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OS DEBATES DO MOVIMENTO FEMINISTA: DO MOVIMENTO 
SUFRAGISTA AO FEMINISMO MULTICULTURAL 
 
Mariana Barrêto Nóbrega de Lucena
*
 
Resumo 
Este artigo se propõe a apresentar uma evolução histórica do movimento feminista. Este 
que parte inicialmente de ideias universalistas, com o movimento sufragista no século 
XIX, e que tem como tendência atual uma abordagem culturalista, que busca a 
valorização das diferenças existentes entre as mulheres. Por fim, serão apresentadas as 
críticas da autora Nancy Fraser em relação aos possíveis equívocos que uma abordagem 
essencialmente culturalista pode representar tanto aos movimentos sociais em geral 
quanto ao feminismo. 
 
Palavras-chave: Feminismo. Direitos humanos. Nancy Fraser. 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
 De uma maneira geral, poderia se definir o feminismo como o movimento social 
que reivindica a melhoria das condições de vida das mulheres, e, para isso, almeja 
eliminar as desvantagens em relação ao status alcançado pelos homens ao longo da 
história. 
 Este artigo irá tratar da palavra “feminismo” no singular, no entanto, é 
importante frisar que o correto seria falar em “feminismos”, pois, como será mostrado 
adiante, o feminismo não possui uma unidade de pensamento, tampouco é uma prática 
política homogênea. Desde o seu surgimento como um movimento político organizado 
até os dias atuais, ele tem passado por grandes debates, onde se enfrentaram diversos 
pontos de vista bastante diversos. 
 Este trabalho tem por intuito inicial percorrer historicamente a evolução do 
pensamento feminista. Inicialmente esse trajeto parte com ideias de um feminismo 
universal, em que partia do princípio de que todas as mulheres eram iguais, e, segue 
atualmente o caminho inverso, observando agora as diferentes experiências das 
mulheres, respeitando as diversidades étnicas, culturais e de sexualidade. 
 Por fim, dado que as discussões culturalistas têm predominado tanto no 
feminismo como nos movimentos sociais em geral, serão mostrados alguns equívocos 
que o predomínio desse raciocínio pode vir a cometer. Para fundamentar essa ideia, será 
 
*
Aluna da pós-graduação lato sensu em Direitos Humanos, Econômicos e Sociais da Universidade 
Federal da Paraíba (UFPB) em convênio com a Escola Superior da Magistratura (ESMA). 
dedicada uma última parte para a explicitação do raciocínio de Nancy Fraser sobre esse 
assunto, em que ela fala do que ela chamou de dilema da redistribuição-reconhecimento. 
 
2 A PRIMEIRA E A SEGUNDA ONDA FEMINISTAS 
 
De maneira bastante simplificada, seria possível dividir o feminismo em três 
ondas ou momentos. O primeiro momento que ocorre no período que vai da Revolução 
Francesa até o final da Primeira Grande Guerra. O segundo, em que marca o período do 
seu ressurgimento nos anos 1960. E o terceiro que emerge na década 1990.
1
 
Nesta primeira parte, será mostrada as debates feministas que antecederam a fase 
atual, intitulada de terceira onda. Aqui se vê, sobretudo, a luta pelas mulheres por 
direitos civis e políticos, e os primeiros debates sobre a questão da igualdade. 
 
2.1 PRIMEIRA ONDA 
 
Apesar de pontualmente no decorrer da história ser possível encontrar algumas 
vozes do feminismo, ele passa a se formar como movimento organizado apenas após a 
Revolução Francesa, e ganha particularmente mais força durante o século XIX, com o 
movimento sufragista. 
O século XIX se caracterizou pela emergência de lutas do operariado, 
principalmente em duas frentes: a luta por melhores condições de trabalho e a luta pelos 
direitos de cidadania. Nesta frente, o sufrágio universal foi uma das principais 
conquistas do proletariado masculino, que eliminaram o voto qualificado por renda. No 
entanto, nesta luta por direitos da democracia, o sufrágio feminino não foi incluído. 
Insatisfeitas com esta situação de exclusão, milhares de mulheres de todas as classes se 
uniram em torno da conquista pelo voto. Foi uma luta longa, que nos Estados Unidos e 
na Inglaterra se prolongou por 7 décadas, e no Brasil durou 40 anos, a contar da 
Constituinte de 1891.
2
 
 Esta primeira onda do feminismo foi a época do chamado “feminismo 
igualitário”, que tinha vertente liberal ou marxista. Preocupava-se “fundamentalmente 
 
1
 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Feminismo e Direito. In: Revista do Núcleo de Estudos e 
Pesquisas em Gênero e Direito, v. 1, n. 1. João Pessoa: UFPB, 2010. 
2
 ALVES, Branca Moreira & Pitanguy, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 2007. p. 
42-44 
em identificar as causas da discriminação das mulheres e em reivindicar igualdade entre 
elas e os homens, sobretudo no plano dos direitos civis e políticos”.3 
 No feminismo igualitário do tipo liberal, a “causa da subordinação feminina 
estaria assentada nos preconceitos e estereótipos acerca das mulheres, e o espaço maior 
de manifestação desta dominação seria a própria vida pública”.4 O feminismo liberal ia 
de contra a naturalização da condição feminina como inferior ao homem. Grandes 
pensadores influentes advogaram esta tese. Locke, por exemplo, defendia que o lugar da 
mulher era no lar, onde ela seria subordinada ao melhor julgamento do homem, e que as 
mulheres estavam sujeitas inclusive pela natureza à sujeição. David Hume, defensor das 
virtudes da solidariedade e ligação com o sofrimento alheio, dizia que os homens eram 
os chefes naturais do lar. Ainda Madame de Staël e Rousseau ensinavam que a natureza 
das mulheres determinava seus destinos e elas não deveriam ir contra ele.
5
 
 O feminismo igualitário liberal defendia que não era a natureza que definia as 
capacidades dos sexos, mas que estas eram desenvolvidas por meio de um processo de 
socialização e de educação que ensinava a hierarquia entre os indivíduos. Desta forma, 
para reversão da subordinação das mulheres seria necessária a supressão de leis 
discriminatórias que impediriam o acesso delas à vida pública e a uma mudança das 
práticas de educação sexistas.
6
 
 O feminismo igualitário marxista se baseava na crítica socialista, que 
argumentava que valores como a igualdade e a liberdade da Revolução Francesa teriam 
sido conquistas concedidas apenas à classe burguesa. Apesar desta se apresentar como 
defensora de valores universais, logo ficou claro que as reformas concretas seriam para 
benefício de sua própria classe e não para os trabalhadores.
7
 Influenciado pelo 
economicismo e pela valorização dos direitos relacionados ao trabalho da teoria 
marxista, surgiu o feminismo igualitário marxista que entendia que “a causa da 
subordinação feminina adviria da própria organização econômica, e seu lugar de 
expressão, portanto, seria a economia e o mundo do trabalho”. Sendo assim, a libertação 
das mulheres se daria com a abolição da propriedade privada e com a transformação da 
divisão sexual do trabalho.
8
 
 
3
 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 
4
 Idem, Ibidem. 
5
 NYE, Andrea. Teoria Feminista e as filosofias do homem. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 
1995. pp. 19-21. 
6
 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 
7
 NYE, Andrea. Op. cit., nota 5. p. 49. 
8
 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 
O feminismo marxista, no entanto, acabou sofrendo na época com a dificuldade 
de reconhecimento por parte dos marxistas dito “ortodoxos”, do trabalho doméstico 
como efetivo trabalho, como também da divisão dos sexos como fato natural.
9
 Dentre os 
grandes nomes do feminismo marxista estão Alexandra Kollontai, Clara Zetkin e 
August Bebel.
10
 
 
2.2SIMONE DE BEAUVOIR – UMA VOZ SOLITÁRIA – TRANSIÇÃO 
 
 Os anos 1930 e 1940 representaram um momento de refluxo na organização das 
mulheres, já que algumas reivindicações haviam sido formalmente atendidas, como o 
direito de votar e ser votada, ingresso nas instituições escolares e participação no 
mercado de trabalho. Este recuo também pode ter sido consequência da ascensão do 
nazi-facismo, em que reprimia quaisquer outras formas de contestação social.
11
 
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, passou-se a valorizar a participação 
da mulher no mercado de trabalho, por necessidade econômica daquele momento 
histórico. Era necessário liberar a mão-de-obra masculina para que os homens pudessem 
seguir para as frentes de batalha. No entanto, com o fim da guerra e o retorno da força 
de trabalho masculina, passou a preponderar novamente uma ideologia que valorizava a 
diferenciação de papéis por sexo, atribuindo à condição feminina o espaço doméstico 
como forma de justificar a retirada da mulher do mercado de trabalho, para que cedesse 
seus lugares aos homens.
12
 
 A escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir, apresentou-se como uma 
voz feminista solitária nesse contexto de baixas atividades do movimento das mulheres. 
Com a publicação da obra “O segundo sexo”, a autora passou a denunciar as raízes 
culturais da desigualdade sexual, contribuindo com uma análise profunda na qual trata 
de questões relativas à biologia, à psicanálise, ao materialismo histórico, aos mitos, à 
história, à educação, para o desvendamento desta questão. Sendo assim, ela afirma ser 
necessário estudar a forma pela qual a mulher realiza o aprendizado de sua condição, 
como ela a vivencia, qual é o universo ao qual está circunscrita.
13
 
 
9
 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 
10
 NYE, Andrea. Op. cit., nota 5. p. 59. 
11
 ALVES, Branca Moreira & Pitanguy, Jacqueline. Op. cit., nota 2. pp. 49-50. 
12
 Idem, Ibidem. p. 50. 
13
 Idem, Ibidem. p, 52. 
 Ela percebe que durante o período de socialização da mulher, ela é condicionada 
psicologicamente a ser treinada como mero apêndice do homem. Para a autora, em 
“nossa cultura é o homem que se afirma através de sua identificação com seu sexo, e 
esta autoafirmação, que o transforma em sujeito, é feita sobre a oposição com o sexo 
feminino”.14 Desta maneira, a figura feminina é transformada em objeto, que é visto 
através do sujeito masculino, ou seja, como “o outro”.15 
 Como adepta do existencialismo de Jean-Paul Sartre, em que tinha como 
máxima “a existência precede a essência”, ela proferiu a máxima de seu livro “não se 
nasce mulher, torna-se uma”.16 
 As ideias de Simone de Beauvoir vão aparecer com mais força décadas após da 
publicação de “O segundo sexo”, o que irá delinear os fundamentos da reflexão 
feminista que ressurgirá a partir da década de 1960, o que acabou por configurar a 
segunda onda do movimento. 
 
2.3 A SEGUNDA ONDA 
 
A partir dos anos 1960 o movimento feminista volta a se organizar com força, 
principalmente, nos Estados Unidos e na França, agora também contestando as 
perspectivas igualitárias da primeira onda. Passou-se a configurar o que foi chamada de 
segunda onda feminista. Nessa perspectiva, a diferença também se converte numa das 
teses do discurso feminista.
17
 
Os debates dessa época foram marcados pelo antagonismo entre as feministas da 
igualdade (equality feminists), representadas principalmente pelas americanas, e as 
feministas da diferença (difference feminists), que tinha o predomínio na França.
18
 “As 
principais questões em disputa diziam respeito à natureza e à causa das injustiças de 
gênero, à solução para essas injustiças e ao significado da equidade de gênero”.19 
As feministas pela igualdade viam a diferença de gênero como um instrumento e 
um artefato da dominação masculina. Os homens, então, inventavam supostas 
 
14
 ALVES, Branca Moreira & Pitanguy, Jacqueline. Op. cit., nota 2. p. 52. 
15
 BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 
16
 Idem, Ibidem. 
17
 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 
18
 KOLLER, Sílvia Helena & NARVAZ, Martha Giudice. Metodologias feministas e estudos de gênero: 
articulando pesquisa, clínica e política. In: Psicologia em Estudo, Maringá, n. 11, ano 3, 2006. p. 649 
19
 NEVES, Raphael Cezar da Silva. Reconhecimento, multiculturalismo e direitos: contribuições do 
debate feminista a uma teoria crítica da sociedade. Dissertação de Mestrado em Ciência Política da 
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 18. 
diferenças para justificar a situação hierarquicamente inferior que as mulheres se 
encontravam na sociedade. Era o caso, por exemplo, de reduzir a mulher a um papel 
doméstico, privando-as de todas as atividades que promovem a autorealização humana, 
“privando-as do acesso equitativo aos bens sociais essenciais, como renda, trabalho, 
saúde, educação, autonomia, respeito, prazer sexual, integridade de seus corpos e 
segurança física”.20 Para essa corrente, a diferença de gênero era algo inerente ao 
sexismo, e que o objetivo do feminismo seria retirar as amarras da diferença e 
estabelecer a igualdade. 
O debate entre as feministas liberais e marxistas continua, dentro da perspectiva 
do feminismo da igualdade. No entanto, na segunda onda, surge uma importante 
corrente também dentro dessa análise, chamada de “feminismo radical”. Esta corrente 
tem essa denominação, não para denotar um especial fanatismo, mas porque se propõe a 
buscar a raiz do problema da opressão feminina. Para estas feministas, a principal causa 
da dominação masculina é o patriarcado. Trata-se de um sistema de pensamento e uma 
prática social de afirmação do poder dos homens sobre as mulheres, que se expressa 
principalmente sobre o corpo delas. As mulheres, então, apenas atingiriam a sua 
libertação com a superação do patriarcado, que permitiria a construção de uma cultura 
feminina, lutaria contra as manifestações estéticas e éticas deste poder masculino e, no 
entender de alguns prismas mais radicais, alcançaria a própria separação dos homens e 
mulheres.
21
 
 O feminismo da igualdade predominou durante a década 60 e no final da década 
de 1970, porém, passou a preponderar um novo feminismo, que, pelo contrário 
valorizava a diferença de gênero.
22
 O feminismo da diferença, também chamado de 
feminismo da feminilidade, acreditava que uma visão igualitária das mulheres era 
androcêntrica e assimilacionista. Ou seja, insistir por incluir as mulheres nas atividades 
tradicionalmente masculinas, significaria interpretar que apenas estas atividades eram 
verdadeiramente humanas e dignas, e que as atividades femininas eram depreciativas. O 
feminismo da igualdade, pelo contrário, não mudaria o sexismo e desvalorizaria a 
feminilidade. Seria necessário, portanto uma interpretação nova e positiva da diferença 
de gênero, que valorizaria a feminilidade. Para as feministas da diferença, as mulheres 
 
20
 NEVES, Raphael Cezar da Silva. Op. cit., nota 19. p. 19. 
21
 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 
22
 NEVES, Raphael Cezar da Silva. Op. cit., nota 19. p. 19. 
eram realmente diferentes dos homens, mas ser diferente não significava ser inferior. 
Dever-se-ia, portanto, reconhecer, e não minimizar, a diferença de gênero.
23
 
 O terceiro momento do movimento feminista passa a questionar com mais 
profundidade essa questão em torno da igualdade e da diferença, procurando apontar asfalhas nas discussões das feministas da segunda onda. Um novo debate surge no 
movimento feminista, o que acabou por engendrar a terceira onda, que será tratada em 
seguida. 
 
3 A TERCEIRA ONDA 
 
 A terceira onda emerge de uma discussão iniciada nos anos 1980, e que se 
consolida efetivamente a partir da década de 1990. São as teorias ditas “pós-feministas”, 
que denunciam os discursos anteriores do feminismo, que estariam infectados pelo 
ponto de vista ocidental, branco e heterossexual.
24
 Foi proposta, então, uma nova 
proposta de discussão do feminismo, integrada com discussões de “raça”, etnia, 
sexualidade e classe.
25
 Dever-se-ia ter em vista a partir de então os diferentes tipos de 
mulheres. Esse debate foi proposto, sobretudo, por feministas lésbicas e negras, que não 
se sentiam contempladas completamente pelas antigas formas de feminismo. 
Esta fase do feminismo também é decorrente de novas discussões sobre a 
questão dos direitos humanos, que passaram a predominar a partir desse momento, e 
que serão tratadas adiante. 
 
3.1 A QUEDA DO PARADIGMA TRADICIONAL DOS DIREITOS HUMANOS 
 
 Durante o processo histórico de consolidação dos direitos humanos é possível 
perceber duas tendências predominantes: uma relativa à sua universalização e outra à 
sua multiplicação e especificação. 
 A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 surgiu como resposta às 
atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial, com o nazi-fascismo. A partir 
desse momento, passou-se a considerar todo ser humano como sujeito de direitos e 
merecedor de proteção desses direitos no âmbito internacional. Decorrente do temor em 
 
23
 NEVES, Raphael Cezar da Silva. Op. cit., nota 19. p. 20. 
24
 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 
25
 NEVES, Raphael Cezar da Silva. Op. cit., nota 19. p. 20. 
relação ao nazi-fascismo, evitava-se fazer qualquer diferenciação entre os seres 
humanos, e a tônica da época era a proteção geral. No entanto, o indivíduo era tratado 
de forma genérica, geral e abstrata, com base na igualdade formal.
26
 
 Essa primeira noção de direitos humanos se mostrou insuficiente para a proteção 
de determinados grupos da sociedade global. Era preciso uma individualização do 
sujeito de direito, que deveria passar a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. 
Para a verdadeira promoção de direitos, era preciso perceber a diferença e a 
vulnerabilidade de determinados grupos, para assim fornecer uma proteção especial e 
particularizada que permitisse o verdadeiro alcance de direitos.
27
 
 Sendo assim, passou a ser a concedida uma maior atenção à populações 
vulneráveis, como à afrodescendente, às crianças e às mulheres. Agora, ao lado do 
direito da igualdade também importa o respeito à diferença e à diversidade.
28
 
 Nesse contexto, passa-se a criar uma série de instrumentos internacionais, 
visando a formação de um sistema especial de proteção dos direitos humanos. Em 1979 
é realizada a primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, no México, onde foi 
aprovada pelas Nações Unidas a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de 
Discriminação contra a Mulher (CEDAW), documento que alicerçará o surgimento de 
outros instrumentos internacionais direcionados a eliminação da discriminação contra a 
mulher. (Flávia Piovesan) 
Foi assim que então questões como raça, etnia, religião e sexualidade colocaram 
novos desafios para se pensar novas significações de “humano/a” e passou a pautar as 
discussões mais recentes das feministas na agora intitulada terceira onda. Neste 
momento, duas correntes passaram a se destacar: a das antiessencialistas e a das 
multiculturalistas, que serão adiante descritas. 
 
3.2 ANTIESSENCIALISMO E MULTICULTURALISMO 
 
As feministas antiessencialistas opõem uma forte resistência a qualquer noção de 
identidade ou diferença, preferindo antes falar em construções discursivas dessas 
categorias, procuram, então, desconstruir as identidades. Elas defendem que diferenças 
e identidades são criadas por meio de um processo cultural e que por isso todas elas 
 
26
 PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. In: Cadernos de 
Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 124, jan/abril.2005. p. 46. 
27
 Idem, Ibidem. p. 46. 
28
 Idem, Ibidem. pp. 46-47. 
seriam repressivas e visariam à exclusão, seria, portanto, um discurso criado e não 
objetivamente dado. No entanto, pecam por não se questionarem como uma identidade 
ou diferença construída socialmente estaria relacionada com estruturas sociais de 
dominação. Além disso, ao considerarem todas as identidades como igualmente 
excludentes, descartam qualquer possibilidade de distinguir diferenças emancipatórias 
de diferenças repressivas.
29
 
 O feminismo multicultural corresponde ao mais recente estágio da teoria 
feminista. Essa corrente é uma resposta ao imperialismo cultural, que muitas vezes 
utilizou o discurso da defesa dos direitos humanos para justificar suas práticas de 
exploração. Em oposição a isso, o feminismo multicultural busca a valorização da 
diferenças de identidade das diferentes culturas, validando os diferentes caminhos para a 
construção do ser humano. “Todos os indivíduos deveriam gozar dos mesmos direitos 
legais em virtude de sua humanidade comum. Mas, eles deveriam ser reconhecidos 
pelas suas diferenças em relação aos outros e por sua particularidade cultural”.30 
 
4 O DILEMA “REDISTRIBUIÇÃO-RECONHECIMENTO” E AS CRÍTICAS 
DE NANCY FRASER AOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS 
 
Nancy Fraser faz uma crítica às feministas antiessencialistas e multiculturais. 
Essas correntes feministas se inserem no atual contexto pelo qual atravessam os novos 
movimentos sociais, como os que levantam bandeiras da nacionalidade, etnicidade, raça 
e sexualidade.
31
 
 Ela observa a predominância nesses grupos da luta pelo reconhecimento da 
diferença, no entanto, critica o esquecimento da exploração socioeconômica como 
também uma injustiça fundamental, talvez porque com o colapso do comunismo 
soviético teria se posto o paradigma marxista em descrédito.
32
 
 Os movimentos atuais participam de um momento de viragem da contestação 
política e de um novo entendimento da justiça social, que se alarga para incluir outros 
eixos de subordinação que não apenas a questão da diferença de classes. É importante a 
 
29
 BERNARDES, Márcia Nina & NEGREIROS, Maria J. Discriminação de gênero no Brasil e os 
mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos. Relatório de pesquisa. Departamento de 
Direito: PUC/RJ, 2010. 
30
 Idem, Ibidem. 
31
 FRASER, Nancy. Justice Interruptus – Critical Reflections on the “Postsocialist” Condition. New 
York: Routledge, 2007. Cáp.7 
32
 FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. 
Trad. Julio Assis Simões. In: Cadernos de Campo, n. 14/15, ano 15, 2006. p. 231. 
percepção de que a justiça social não se resume a questões de distribuição de renda, mas 
que também a injustiça social deriva de hierarquias institucionalizadas de valor.
33
 
 Por outro lado, não é evidente que essas atuais lutas que focam nas questões 
culturais estejam a objetivar complementar ou aprofundar as lutas pela redistribuição 
igualitária. O que é uma perda trágica, porque se passaria de um economicismo 
truncado para um culturalismo igualmente truncado.
34
 
 A autora afirma, então, que a busca da justiça hoje exige tanto redistribuição 
quanto reconhecimento. As políticas de redistribuiçãoatacariam as injustiças 
econômicas, que se radicam na estrutura econômico-política da sociedade. As políticas 
de reconhecimento atacariam as injustiças culturais ou simbólicas, tais como a 
dominação cultural, o ocultamento e o desrespeito a diferentes formas de representação 
cultural.
35
 
 Assim, com o que ela chamou de “redistribuição”, buscar-se-ia uma 
reestruturação político-econômica, que pautaria a redistribuição de renda, a 
reorganização da divisão do trabalho, controles democráticos do investimento ou a 
transformação de outras estruturas econômicas básicas. Com o “reconhecimento’, 
buscar-se-ia revalorizar as identidades desrespeitadas e os produtos culturais dos grupos 
difamados.
36
 Deve-se ter, portanto, uma concepção bidimensional de justiça.
37
 
 O que acontece é que há um conflito entre focar simultaneamente em políticas 
de redistribuição e reconhecimento. As lutas por reconhecimento, que predominam 
atualmente, procuram afirmar a presumida especificidade de algum grupo, valorizando e 
promovendo a diferenciação deste. Em contraste, as lutas por redistribuição, buscam 
abolir as diferenças, almejando a destruição dos arranjos econômicos que embasam a 
especificidade do grupo. Vemos então, que estas políticas se apresentam com objetivos 
mutuamente contraditórios. Assim, esses dois tipos de lutas se encontram em tensão, um 
interferindo no outro, ou até mesmo agindo contra o outro.
38
 
 No caso da discussão de gênero especificamente, encontramos uma coletividade 
bivalente que abarca tanto dimensões econômicas quanto dimensões culturais-
valorativas. Necessita, desse modo, de políticas redistributivas que dissolvam as 
 
33
 FRASER, Nancy. A Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e 
participação. Trad. Teresa Tavares. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, out. 2002. p. 9. 
34
 Idem, Ibidem. p. 9. 
35
 FRASER, Nancy. Op. cit., nota 32. pp. 231-232. 
36
 Idem, Ibidem. p. 232. 
37
 FRASER, Nancy. Op. cit., nota 33. p. 11. 
38
 FRASER, Nancy. Op. cit., nota 32. p. 233. 
diferenciações de gênero, ao mesmo tempo de políticas de reconhecimento dessa 
coletividade desprezada. Deparamo-nos então, mais uma vez com o conflito entre 
diferença e igualdade.
39
 Como solucionar esse conflito? 
 Para corrigir as injustiças nesse dilema redistribuição-reconhecimento, 
impedindo a substituição de uma reivindicação por outra é preciso um único princípio 
normativo que inclua ambas as demandas. A autora propõe então, o princípio da 
paridade de participação, “segundo o qual a justiça requer arranjos sociais que 
permitam a todos os membros (adultos) da sociedade interagir entre si como pares”.40 
 Com esse princípio, deve haver uma distribuição de recursos materiais que 
permita a independência e “voz” dos participantes. Com esta condição suprimida, seria 
possível impedir a existência de subordinações econômicas, que limitariam a paridade 
de participação. O segundo passo requer a exclusão de padrões institucionalizados que 
depreciem categorias de pessoas e características a elas associadas, de forma a exprimir 
igual respeito a todos os participantes, dando iguais oportunidades para alcançar a 
consideração social. 
41
 
É possível constatar, portanto, que essa viragem no foco das contestações dos 
novos movimentos sociais é conveniente para o atual contexto neoliberal, que deseja 
acima de tudo reprimir a memória do igualitarismo socialista. No entanto, é preciso 
resgatar algumas dessas ideias para que se alcance verdadeiramente a justiça social, e no 
caso das mulheres, que realmente se possa fazer uma discussão paritária entre as mais 
diversas culturas. 
 
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
 Como pôde ser visto, o feminismo ao longo de sua trajetória como movimento 
social organizado, passou por diversos debates e reivindicou muitas vezes questões 
inteiramente contraditórias. 
 Inicialmente procurou afirmar a igualdade de todas as pessoas, entre homens e 
mulheres, e entre todas as mulheres. No entanto, a defesa de direitos humanos 
universais, acabou por legitimar diversos abusos imperialistas, e a hierarquização de 
uma cultura sobre a outra. 
 
39
 Idem, Ibidem. pp. 233-234. 
40
 FRASER, Nancy. Op. cit., nota 33. p. 13. 
41
 Idem, Ibidem. p. 33. 
 Como resposta a isso, os novos movimentos sociais, que ganham força 
principalmente nos anos 1980 e 1990, acabaram por defender uma abordagem 
culturalista à questão da opressão social. Contudo, apesar da importância da percepção 
da opressão como algo que vai além da desigualdade material, esses novos movimentos, 
incluindo o feminista atual, representado principalmente pelo feminismo multicultural, 
acabaram por abandonar quase que completamente essa temática, e reduziram 
excessivamente a temática ao problema do reconhecimento cultural. 
 Nancy Fraser procura questionar essa nova visão sobre injustiça social. Ela 
aponta que a questão de gênero, por exemplo, é um problema que envolve tanto 
aspectos de desrespeito cultural como de desigualdade material. Necessitaria, portanto, 
tanto de políticas de reconhecimento como de redistribuição, devendo-se dessa forma 
ter uma concepção bidimensional de justiça. 
 Para a realização disso, foi proposto que se necessitaria da aplicação de um 
princípio normativo que incluiria ambas as demandas: o princípio da paridade de 
participação. Este se realizaria em dois momentos. Primeiro, deveria ser permitir a 
distribuições de recursos materiais a todas as pessoas, para que assim fosse possível a 
independência e a “voz” dos participantes. Segundo, deveria se excluir os padrões 
institucionalizados que depreciem categorias de pessoas e características a elas 
associadas, de forma a exprimir igual respeito a todos os participantes, dando iguais 
oportunidades para alcançar a consideração social. 
 A importância do trabalho de Nancy Fraser está em resgatar a questão da 
igualdade material, que acabou sendo relegada após a queda do socialismo da União 
Soviética, sem negar a importância das abordagens culturalistas. Assim, preenchendo o 
espaço que faltava nas pautas de reivindicação dos novos movimentos sociais e do 
feminismo. 
REFERÊNCIAS 
 
ALVES, Branca Moreira & Pitanguy, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: 
Brasiliense, 2007. 
 
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 
 
BERNARDES, Márcia Nina & NEGREIROS, Maria J. Discriminação de gênero no 
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