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SERVIÇO SOCIAL & REALIDADE UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP Reitor Prof. Dr. Antônio Manoel dos Santos Silva Vice-Reitor Prof. Dr. Luís Roberto de Toledo Ramalho Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Prof. Dr. Fernando Mendes Pereira FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL Diretor Prof. Dr. Luiz Antonio Soares Hentz Vice-Diretora Profa. Dra. Irene Sales de Souza Coordenadora de Pós-Graduação Profa. Dra. Neide Aparecida de Souza Lehfeld UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA SERVIÇO SOCIAL & REALIDADE ISSN 1413-4233 Serviço Social & Realidade Franca v.8, n.1 p.1-196 1999 SERVIÇO SOCIAL & REALIDADE Editora Profa. Dra. Neide Aparecida de Souza Lehfeld Comissão Editorial Profa. Dra. Maria Angela Rodrigues Alves de Andrade Profa. Dra. Lilia Christina de Oliveira Martins Prof. Dr. Ubaldo Silveira Profa. Dra. Neide Aparecida de Souza Lehfeld Publicação Semestral/Semestral publication Solicita-se permuta/Exchange desired Correspondência e artigos para publicação deverão ser encaminhados a: Correspondende and articles for publicacion should be addressed to: Faculdade de História, Direito e Serviço Social Rua Major Claudiano, 1488 CEP 14400-690 - Franca –SP Endereços Eletrônico / e-mail publica@franca.unesp.br comunica@franca.unesp.br SERVIÇO SOCIAL & REALIDADE (Facul- dade de História, Direto e Serviço Social – UNESP) Franca, SP, Brasil, 1993 - 1993 - 1999, 1 – 11 ISSN 1413-4233 APRESENTAÇÃO Como é dado a alguém que se vê na contingência de bem compreender os diversos envolvimentos dos cursos do seu câmpus, a surpresa é uma constante quando se envolve com disciplinas fora de sua formação pessoal. Assim, embora atento às transformações sociais e aos movimentos na área da Educação em geral, meus estudos em Economia e Direito sempre ocuparam um espaço razoável, em detrimento de outros campos do conhecimento, igualmente importantes. Daí que a leitura, atenta e diligente dos escritos que compõem este número da Revista Serviço Social & Realidade, propiciou não só a compreensão necessária das análises e comentários ao Serviço Social como prática educacional, científica e didaticamente disciplinada, mas especialmente o valor das contribuições do(as) professor(as) e pesquisador(es). São estudos sérios sobre o Serviço Social e seu impacto na Educação atual. Destaca-se, dentre esses, o relato da Profa. Dra. Raquel Santos Sant'Ana, sobre a trajetória histórica do Serviço Social e a construção do seu projeto ético-político. Aos autores, aos membros da Comissão Editorial e à Editora, Profa. Dra. Neide Aparecida de Souza Lehfeld, reservam-se os méritos da publicação ora apresentada ao público leitor. Prof. Dr. Luiz Antonio Soares Hentz Diretor da FHDSS SUMÁRIO/CONTENTS APRESENTAÇÃO SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO 5 • Desafios ao Novo Currículo de Serviço Social Challenges to the New Curriculum of Social Service Raquel Gentilli ......................................................... 9 • A prática do Ensino no Curso de Serviço Social – reflexões necessárias The practice of the Teaching in the Course of Social Service - necessary reflections Maria Angela Rodrigues Alves de Andrade............. 31 • O Serviço Social na área da Educação The Social Service in the area of Education Eliana Bolorino Canteiro Martins ........................ 57 • A trajetória histórica do Serviço Social e a construção do seu projeto ético-político The historical trajectory of the Social Service and the construction of its ethical-political project Raquel Santos Sant'Ana ......................................... 73 • Iniciação Científica no Serviço Social Cientific Iniciation in the Social Service Neide Aparecida de Souza Lehfeld SERVIÇO SOCIAL E PESQUISA CIENTÍFICA 89 • Critérios de avaliação para classificação sócio- econômica: elementos de atualização Means of avaliaton Social-economic classification: Update elements Albério Neves Filho, Maria Inês Gândara Graciano e Neide Aparecida de Souza Lehfeld ..................... 109 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 1-196, 1999 7 • A família como espaço privilegiado para a construção da cidadania The family as privileged space for the construction of the citizenship Mário José Filho ..................................................... • Nordeste Paulista, Antecedentes, Caminhos e Ocupação Northeast of São Paulo, antecedents, ways and occupation Cláudia Maria Daher Cosac ..................................... 129 151 ÍNDICE DE ASSUNTOS ........................................................ 187 SUBJECT INDEX .................................................................. 189 ÍNDICE DE AUTORES/AUTHORS INDEX ............................ 191 8 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 1-196, 1999 DESAFIOS AO NOVO CURRÍCULO DE SERVIÇO SOCIAL1 Raquel GENTILLI* • RESUMO: Este texto discute a formação profissional do serviço a partir das referência das diretrizes para o novo currículo de serviço social, tomando como posto de observação, as querelas decorrentes das ações privativas dos Conselhos Regionais e Federal. Esta reflexão chama atenção ainda para a necessidade de uma participação mais ampliada e decisiva dos profissionais da prática, sobretudo dos supervisores, no processo de formação profissional. • PALAVRAS CHAVE: Formação profissional do serviço social; Prática profissional do serviço social; Diretrizes para reformulação do currículo. Este texto tenta debater sobre a formação profissional do serviço social num contexto um pouco diverso daquele que geralmente vem sendo posto no debate recente do novo currículo. Além de refletir sobre algumas questões à luz das diretrizes gerais de ABEPS, inclui alguns aspectos que se apresentam, não só no espaço acadêmico, mas também no da fiscalização do seu produto, ou seja, no campo das atribuições legais de um Conselho Regional de Serviço Social. Deste olhar emergem ponderações sobre alguns dilemas centrados em dificuldades teóricas e práticas que geralmente eclodem em torno dos empecilhos derivados da manipulação das metodologias profissionais e das interpretações teóricas da realidade, protagonizados, na maioria das vezes, pelos profissionais que vivenciam a realidade da prática profissional no cotidiano. Apresenta-se portanto como um texto híbrido (pois se imiscua em diversas veredas do exercício e da formação profissionais) e tenta suscitar alguma reflexão sobre mazelas crônicas destas realidades, ao mesmo tempo em que pretende 1 Texto produzido em julho de 1999 originariamente para subsidiar a discussão da COFI (Comissão de Orientação e Fiscalização do CRESS -17ª Região / Espírito Santo). * Assistente Social pela Universidade Federal do Espírito Santo. Mestre em Ciências Sociais e Doutora em Serviço Social, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Presidente do CRESS-17ª Região (Espírito Santo), gestão 1996-1999 e 1999-2002. Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 9 sinalizar para o enfrentamento das mesmas, alongando-se das questões teóricas mais gerais até as mais diretamente ligadas ao estágio supervisionado. Assim, estas e outras questões, nem sempre explícitas, sinalizam para a existência deásperos problemas sentidos pelos assistentes sociais no mercado de trabalho. Aqui, tais questões estão sendo trabalhadas por mim como uma tentativa de apreensão - que me foi possível realizar -, daquilo que Goldmann denomina “consciência possível”2 sobre o assunto neste momento. Toma-se, para tanto, como referência a experiência coletiva recente do CRESS-ES 3 ,assim como minhas próprias reflexões acumuladas sobre o assunto nos últimos anos. A medida em que foram sendo arrolados problemas, naturalmente foi sendo construída uma reflexão espontânea sobre a formação profissional desejável, numa perspectiva um pouco diferenciada da do espaço acadêmico, pois ela se baseava nos resultados que se apresentam no cotidiano da entidade, e não no projeto de formação profissional. Neste sentido, o olhar aqui apresentado, esforça-se para expressar exatamente esta reflexão acumulada sobre tais efeitos, que se espera possa, dialeticamente, contribuir para o debate do projeto de formação em curso. Como conseqüência, a reflexão aqui gerada assume uma perspectiva de reivindicação, de demanda expressa e explicita às Unidade de Ensino, responsáveis principais que são, como artífices de uma determinada concepção de profissão que vem sendo construída coletivamente. Ao mesmo tempo lança um desafio aos supervisores profissionais a se inserirem em parcerias efetivas para conhecer, supervisionar e fiscalizar a formação e o exercício profissionais como um todo. Por tomar, como posto de observação, as querelas decorrentes das ações privativas dos Conselhos Regionais e Federal, esta reflexão chama atenção ainda para a necessidade 2 Ver este conceito na obra de Lucien Goldmann, principalmente nas obras Dialética e Cultura. 3.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991, e Ciências Humanas e Filosofia: o que é a sociologia? São Paulo: Difel, 1980. 3 Esta reflexão aqui proposta está presente no projeto do Curso de Serviço Social da Faculdade Salesiana de Vitória, de minha autoria, que está sendo submetido à aprovação do MEC. 10 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 de uma interferência mais ampliada e decisiva dos profissionais da prática, sobretudo dos supervisores, no processo de formação profissional no sentido de acompanhar a transmissão de um saber, de uma cultura e de uma identidade profissional que se quer democrática e cidadã. I – Razões para uma reflexão mais ampliada O apelo a uma participação mais ampliada no processo de formação profissional, envolvendo inclusive os Conselhos Federal e Regionais, deve-se ao simples fato das Unidade de Ensino realizarem um processo de formação e autorização legal para o exercício profissional, que, no sentido restrito, cessa com a colação de grau do aluno. Aos Conselhos cabe, entretanto, por meio da fiscalização do exercício e da ética profissionais, a responsabilidade sobre a profissão que se realizará ao longo da vida profissional do assistente social, tendo que se haver com as lacunas deixadas pela formação. Outra razão importante para tal investida se deve ao fato de terem sido identificados, ao longo da experiência realizada na gestão 1996-1999, alguns pleitos e indagações de colegas da prática, apoiadas em suas experiências organizacionais, assim como nos chamados “campos de estágio”, sobre as referidas lacunas. Além das razões profissionais, políticas e pedagógicas, há que se reconhecer também que, perante a justiça, a ninguém é facultado o direito de alegar desconhecimento da legislação em vigor. Isto significa que existem razões práticas para promover uma aprendizagem mais concreta dos elementos normativos da profissão, além das motivações teleológicas. Por mais estranho que possa parecer às Unidades de Ensino, tais conteúdos ainda não fazem parte das rotinas de uma quantidade enorme de profissionais que se encontram no mercado. E muitos, ao serem surpreendidos pelas novas formas de demandas do mercado, como gerenciamento organizacional, planejamento, recursos humanos, novas especializações socio- técnicas (que sinalizam exatamente para o aprofundamento, expansão e complexificação das respostas que a profissão é chamada a dar às demandas que estão sendo postas pelo Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 11 mercado de trabalho), tendem a pôr em questão a identidade e a formação profissionais. Para enfrentar o desafio de refletir desde lugar, toma-se como pressuposto para a reflexão uma concepção de formação profissional, que não desconsidera o papel e as atribuições específicas das Unidades de Ensino, mas responsabiliza a todos, professores, supervisores, organizações da categoria e os próprios alunos por este processo. Assim, procurando expandir o foco da reflexão sobre a formação profissional para um debate mais ampliado, pretende-se trazer para a reflexão as seguintes questões: 1) Existe hoje na prática uma gama muito variada de focos de atenção dos assistentes sociais em relação aos problemas concretos cotidianos que estão completamente dispersos, sem uma boa articulação com os conteúdos mais genéricos da formação profissional. Esta característica não é nova, apenas se encontra hoje mais ampliada e complexifica. 2) Recentemente a profissão retornou ao debate teórico da metodologia, da prática e da instrumentalização profissionais. Entretanto, este debate ainda se realiza com certa dificuldade pedagógica e em âmbito restrito, o que dificulta a sua apropriação na graduação e, consequentemente dificulta o diálogo com os supervisores nos “campos de estágio”. 3) Muito tem se discutido sobre relação teoria-prática, mas as pesquisas sobre supervisão e estágio têm apontado que muito ainda temos a construir nas Unidade de Ensino e nas organizações que funcionam como “campo de estágio”. Este passo é fundamental para que fiquem assegurados na formação do aluno as reflexões sobre a finalidade da profissão na sociedade, os produtos da ação profissional em meio aos objetivos das organizações e o lugar da ética na profissão. 4) Os procedimentos que envolvem o processo de supervisão construíram ao longo da história profissional uma cultura de tradição oral e teoricamente assistemática que sobrevive fortemente. Esta tem socorrido os alunos em relação aos métodos, às habilidades técnicas e aos procedimentos operativos e processuais na condução de levantamentos, planejamento, administração e gestão social, assim como nas intervenções profissionais individuais, grupais e coletivas. 12 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 5) Apesar da existência de uma clara exigência de qualidade do desempenho e da competência profissionais pelas instituições da categoria, nem sempre se tem conseguido estabelecer clara interlocução entre práticas pedagógicas e práticas profissionais que articule clara e organicamente razões éticas, amadurecimento intelectual e valores humanitários, libertários e participativos no processo de formação profissional. A discussão da profissão sobre problemas como estes é bem antiga e vem sendo acumulada e amadurecida ao longo de muitos anos de debate. Entretanto, o produto deste acúmulo, e que foi inclusive incorporado nas recentes medidas reguladoras4, ainda não se encontra consolidada como uma realidade empírica em todas Unidades de Ensino. Tais diretrizes para a formação, de certa forma, já se encontram assinaladas nos instrumentos de controle e disciplina da profissão, que são o Código de Ética e a Lei 8662, ambos em vigor desde 1993. Por mais que tenhamos avançado nesta década, falta ainda em grande medida - na prática - uma expressão orgânica destes elementos normativos nos novos conteúdos teóricos e práticos da formação profissional.O eixo teórico central da reflexão que aqui está sendo trazida sobre a formação profissional, e logicamente sobre o novo currículo, está centrada na concepção de que o assistente social é um profissional demandado socialmente para responder à questão social por meio de programas e políticas sociais, estabelecidas nas mais diversas organizações públicas e privadas, governamentais e não-governamentais. Ao atender a estas demandas, o assistente social opera ações e processos em respostas aos problemas sociais, que envolvem sofrimentos psicossociais dos usuários, simultaneamente ao desenvolvimento de ações práticas de natureza política. Assim, o profissional se encontra inserido em relações sociais complexas que fazem emergir uma ação 4 Wanderley , Mariângela Belfiore. Formação profissional no contexto da reforma do sistema educacional. Cadernos ABESS, n.8, demonstra como a comissão de especialistas do Serviço Social na SESu/MEC conseguiu incorporar às novas diretrizes da formação profissional um parâmetro de qualidade compatível com o processo de discussão interna da categoria, no espírito da LDB n.9394 de 20/12/96, sem deixar de atender os novos padrões universitários estabelecidos para uma formação profissional pela instituição. Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 13 profissional atada às múltiplas dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas que estruturam as sociedades modernas. Insere-se portanto, no cerne dos objetos das organizações que se instituem socialmente para atender - ainda que de forma fragmentada, desordenada e muitas vezes irracional -, aos problemas mais candentes da questão social na vida concreta dos trabalhadores e dos setores excluídos de direitos e de prerrogativas sociais na sociedade capitalista moderna. Neste processo, o objeto profissional, não raro, confunde-se com as formas assumidas pelo objeto organizacional - dada a própria natureza dos serviços -, mas, apesar de não se reduzir a ele, vem sistematicamente se diluindo nele. Nestes espaços, muitas vezes, os objetos da ação do assistente social tem se consolidado mais em decorrência da legitimidade “a doc”, atribuída aos profissionais por seus empregadores, que propriamente pela institucionalização da profissão a partir de seus termos normais e legais. Mas isto não significa que deva continuar a ser assim. Afinal é pelo reconhecimento de seu estatuto de profissionalidade que o serviço social iniciou seu longo processo de auto-transformação desde o “Movimento de Reconceitualização” e não mais parou. As características de profissão de forte apelo prático, precisam ser levadas em consideração na condução da implantação do novo currículo, uma vez que tais peculiaridades são definidoras das formatações e das expressões do ser profissional no cotidiano do serviço social. E mais, estas expressões de forma, são tão variáveis e complexas, que muitos profissionais já não se reconhecem mais enquanto tais, em determinadas atividades que passaram a assumir no mercado de trabalho, comprometendo substancialmente a identidade profissional, subordinando-a a uma identidade funcional (derivada de um cargo ou de uma especialização). Tomar consciência dos mecanismos, que originam essas diferenciações que se materializam na realidade concreta do cotidiano profissional, constitui-se num pré-requisito fundamental para o cumprimento dos compromissos da formação profissional em relação aos valores éticos, às razões políticas e à observância às normas instituídas pelos instrumentos legais da profissão. 14 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 Assim, o domínio do conhecimento do Código de Ética e da Lei 8662/93 é tão importante ao assistente social quanto o conhecimento dos objetivos, das rotinas, dos procedimentos regulamentares e culturais das organizações, dos critérios de elegibilidade, das metodologia, das teorias e dos demais elementos que delineiam os contornos das ações profissionais no interior das organizações. Nesse processo, o serviço social tem sido levado a se envolver numa nova lógica e racionalidade, que tem alterado substancialmente o seu fazer cotidiano. Este se afirmar simultaneamente para um campo de atuação altamente competitivo e complexo e como uma estrutura profissional bem mais rica e complexa que as formas até agora existentes. Nestes dois casos, a profissão não pode deixar de se oferecer no mercado como uma estrutura de saber polivalente, dinâmica, empreendedora e que se apresente como uma alternativa de domínio de saber profissional para toda abrangência do social. Deve além disto ser capaz de gerar respostas que atendam às necessidades sociais daqueles que se apresentam demandando serviços sociais nas relações organizacionais onde trabalham. Sabe-se que a transformação de problemas sociais em “demandas” a serem atendidas pela profissão não se constituem processos que envolvem apenas a vontade e a qualificação dos profissionais. A essas, soma-se, sobretudo, o senso de oportunidade, com o qual os atores políticos privilegiados transformam os problemas sociais em agendas políticas, além dos interesses e relações de poder postos na organizações sociais. II – Problemas profissionais hoje existentes no mercado O aspecto da realidade profissional - que envolve diretamente os agentes profissionais e suas instituições - está determinado, pelo menos, por três pontos fundamentais e extremamente imbricados entre si, e que demandam atenção da atual formação profissional. O primeiro se refere ao fato de que precisamos nos habilitar para a transmissão de um saber profissional que possa enfrentar os dilemas que são operados por razões, emoções e perspectivas Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 15 políticas muito diferenciadas e que circulam entre os diferentes agentes profissionais no interior das relações organizacionais. O segundo está relacionado ao fato da diversidade de fazeres e atribuições funcionais (aos quais os assistentes sociais estão sendo submetidos no mercado) estarem deslocando a identidade profissional do eixo que existira na formação original. Isto ocorre, sobretudo, quando os profissionais deixam de se utilizar no cotidiano do trabalho que realizam na organização, os discursos (teóricos e técnicos) com os quais foram formados na academia. Por fim, o terceiro é referente ao fato de que, nos diferentes fazeres funcionais - aos quais muitos assistentes sociais têm sido chamados a atuar -, não exige como pré-requisito básico para a ocupação do cargo, a formação em serviço social. Geralmente para tais funções se requer alguma especialização ou se aceita profissionais de formações profissionais próximas a do serviço social Nestes casos, não raro, os assistentes sociais colocam um sério novo problema a ser enfrentado pela profissão como instituição, que é o desligamento do Conselho “por não ser mais assistente social”. Esses profissionais geralmente foram reciclados em alguma especialização, progrediram na carreira e até encontram-se, não raro, ganhando melhores remunerações. Possuem competência reconhecidamente mais moderna e melhor adaptada ao novo perfil do mercado de trabalho. Neste campo onde o serviço social atua, com o advento do fenômeno atual da competitividade da força de trabalho, prestígio, “status” e reconhecimento profissional não mais decorrem, imediatamente, do estatuto legal desta ou de qualquer profissão da área social. O profissional precisa saber defender idéias e convicções, saber fazer valer seu poder pessoal e capacidade de liderança, sua iniciativa e capacidade de empreendimento. Estas são as regras básicas da competitividade para todos os profissionaisque se encontram vendendo sua força de trabalho no mercado, até para aqueles que se declaram comprometidos com os valores humanitários, como os subscritos pelo serviço social. O grande desafio prático que vem se escancarando para os assistentes sociais está exatamente na convivência conflituosa 16 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 entre a observância às novas técnicas, rotinas e discursos administrativos (nos quais estamos todos sendo submetidos), e as necessidades ética, política e legal de honrar os compromissos com a consolidação da cidadania, da liberdade, da justiça social, dos direitos humanos, do estímulo à participação política dos usuários dos serviços que prestamos na profissão. Desta perspectiva, hoje além de indagar a respeito das atuais inflexões das demandas sociais sobre a profissão, o novo currículo deve inquirir também sobre as formas de desenvolver ações que revelem potencialidade e capacidade de provocar modificações na realidade imediata, além de encaminhar as lutas a médio e longo prazos em favor dos usuários do serviço social e de processos políticos mais generosos. Mais que isso, a nova formação deve quebrar o círculo vicioso da crítica feroz que imobiliza ou que leva os profissionais a se deterem frente a questões com as quais não poderiam tergiversar. Para tanto a esta formação necessita investir mais deliberada e organizadamente em práticas pedagógicas que contribuam decisivamente para a construção da democracia em nossa sociedade. Por mais paradoxal que possa parecer, tais práticas têm se alastrado nos mais variados campos de atuação profissional dos assistentes sociais, mas estas ainda pouco se apropriaram do rico debate teórico que existe sobre o tema, inclusive nas Unidades de Serviço Social. A função destas relações pedagógicas seria exatamente o estabelecimento de mediações que tornassem mais próximas do cotidiano profissional e, portanto, dos alunos, dos professores de disciplinas mais técnicas e dos supervisores, as grandes polêmicas desenvolvidas num contexto socio-político mais amplo. Infelizmente, tais ações ainda têm sido tímidas e pouco sistematizadas no âmbito da atual formação, e não se pode ainda avaliar a dimensão que poderá vir a assumir no novo currículo. Essas ações, quando existem, têm servido mais como indicadores de qualificação e distinção dos cursos que não como indicadores de atribuição e responsabilidade de todos: professores, profissionais e alunos. Os assistentes sociais, muitas vezes, quedam impotentes diante da complexidade da vida organizacional e mal conseguem esboçar comportamentos resistentes, nem sempre organizados Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 17 politicamente. Acuados, infelizes e desgastados mentalmente, uma boa parcela da categoria torna-se incapaz de oferecer proposições alternativas aos empregadores e aos usuários. Na prática observa-se, muitas vezes, que os profissionais recuam perplexos e impotentes diante da falta de perspectiva futura ou de uma boa razão para empreender algum tipo de luta coletiva. Mas este não tem sido o grande tema do atual currículo? O que está se passando no processo de formação, que tantos profissionais saem dos cursos considerando-os tão “teóricos”, isto é, abstratos, sem enraizamento em suas vidas pessoais e profissionais? Toda a complexidade da realidade humano-social, que atravessa as manifestações objetivas nas quais a profissão se espraia, apresenta enormes dificuldades para a sustentação da ética profissional, hoje codificada. Arrola demandas multifacetadas tanto para a formação, quanto para o próprio exercício profissional do serviço social, a ponto, inclusive, de impor o estabelecimento de ações educativas adicionais, por parte dos Conselhos Regionais, tanto em relação à fiscalização do exercício, quanto em relação à ética profissionais. Face ao exposto, considera-se que o ensino profissional necessita, não só se estruturar para uma formação plena, capaz de habilitar os assistente social no desempenho de suas atribuições técnico-funcionais por meio do exercício da crítica teórica e de uma prática responsavelmente desenvolvida5, mas também investir no desenvolvimento de uma identidade profissional fortemente centrada nos valores veiculados pelas instituições regulamentadoras da profissão e que ancorem toda esta diversidade e inovações emergentes. Ou seja, é necessário que a formação profissional torne bem claro ao assistente social os desígnios de sua identidade profissional, além do entendimento dos produtos de sua ação para as organizações sociais e para a sociedade. Logicamente, isto requer uma certa clareza das Unidades de Ensino (seus professores, alunos e supervisores de prática) dos resultados que 5 Sobre o atual estatuto de criticidade da profissão ver artigo produzido por Cardoso et all, Proposta básica para o projeto de formação profissional: novos subsídios para o debate, Cadernos ABESS, n.7. 18 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 a implantação do projeto político e pedagógico em curso pode trazer para o fortalecimento da profissão. Para atender às demandas postas na perspectiva aqui defendida, entende-se que as disciplinas e as matérias da grade curricular precisarão levar em conta, não só os eixos teóricos básicos da formação arrolados pelo novo currículo, mas também serem estabelecidos fundamentalmente novos parâmetros de ensino, de diálogo e de parcerias com o conjunto da categoria, e não só com as suas lideranças e instituições representativas. Também não bastam novos conteúdos teóricos, sem o desenvolvimento de procedimentos pedagógicos que possibilitem o treino das habilidades e das condutas desejáveis de serem manifestas pelos futuros assistentes sociais. Há que se reconstruir novas formas de comunicação entre os agentes profissionais, pois o treino de tais habilidades e condutas nem sempre está inscrito nos atuais ritos de transmissão de conteúdos teóricos existentes nas Unidades de Ensino. Os ritos acadêmicos atuais tendem a se orientar predominantemente pelos processos cognitivos. Assim, além dos conteúdos das disciplinas, dos núcleos temáticos e dos instrumentos que habilitem os alunos, há que se recorrer a procedimentos pedagógicos que, de forma mais orgânica, viabilizem uma conexão dinâmica entre os conteúdos teóricos a serem ministrados, os objetivos profissionais e as razões éticas e políticas que sustentam a finalidade social da profissão. Para se qualificar o futuro profissional na apreensão do acervo dos conteúdos teóricos, dos instrumentos da ação e das condutas éticas, não tem sido suficiente as reflexão sobre os nexos metodológicos gerais ou sobre as relações entre as teorias e seus respectivos métodos científicos e sobre a realidade. Há que se avançar para o estabelecimento de outras mediações que realizem o passo seguinte, aquele que atribuirá materialidade à ação profissional propriamente dita, pois essa não é meramente derivada da compreensão intelectual e moral da realidade. Os assistentes sociais operam (ou deveriam operar) processos eminentemente de mudança social. Promover mudanças implica em quebrar bloqueios e barreiras psicossociais que acomodam e alienam os indivíduos às relações já postas. Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 19 Não raro a resistência à mudança de realidade - sentida tanto objetiva quanto subjetivamente pelos diversos atores sociais envolvidos no processo (inclusive pelos próprios assistentes sociais) - é percebida como ameaçadora e leva os indivíduos à acomodação e ao vazio existencial e político. Essa resistência é uma das principais razão pela qual se tornaimperativo transmitir aos futuros profissionais os mecanismos de intervenção na realidade que a profissão vem se apropriando na sua prática, ao longo de sua história. A construção de tantas derivações metodológicas quantas forem necessárias para instrumentalizar uma ação eficiente de intervenção na realidade se apresenta como uma necessidade concretamente sentida por muitos profissionais na prática. Essa construção, infelizmente, é ainda num grande desafio que recai sobre a profissão em qualquer perspectiva teórica e ideológica que se adote. Um novo e revigorante papel pode ser destinado ao ensino no novo currículo, desde que ele não dê as costas a toda variabilidade e diversidade existente na profissão. Esse pode enfrentar exatamente os problemas a partir de dificuldades explicitadas na prática cotidiana. Além disto, pode-se ainda resgatar a instrumentalização profissional do “pecado original” de ter nascido neotomista, pragmática e funcionalista e desenvolvê-la a partir dos novos debates temáticos e das lógicas teóricas, hoje consagradas nos debates da profissão6 e que estão sendo amadurecidas a partir das pesquisas realizadas nos mestrados e doutorados de serviço social. III – Das diretrizes gerais às realidades específicas Atendidas às exigências fundamentais do Projeto de Formação Profissional da ABEPS7, conforme estabelecidas pelo currículo mínimo aprovado em assembléia extraordinária em 6 Nobuco, K. A trajetória da produção de conhecimentos em serviço social: avanços e tendências (1975 a 1977), Cadernos ABESS n.8, como a diversidade das pesquisas de mestrado e doutorado expressam a variedade de temas tratados pelos profissionais nos últimos anos. 7 ABESS/CEDEPSS, Diretrizes Gerais para o curso de serviço social: com base no currículo mínimo aprovado em assembléia geral extraordinária de 8/11/96. São Paulo: Cadernos ABESS n.7, p.58-75. 20 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 novembro de 1996, as Unidades de Ensino terão condições de resolver os problemas básicos da estrutura cognitiva dos conhecimentos a serem ministrados aos alunos. Com tais conteúdos e diretrizes poderão ser estruturados os eixos básicos que constituem o núcleo central da formação profissional. Não se pode, porém, acreditar que estas serão capazes de abarcar toda a complexidade da formação profissional, sob pena de se incorrer no engessamento que se quer evitar. Para se viabilizar um movimento emancipatório - internamente no processo de implantação da reforma curricular - que contemple conteúdos, procedimentos e regras de condutas para todos, torna-se importante que o novo projeto articule dinamicamente os projetos pedagógicos das diversas Unidades de Ensino, observando particularidades regionais e locais. Existe um grande problema a ser enfrentado para se atender concretamente as diretrizes gerais, para que os mesmos possam ser mais que meros papéis engavetados. A massa dos professores das diversas Unidades de Ensino - geralmente ausentes dos debates das oficinas das organizações da categoria -, não guardam muita identidade direta com ele, nem dominam os conteúdos nele requeridos. A construção coletiva de um projeto pedagógico para o curso de serviço social vai muito além da observância formal dos conteúdos indicados nas novas diretrizes de ABEPS ou em normas do MEC. A construção de tal projeto que se quer implantar não virá por decreto. O acatamento, sem submissão mecânica às diretrizes gerais do projeto político e pedagógico hegemônico, dependerá do convencimento moral, da reflexiva apropriação dos conteúdos e de um processo de reciclagem massivo do conjunto dos professores. Este conjunto de determinações que incidem - simultânea e desafiadoramente sobre a realidade profissional em geral e sobre o “ensino da prática” em particular -, precisará ser enfrentada não só no cotidiano da sala de aula, mas também nas vivências instrumentais e de práticas, nas oficinas de ensino de manejo de técnicas e nas pesquisas de alunos, supervisores, professores e assistentes sociais em geral. Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 21 Será preciso também se abrir um diálogo mais amiúde das disciplinas teóricas (geralmente contempladoras das determinações gerais) com as organizações onde funcionam os “campos de estágio” e seus temas especializados; expressos nas “migalhas de trabalho” da profissão e nos âmbitos de atuação minúsculos da prática 8. Só assim haverá uma razoável convergência para um campo de preocupações teórico e prático comuns das abrangentes categorias teóricas gerais, genéricas e universais e as necessidade prementes de referências instrumentais na compreensão da dispersa materialização do cotidiano profissional. Mais que isto, a formação profissional, de forma mais elaborada, poderá também estabelecer metas plausíveis e viáveis para projetos de mudança social9, associando expectativas a curto prazo para micro-realidades singulares e específicas a estratégias de emancipação social a longo prazo. Não bastam definição de grandes metas e estratégicas para a implantação de um projeto político profissional. Estas são fundamentais para a mobilização política, mas se esvaem em retórica inconsistente, se não forem buscadas em cada Unidade de Ensino, a tradução desse projeto em programas de ação; em processos de gestão; em controle dos resultados da formação realizada; e principalmente, na apropriação dos parâmetros pelos quais a fiscalização do exercício profissional (no futuro) deverá ser realizada. Para que tudo isto se torne acessível aos futuros assistentes sociais, faz-se necessário que os profissionais atuais tomem para si a responsabilidade de demonstrar como estas referências se interligam com as realidades concretas e históricas que cada um deles está operando na cotidianidade da prática, da formação e da efetiva fiscalização profissionais. 8 Pinto, Rosa Maria Ferreiro. Estágio e Supervisão: um desafio teórico-prático do serviço social, PUC-SP, NEMESS, agosto, 1997, indica como a imediaticidade e a operatividade da profissão se revelam plenamente frente à realidade prática desencadeada pelo processo ensino-aprendizagem. 9 - Mais de uma vez os entrevistados para a pesquisa de Marta Buriolla, (1994) sobre supervisão fazem alusão ao papel desta uma pedagogia identificada com a mudança e com a construção da identidade profissional. Por meio da função supervisora, o aluno teria acesso a um paradigma profissional a seguir ou a contestar. 22 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 Esta demonstração envolve um reiterado movimento de explicitação de conteúdos teóricos, simultaneamente vinculado a um refinado processo de reflexão sobre dados empíricos da realidade com a qual os assistentes sociais lidam cotidianamente, mediados por um domínio metodológico de um fazer instrumental e técnico, capaz de operar sobre a realidade social, organizacional e pedagógica que se que transformar. Isto não é um processo que possa ser resolvido pelo esmero de alguns intelectuais; meia dúzia de professores mais aplicados ao ensino da metodologia profissional ou de uns dois ou três supervisores dedicados. Só resultará em uma formação profissional satisfatória se for decorrente de um esforço coletivo que envolva sobretudo professores, supervisores e alunos, um a um, além dos representantes da categoria e assistentes sociais em geral10. Na realidade, tais projetos, apesar de distintos em suas singularidades, fazem (ou deveriam fazer) parte deste grande pacto político profissional, construído em torno da Lei 8662-93 e do Código de Ética de 1993.Ou seja, devem (ou deveriam) explorar todas as possibilidades da realidade social, assim como as potencialidades dos atores que nela se encontram envolvidos na luta cotidiana pela superação das adversidades vividas pelos usuários de nossos serviços profissionais e pela sociedade em geral. O grande desafio começa exatamente pelo estabelecimento de estratégias de irradiação deste conteúdo acumulado pelos representantes ao longo processo de discussão e amadurecimento do novo conteúdo. Envolver os demais docentes, supervisores e alunos e atingir, de alguma forma a categoria, é um tarefa hercúlea, mas necessária. Esta é a grande razão pela qual o processo de irradiação deste novo conhecimento precisa se tornar acessível ao maior número de assistentes sociais possível. Deve empreender-se para 10 O processo pedagógico que envolve a supervisão e o estágio supervisionado, vistos por Rosa Maria Ferreiro Pinto no texto Estágio e Supervisão: um desafio teórico-prático do serviço social, op. cit., indica a importância fundamental e estratégica desta prática pedagógica para a formação dos futuros assistentes sociais. Deste processo a autora desta as determinações da interatividade, no cotidiano e na construção da competência profissional. Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 23 além da observação sistemática de processos em sala de aula. Deve-se partir dos desafios postos nas vivências dos campos de estágio, das experiências de extensão das Unidades de Ensino e das experiências concretas de embates travados nas situações de fiscalização do exercício profissional. A tradução local das grandes determinações da formação (as diretrizes gerais para o curso de serviço social) em conteúdos particulares, específicos e singulares poderão iluminar e dar visibilidade às formas de objetivação e materialização ao futuro trabalho profissional. Mas é só no difícil exercício da tolerância política de um real pluralismo de idéias que se consolidará uma significativa mudança na forma dos profissionais responderem às demandas socialmente postas à profissão pela via do mercado. Estes conteúdos possivelmente estarão presentes nas pesquisas empíricas e nas observações sistemáticas das realidades específicas. Nelas, possivelmente estarão apontados, com mais precisão os fatores determinantes de cada realidade social, pois nem tudo que é bom para São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, ou qualquer outro grande centro, vale para o resto do Brasil. Apesar das determinações gerais da realidade serem as mesmas, as manifestações particulares de cada região, bem como a interpretação da economia e das dinâmicas políticas locais, contêm especificidades que não podem ser descuidadas. O processo da passagem e autorização para a vida profissional requer uma série de cuidados, por se tratar de algo nem sempre tranqüilo e fácil. Por meio desta, os alunos deverão processar uma metamorfose pessoal na qual entram jovens despreocupados e se tornam adultos cheios de compromissos e responsabilidades para com uma vida profissional. Este processo necessita de ajustes sutis aos complexos conteúdos, quase sempre mal assimilados pelos alunos e nem sempre dominados pelos professores e supervisores, que necessitam de reciclagem e aprofundamentos teóricos, maiores aproximações com as mediações das vivências de práticas, das técnicas e clareza da dimensão ética das relações profissionais no movimento ação concreta do cotidiano. Os estágios obrigatórios e o próprio TCC - que se constituem em momentos privilegiados da reflexão dos conteúdos teóricos 24 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 gerais à luz dos dados emergentes da realidade concreta -, podem ser oferecidos como campos de expressão cotidiana de um fazer e de um dizer profissional que emergem destas relações. Desta construção dialética contínua e ininterrupta não pode ser descartada, em hipótese alguma, a participação ativa dos professores das chamadas disciplinas básicas, como sociologia, política, etc. A partir destes procedimentos alunos, professores e supervisores de campo podem ter maior aproximação com as questões mais complexas, sutis e decisivas para o agir profissional, propriamente comprometido com os processos de mudança social que se engendram no interior das relações profissionais. A partir da realidade singular de cada experiência pedagógica e de cada região brasileira serão possíveis ajustes finos à realidade concreta. Muitas são as questões e os dilemas dos professores, assistentes sociais e alunos em face dos estágios supervisionados. Muitas Unidades de Ensino desenvolvem normalizações, discriminando as competências dos supervisores das Unidades de Ensino, dos supervisores diretos, dos alunos e dirigentes. Entretanto, nem sempre estas regras são seguidas por todos e a formação da prática profissional passa a depender das contingências do próprio processo de ensino da prática e de circunstâncias de toda ordem. Buriolla11 identifica no estágio supervisionado a emergência de conteúdos referentes ao: 1) próprio campo do estágio e os problemas das limitações do mesmo para a inserção dos alunos; 2) aos elementos decorrentes da própria realidade organizacional; 3) à realidade acadêmica particular vivenciada por seus diferentes atores; 4) ao debate teórico que circula nas diversas instituições profissionais; 5) ao “ser profissional” (estagiário, professor, assistente social) mediante suas relações e sentimento e 6) ao contexto conjuntural onde a supervisão se dá. 11 Buriolla, Marta. O estágio supervisionado. São Paulo: Cortez, 1995. Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 25 Estes elementos por ela indicados, consistem exatamente nas categorias que se articulam na prática profissional e que são decorrentes da própria essência da formação e expressam contradições e interdições existentes nas relações entre os diferentes segmentos que interferem na formação profissional. Vários feixes de fatores existem e alguns podem ser apontados como estruturantes destas situações de dificuldades: 1) Existe em princípio uma limitação estrutural, da qual não temos como fugir. Esta decorre do fato de que o conhecimento humano é absolutamente inferior à complexidade da realidade concreta. Todas nossas representações sobre a realidade está contaminada com as nossas perspectivas, nossos valores, nossas opiniões. A realidade a nós se oferece a partir da angulação pela qual observamos o mundo. Não temos como fugir desta determinação que nos submete a todos igualmente, independente do mérito de nossas idéias. 2) As interações produzidas nos espaços organizacionais (e esta observação vale também para as Unidades de Ensino públicas e privadas) expressam as possibilidades geradas no processo do ação concreta. Em tais possibilidades estão colocados os conflitos e as contradições entre as relações de poder e saber que ali se materializam, as formas de reprodução e as manifestações concretas das ideologias e, sem dúvida nenhuma, as próprias grandezas e mesquinharias humanas em seus mais diferentes disfarces discursivos. 3) Existe uma limitação decorrente da própria estruturação do saber hoje posto no interior da profissão. Trata-se de problemas teóricos ainda não superados pela produção intelectual da profissão. Muitas manifestações particulares da realidade social na prática profissional ainda não se encontram devidamente compreendidas tanto por falta de mediações teóricas que explicitem os movimentos do real, como por falta de articulação entre as políticas de ensino, os interesses que envolvem as Unidades de Ensinoe as organizações campos de estágio. 4) Raras são, ainda hoje, as experiências de trocas efetivas e satisfatórias de parte a parte. Supervisores diretos de estágio aludem a uma certa expropriação de seu “trabalho a mais” 26 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 não remunerado e, sempre que podem (a depender de sua perspectiva de “compromisso profissional” que expressam e das relações pessoais e profissionais com as Unidades), se esquivam das responsabilidades que lhe foram atribuídas pela Lei 8662 e pelo Código de Ética. Professores e coordenadores de estágios se ressentem da falta de “interesse” na capacitação dos alunos e do “aprofundamento do debate teórico” por parte de alguns colegas. Enfim, de parte a parte todos sentem dificuldades e lidam com grandes faltas, mas pouco dialogam, e quando o fazem, pouco se entendem e pouco avançam na superação de problemas que atinge a toda categoria no seu conjunto, rebatendo sobre as dificuldade de reconhecimento e de valorização profissionais, que tantos se queixam. IV - Os muitos desafios da prática As reflexões aqui apontadas não podem deixar de pontuar algumas das muitas dificuldades que se materializam na prática profissional dos assistentes sociais, seja nos chamados campos de prática, seja na experiência didática, com complexo comprometimento do exercício profissional cotidiano, que eclodem no cotidiano da fiscalização do exercício profissional e da ética profissional do conjunto CFESS-CRESS. Trata-se de dificuldades, até há bem pouco tempo tratadas como problemas menores da formação, quase sempre encaminhadas por soluções “domésticas”. Dificuldades teóricas e didática para o ensino das metodologias e para o uso dos instrumentos, são problemas reais de longa data, ainda não superados no ensino da prática profissional. O acompanhamento dos alunos por meio do relato de uma prática suposta, nem sempre tem sido suficiente para da emprestarem veracidade e confiabilidade aos procedimentos adotados e orientados. Por outro lado, os esclarecimentos mais preciosos e convenientes nas aulas teóricas ou nas supervisões de estágio tem apresentado, não raro, um descolamento da realidade concreta que desafia a todos. O super-desenvolvimento das habilidades reflexivas dos alunos tem levado-os à experiência concreta da prática profissional com uma visão bem desfocada das singularidades do fazer profissional, da importância e das dificuldades do manejo do Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 27 instrumental e do lugar da teoria na compreensão política, técnica e ética da profissão. Torna-os inoperantes e completamente confusos em face dos procedimentos mediadores (mais adequados de serem adotados) que precisam ser estabelecidos para serem processados os conteúdos genéricos que aprenderam, em meio às particularidades da realidade do campo especializado (da política social que atuam) e das singularidades das respostas profissionais a serem oferecidas caso a caso. A aprendizagem da “prática” com o foco de atenção centrado nos debates políticos da realidade profissional - ou na sua oposta relação com o agir imediato -, relega a prática profissional a um estatuto quase “mágico”. Na primeira forma, mitifica as teorias historicamente construídas, transformando-as num fetiche como outro qualquer. No segundo, despreza todo o saber historicamente construído e os atores passam a reinventar as teorias já consolidadas, refazendo caminhos elementares, reiteradamente nivelando o conhecimento profissional a conteúdos óbvios e superficiais. As coisas se passam como se a aprendizagem se esgotasse nos ritos acadêmicos, que cumpridos, asseguram a passagem à vida profissional, independente de uma condução reflexiva , como se bastasse observar e repetir. Tal atitude assemelha a “prática profissional” a algo que possa ser apreendido por mera observação de fazeres meramente pontuais, por distanciadas que se encontra nas representações profissionais sobre as categorias eleitas para as reflexões mais importantes. Considerando-se, que o aluno encontra-se em fase de seu amadurecimento profissional e que oscila entre o amor e o ódio às idéias que lhe são transmitidas por seus diversos professores e supervisores, há ainda que se prestar atenção para uma tendência comum nas experiências didáticas: o aluno tende a responder às exigências de cada professor por meio do cumprindo restrito às prescrições que cada um estabelece, sem necessariamente estabelecer vínculos indentitários mais profundos com o produto de seu trabalho acadêmico. Não raro, essas prescrições apresentam grandes nichos de contradições teóricas e incoerências práticas entre si, não esclarecidas por ninguém. Assim, os espaços da supervisão se oferecem como lugares ricos de possibilidades para a elaboração 28 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 de sínteses dinâmicas do percursos individualizados de iniciação na vida profissional, que muito poderiam ajudar no enfrentamento destas lacunas que naturalmente vão restando no processo. Não existem respostas prontas a todos estes dilemas, mas estas certamente poderão ser construídas no avanço do debate plural e da parceria cooperativa que seja capaz de superar atitudes e práticas que implicam em posições autoritárias, maniqueistas, voluntaristas e prescritivas que ainda sobrevivem na cultura pedagógica e profissional de muitos professores, supervisores e assistentes sociais em geral. Emancipatório e dialético não devem ser somente os discursos das organizações e instituições da categoria por força de uma razão que faz sentido à luz da justiça social, e protege particularmente os usuários dos serviços profissionais dos assistentes sociais. Tal razão tornou-se Lei e Código de Ética, e seus ditames devem submeter professores, supervisores e alunos no processo de formação profissional ao qual não se tem como se furtar. Resta ainda, uma velha questão pedagógica que se recoloca reiteradamente para todos os assistentes sociais no desempenho destas atribuições: Como educar os atuais profissionais para que o atual projeto de formação profissional consolide uma profissão, esperança de um devir que realize suas promessas? GENTILLI, Raquel. Challenges to the new Curriculum of Social Service. Serviço Social & Realidade (Franca), v.8, n.1, p.9-30, 1999. • ABSTRACT: This text discusses the professional formation of the service starting from the references of the guidelines for the new curriculum of social service, taking as a point of observation, the private actions of the Regional and Federal Council. This reflection still gets attention for the need of an enlarged and decisive participation of the professionals of the practice, mainly the supervisors, in the process of professional formation. • KEY WORDS: Professional formation of the social service; Practice professional of the social service; Guidelines for curriculum reformulation. Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 9-30, 1999 29 A PRÁTICA DO ENSINO NO CURSO DE SERVIÇO SOCIAL – REFLEXÕES NECESSÁRIAS Maria Angela Rodrigues Alves de ANDRADE* • RESUMO: O presente estudo privilegia a “sala de aula” como campo investigativo prioritário, procurando a partir dela, desvelar os elementos que consubstanciam o exercício da prática de ensino no curso de Serviço Social. • PALAVRAS CHAVE: Formação Profissional, prática de ensino, sala de aula. Introdução Existem na prática docente aspectos fundamentais que devem ser considerados quando nos propomos a estudar o processo de ensino: o posicionamento filosófico e político do professor, o conhecimento sobre a matéria que ensina (conteúdo), a habilidade para organizar e trabalharos conteúdos propostos (método de trabalho) e, as interações que professor e aluno estabelecem ao longo do processo. As dificuldades do exercício da prática do ensino não são restritas ao domínio do conhecimento teórico ou à produção do conhecimento, nem aos aspectos técnicos inerentes às metodologias de ensino. Os comportamentos, tanto do professor como do aluno, revela um compromisso social, político, que conseqüentemente determinam o ato educativo. O que nos leva a agir de uma determinada maneira e não de outra? A respeito especificamente da formação profissional do assistente social, a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social - ABEPSS1, tem desempenhado papel de extrema importância. Significativos estudos foram realizados e publicados, representando sem sombra de dúvidas, um salto qualitativo na preparação acadêmica e profissional dos Assistentes Sociais, tendo em vista os aspectos pertinentes à estruturação de um projeto profissional; entre eles destacam-se: a orientação pedagógica dos cursos, a grade curricular, a adequação dos currículos às demandas sociais e a formação profissional. * Departamento de Serviço Social - UNESP – Franca. 1 Até os anos 98 denominada ABESS – Associação Brasileira de Ensino em Serviço Social. Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 31-56, 1999 31 Desde 1970 a Associação vem encabeçado diversos momentos de revisão curricular no processo de formação profissional, articulando-se sempre às demandas postas pela realidade brasileira. Como conseqüência desse trabalho, em 1982 foi aprovada pelo Conselho Federal de Educação (Parecer 412 de 5/8/85) a revisão curricular para os cursos de Serviço Social de todo o Brasil. O “novo currículo” buscava romper a visão fragmentada da realidade, levando a termo uma proposta de formação crítica e comprometida com a transformação social. A implementação desse novo currículo, que representou um avanço no que diz respeito à direção social e política do curso, foi feita progressivamente de acordo com a realidade administrativa de cada Faculdade. A ABESS vem dando continuidade a revisão de todo este processo; a maioria das discussões e atuais pesquisas por ela encaminhadas, dizem respeito aos paradigmas e às matrizes teórico-metodológicas que devem nortear as direções sociais das disciplinas e dos cursos de Serviço Social. Marilda V. Iamamoto (s/d) em trabalho divulgado chama atenção para o fato de que para além do esforço da integração dos fundamentos históricos, teóricos e metodológicos dos cursos de Serviço Social, há de se proceder também um esforço investigativo no que diz respeito ao acompanhamento acadêmico, das “formas adotadas para sua operacionalização na estrutura curricular” (p.22). Sem descartar, a importância das discussões em torno do caráter político da profissão, de seu significado social e histórico, da dimensão social e técnica do curso, há que se considerar também o modo como vem sendo concretizado o ensino no curso de Serviço Social. Em artigo publicado em 1984, na Revista Serviço Social e Sociedade n.14, que traz por título “O Projeto de investigação da formação profissional do Assistente Social no Brasil - determinações Históricas e perspectivas”, as autoras2 já refletiam que, para além das questões teórico-filosóficas, da fragmentação curricular, das deficiências nas condições do trabalho, do profissional e do mercado de trabalho, existe a necessidade de 2 Carvalho, Alba Maria P., Bonetti, Dilséia A., Iamamoto, Marilda V. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n.14, p.104-143, abr. l984. 32 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 31-56, 1999 estudar a questão da relação pedagógica para se poder tornar visível o modo de fazer o ensino do Serviço Social. É possível perceber uma cultura discursiva no interior do Serviço Social que, geralmente, aparece descolada da realidade, do fazer a prática de ensino em sala de aula. Por isso, investigar o processo pedagógico, além de desafio, constitui-se necessidade. A relação pedagógica professor/aluno é um dos aspectos fundamentais no processo da formação profissional no meio universitário, constituindo-se um dos espaços básicos em que se expressam as relações de poder no interior da Universidade. No âmbito específico do Serviço Social, esta relação não tem sido suficientemente discutida enquanto uma relação de poder que tem uma especificidade e um significativo peso no processo de formação profissional. (Carvalho et al, 1984, p.33-134). No momento atual em que o Serviço Social procede à nova revisão curricular e vive por isso, outro momento de redefinição da proposta de formação profissional, estas questões precisam ser equacionadas. Nenhum projeto de curso é aplicado “no abstrato”. Ele é construído cotidianamente, no processo de formação acadêmica, nas relações que se estabelecem nos espaços institucionais, inclusive, e principalmente, na sala de aula. Isto faz sentido se pensarmos a sala de aula enquanto fenômeno que também pode revelar a própria essência de um projeto de formação profissional, de uma concepção de universidade e de educação. Considerar a “sala de aula” como um dos espaços privilegiados da formação profissional e campo investigativo prioritário, significa desvelar os elementos que consubstanciam o exercício da prática de ensino nos cursos de Serviço Social. Um currículo precisa ter uma expressividade de vida e de vivências, quer dizer, tem que superar as tendências burocratizadas e efetivar-se na flexibilidade, abarcando as necessidades peculiares dos conhecimentos relativos ao exercício da profissão, ao mesmo tempo em que torna possível um projeto de transformação social. Consideram-se, portanto, novamente as mediações e estratégias para pôr em curso os objetivos da profissão. É possível priorizar essas mediações da prática de ensino preocupando-se com o conjunto de conhecimentos peculiares ao Serviço Social, e também com a formação de habilidade inerentes à prática profissional. Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 31-56, 1999 33 Despertar para a questão pedagógica, mais pontualmente para as mediações e articulações entre teoria e prática significa desvelar como se processa a prática de ensino no curso de Serviço Social e, conseqüentemente, como se dá o processo de formação profissional no curso. A partir da problematização do modo como professores e alunos articulam a prática de ensino na sala de aula, procura- se conhecer não só como ela se dá, mas até que ponto é determinado pelas concepções que fundamentam a prática docente, o projeto pedagógico, os conteúdos que são priorizados, os métodos que são utilizados e os processos interativos presentes nesta relação. Ao elegermos como objeto de estudo a “sala de aula” objetivamos desvelar as múltiplas determinações presentes no exercício do ensino, nem sempre explicitadas. Desvelar o sentido político da prática de ensino e a forma que se desenvolve, pode representar uma contribuição para a construção de um projeto de formação profissional que contribua para a transformação social. Nenhum projeto de curso se efetiva sem coerência e consistência interna, mesmo no plano micro da sala de aula. A Sala de Aula e o Ensino no Curso de Serviço Social As questões que envolvem a estruturação e desenvolvimento de um projeto de formação profissional não podem ser reduzidas a simples definições de disciplinas que irão dar estrutura a uma grade curricular, bem como ao conjunto das matérias e conteúdos que irão compô-las. O Currículo, longe de se constituir uma simples justaposição de conteúdos programáticos, é a expressão de um conjuntode concepções, é a explicitação de tendências políticas, teóricas e metodológicas que são imanentes à direção social que se deseja imprimir a um projeto de formação profissional, incorporado num projeto educacional de curso. Para isso é necessário ampliar a visão do que seja o currículo. Como observa Gatti (1995, p.2) o currículo é “um meio articulado e intencional de formação e desenvolvimento de pessoas...”, que conseqüentemente expressa, através de determinadas vertentes de pensamento, um compromisso político com um projeto profissional. 34 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 31-56, 1999 Mais ainda: “o conhecimento e a compreensão da proposta curricular de um curso são fundamentais para uma atuação profissional, atuação exercida de modo consciente, reflexivo e integrado” (p.2) visto que é o currículo, um meio articulado e intencional de formação; é a escola em movimento. A organização curricular nesta perspectiva está condicionada à leitura, compreensão e consciência da realidade, à fundamentação teórica que a orienta e a instrumentalização técnica do trabalho. Queremos dizer com isso, que, a implementação de um currículo, pressupõe uma seleção intencional de conteúdos e de comportamentos que compõem o ato de ensinar (p.3). A organização curricular precisa ser continuamente confrontada com os objetivos educacionais. Pressupõe um posicionamento sobre o significado da educação e a sua concretude. Neste sentido, o currículo serve como apoio e orientação para os meios de ensino. Falar sobre decisões curriculares implica em falar sobre quais conhecimentos ensinar, para quem ensinar e como fazê-lo. Podemos afirmar, que há na literatura educacional de forma geral, uma ausência de estudos e análises sobre as práticas de ensino desenvolvidas na sala de aula na universidade e mais especificamente no Serviço Social. O ensino desenvolvido na sala de aula continua sendo uma “caixa preta” que necessita ser considerada, revelada. É razoavelmente simples identificar as alterações ocorridas no que se refere à estrutura curricular dos cursos e até às mudanças administrativas e organizacionais da própria Universidade brasileira, se a relacionarmos a um processo mais geral de mudanças na sociedade. No entanto, o mesmo não ocorre se “mergulharmos” no nível da prática cotidiana de ensino e se, ao mesmo tempo, procurarmos compreendê-la inserida nas relações que mantém com a totalidade. Com efeito, o conhecimento transmitido na sala de aula é o resultado dos confrontos que se estabelecem entre as diferentes alternativas de compreensão de mundo, articuladas a um currículo. Compreendido desta forma, o reducionismo atribuído às atividades da sala de aula é negado, ou seja, a forma como o ensino se realiza, assenta-se em teorias de ensino que regulam sua prática. Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 31-56, 1999 35 A sala de aula é parte de um todo. Está inserida em uma instituição educativa, que por sua vez está inserida em um sistema sócio-econômico, político e cultural. É possível então, considerar a sala de aula como referencial e campo investigativo para compreender a atividade do ensino no curso de Serviço Social. Assim como existe uma preocupação com o fazer profissional-institucional do assistente social, a preocupação aqui é com o fazer profissional produzido na sala de aula e que como a prática direta do Serviço Social revela um determinado projeto de curso e de profissão. No espaço sala de aula que se desenvolvem e se vivenciam situações de tensões que derivam das representações dos sujeitos envolvidos nesta prática. Nele se expressam, visões e concepções de mundo, de homem, de educação, de Universidade, e é nele que se processa a maioria das relações de ensino. Nele, que se manifestam às expectativas e necessidades tanto dos professores, como dos alunos e que se põe em curso um projeto de formação profissional. O espaço sala de aula é, portanto, determinado pela mediação que os professores e alunos realizam entre o conjuntural-estrutural e a demanda educacional. Além da questão política, pesa também na construção desse projeto, a dimensão pedagógica. Instaurar, junto a professores e alunos, um processo contínuo de reflexão acerca da prática de ensino tal como acontece na sala de aula, tentando explicitar os pressupostos que a sustentam possibilitando-nos elucidar suas contradições, ultrapassando os limites da consciência ingênua. O exercício da prática educativa requer, um projeto político que estabeleça finalidades, que expresse intencionalidades, mas requer também a capacidade de captar a dinâmica da sala de aula em toda sua complexidade. A prática de ensino torna-se então o instrumento de mediação entre as finalidades da educação e a sua plena realização. Repensar a prática de ensino como uma prática mediadora implica em construir um conhecimento teórico-prático que tenha sempre como referência à realidade social. Empenhar-se neste objetivo significa fundamentar política e tecnicamente todo o processo. Significa buscar caminhos para a elaboração de uma 36 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 31-56, 1999 prática de ensino, fundamentada em pressupostos claramente definidos. O aclaramento do verdadeiro sentido da prática de ensino aponta para a necessidade de mudanças no conteúdo do ensino, mas também, mudanças na forma de ensinar. Pensar e produzir a ação educativa de forma articulada coloca-se como um desafio àqueles que têm um projeto e o compromisso de transformação da Universidade e de democratização da sociedade. Retomar esta questão, e encaminhá-la para a prática cotidiana da sala de aula é tarefa crucial, se o que se pretende, é realizar um ensino coerente com uma visão “crítica” de Universidade. No âmbito teórico o ensino é constituído por um conjunto de idéias e conhecimentos, e no âmbito prático, por um conjunto de meios que são colocados em ação para a realização do processo. Assim, teoria e prática precisam ser compreendidas de forma articulada. Observando que, esta proposta de prática de ensino pressupõe a busca de um saber, que jamais poderá ser adquirido espontaneamente ou desorganizadamente, sua construção deve ser orientada. Se a tarefa do educador é uma tarefa de transformação, é preciso que ele não ignore que a transformação social e individual tem regras. É preciso que as conheça. Se a mudança individual e social acontecer por intermédio de um agente da educação, é porque este consciente ou inconscientemente, seguiu certos passos, certas leis, certos caminhos e evitou outros que o conduziram ao oposto. (Gadotti, 1992, p.76) Certamente, desenvolver um processo de ensino que abarque esta perspectiva requer que, no desenrolar do processo de planejamento, desenvolvimento e avaliação do ensino todas as decisões sejam tomadas tendo como eixo o projeto de Universidade comprometido com o processo de formação crítico e científico. Além da questão política, pesa também na construção desse projeto, a dimensão pedagógica. Instaurar, junto aos professores e alunos, um processo contínuo de reflexão acerca da prática de ensino tal como ela acontece na sala de aula, tentando explicitar os pressupostos que a sustentam e elucidando suas Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 31-56, 1999 37 contradições, nos permite ultrapassar o nível da consciência ingênua. O exercício da prática educativa requer um projeto político que estabeleça finalidades, que expressem intencionalidades, mas requer também a capacidade de captar a dinâmica da sala de aula em toda sua complexidade. A prática de ensino torna-se então o instrumento de mediação entre as finalidades da educação e a sua plena realização. Nesta perspectiva, o que se espera do professor, é queele detenha um conhecimento sobre os conteúdos de sua matéria, domine as formas de transmiti-los, preocupando-se ainda, em adotar procedimentos que garantam a participação e o envolvimento dos alunos. A prática de ensino precisa recuperar a perspectiva integradora do “saber, saber fazer e saber ser”. As dificuldades do exercício desta prática não são restritas ao domínio do conhecimento teórico ou a produção do conhecimento, nem aos aspectos técnicos inerentes às metodologias de ensino. Os comportamentos, tanto do professor como do aluno, revela um compromisso social, político, que conseqüentemente determinam o ato educativo. No curso de Serviço Social, podemos afirmar que a primazia das discussões é sem dúvida alguma, a direção político-social do curso, seus paradigmas filosóficos e propostas curriculares (entendida aqui como a grade curricular e o conteúdo das disciplinas). Até o momento, não existem estudos avaliativos qualificados capazes de indicar se este processo de formação profissional proposto e oferecido pelos cursos tem correspondido aos valores democráticos, à construção da cidadania e à contribuição para o reordenamento das relações sociais a que se propõe. A prática de ensino que desempenhamos, pautada em princípios transformadores, comprometida com uma pedagogia “crítico-social” tem de fato privilegiado a participação e desenvolvimento autônomo dos alunos ou, de forma velada, consiste ainda numa prática tradicional? O discurso seria um, e a prática outra? Partindo destas considerações, procuramos percorrer uma trajetória em busca de nossos objetivos, enfocando basicamente a relação de ensino produzida por professores e alunos no espaço da sala de aula. 38 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 31-56, 1999 A Contextualização das Escolas de Serviço Social A trajetória do Serviço Social inicia-se no Brasil em 1936, quando é criada a primeira Escola de S. Social. O contexto em que surge, expressa o complexo quadro econômico, político e social que caracteriza o Brasil naquele momento de acumulação capitalista - de transição das atividades agrárias e de exportação, para a consolidação de um pólo industrial vinculado à economia do mercado mundial - que traz em seu bojo um processo de urbanização acelerado e o agravamento da chamada “questão social”. Em função disto, o Estado Brasileiro assume paulatinamente uma ação corporativa, que pretendia canalizar sob sua órbita, interesses divergentes que emergiam das contradições entre as classes sociais, permitindo a integração de diferentes interesses, em direção da chamada “harmonia social”. Para isso o atual regime utilizou estratégias como: a legislação sindical e trabalhista, o seguro social, a assistência social, até medidas de repressão da organização do proletariado, tudo isso em nome de “servir ao bem comum”. Concomitante à formulação destas estratégias por parte do Estado, ocorre no âmbito da Igreja Católica uma mobilização no sentido de abandonar sua passividade e redefinir suas relações com o Estado e a sociedade. Sua ação política será conduzida pelo movimento laico e dirigida em dois sentidos: o da mobilização do eleitorado católico e a do apostolado social. Da aliança entre Igreja e Estado, tanto do ponto de vista ideológico quanto do ponto de vista dos interesses político-sociais é que surgirá o Serviço Social, com a finalidade específica de amenizar as contradições e conflitos oriundos da relação entre capital e trabalho. A trajetória profissional do Serviço Social revelava uma “prática humanitária, sancionada pelo Estado e protegida pela Igreja, como uma mistificada ilusão de servir” (Martinelli, 1989, p.57) transformando-se num importante instrumento da burguesia. As primeiras escolas são fundadas pela Igreja Católica - inicialmente a partir de uma influência européia - tendo como fundamento para a formação dos assistentes sociais a Doutrina Social da Igreja, de caráter essencialmente moral e doutrinário, que ratificava a linha do apostolado social. Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 31-56, 1999 39 As décadas de 40 e 50 serão significativas para a institucionalização do Serviço Social - no sentido de crescimento do mercado de trabalho - pelo surgimento das grandes instituições de Assistência Social que evoluem no Brasil, a partir da ação estatal que tenta responder à pressão das novas forças sociais urbanas. Paulatinamente - sobretudo após a Segunda Guerra Mundial - a hegemonia européia na formação dos assistentes sociais no Brasil vai sendo substituída pela influência norte-americana, que a partir de 1945 “passa a dar ênfase a instrumentalização técnica, com a valorização do método” (Silva, 1984, p.41). Apesar da permanência da influência católica, a ênfase é a da ação eficaz no trabalho social. Marcada agora por uma perspectiva metodologista, a formação acadêmica terá como preocupação central à sistematização do trabalho social, através da implementação dos métodos de Serviço Social de Caso, de Grupo e posteriormente de Comunidade. Preocupados com a formação técnica, distancia-se da busca da compreensão da relação imediata existente entre acumulação capitalista e reprodução ampliada da pobreza. Diz Martinelli (1989 p.22): “... transitando pelo mundo dos fenômenos externos, das representações comuns, das aparências enganadoras, enfim, pelo mundo reificado próprio da sociedade capitalista, distanciam-se da possibilidade de obter um conhecimento mais pleno do real, de atingir os fenômenos com os quais operavam”. No início da década de 60, este cenário começa a se alterar, em função do acirramento dos conflitos entre as classes sociais e da crescente massa de pobreza existente no país, resultando no golpe militar de 64. Paradoxalmente, foi neste cenário que grupos de assistentes sociais iniciaram um processo de revisão crítica da profissão, através de uma série de questionamentos ideológicos, político, teóricos, de objetos, que desembocarão no chamado “Movimento de Reconceituação”, o qual buscava alcançar o desafio de articular uma nova direção para a prática profissional. Esse movimento, no entanto, não irá atingir o vasto segmento profissional, não obtendo “... uma resposta unívoca, pois a cisão do único, sobre o qual o capitalismo se constrói, havia penetrado na categoria profissional, transformando-a em categoria 40 Serviço Social & Realidade, Franca, 8(1): 31-56, 1999 fragmentada, fragilizada e desunida” (Martinelli, 1989, p.130). Apesar disso, é evidente o salto qualitativo deste movimento: o do reconhecimento da dimensão política da profissão. Só a partir da década de 70, observa Silva (1984, p.49) pode-se afirmar que: “... os segmentos do Serviço Social no Brasil começam a assumir a perspectiva dialética da reconceituação, buscando formular um quadro de categorias que permita um entendimento global da sociedade, em termos estruturais e conjunturais ao mesmo tempo em que busca uma aliança com os movimentos populares, vislumbrando uma perspectiva de transformação da sociedade”. É assim que, nos fins da década de 70 e início da década de 80 o processo de formação profissional dos assistentes sociais, passa a ser questionado, desencadeando um movimento de renovação do Serviço Social; que desembocará numa seqüência de debates, envolvendo docentes e discentes no sentido de construir um novo projeto de formação profissional, que incluía uma revisão curricular de seus cursos. Concebido a partir de formulações amplas, este projeto extrapolava o entendimento de uma mera mudança de currículo tendo como ponto crucial um Projeto Educacional de Serviço Social, comprometido com uma postura crítica, com os reais interesses da classe dominada. Atribui-se, portanto, uma intencionalidade ao projeto profissional.
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