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18.Artigo Liquidez vida morte

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A liquidez na Vida e na Morte.
RITTER, Janete Maria
Mestranda do Curso de Pós Graduação em Psicologia da Saúde pela Universidade Federal de Santa Maria-UFSM- Santa Maria RS
RESUMO
Considerando o tema em relação a vida e a morte como aquele que tem tido crescente de interesse dentro das áreas humanas e sociais, abordá-lo numa visão crítica social poderá ser útil àqueles que desejam se debruçar a estudar a temática este artigo tem como objetivo a discussão teórica frente a visão da vida na contemporaneidade, bem como do cuidado com a morte. A vida como tendo suas relações e bens de consumo descartáveis, reproduz socialmente no cuidado com a morte o que poderá interferir no processo de elaboração das perdas. Tem como autores principais Bauman, Chiavenato, Kovács e Parkes. 
Palavras chave: vida, morte, ritual
INTRODUÇÃO
Este estudo origina-se da proposta de avaliação da disciplina de Tanatologia, ministrada no Curso de Pós Graduação em Psicologia da Saúde da UFSM – Universidade Federal de Santa Maria/RS. Entre as propostas de estudos da disciplina o estudo da morte em épocas e sociedades diversas era tema da ementa da mesma, o que suscitou-me inquietações quanto forma que a sociedade vê a vida e como cuida da morte. Trata-se de uma discussão teórica onde procuro contrapontos em alguns autores da sociologia, antropologia e Psicologia, em relação a vida na modernidade e o que a permeia, bem como reflexões relativas aos cuidados com a morte. Encontro principalmente em Bauman conceitos relativos a vida líquida e a sociedade líquida moderna, seguindo pontuações frente às reproduções das relações da vida nos cuidados com a morte. Estes por sua vez, tendem a direcionar sujeitos em situações de perdas, dificultarem seu processo de elaboração ao se depararem com a pressão social imediatista. 
REVISÃO
Sobre a vida
A forma de viver a vida e encarar a morte vem sofrendo grandes modificações nas últimas décadas conforme estudos realizados por profissionais das ciências humanas e sociais. Bauman (2007) usa o termo Vida Líquida para se referir a forma pela qual as pessoas vêm vivendo a vida e suas relações. Segundo o autor, na era da modernidade tudo passou a ser descartável, inclusive as relações humanas, refere-se a sociedade líquido-moderna onde tudo é rápido e de curta duração. Nada é durável, efetivo, tudo muda de forma rápida e não permanece por muito tempo. Reforça-se socialmente a individualidade que segundo Elias (2001) vai tornando os seres como sujeitos isolados, onde seu mundo interno é separado do mundo externo, ou seja, dos outros seres. O que antes era realizado com programação a longo prazo, na atualidade já não tem a mesma importância, não há temo para programar, planejar, precisa ser agora. Vida líquida é definida como: 
Uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. As preocupações mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar um caminho sem volta. A vida líquida é uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e as dores de cabeça mais inquietantes. (BAUMAN, 2007, p.8). 
Na era da modernidade as relações são pautadas no descartável, as redes sociais oferecem a possibilidade de incluir e excluir amizades a qualquer momento, livra-se daquilo que desagrada em segundos. O importante passa a ser o momento presente e não se pensa mais no futuro, segundo Bauman (2007), velocidade e não duração, é o que importa, sugere que na ânsia de viver a eternidade busca-se viver tudo no presente como se o amanhã não existisse. Com a velocidade certa, pode-se consumir toda a eternidade do presente contínuo da vida terrena (p.15). O autor fala da busca espiritual de certas pessoas como forma de justificar o consumo da eternidade no presente da vida, assim, é preciso satisfazer-se ao máximo no presente, segundo ele a eternidade é o óbvio rejeitado. 
Para Bauman (2007) são simplesmente como mágicas as novas promessas da possibilidade de transformação, sem perda de tempo minimizam a preocupação com a eternidade. Substituiu-se as longas terapias para os aparelhos de ginástica, os papeis de parede, as trocas de camisetas por blusas e vestidos, aumento ou redução de seios, trocas de tênis e de marcas de bebidas, rotinas diárias, inclusive a modificação genética. A vida líquida é uma vida de consumo. O autor também fala dos objetos de consumo que passaram a ter vida útil reduzida, pois logo torna-se ultrapassado e se faz necessário a atualização, pois tornam-se impróprios e por assim serem, precisam ser removidos do espaço da vida de consumo. Isto pode ser percebido nas crianças que ao ganharem o brinquedo que tanto queriam, logo o descartam exigindo outro mais moderno, também os adultos com seus armários lotados de roupas e calçados, vão adquirindo para atender a exigência social, deixando de observar as necessidades internas. Desta forma a sociedade vai criando desafios para com o lixo produzido, que segundo Bauman (2007) vem a ser o maior produto da sociedade moderna de consumo, e complementa:
Em um mundo repleto de consumidores e produtos, a vida flutua desconfortavelmente entre os prazeres do consumo e os horrores da pilha de lixo. A vida talvez seja sempre um “viver-para-a-morte”, mas, para os que vivem na líquida sociedade moderna, a perspectiva de “viver-para-o-depósito-de-lixo” pode ser a preocupação mais imediata e consumidora de energia e trabalho (p. 18)
Como sujeitos em uma sociedade líquido moderna onde as relações se esvaziam e os bens descartáveis, há que se pensar em como encontrar um sentido para a vida que segundo Elias (2001), pode vir a ser em si mesma e para si mesma. Se a vida é líquida e individualizada a busca do sentido será de uma pessoa individual em isolamento. Para o autor é fácil compreender que uma pessoa que acredite viver como um ser sem sentido morra da mesma forma (p.62). Talvez o vazio existencial referido por muitas pessoas que buscam ajuda em consultórios e igrejas, possa ter suas origens no reflexo da sociedade.
Sobre a morte
Na perspectiva de sociedade de consumo trazida por Bauman, onde a superficialidade das relações, o imediatismo e a supervalorização dos bens de consumo se fazem tão presentes da vida, há que se perguntar se estes valores não estão também presentes nos cuidados com a morte. Chiavenato (1998), fala que a partir do momento que o homem começou a pensar sobre a morte foram se desenvolvendo anseios e aflições que tem seu percurso histórico, quando diz:
Como é fácil perceber, através dos tempos os conceitos e usos sobre a morte reproduzem a sociedade e refletem suas necessidades políticas. Quando o homem era simples ser errante, abandonava o cadáver provavelmente, pouco a pouco, passou a refletir sobre isso. À medida que foi se estabelecendo e criando comunidades, aprimorou sua organização política. A cultura produziu-se como decorrência dessa base econômica. E a morte refletiu a vida (CHIAVENATO, 1998, p. 25).
Em uma sociedade imediatista e consumista a morte foi se profissionalizando e o que antes era realizado por membros da família foi se tornando institucionalizado, fazendo com que aumentasse significativamente a rede de oferta de serviços funerários. Araújo (2012) comenta que até pouco tempo havia certo preconceito e era reduzido o investimento tecnológico na área, para ele, trata-se de um negócio altamente rentável como outro qualquer mas com uma simbologia muito forte porque mexe com sentimentos, mexe com as pessoas num momento delicado (p. 342). No entanto o mercado consumista aspirando lucro vende seus serviços favorecendo a negação da morte através de embelezamento dos mortos para que estes se pareçam vivos mesmo
depois de mortos. Segundo Chiavenato (1998) pela importância da indústria da morte, existem hoje verdadeiras especializações para o preparo do corpo quando diz que:
Profissionais especializados não só preparam o cadáver, pintando-o e aplicando-lhe às vezes um sorriso impróprio na face, como criam o cenário para o funeral, combinando cores, móveis, música, comida, dando a ilusão de que o morto é apenas mais um convidado. Ou anfitrião. (p.45)
Tudo precisa parecer o mais natural possível, para que o terror da morte não apareça, para Bayard (1996), os cuidados dispensados ao cadáver dão imagem enaltecida da morte, imagem muito próxima da vida, no caso de nossas técnicas modernas (p.13). Concordando Chiavenato (1998) fala das diferentes formas de velar os mortos e que estas foram sendo determinadas pelas próprias empresas funerárias, onde é dito aos familiares como devem se comportar, criando verdadeiros protocolos de comportamento. A morte é uma grande fonte de lucro e as empresas especialistas em funerais satisfazem desejos e fantasias (p. 46). Da mesma forma com que estas empresas criam protocolos de comportamento, assim também a sociedade vai impondo a forma como cada enlutado deve manifestar sua dor. Não há mais tempo para sofrer e elaborar a perda, a vida precisa voltar o mais rápido possível ao seu ritmo normal como diz Chiavenato (1998): 
Mostrar o luto, hoje, é mostrar uma “desvantagem” ou, no mínimo, uma chateação. Na sociedade consumista – a não ser quando ele serve para a ostentação, como os ricos embalsamados nos Estados Unidos -. O morto é um chato. (p.64)
Segundo Parkes (1998) luto pode ser uma reação normal diante de uma perda significativa, não necessariamente por morte, sendo muitas vezes entendido como uma fraqueza e não como uma necessidade psicológica. O luto que poderia ser um processo normal acaba sendo dificultado, pela imposição social. Adaptar-se a perda exige que além de tempo o enlutado tenha espaço para manifestar sua dor, para Viorst (2005) lamentar é o processo de adaptação a perda. A perda é um processo doloroso e sua percepção, aceitação e adaptação dependem entre, outras coisas, de tempo e espaço para sua elaboração. Neste sentido, Kovács (2013) comenta da importância de expressar sentimentos como sendo fundamental para o desenvolvimento do processo do luto e complementa: 
Há uma supressão da manifestação do luto, a sociedade condena a expressão e a vivência da dor, atribuindo-lhes uma qualidade de fraqueza. Há uma exigência de domínio e controle. A sociedade capitalista, centrada na produção, não suporta ver os sinais da morte. Os rituais do nosso tempo clamam pelo ocultamento e disfarce da morte, como se esta não existisse (KOVÁCS,2013, p. 155).
Houve um tempo em que as pessoas podiam manifestar seu luto inclusive através da roupa ou usando uma tarja preta como um pedido de solidariedade, as imposições sociais foram mudando a forma de manifestar a dor e de viver os rituais. Chiavenato (1998, p.64 ) comenta das mudanças do mundo moderno onde não se pode perder tempo com manifestações de dor e rituais, sugere que seja este o motivo pelo qual os velórios sejam tão rápidos e ainda de que quanto mais industrializada a sociedade, maior será o uso do crematório. Cremando-se o defunto e livrando-se das suas cinzas, acaba-se a “obrigação” de ir “visita-lo” no cemitério no Dia de finados. Parkes (1998, p.200) comenta que a cremação vai ao encontro da busca de higiene e simplicidade, mesmo sendo reconhecida como mecânica, triste e alienante ao enterro. 
De certa forma os autores falam da vida e da morte da mesma forma, ou seja, a superficialidade da vida se faz presente também nos cuidados com a morte, uma refletindo a outra. Se para Ross (1998) a vida e a morte são duas faces da mesma moeda onde não se pode falar de uma sem falar de outra, também no viver poderá assim percebido. Vive se a vida como cuida-se da morte, não há como cuidar da morte de forma diferente de viver a vida e vice-versa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refletir sobre questões da vida e da morte parece ser inesgotável, apesar de muitos estudos na área o tema precisa seguir sendo pensado pelas diferentes áreas da ciência, acreditando ser inacabável. O assunto é instigante e merece uma atenção maior do que a dispensada neste estudo, não se esgota com uma simples discussão, mas talvez sirva como fomento a novas buscas e discussões. Por hora, acredito que as reflexões abordadas neste estudo possam servir como elementos capazes de provocar novas discussões e desejos no sentido de produzir novas críticas frente ao tema abordado.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, R.B. A Mercantilização da Morte na Sociedade de Consumo. Habitus: Goiânia, v.10 n.2 p.341-353, jul. dez. 2012. 
BAYARD, J.P. Sentido oculto dos ritos mortuários: morrer é morrer? São Paulo: Paulus, 1996.
CHIAVENATO, J.J. A Morte uma abordagem sociocultural. São Paulo: Moderna, 1998. 
KOVÁCS, M. J. Morte e Desenvolvimento Humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013.
MORIN, E. O Homem e a Morte. Europa América, col Biblioteca Universitária, 1976.
PARKES, K.M. Estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998.
ROSS, E. K. Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
VIORTS, J. Perdas Necessárias. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2005.

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