 21 ritos e modos de vida eclesial (de igreja, ou religião organizada). As- sim, poder-se-ia manter um núcleo fixo e uma concepção progressiva da experiência e reflexão religiosas, consideradas então como teologia. A religião não muda, mas a teologia sim, especialmente no que se refere a suas relações com a ciência e a cultura. 1 O FENÔMENO RELIGIOSO E A EXPERIÊNCIA DO SAGRADO Você já deve ter passado por alguma experiência Religiosa. Se não passou, alguém ao seu lado já deve ter contado algo que o levou a refletir sobre o assun- to. Neste capítulo vamos ver que a experiência religiosa é mais rica do que se imagina e é universal. Paulo Augusto Seifert Ronaldo Steffen DOUGLAS FLOR A religião tem estado presente no cotidiano através de diferentes manifestações. Pode-se, sem entrar em deta- lhes por ora, mencionar algumas áreas, alguns eventos e algumas práticas pessoais e sociais marcadas por ideias, ritos e símbolos consagrados ao campo religioso. Vamos utilizar aqui alguns pontos trabalhados pelo co- lega Ronaldo Steffen, estudioso do assunto, professor de Cultura Religiosa, publicado no site da Universidade. 22 De uma forma bem simples, podemos reportar o leitor a algumas práticas familiares ligadas à tradição religiosa co- mo o casamento, batismo, morte e velamento. São cerimô- nias religiosas tão tradicionais, que muitas pessoas, sem que se dêem conta, se envolvem. O que dizer de pessoas doentes ou com problemas mais sérios que buscam ajuda divina como alternativa para a cura? No esporte estamos acostumados, marcadamente no fute- bol, com a cena de uma oração conjunta antes da entrada no campo. Numa decisão por pênalti, por exemplo, é comum a imagem de jogadores ajoelhados, rezando ou beijando sua santinha. No campo musical não são raras as menções que se faz a personagens religiosos e até mesmo a sentimentos de or- dem religiosa; no campo das artes somos conduzidos a mi- lhares de imagens notadamente carregadas de simbolismo religioso dos mais diversos matizes. A literatura não tem deixado por menos e tem sido o mercado que mais cresce em termos de editoria nos últimos anos. O cinema tem sido pródigo nas temáticas de ordem religiosa. As novelas, fenô- meno brasileiro que ganha o mundo, jamais têm deixado de lado alguma alusão, personagem e até mesmo a temática central ligados a fatos eminentemente religiosos. A nossa alimentação está em grande parte determinada por elementos de ordem religiosa; o modo de expressar nossas idéias através da lin- guagem é, igualmente, em grande parte determinada por formas reli- giosas. O turismo religioso é hoje um grande filão na arrecadação de divisas para um município. A educação é fortemente marcada pelos valores que ela prega, quase sempre idênticos aos valores de ordem religiosa. A área da saúde, o trato com a dor, a vida e a morte foi e ainda é construída com suporte religioso. Nosso calendário, suas datas festivas e grandes eventos, têm sua origem no meio eclesiástico. As diversas áreas do conhecimento humano, duma ou de outra maneira, têm-se ocupado com a temática religiosa, como a Filosofia, a Psicolo- gia, a Sociologia, a Antropologia, a História, a Medicina, a Física, a Arqueologia, a Geografia e assim por diante. Apesar das diferentes atitudes de repulsa que caracterizam a negação dos elementos religiosos, as menções apontam para o fato do ser hu- mano buscar ligar-se ao Transcendente como se mantivesse uma liga- ção umbilical da qual retira os elementos vitais para a sua existência. 23 A questão que se coloca é a de como compreender essas ligações. Qual o fundamento capaz de sustentar uma avaliação compreensiva da junção ser humano - Transcendente? Há muitas possibilidades viáveis, tanto a partir das diferentes perspectivas e entendimentos religiosos quanto de escolas de reflexão filosófica. Além disso, importa considerar a relação que há, ou pode haver, entre a religião e as manifestações importantes do espírito humano. A título de introdução, consideremos como se relacionam religião e filosofia, religião e ciência, religião e moral, religião e teologia. Religião e filosofia O que tem a filosofia a ver com a religião? Essa é uma pergunta impor- tante e cuja resposta não é óbvia ou simples. Ao longo da história do pensamento humano, vemos cooperação e competição entre ambas. Em certo sentido, a cooperação e a competição pressupõem a mesma concepção: a de que compete à razão filosófica provar a veracidade das ideias religiosas. Ou, dito de outra maneira, que compete à razão filo- sófica determinar se religião e superstição são a mesma coisa ou se são coisas distintas e separáveis. Posta a questão dessa maneira, temos duas respostas possíveis: ou a filosofia apresenta provas de que a religião é verdadeira ou a filosofia apresenta provas de que a religião não é verdadeira. Se for o primeiro caso, dizemos que há entre ambas cooperação; se for o segundo, que há competição. Quando se fala em provas, significa que qualquer pessoa racional deve concordar com o argumento, mesmo que não seja um argumento demonstrativo ao estilo da matemática, cujos cálculos, se bem feitos, dão um único resultado, e o sujeito que não percebe ou não concorda com o resultado é incapaz (um exemplo simples: 3 x 3 = 9, e não faria nenhum sentido alguém dizer: "Para você; para mim é 8"). O argumento deveria ser cognitivamente convincente. Aquele que não concorda com a conclusão, ou não compreende o argumento, ou está agindo de má-fé. Onde, porém, buscar tais provas? Historicamente, têm sido elas busca- das no raciocínio abstrato, na análise e comparação de ideias, naexpe- riência sensorial, no senso comum, nas explicações científicas, no sen- timento moral. Diversos os pontos de partida, similaridade no modo de argumentar. Parte-se de elementos geralmente aceitos e, se for o 24 caso, de verdades evidentes ou necessárias (que não podem ser nega- das), aplicam-se as regras básicas do raciocínio lógico, seja dedutivo ou indutivo, alcançando-se uma conclusão. Tal como se faz nos raciocí- nios comuns ou nos científicos. Se o propósito é mostrar que a filosofia justifica a religião e prova a existência de Deus (ou da realidade últi- ma), temos os argumentos ontológicos, teleológicos, cosmológicos, morais. Se o propósito é mostrar que a filosofia refuta a religião e pro- va que Deus não existe, temos os argumentos do mal, os argumentos evidencialistas, etc. Exemplo do primeiro tipo: observamos que a natureza exibe ordem e finalidade, como se fosse, por exemplo, uma grande máquina na qual as partes se ajustam umas às outras perfeitamente, de forma a fazer o todo funcionar. Na nossa experiência, sempre que há ordem e finali- dade em algo, tal objeto foi pensado e realizado por uma mente inteli- gente. Logo, a ordem e finalidade que observamos no Universo indi- cam a existência de um criador inteligente. Este se chama Deus. Logo, Deus existe. Exemplo do segundo tipo: observamos que há muitos e diversos males no Universo. Se Deus fosse bom, ele desejaria eliminar todo o mal; se fosse onipotente, ele o faria. Como o mal existe, Deus não é onipotente ou não é bom, ou ambos. Como a religião afirma que Deus é bom e onipotente, logo Deus não existe. Mesmo aceitando que essa é a tarefa da filosofia, isso não quer dizer que o filósofo acredita que é assim que as pessoas aceitam ou recusam uma religião, com base em argumentos. As religiões seguem seu cami- nho independentemente disso, e a preocupação com argumentos justi- ficadores é, quando muito, secundária. Mas os argumentos mostrariam se as pessoas são racionais na sua crença. Por outro lado, pode ser que o pressuposto básico esteja errado, e não compete à filosofia funda- mentar ou provar a verdade das crenças religiosas básicas. A tarefa da filosofia, em relação à religião, seria mais modesta. Atualmente, muitos filósofos, tendo em vista o desenvolvimento histórico das explicações filosóficas, julgam que a filosofia pode ajudar a melhor compreender as ideias religiosas e auxiliar as religiões a se livrarem de alguns ele- mentos supersticiosos indevidamente acrescentados à fé básica, espe- cialmente aqueles relacionados a confusões conceituais derivadas de um uso inadequado da linguagem ou à compreensão equivocada das teorias e hipóteses científicas, ou a preconceitos de natureza não religi- osa. Essa abordagem tem mostrado-se mais produtiva do que as outras duas opções. Religião e ciência 25 E quanto à relação entre religião e ciência? Na maioria das vezes, quando isso é discutido, por ciência entendem-se as ciências naturais, como física, química, biologia. Há quem julgue que certas teorias cien- tíficas estão em direta contradição com a crença religiosa. Um exemplo contemporâneo pode ser encontrado na discussão entre evolucionismo e a teoria do desígnio inteligente, ou criacionismo. Se olharmos para o passado, este era o juízo feito por alguns acerca da relação entre helio- centrismo e o relato bíblico cristão sobre a criação e o papel do ser humano nela. Críticos religiosos do heliocentrismo, à época, julgavam que a teoria geocêntrica era, essa sim, compatível com a crença cristã, enquanto sua alternativa, incompatível. Hoje, nem mesmo grupos fundamentalistas percebem uma contradição, e muito menos as igrejas tradicionais ou os cientistas ateus ou agnósticos. A situação com o evolucionismo é, sem dúvida, um pouco mais com- plicada. Pode-se, no entanto, dizer que isso se deve em boa parte às consequências filosóficas, morais, teológicas extraídas por alguns de seus defensores. Se esse tipo de argumento for legítimo, há um confli- to. Por outro lado, também parece que esse conflito é alimentado por uma interpretação literalista em demasia dos textos sagrados. Isso indica depender o conflito de certas concepções do alcance das teorias científicas (concepções essas que não são científicas no mesmo sentido em que o são as teorias) e de concepções hermenêuticas acerca de co- mo deve ser entendida a revelação. Veremos um pouco mais dessa relação entre ciência e religião no pró- ximo capítulo. Passamos agora a analisar a relação entre religião e moral Religião e moral Algo que chama a atenção de quem participa ou observa as religiões é a íntima conexão destas com a moral. Muitos procedimentos e discur- sos religiosos (praticados no âmbito das religiões organizadas, especi- almente) parecem consistir em admoestações para que as pessoas cor- rijam seu modo de vida e passem a agir de acordo com códigos morais mais estritos, que não se restringem a proibir determinados atos, mas também exigem do crente ações positivas, de auxílio aos doentes, aos necessitados, por exemplo. Mesmo que haja diferença (embora não tão acentuada) entre os códigos morais professados por diferentes religi- ões, não há como afirmar que essa relação seja meramente circunstan- cial, como parece ser o caso da relação entre ciência (especialmente as chamadas ciências naturais) e moral. Como podemos explicar essa conexão íntima? 26 Uma proposta de explicação procura reduzir a religião à moral. Isso significa dizer que o significado essencial da religião encontra-se na moralidade. A religião consistiria em uma forma disfarçada ou mais eficiente de induzir as pessoas a um comportamento ético desejável. Alguns pensadores sugeriram que há uma similaridade entre o papel das religiões e o ensinamento moral de uma criança. Assim como se faz necessário por vezes ensinar bons modos a uma criança na base de punições ou estórias fantasiosas, há pessoas (e são elas muitas) que precisam receber as ideias morais acompanhadas de alguma estória cósmica ou divina. Caso contrário, não compreenderão e não se sub- meterão à norma moral. Mas uma vez que se tornam maduras e autô- nomas, percebem que a moral se mantém por si mesma. Podem, então, abandonar a religião. Esse tipo de explicação pressupõe a falsidade das estórias e/ou ideias religiosas. Se aceita por alguém, esta pessoa deixa de ser, em um senti- do mais forte, religiosa. Esse resultado não quer dizer que a explicação esteja equivocada. Contudo, podem ser mencionadas outras objeções que mostrariam a inadequação de tal hipótese. Primeiro, não faz jus ao fenômeno religioso. Mesmo que a moral seja parte integrante das reli- giões, não é tida como única, nem como a principal. Outros elementos importantes são a estética, os ritos, os mistérios, a ação de Deus na história (no caso das religiões teístas). E, prestando atenção ao discurso religioso como tal, o que parece ser o mais importante está naquilo que se poderia chamar de 'realidade última', o verdadeiro por trás das aparências, o efetivamente real, o fundamento de tudo que existe (va- mos chamar isso de 'o elemento metafísico'). Por exemplo, no cristia- nismo considera-se como o mais importante saber quem é Deus, quais seus atributos, qual sua relação conosco. Se o Deus cristão fosse apenas um princípio moral, ou o princípio do bem, o cristianismo perderia muito de seu sentido. Mesmo que alguém julgue ser o cristianismo, em última análise, falso, dizer que sua essência é a moralidade constitui uma simplificação grosseira; além disso, para dizer que o cristianismo é falso, é preciso supor a seriedade do elementometafísico. Acrescente- se ainda que uma crítica feita constantemente por pessoas que conside- ram os relatos religiosos como fantasia refere-se à crueldade e violên- cia que as religiões exibem, ao terror mental que exercem sobre os crentes, à sua intolerância. Se tal crítica faz sentido, é justamente por- que a conexão entre moral e religião não pode ser adequadamente explicada como se a essência da religião fosse a moral. Outra explicação, e favorecida pelos religiosos, está em que o elemento metafísico provê o fundamento da moral. A moral depende da religião e lhe dá o suporte real de que ela necessita. Como a moral não é descri- 27 tiva, mas normativa, diz como devemos agir ou que hábitos virtuosos devemos cultivar, não seria ela capaz de responder à questão sobre sua própria validade. Se alguém pergunta por que deve ser moral, é preci- so apontar para algo fora da moral, para a realidade, para as coisas como elas realmente são. Devemos ser morais porque assim é o mun- do. Por exemplo, o cristão deve observar o decálogo porque Deus assim o quer, ou porque Deus criou o mundo de tal forma que a inob- servância dos princípios e regras morais afeta e perverte toda a nature- za. Mas há outra alternativa de compreender a relação entre moral e reli- gião, pela qual nenhuma delas serve de razão ou fundamento da outra, embora permaneçam intimamente ligadas. A religião não é uma forma mítica de impor regras morais, nem necessita a moral de um funda- mento religioso; ambas são autônomas, sem que isso implique qual- quer moral ser compatível com qualquer religião. Religião e teologia Muitas vezes, os termos teologia e religião são considerados como sinônimos. Contudo, convém distingui-los para melhor compreender o fenômeno religioso. Teologia é um termo grego e significa "conheci- mento sobre Deus". Hoje em dia, é comum a distinção entre teologia natural e teologia revelada. Teologia natural refere-se àquele conheci- mento sobre Deus que se baseia na experiência comum, quando, por exemplo, observamos o mundo ou quando consideramos nossos sen- timentos internos e na racionalidade, enquanto teologia revelada refe- re-se àquele conhecimento sobre Deus que se baseia em alguma mani- festação direta da divindade. E no que isso difere de religião? A diferenciação pode ser especialmente útil para aquelas religiões que têm um texto sagrado e/ou uma tradição considerada normativa. As- sim, religião consistiria no conjunto de verdades reveladas (por exem- plo, no cristianismo, que Deus é triúno, que Jesus é Deus encarnado) de forma clara e não simbólica, enquanto teologia significaria a refle- xão organizada e sistematizada da revelação. Além disso, haveria os ritos e modos de vida eclesial (de igreja, ou religião organizada). As- sim, poder-se-ia manter um núcleo fixo e uma concepção progressiva da experiência e reflexão religiosas, consideradas então como teologia. A religião não muda, mas a teologia sim, especialmente no que se refere a suas relações com a ciência e a cultura. A palavra Religião 28 Etimologicamente, o termo Religião surge na história da humanidade através dos autores clássicos, como Cícero, Lactâncio e Agostinho, respectivamente, nas palavras re- legere, que significa reler, re-ligare, que significa religar, e re-eligere, que significa reeleger. Todos os conceitos nos dão a idéia de voltar a uma situação anterior, ou seja, ligar no- vamente a criatura com o criador. É exatamente esta tenta- tiva de religar com o Ser Superior, através de um conjunto de crenças, normas, ritos ou costumes, que dá origem às diversas religiões o fenômeno religioso propriamente dito. (KUCHENBECKER, 2000.) Apesar de seguidamente ouvir-se que religião é coisa do passado, as menções acima indicam uma direção contrá- ria. Estão apontando para o fato de que o ser humano preocupa-se com o divino, aqui entendido no sentido da- quilo que ocupa lugar de destaque ou o primeiro lugar na vida. Conhecimento Religioso Ainda tentando responder o que é religião, podemos dizer que religião é um batismo numa igreja cristã. É um ritual sagrado nas águas do Rio Ganges. É a adoração num templo budista. Pode ser um muçulmano ajoelhado e orando para o Alá. Ou os mesmos devotos do Islã peregrinando a Meca. Pode ser um Judeu diante do Muro das lamentações em Je- rusalém. São tantas as menções que seria impossível citar todas. O que pretendemos fazer é ligar os fatos. As ciências da reli- gião procuram responder o que as atividades citadas acima têm em comum. Nós procuramos, como pesquisadores, in- vestigar os rituais de uma perspectiva externa. Buscamos semelhanças e diferenças. Queremos entender como se dá o processo historicamente e o que isso representa para socie- dade hoje. Por que estudar as religiões? 29 Dependendo da experiência de cada um, as respostas serão diferentes. Talvez você seja um religioso e não precise de tantas explicações. Mas, com certeza, muitas pessoas não se ligaram para a importância do assunto. Jostein Gaardner, escrevendo O Livro das Religiões, nos ajuda a responder a pergunta acima: Um rápido olhar para o mundo ao redor mostra que a religião desempenha um papel bastante significa- tivo na vida social e política de todas as partes do globo. Ouvimos falar de católicos e protestantes em conflito na Irlanda do Norte, cristão contra muçulmanos nos Bal- cãs, atrito entre muçulmanos e hinduístas na Índia, guerra entre hinduístas e budistas no Sri Lanka. Nos Es- tados Unidos e no Japão há seitas religiosas extremistas que já praticaram atos de terrorismo. Ao mesmo tempo, representantes de diversas religiões promovem ajuda humanitária aos pobres e destituídos do terceiro mun- do. É difícil adquirir uma compreensão adequada da política internacional sem que se esteja consciente do fator religião. (GAARDNER) Além disso, explica Gaardner, um conhecimento religio- so também pode ser útil num mundo que se torna cada vez mais multicultural. Ainda mais quando falamos em globali- zação, apesar de que o termo deva ser usado com cuidado. Muitos de nós viajamos pelo Brasil ou mesmo ao exterior, entrando em contato com as diversas culturas religiosas. Estes povos têm costumes diferentes que devem ser respei- tados pelos seus visitantes. Se uma mulher estiver num país muçulmano, por exemplo, terá que observar o tipo de roupa que usará nas ruas. É claro que não precisará andar com uma Burca, mas terá que cobrir seu corpo com roupas de- centes. Finalmente, acreditamos que o estudo das religiões pode ser importante para o desenvolvimento pessoal do indivíduo. As religiões podem responder várias das perguntas existen- ciais que fazemos como: de onde viemos, o que somos e para onde iremos. Tolerância religiosa 30 Este é um dos pontos mais importantes na nossa caminha- da. Tolerância é o respeito pelas pessoas que possuem dife- rentes pontos de vista em relação à religião. Não significa que precisamos concordar com tudo o que as outras religi- ões praticam e seguir os mesmos rituais. Cada um tem o direito de seguir aquilo que é melhor para si, pode ter uma fé sólida. Mas a tolerância não é compatível com atitudes como zombar das opiniões alheias ou se utilizar da força e de ameaças. A Tolerância não limita o direito de fazer pro- paganda, mas exige que esta seja feita com respeito pela opinião dos outros (GAARDNER). O respeito pela vida religiosa dos outros, pelas suas opiniões e pontos de vista, é um pré-requisito para a nossa aula de Cultura Religiosa. Sem isso, é impossível começar, pois: Com freqüência, a intolerância é resultado do conheci- mento insuficiente de um assunto. Quem vê de fora uma religião, enxerga apenas assuas manifestações, e não o que elas significam para o indivíduo que a professa (GAARDNER). Sincretismo Religioso No Brasil é muito interessante falar sobre religião. Isto porque temos aqui uma pluralidade religiosa bem interessante. Além disso, encontramos o que chamamos de Sincretismo Religioso. Isso acontece quando misturamos elementos de várias religiões numa só. Sincretismo é o termo que os historiadores denominam de fusão ou interpenetrações de religi- ões, ritos, crenças e personagens cultuais. Os cultos afro-brasileiros são um exemplo comprovado de sincretismo religioso. Queremos mostrar como isso acontece através da fala de um personagem sertane- jo do passado: Riobaldo Tatarana do Grande Sertão: Veredas: 31 “Hem? Hem? O que mais penso, texto e ex- plico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, as pessoas todas. Por isso é que se carece princi- palmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No ge- ral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embre- nho a certo; aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acu- sa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspen- de. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? – o que faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço, execu- tado. Eu? – não tresmalho! Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês – encomenda de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal nisso. E es- tou, já mandei recado para uma outra, do Vau- Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza também com grandes mere- merências, vou efetuar com ela trato igual. Quero punhado dessas, me defendo em Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo! 32 JOÃO GUIMARÃES ROSA Quem sabe você conhece alguém que se identifica com este personagem. É comum a gente encontrar situações como esta. Nas aulas de Cultura Religiosa, quando pergun- tamos se nossos alunos têm alguma religião, muitos respon- dem: Sou Católico Apostólico Romano, não praticante. Isto significa que eles são Católicos por tradição, mas não vão à igreja aos domingos. Muitos são católicos, mas não deixam de ir ao terreiro ou ao Centro Espírita. Conclusão É importante ressaltar aqui a questão da tolerância. Religião sem o devido respeito perde o sentido. Não é possível pre- gar algo e praticar outra coisa. Por outro lado, a experiência religiosa é importante na vida de todo o ser humano. Se vo- cê ainda não passou por isso, busque entender um pouco mais do assunto. Leia, reflita sempre. 33 2 HINDUÍSMO Ronaldo Steffen Perfil Fundador: não há Ano de fundação: as raízes do hinduísmo remontam a um período entre 1500 a.C. e 200 a.C. Textos sagrados: o Livro dos Vedas, que consiste numa coletânea de quatro obras, das quais certas partes datam de 1.500 a.C. Estatística: hoje, cerca de 80% da população da Índia é hinduísta. O restante da população divide-se entre muçulmanos (10%), cristãos (4%) e outros grupos (6%). Em todo o mundo, perfazem cerca de 13% da população mundial. 2.1 História O passado As origens do hinduísmo podem ser encontradas em algum ponto entre o ano de 1500 a.C. e o ano 200 a.C., quando os chamados arianos ("nobres") começaram a subjugar o vale do rio Indo. As crenças dessas pessoas tinham ligação com outras religiões indo-europeias, como a grega, romana e germânica. Sabemos disso pelos chamados hinos védicos (da palavra veda, que significa "conhecimento"), que eram recitados por sacerdotes durante os sacrifícios aos seus muitos deuses. É o chamado período védico do hinduísmo. O sacrifício era importante para o culto ariano. Faziam-se oferendas aos deuses a fim de conquistar seus favores e manter sob controle as forças do caos. Achados arqueológicos no vale do rio Indo indicam que houve uma civilização avançada na Índia, anterior à chegada dos indo-europeus, e 34 é certo que essa civilização também contribuiu para o hinduísmo mo- derno. A época conhecida como período védico tardio, de 1000 a.C. até 500 a.C., marcou uma virada no desenvolvimento religioso da Índia. Im- portância especial tiveram os Upanishads, que até hoje são os textos hinduístas mais lidos. Foram escritos sob a forma de conversas entre mestre e discípulo, e introduzem a noção de Brahman, a força espiritu- al essencial em que se baseia todo o Universo. Todos os seres vivos nascem do Brahman, vivem no Brahman e, ao morrerem, retornam ao Brahman. Os Upanishads introduzem a ideia de Brahman. Todos nascem dele, vivem nele e na morte retornam a ele. Hoje O hinduísmo é uma religião da Índia, mas tem muitos adeptos tam- bém no Nepal, em Bangladesh e no Sri Lanka. Depois de muitos anos de domínio colonial britânico, em 1947, a Índia tornou-se uma repúbli- ca independente: um Estado secular (não religioso), com uma consti- tuição que garantia direitos para todas as denominações religiosas e proibia qualquer forma de discriminação baseada em religião, raça, casta ou sexo. Em 1947, a tensão entre hinduístas e muçulmanos, em razão da inde- pendência da Índia, resultou na criação do Paquistão como um Estado muçulmano separado, dividido em duas partes distintas: o Paquistão do Leste e o Paquistão do Oeste. Depois da guerra de 1971 entre a Índia e o Paquistão, o Paquistão do Leste tornou-se um Estado inde- pendente com o nome de Bangladesh. 2.2 Ensinamentos Deuses A multiplicidade do hinduísmo também se manifesta em seu conceito de Transcendente. Em sua forma mais filosófica, o conceito hindu de divindade é panteísta. A divindade não é um ser pessoal, mas uma força, uma Os Upanishads introduzem a ideia de Brahman. Todos nascem dele, vivem nele e na morte retornam a ele, energia que per- meia tudo: os objetos inanimados, as plantas, os animais e os seres humanos. Já em sua forma menos filosófica, está presente um conceito politeísta, que acredita num grande número de deuses. Quase todas as aldeias têm a sua própria divindade local. A adoração divina concen- 35 tra-se em dois deuses em particular, ambos com raízes védicas. Um deles é Vishnu. É um deus suave e amigável, normalmente represen- tado como um lindo jovem. Sua maior importância no hinduísmo moderno deriva de seus avatares ("reencarnação de um deus" ou "reve- lação") como Rama ou Krishna. Especialmente popular é Krishna, adorado como o onipresente e senhor do mundo. Costuma ser retrata- do como um pastor de ovelhas, e suas aventuras eróticas com as pasto- ras são interpretadas simbolicamente como o amor do Transcendente pelo ser humano. O relacionamento de Krishna com sua amada, Rha- da, é explicado da mesma maneira. O amor entre os dois, sua separa- ção e reconciliação são uma metáfora para o anseio que a alma sente pelo Transcendente e por sua união final com ele. O outro deus com grande significado para o culto é Shiva. Ele é o deus da meditação e dos iogues, e em geral é retratado como um asceta. É igualmente um deus do desvario e do êxtase, tantocriador como des- truidor, o que o torna ao mesmo tempo aterrorizante e atraente. É ele quem traz a doença e a morte, mas também o que cura. Na devoção bhakti (cf. 3.1), ele é visto como um deus cheio de compaixão, que salva o ser humano da transmigração. O importante é o Transcendente. O nome dado a ele pouco importa. A filosofia religiosa indiana baseia-se na crença de um Transcendente eterno, mas não especifica se esse deus é Vishnu, Shiva ou algum ou- tro. Deixa-se a cargo do indivíduo decidir de que maneira o Transcen- dente deve ser adorado. Nos círculos acadêmicos, é comum ver Vishnu e Shiva formando uma trindade com Brahma. Este é tido como criador, quem faz o mundo. Vishnu é o sustentador, quem protege as leis natu- rais e a ordem universal. Shiva é o destruidor, que, no final de cada época, dança sobre o mundo até reduzi-lo a pedaços. Assim ocorrendo, Brahma tem de criar o mundo novamente. Essas três manifestações do Transcendente representam três de seus aspectos: o criador, o susten- tador e o destruidor. No entanto, esse entendimento tem pouca rele- vância na devoção popular. As deusas O hinduísmo tem uma série de deusas. Alguns adotam a teoria de que essa abundância de deusas não passa da expressão de uma grande e poderosa divindade feminina, a "Rainha do Universo" ou "Deusa- Mãe". Sua manifestação mais conhecida é Kali, a deusa negra, adorada sobretudo no Leste da Índia, e a quem se sacrificam animais. O alto status de Kali no mundo dos deuses é evidente pelas imagens que a mostram pisoteando o corpo de Shiva. 36 A importância das deusas na religião indiana é visível pela escolha da "Mãe Índia" (Bhárata Mata ou Bharthamata) como a divindade nacio- nal do moderno Estado da Índia. Na cidade de Varanasi há um templo especial que lhe é dedicado. Ali, em vez de uma representação da deusa, está exposto um mapa da Índia. As divindades menores A maioria das aldeias tem seu templo dedicado a Vishnu ou a Shiva. Esses deuses concentram-se nas questões maiores, universais, e em geral são homenageados nos grandes festivais. Num nível mais do- méstico, as pessoas costumam visitar pequenos templos dedicados a divindades menos importantes. Embora estas não sejam tão poderosas como Vishnu ou Shiva, é mais fácil aproximar-se delas para assuntos de menor importância, tais como os problemas pessoais. Há deuses para as questões universais e deuses para as questões pessoais. Os deuses menores, por vezes, exercem influência em áreas específicas, por exemplo, em certos tipos de doença. Muitos deles têm origem humana: podem ser heróis que morreram em batalha ou esposas que se oferecem para serem queimadas na pira funerária do marido. Al- guns deuses são espíritos malignos que foram deixados para trás por homens maus. Ao cultivar esses espíritos como deuses, é possível controlar e neutralizar sua maldade. Ser humano O entendimento que o hinduísmo desenvolve a respeito do ser huma- no está intimamente vinculado a uma compreensão ampla que privile- gia os entendimentos sobre carma, reencarnação e o sistema de castas. Carma e reencarnação O ser humano tem uma alma imortal que não lhe pertence. Depois da morte, a alma volta a aparecer (renasce) numa nova criatura vivente. Pode renascer numa casta mais alta ou mais baixa, ou pode passar a habitar um animal. Há uma ordem inexorável nesse ciclo que vai de uma existência a outra. O impulso por trás dela, e que a mantém sempre em movimen- to, é o carma ("ato" ou "ação") do ser humano. O ato ou ação não se refere apenas a ações físicas, mas inclui pensamentos, palavras e sen- timentos. 37 A ideia de que todas as ações têm consequências, que podem surgir depois da morte, não é, de modo algum, peculiar do hinduísmo. A originalidade da ideia está no entendimento de que todas as ações de uma vida, e somente elas, podem formar a base para a próxima vida. Assim, o carma não é uma punição pelas más ações ou uma recompen- sa pelas boas. O carma é uma constante impessoal, como se fosse uma lei natural do ato de existir. O hinduísmo não reconhece nenhum "destino cego" e nem divina providência. A responsabilidade pela vida do hinduísta no dia de hoje, e por sua próxima encarnação, será sempre dele. O ser humano colhe aquilo que semeou. O resultado das ações deriva automaticamente delas mesmas. Pode-se dizer que a transmigração está sujeita à lei da causa e efeito. Pesquise: reencarnação e transmigração são conceitos que se referem a mesma coisa? Em outras palavras, o que a pessoa experimenta nesta vida em termos de riqueza ou pobreza, alegria ou tristeza, saúde ou doença, é resulta- do de suas ações numa vida anterior. É desse modo que os hinduístas explicam as diferenças entre as pessoas. A doutrina do carma dá sus- tentação a um esquema de relações sociais como o sistema de castas. Embora a pessoa deva submeter-se ao carma que herdou de uma vida anterior, ela também exerce o livre-arbítrio no âmbito de sua existência atual. O ser humano, portanto, sempre pode melhorar seu carma e lançar os fundamentos necessários para uma vida melhor no próximo renascimento. O sistema de castas Desde os tempos antigos, a sociedade hinduísta está alicerçada sobre quatro classes sociais (a palavra empregada é varna, que significa "cor"): sacerdotes (brâmanes); guerreiros; agricultores, comerciantes e artesãos; servos. Porém, à medida que a sociedade indiana se desenvolveu, as pessoas foram sendo divididas em novas castas. No início do século XX, havia em torno de três mil castas. 38 Não se sabe ao certo como surgiu o sistema de castas. O certo é que as castas em geral se associam a profissões especiais. Uma aldeia indiana pode conter de 20 a 30 castas, e com frequência cada uma ocupa um agrupamento especial de casas. Cada casta tem suas próprias regras de conduta e de práticas religiosas, que determinam com quem as pessoas podem se casar, o que podem comer, com quem podem se associar e que tipo de trabalho podem realizar. A base religiosa desse sistema é a noção de pureza e impureza. Para um brâmane, por exemplo, tudo o que tenha a ver com as coisas corporais ou materiais é impuro. Se ele se tornou impuro como resultado do nascimento, morte ou do sexo, ou, ainda, por meio de contato com uma pessoa sem casta ou de casta inferior, há diversas maneiras pelas quais ele pode ser purificado. O método tradicional mais conhecido de purificação utiliza a água de um dos muitos rios sagrados da Índia, como o Ganges. Religiosamente, as castas indicam o grau de pureza ou impureza de uma pessoa. As regras que governam a pureza formam a base da divisão de traba- lho na comunidade. Certas atividades e certos trabalhos são tão impu- ros que somente determinadas castas podem realizá-los. Essas castas têm o dever de ajudar os outros a manterem sua pureza. Por outro lado, apenas as castas que preencham os requisitos da pureza podem aproximar-se dos deuses mais elevados. Para que isso ocorra com mais facilidade, outras pessoas devem ser impuras. Entretanto, todos se beneficiam da limpeza dos puros, pois todos os hinduístas tiram pro- veito dos ritos que são praticados. O sistema de castas deu um novo contexto à vida do indiano moderno. Assim, ser expulso de sua casta é o pior castigo imaginável, e portanto isso só é utilizado para crimes muito sérios. O nível mais baixo no sistema de castas é o dos intocáveis ou sem casta (também chamados de párias): os criminosos, lixeiros e curtidores de couro de animais, por exemplo. As complexas regras que controlam o contrato social entre as castaseram muito rígidas. A Constituição da Índia, de 1947, introduziu, no entanto, medidas com a finalidade de banir a discriminação por casta. Como não basta mudar a legislação para acabar com antigas divisões sociais e religiosas, o sistema de castas continua tendo um papel im- portante, em especial nas aldeias. Vida e morte Durante o período védico, a doutrina do carma e dos renascimentos era vista como algo positivo. Por meio dos sacrifícios e das boas ações, 39 o ser humano podia garantir que viveria várias vidas. Mais tarde, o hinduísmo passou a considerar esse ciclo como algo negativo, como um círculo vicioso a ser quebrado. É possível, assim, distinguir três caminhos para a libertação: as vias do sacrifício, do conhecimento e da devoção. A via do sacrifício Como já se viu, a palavra indiana para "ato" é carma. Hoje ela é usada para denotar todos os atos humanos e até mesmo a coletividade desses atos. No período védico, o termo referia-se basicamente a atos religio- sos ou rituais, em especial aos atos sacrificiais. Estes eram necessários para incrementar a fertilidade e manter a ordem universal. Esse antigo costume sacrificial, descrito nos Vedas, continua a desempenhar um papel capital no hinduísmo. Fazendo sacrifícios e boas ações, muitos hinduístas tentam obter a felicidade terrena. Em última análise, o obje- tivo permanece o mesmo de outras correntes do hinduísmo: libertar-se do círculo vicioso da transmigração do espírito. A via da compreensão ou do conhecimento Seguindo uma ideia central dos Upanishads, é a ignorância do ser humano que o amarra ao ciclo dos renascimentos. Compreender a verdadeira natureza da existência, o oposto da ignorância, será, por- tanto, um caminho para a libertação. É apenas quando o ser humano adquire o reto conhecimento que ele é redimido da implacável roda da transmigração. O conhecimento que traz a salvação é o de que a alma humana (atmã) e o mundo espiritual (Brahman) são uma coisa só. O atmã é uma parte integrante não só dos seres humanos, mas também se encontra nas plantas e nos animais. Isso é conhecido como panteísmo. Brahman é o princípio constitutivo do Universo, uma força que per- meia tudo, uma divindade impessoal. Todas as almas individuais (atmã) são reflexos dessa única alma universal. O ser humano é libertado da transmigração ao adquirir plena compre- ensão da unidade entre atmã e Brahman. O objetivo é dissolver-se no Brahman, assim como uma gota de chuva se dissolve no mar. O ser humano tem uma centelha do Transcendente em seu interior. E mesmo que ele desapareça enquanto ser humano, sua origem divina permane- ce e vai unir-se novamente com o espírito universal. 40 A via da devoção Uma terceira rota para a salvação é a via da devoção. Essa proposta começou a se difundir no Sul da Índia por volta de 600 a. C. e logo se espalhou por toda a região da Índia. Já no século III a.C. esse caminho para a libertação encontrara sua expressão no Bhagavad Gita, um po- ema catequético. Essa terceira tendência do hinduísmo é a que predo- mina na Índia moderna, e o livro Bhagavad Gita é o livro sagrado que ocupa o lugar supremo na consciência do indiano médio. Cumprir os rituais. Buscar o conhecimento. Contemplar. A religião na Índia oferece a possibilidade de vários caminhos para a libertação, e essa multiplicidade é mais uma característica do hinduísmo. Mundo É plural O mundo não é uno, mas plural. Há diversos mundos interconectados pela mesma razão. É como se fossem infinitas galáxias, e cada uma com o seu ponto de referência, como a Terra. Para dar uma dimensão superlativa ao conceito de infinitas galáxias, o hinduísmo entende que entre esse ponto de referência e o restante da galáxia há diversos ou- tros mundos mais sutis, acima, e mais grosseiros, abaixo. Os mundos sutis e grosseiros são os espaços ocupados pelas almas e que por eles transitam conforme os méritos adquiridos ou não. Cada mundo e cada galáxia têm ciclos diferentes de tempo. Há tempo que se expande e tempo que se recolhe eterna e incontavelmente no mesmo movimento, estabelecendo os ciclos cósmicos. É meio O mundo e suas galáxias têm uma razão. É o espaço onde as almas individuais cumprem a inexorável lei do carma até sua libertação. Inerente ao conceito de carma, toda decisão do ser humano terá deter- minadas consequências. Não há fatalismos no Universo. Nos mundos mais grosseiros, há uma percepção maior dos elementos sensoriais. Em razão dos prazeres proporcionados, geralmente assen- tados no eu individual, o ser humano deve buscar a libertação para mundos cada vez mais sensíveis, em direção ao EU absoluto, o Trans- cendente, até sua integração completa. 41 É moderado O mundo e suas galáxias é o espaço onde bem e mal, prazer e dor, conhecimento e ignorância se entrelaçam em proporções quase iguais. Não faz parte dos propósitos do Universo ser um paraíso, mas o espa- ço onde o espírito do ser humano pode viabilizar seu aprendizado de integração ao Transcendente. É como se o Universo perceptível servis- se apenas para mostrar que há outra realidade além dele. É maya O mundo e suas galáxias é maya. A palavra maya possui a mesma raiz que mágica. Na mágica, o que vemos nem sempre é o que pensa- mos ver. Assim o Universo. Enquanto em processo de constantes re- nascimentos, o ser humano pode cair no ardil de que a materialidade e a multiplicidade são realidades independentes, quando, em realidade, são Brahman, o todo inclusivo de tudo o que é e de tudo o que não é. O mundo e suas galáxias podem ser a prisão do ciclo de constantes e infindáveis renascimentos do ser humano. O Universo aí está para ser percebido em sua unidade, que é Brahman. Mesmo que o ser humano não o perceba, ou o perceba apenas parcialmente, ele continua sendo Brahman. É lila O mundo e suas galáxias é o espaço lila ("dança") do Transcendente. É onde ele dança, numa espécie de jogo, de forma incansável, infinda, irresistível, mas absolutamente benéfica. É jogo que o Transcendente criou a fim de que o finito seja superado e destruído pelo infinito. 2.3 Principais tendências Escolas do pensamento hindu Entre os séculos II a.C. e IV d.C., surgiram seis escolas ortodoxas da filosofia clássica hindu. Não eram grupos organizados, mas sistemas de pensamento que apresentavam perspectivas diversas, porém com- plementares, de métodos devocionais, interpretação das escrituras e cosmologia. Vaiseshika: defende que a libertação do ser humano ocorre pela compreensão das leis da natureza; Nyaya: defende que a libertação do ser humano se dá pelo conhe- cimento através do raciocínio lógico; 42 Samkhya: defende que a libertação do ser humano ocorre quando se alcança a união da alma individual com o Transcendente (moksha), através da consciência que se desvencilha das preocu- pações mundanas e materiais; Mimamsa: defende que a libertação do ser humano dar-se-á na medida em que os escritos sagrados forem adequadamente inter- pretados e, em decorrência, produzirem o justo agir (darma). Vedanta: defende que a libertação do ser humano decorre da correta compreensão do Transcendente e dos conhecimentos espi- rituais, possibilitada pela igualdade entre a alma individual e o Transcendente. Bhakti: defende que a libertação do ser humano é possível em razão das atitudes devocionais que permitem que a alma indivi- dual e o Transcendente se unam, embora sejam diferentes. Correntes hindus modernas no Ocidente Em meados do século XX, surgiu na Europa e nos Estados Unidos um grande interesse pela espiritualidade oriental.
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