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Lacan 1958 a Direcao Do Tratamento e Os Principios de Seu Poder

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1958 
A DIREÇÃO DO TRATAMENTO . 
EscRITos 
Jacques Lacan 
CAMPO FREUDIANO 
NO BRASIL 
���g1�,�\� 
A direção do tratamento 
e os princípios de seu poder 
RELATÓRIO DO COLÓQUIO DE ROYAUMONT 
10-13 DE JULHO DE 19581 
I. Quem analisa hoje? 
1 . Que uma análise traga consigo os traços da pessoa do analisado, 
fala-se disso como se fosse óbvio. Mas acredita-se dar mostras 
de audácia ao manifestar interesse pelos efeitos que nela surtiria 
a pessoa do analista. É isso, pelo menos, que justifica o frêmito 
que nos percorre ante as expressões em voga sobre a contra­
transferência, o que sem dúvida contribui para lhes mascarar a 
impropriedade conceitual: pensem na altivez de espírito de que 
damos testemunho ao nos mostrarmos feitos, em nossa argila, 
da mesma daqueles que moldamos. 
O que escrevi aí é uma impropriedade. É pouco para aqueles 
a quem visa, quando hoje em dia já nem se faz cerimônia em 
declarar que, sob o nome de psicanálise, está-se empenhado 
numa "reeducação emocional do paciente" [22].2 
Situar nesse nível a ação do analista implica uma posição de 
princípio diante da qual tudo o que se possa dizer da contra­
transferência, mesmo não sendo inútil, funcionará como uma 
manobra diversionista. Pois é para-além disso que se situa, a 
partir daí, a impostura que aqui queremos desalojar.3 
1. Primeiro relatório do Colóquio Internacional reunido nessa data, a convite 
da Sociedade Francesa de Psicanálise, publicado em La Psychanalyse, vo1.6. 
2. Os números entre colchetes remetem às referências colocadas no final deste 
relatório. 
3. Para voltar contra o espírito de uma sociedade uma expressão por cujo valor 
podemos avaliá-la, quando a frase em que Freud se iguala aos pré-socráticos­
Wo es war, soll Ich werden - traduz-se nela, muito simplesmente, para uso 
francês, por: O Eu deve desalojar o Isso. 
591 
[585] 
592 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
Nem por isso estamos denunciando o que a psicanálise tem 
hoje de antifreudiano. Pois, nesse aspecto, deve-se reconhecer 
que tirou a máscara, uma vez que ela se vangloria de ultrapassar 
aquilo que aliás ignora, guardando da doutrina de Freud apenas 
o suficiente para sentir o quanto lhe é dissonante o que ela [586] 
acabou de enunciar de sua experiência. 
Pretendemos mostrar como a impotência em sustentar auten­
ticamente uma práxis reduz-se, como é comum na história dos 
homens, ao exercício de um poder. 
2. O psicanalista certamente dirige o tratamento. O primeiro 
princípio desse tratamento, o que lhe é soletrado logo de saída, 
que ele encontra por toda parte em sua formação, a ponto de 
ficar por ele impregnado, é o de que não deve de modo algum 
dirigir o paciente. A direção de consciência, no sentido do guia 
moral que um fiel do catolicismo pode encontrar neste, acha-se 
aqui radicalmente excluída. Se a psicanálise levanta problemas 
para a teologia moral, não se trata daqueles da direção de 
consciência, a cujo respeito lembramos que a direção de cons­
ciência também os suscita. 
A direção do tratamento é outra coisa. Consiste, em primeiro 
lugar, em fazer com que o sujeito aplique a regra analítica, isto 
é, as diretrizes cuja presença não se pode desconhecer como 
princípio do que é chamado "a situação analítica" , sob pretexto 
de que o sujeito as aplicaria melhor sem pensar nelas. 
Essas diretrizes, numa comunicação inicial, revestem-se da 
forma de instruções, as quais, por menos que o analista as 
comente, podemos considerar que, até nas inflexões de seu 
enunciado, veicularão a doutrina com as quais o analista se 
constitui, no ponto de conseqüência que ela atingiu para ele. O 
que não o toma menos solidário da profusão de preconceitos 
que, no paciente, esperam nesse mesmo lugar, conforme a idéia 
que a difusão cultural lhe tenha permitido formar acerca do 
procedimento e da finalidade da empreitada. 
Isso já basta para nos mostrar que o problema da direção 
revela, desde as diretrizes iniciais, não poder formular-se numa 
linha de comunicação unívoca, o que nos obriga a permanecer 
aí, no momento, para esclarecê-lo pelo que o segue. 
Digamos apenas que, ao reduzi-lo à sua verdade, esse tempo con­
siste em fazer o paciente esquecer que se trata apenas de palavras, 
mas que isso não justifica que o próprio analista o esqueça [1 6]. 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 593 
3. Aliás, havíamos anunciado que é pelo lado do analista que 
tencionamos introduzir nosso assunto. 
Digamos que, no investimento de capital da empresa comum, [587] 
o paciente não é o único com dificuldades a entrar com sua 
quota. Também o analista tem que pagar: 
- pagar com palavras, sem dúvida, se a transmutação que 
elas sofrem pela operação analítica as eleva a seu efeito de 
interpretação; 
- mas pagar também com sua pessoa, na medida em que, 
haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos 
singulares que a análise descobriu na transferência; 
- e haveremos de esquecer que ele tem que pagar com o 
que há de essencial em seu juízo mais íntimo, para intervir numa 
ação que vai ao cerne do ser (Kern unseres Wesens, escreveu 
Freud [6]): seria ele o único a ficar fora do jogo? 
Que não se preocupem comigo aqueles cujos votos se dirigem 
a nossas armas, ante a idéia de que eu me esteja expondo aqui, 
mais uma vez, a adversários sempre felizes por me devolverem 
à minha metafísica. 
Pois é no seio da pretensão deles de se bastarem com a eficácia 
que se eleva uma afirmação como esta: a de que o analista cura 
menos pelo que diz e faz do que por aquilo que é [22]. Sem 
que, aparentemente, ninguém peça explicações dessa afirmação 
a seu autor, nem o lembre do pudor, quando, dirigindo um sorriso 
de enfado ao ridículo a que se expõe, é à bondade, a sua (é 
preciso ser bom, não há transcendência nesse contexto), que ele 
apela para pôr fim a um debate sem saída sobre a neurose de 
transferência.4 Mas, quem teria a crueldade de interrogar aquele 
que se verga sob o fardo da bagagem, quando seu porte leva 
claramente a supor que ela está cheia de tijolos? 
No entanto, o ser é o ser, seja quem for que o invoque, e 
temos o direito de perguntar o que ele vem fazer aqui. 
4. Colocarei novamente o analista na berlinda, portanto, na 
medida em que eu mesmo o sou, para observar que ele é tão 
4. " Comment terminer !e traitement analytique", Revue Franç. de Psychanalyse, 
1954, IV, p. 519 e passim. Para avaliar a influência de tal formação, leia-se C.-H. 
Nodet, "Le psychanalyste", L 'Évolution Psychiatrique, 1957, IV, p.689-9l . 
594 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
menos seguro de sua ação quanto mais está interessado em seu 
ser. 
Intérprete do que me é apresentado em colocações ou atos, [5881 
decido acerca de meu oráculo e o articulo a meu gosto, único 
mestre/senhor em meu barco, depois de Deus, e, claro, longe de 
poder avaliar todo o efeito de minhas palavras, mas justamente 
advertido e procurando prevenir-me contra isso, ou, dito de outra 
maneira, sempre livre quanto ao momento, ao número e também 
à escolha de minhas intervenções, a tal ponto que a regra parece 
ter sido inteiramente ordenada para não atrapalhar em nada meu 
trabalho de executante, ao que é correlato o aspecto de "material" 
sob o qual minha ação aborda aqui o que ela produziu. 
5. Quanto ao manejo da transferência, minha liberdade, ao 
contrário, vê-se alienada pelo desdobramento que nela sofre 
minha pessoa, e ninguém ignora que é aí que se deve buscar o 
segredo da análise. O que não impede que se creia estar progre­
dindo nesta douta afirmação: que a psicanálise deve ser estudada 
como uma situação a dois. Decerto se introduzem nela condições 
que lhe restringem os movimentos, no entanto disso resulta que 
a situação assim concebida serve para articular (e sem maiores 
artifícios do que a já citada reeducação emocional)os princípios 
de um adestramento do chamado Eu fraco, e por um Eu o qual 
há quem goste de considerar capaz de realizar esse projeto, 
porque é forte. Que não se enuncie isso sem constrangimento é 
o que atestam certos arrependimentos de uma inabilidade im­
pressionante, como aquele que esclarece não ceder à exigência 
de uma "cura por dentro" [22].5 Mas só é mais significativo 
constatar que o assentimento do sujeito, por sua evocação nesse 
trecho, vem apenas no segundo tempo de um efeito inicialmente 
imposto. 
Não é por nosso prazer que expomos esses desvios, mas, 
antes, para, com seus escolhos, fazer balizas para nosso caminho. 
5. Prometemos a nossos leitores não mais fatigá-los, no que se segue, com 
fórmulas tão estúpidas, que na verdade não têm outra utilidade aqui senão mostrar 
a que ponto chegou o discurso analítico. Já nos desculpamos por elas junto a 
nossos ouvintes estrangeiros, que sem dúvida dispunham de outras tantas a seu 
serviço em sua língua, mas talvez não exatamente dessa mesma banalidade. 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 595 
De fato, todo analista (nem que seja os que assim se extraviam) 
sempre experimenta a transferência, no deslumbramento do efeito 
menos esperado de uma relação a dois que seria como as outras. 
Ele diz a si mesmo que, nesse aspecto, tem que contemporizar 
com um fenômeno pelo qual não é responsável, e sabemos com 
que insistência Freud enfatizou sua espontaneidade no paciente. 
Faz algum tempo que os analistas, nas dilacerantes revisões [589] 
com que nos brindam, preferem insinuar que essa insistência, 
da qual se fizeram baluartes por muito tempo, traduziria em 
Freud uma certa fuga do compromisso pressuposto pela idéia de 
situação. Como vocês vêem, estamos em dia. 
Mas é sobretudo a exaltação fácil de seu gesto de atirar os 
sentimentos - imputado à contratransferência - no prato de 
uma balança em que a situação se equilibraria por seu peso que 
atesta, para nós, uma consciência pesada que se correlaciona 
com a renúncia em conceber a verdadeira natureza da transfe­
rência. 
Não é possível raciocinar com o que o analisado leva a pessoa 
do analista a suportar de suas fantasias como com o que um 
jogador ideal avalia das intenções de seu adversário. Sem dúvida, 
há também uma estratégia ali, mas não nos enganemos com a 
metáfora do espelho, por mais que ela convenha à superfície 
una que o analista apresenta ao paciente. Cara fechada e boca 
cosida não têm aqui a mesma finalidade que no bridge. Com 
isso, antes, o analista convoca a ajuda do que nesse jogo é 
chamado de morto, mas para fazer surgir o quarto jogador que 
do analisado será parceiro, e cuja mão, através de seus lances, 
o analista se esforçará por fazê-lo adivinhar: é esse o vínculo, 
digamos, de abnegação, imposto ao analista pelo cacife da partida 
na análise. 
Poderíamos prosseguir nessa metáfora, daí deduzindo seu jogo 
conforme ele se coloque "à direita" ou "à esquerda" do paciente, 
ou seja, na posição de jogar antes ou depois do quarto jogador, 
isto é, de jogar antes ou depois deste com o morto. 
Mas o que há de certo é que os sentimentos do analista só 
têm um lugar possível nesse jogo: o do morto; e que, ao 
ressuscitá-lo, o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz. 
Eis por que o analista é menos livre em sua estratégia do que 
em sua tática. 
596 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
6. Vamos adiante. O analista é ainda menos livre naquilo que 
domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele 
faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser. 
Dizendo as coisas de outra maneira: sua ação sobre o paciente 
lhe escapa, juntamente com a idéia que possa fazer dela, quando 
ele não retoma seu começo naquilo pelo qual ela é possível, 
quando não retém o paradoxo do que ela tem de retalhada, para [590] 
revisar no princípio a estrutura por onde qualquer ação intervém 
na realidade. 
Para os psicanalistas de hoje, essa relação com a realidade é 
evidente. Eles lhe medem as defecções por parte do paciente 
com base no princípio autoritário dos educadores de sempre. Só 
que se fiam na análise didática para garantir sua manutenção 
num teor suficiente nos analistas, sobre os quais não deixamos 
de sentir que, para enfrentar os problemas da humanidade que 
se dirige a eles, suas visões às vezes são um pouco locais. Isso 
equivale apenas a fazer recuar o problema a um nível individual. 
E não é muito tranqüilizador vê-los traçar o percurso da análise 
na redução, no sujeito, dos desvios imputados à sua transferência 
e a suas resistências, mas situados em relação à realidade, nem 
ouvi-los exclamar sobre a "situação simplíssima" que a análise 
ofereceria para comensurar isso. Homessa! o educador não está 
nem perto de ser educado, se pode julgar com tanta leviandade 
uma experiência que, no entanto, ele próprio teve de atravessar. 
Presume-se em tal apreciação que esses analistas teriam dado 
a essa experiência outras facetas, se tivessem tido que se fiar 
em seu senso de realidade para inventá-la eles próprios: priori­
dade escabrosa de imaginar. Eles têm certas dúvidas, por isso 
são tão meticulosos na preservação de suas formas. 
É compreensível que, para alicerçar esteio a uma concepção 
tão visivelmente precária, alguns ultramarinos tenham sentido 
necessidade de introduzir nela um valor estável, um padrão de 
medida do real: é o ego autônomo. Trata-se do conjunto supos­
tamente organizado das mais díspares funções que presta seu 
apoio ao sentimento de inatismo do sujeito. É considerado 
autônomo porque estaria ao abrigo dos conflitos da pessoa 
(non-conflictual sphere) [14]. 
Aí se reconhece uma miragem surrada que a mais acadêmica 
psicologia da introspecção já havia rejeitado como insustentável. 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 597 
Essa regressão, no entanto, é celebrada como um retomo ao redil 
da "psicologia geral" . 
Seja como for, ela resolve a questão do ser do analista.6 Uma 
equipe de egos, decerto menos iguais7 do que autônomos (mas, 
por qual selo de origem se reconhecem eles na suficiência de [5911 
sua autonomia?), se oferece aos norte-americanos para guiá-los 
em direção à happiness, sem perturbar as autonomias, egoístas 
ou não, que pavimentam o American way de chegar lá. 
7. Resumamo-nos. Se o analista só lidasse com resistências, 
pensaria duas vezes antes de fazer uma interpretação, como 
efetivamente lhe acontece, mas ele ficaria quite com essa pru­
dência. 
Só que essa interpretação, quando ele a faz, é recebida como 
proveniente da pessoa que a transferência lhe imputa ser. Aceitará 
ele beneficiar-se desse erro de pessoa? A moral da análise não 
contradiz isso, desde que ele interprete tal efeito, sem o que a 
análise se reduziria a uma sugestão grosseira. 
Posição incontestável, exceto pelo fato de que é como pro­
veniente do Outro da transferência que a fala do analista continua 
a ser ouvida, e de que com isso o momento de o sujeito sair da 
transferência é adiado ad infinitum. 
É, pois, pelo que o sujeito imputa ao analista ser (ser que está 
alhures) que é possível uma interpretação voltar ao lugar de onde 
pode ter peso na distribuição das respostas. 
Ali, porém, quem dirá o que ele é, o analista, e o que resta dele, 
ao ser encostado contra a parede na tarefa de interpretar? Que ele 
mesmo ouse dizê-lo se, caso seja um homem, isso for tudo o que 
ele tem a nos responder. Que ele tenha ou não tenha, seria pois 
toda a questão: mas é aí que ele volta atrás, não somente pela 
impudência do mistério, mas porque, nesse ter, é do ser que se 
trata, e como. Veremos mais adiante que esse como não é cômodo. 
Por isso ele prefere se restringir a seu Eu e à realidade, da 
qual conhece um pedaço. Mas, nesse caso, ei-lo no [eu] e no eu 
com seu paciente. Como fazer, se eles estãode espada em riste? 
6. Na França, o já citado doutrinário do ser mostrou-se direto nessa solução: o 
ser do psicanalista é inato (cf. La PDA, I, p. l36). 
7. Onde Lacan explora a homofonia francesa entre egos e égaux. (N.E.) 
598 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
É aí que, astutamente, conta-se com as conivências que se deve 
ter nesse lugar, denominado, no caso, a parte sadia do eu, aquela 
que pensa como nós. 
C.Q.N.R.P.D., podemos concluir, o que nos leva de volta ao 
problema inicial, ou seja, a reinventar a análise. 
Ou a refazê-la: tratando a transferência como uma forma [5921 
particular da resistência. 
Muitos o professam. É a eles que formulamos a pergunta que 
dá título a esta seção: Quem é o analista? Aquele que interpreta, 
tirando proveito da transferência? Aquele que a analisa como 
resistência? Ou aquele que impõe sua idéia da realidade? 
Pergunta que pode incomodar muito de perto aqueles a quem 
se dirige, e ser menos fácil de evitar do que a pergunta "quem 
fala?", com a qual um de meus alunos lhes azucrinou os ouvidos 
por conta do paciente. Pois sua resposta de impacientes - um 
animal de nossa espécie - seria para a pergunta modificada 
mais deploravelmente tautológica, por ter que dizer: eu. 
Nu e cru. 
Il. Qual é o lugar da interpretação? 
1 . O que veio antes não responde a tudo o que aqui se promove 
de questões para o novato. Mas, ao reunir os problemas que 
atualmente se agitam em tomo da direção da análise, na medida 
em que essa atualidade reflete seu uso presente, cremos ter 
respeitado suas proporções. 
A saber, o lugar ínfimo que a interpretação ocupa na atualidade 
psicanalítica - não porque se tenha perdido seu sentido, mas 
porque a abordagem desse sentido sempre atesta um embaraço. 
Não há autor que se confronte com ele sem proceder destacando 
toda sorte de intervenções verbais que não são a interpretação: 
explicações, gratificações, respostas à demanda . .. etc. O proce­
dimento toma-se revelador quando se aproxima do centro do 
interesse. Ele impõe que até uma formulação articulada para 
levar o sujeito a ter uma visão (insight) de uma de suas condutas, 
sobretudo em sua significação de resistência, possa receber um 
nome totalmente diferente, como confrontação, por exemplo, 
nem que seja a do sujeito com seu próprio dizer, sem merecer 
o de interpretação, simplesmente por ser um dizer esclarecedor. 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 599 
São comoventes os esforços de um autor na tentativa de forçar 
a teoria da forma para nela encontrar a metáfora que lhe permita 
exprimir o que a interpretação introduz de resolução numa 
ambigüidade intencional, de fechamento a uma incompletude [5931 
que, no entanto, só se realiza a posteriori [2]. 
2. Percebe-se que o que aqui se furta é a natureza de uma 
transmutação no sujeito, e de um modo ainda mais doloroso para 
o pensamento, por lhe escapar no exato momento em que passa 
à ação. Nenhum indicador basta, com efeito, para mostrar onde 
age a interpretação, quando não se admite radicalmente um 
conceito da função do significante que capte onde o sujeito se 
subordina a ele, a ponto de por ele ser subornado. 
A interpretação, para decifrar a diacronia das repetições in­
conscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que 
nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução -
precisamente aquilo que a função do Outro permite no receptá­
culo do código, sendo a propósito dele que aparece o elemento 
faltante. 
Essa importância do significante na localização da verdade 
analítica aparece em filigrana, tão logo um autor se atém firme­
mente às conexões da experiência na definição das aporias. Basta 
ler Edward Glover para avaliar o preço que ele paga pela falta 
desse termo, quando, ao articular as opiniões mais pertinentes, 
ele encontra a interpretação por toda parte, na impossibilidade 
de retê-la em parte alguma, e até mesmo na banalidade da receita 
médica, e acaba dizendo, muito simplesmente, sem que se saiba 
se ele se escuta, que a formação do sintoma é uma interpretação 
inexata do sujeito [1 3]. 
Assim concebida, a interpretação torna-se uma espécie de 
flogístico, manifesto em tudo o que se compreende - com ou 
sem razão, por menos que ele alimente a chama do imaginário 
- da pura ostentação que, sob o nome de agressividade, tira 
proveito da técnica dessa época (1931; o que aliás é novo o 
bastante para ainda ser atual. Cf. [1 3]). 
Somente por vir a interpretação culminar no hic et nunc desse 
jogo é que ela se distingue da leitura da signatura rerum em 
que Jung rivaliza com Boehme. Segui-lo nisso conviria muito 
pouco ao ser de nossos analistas. 
600 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
Mas estar na hora de Freud8 diz respeito a outra tablatura, o 
que significa não ser supérfluo saber desmontar-lhe o relógio. 
3. Nossa doutrina do significante é, para começar, disciplina na [594] 
qual aqueles a quem formamos se exercitam nos modos de efei-
to do significante no advento do significado, única via para 
conceber que, ao se inscrever aí, a interpretação possa produzir 
algo novo. 
Pois ela não se fundamenta em nenhuma assunção dos arqué­
tipos divinos, mas no fato de o inconsciente ter a estrutura radical 
da linguagem, que um material funciona nela segundo leis, que 
são as descobertas pelo estudo das línguas positivas, das línguas 
que são ou foram efetivamente faladas. 
A metáfora do flogístico que há pouco nos inspirou Glover 
retira seu caráter apropriado do erro que evoca: a significação 
emana tão pouco da vida quanto o flogístico, na combustão, 
escapa dos corpos. Antes, seria preciso falar dela como da 
combinação da vida com o átomo O do signo,9 do signo no que, 
antes de mais nada, ele conota a presença ou a ausência, intro­
duzindo essencialmente o e que as liga, pois, ao conotar a 
presença ou a ausência, ele institui a presença com base na 
ausência, assim como constitui a ausência na presença. 
Havemos de estar lembrados de que, com a segurança de sua 
marcha por seu campo, Freud, buscando o modelo do automa­
tismo de repetição, detém-se no cruzamento de um jogo de 
ocultação e de uma escansão alternada de dois fonemas cuja 
conjugação, numa criança, o impressiona. 
É que ali também aparece, ao mesmo tempo, o valor do objeto 
como insignificante (aquilo que a criança faz aparecer e desa­
parecer), além do caráter acessório da perfeição fonética, com­
parada à distinção fonemática, que ninguém contestaria que Freud 
tem o direito de traduzir imediatamente pelos Fort! Da! do 
alemão falado por ele, adulto (9]. 
8. A expressão francesa être à l'heure de tem o sentido de " seguir o estilo 
de", " ser como" . (N .E.) 
9. O que, em vez de ser vocalizado como a letra simbólica do oxigênio, evocada 
pela metáfora seguida, pode ler-se como " zero" , na medida em que esse número 
simboliza a função essencial do lugar na estrutura do significante. 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 601 
Ponto de inseminação de uma ordem simbólica que preexiste 
ao sujeito infantil e segundo a qual será preciso que ele se 
estruture. 
4. Poupar-nos-emos de fornecer as regras da interpretação. Não 
que elas não possam ser formuladas, mas suas fórmulas pressu-
põem desenvolvimentos que não podemos tomar como conhe- [5951 
cidos, na impossibilidade de condensá-los aqui. 
Atenhamo-nos a observar que, ao ler os comentários clássicos 
sobre a interpretação, sempre lamentamos ver quão pouco partido 
se sabe tirar dos próprios dados que são propostos. 
Para dar um exemplo disso, cada qual atesta à sua maneira que, 
para confirmar a pertinência de uma interpretação, o que importa 
não é a convicção que ela acarreta, já que melhor se reconhecerá 
seu critério no material que vier a surgir depois dela. 
Mas tão poderosa é a superstição psicologizantenas mentes, 
que se continua a invocar o fenômeno no sentido de um assen­
timento do sujeito, omitindo por completo o que resulta das 
colocações de Freud sobre a Verneinung como forma de confis­
são, da qual o mínimo que se pode dizer é que não se pode 
fazê-la equivaler a um resultado nulo. 
É assim que a teoria traduz como a resistência é gerada na 
prática. É também isso o que queremos deixar claro, quando 
dizemos que não há outra resistência à análise senão a do próprio 
analista. 
5. O grave é que, com os autores de hoje, a seqüência dos efeitos 
analíticos parece tomada pelo avesso. A interpretação, a seguir­
mos suas colocações, seria apenas um balbucio, comparada à 
abertura de uma relação maior onde, enfim, se é compreendido 
("por dentro", sem dúvida). 
A interpretação toma-se aqui uma exigência da fraqueza à 
qual é preciso acudir. É também uma coisa muito difícil de 
fazê-la engolir sem que ela a rejeite. É ambas as coisas ao mesmo 
tempo, ou seja, um recurso bastante incômodo. 
Mas isso é apenas efeito das paixões do analista: de seu receio, 
que não é do erro, mas da ignorância, de sua predileção; que 
não é satisfazer, porém não decepcionar ; de sua necessidade, 
que não é de governar, mas de ficar por cima. Não se trata, em 
absoluto, da contratransferência deste ou daquele: trata-se das 
602 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
conseqüências da relação dual, caso o terapeuta não a supere -
e como haveria de superá-la, se faz dela o ideal de sua ação? 
Primum vivere, sem dúvida: há que evitar o rompimento. Que 
se classifique com o nome de técnica a civilidade pueril e honesta [596] 
que ensina com tal finalidade, ainda passa. Mas, quando se 
confunde essa necessidade física da presença do paciente na hora 
marcada com a relação analítica, comete-se um engano e se 
desencaminha o novato por muito tempo. 
6. A transferência, nessa perspectiva, toma-se a segurança do 
analista, e a relação com o real, o terreno em que se decide o 
combate. A interpretação, adiada até a consolidação da transfe­
rência, fica desde então subordinada à redução desta. 
Daí resulta que ela é reabsorvida num working through que 
podemos muito bem traduzir, simplesmente, por trabalho da 
transferência, que serve de álibi para uma espécie de revanche 
pela timidez inicial, ou seja, para uma insistência que abre as 
portas a todas as forçagens, colocadas sob a bandeira do forta­
lecimento do Eu [21-22]. 
7. Mas será que se observou, ao cnttcar o procedimento de 
Freud, tal como ele se apresenta, por exemplo, no Homem dos 
Ratos, que o que nos surpreende como uma doutrinação prévia 
decorre, simplesmente, de ele proceder exatamente na ordem 
inversa? Ou seja, ele começa por introduzir o paciente numa 
primeira localização de sua posição no real, mesmo que este 
acarrete uma precipitação - não hesitemos em dizer uma 
sistematização - dos sintomas [8]. 
Outro exemplo notório é quando ele obriga Dora a constatar 
que, da grande desordem do mundo de seu pai, cujo estrago 
constitui o objeto de sua reclamação, ela faz mais do que 
participar; que ela se constituiu a cavilha dessa desordem, e que 
não poderia continuar sem sua complacência [7]. 
Há muito tempo tenho enfatizado o processo hegeliano dessa 
inversão das posições da bela alma quanto à realidade que ela 
denuncia. Não se trata de adaptá-la a esta, mas de lhe mostrar 
que ela está mais do que bem adaptada nela, uma vez que 
concorre para sua fabricação. 
Mas aqui se detém o caminho a percorrer com o outro. Pois 
a transferência já fez seu trabalho, mostrando que se trata de 
algo bem diferente das relações do Eu com o mundo. 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 603 
Freud nem sempre parece haver-se muito bem com isso, nos 
casos que relata. E é por isso que eles são tão preciosos. [597] 
Pois ele reconheceu prontamente que nisso estava o princípio 
de seu poder, no que este não se distinguia da sugestão, mas 
também que esse poder só lhe dava a solução do problema na 
condição de não se servir dele, pois era então que assumia todo 
o seu desenvolvimento de transferência. 
A partir desse momento, não é mais àquele a quem mantinha 
em sua proximidade que ele se dirigiu, e foi por essa razão que 
lhe recusou o face a face. 
A interpretação em Freud é tão audaciosa que, por havê-la 
vulgarizado, já não reconhecemos seu alcance de adivinhação. 
Quando ele denuncia uma tendência, aquilo a que chama Trieb, 
coisa totalmente diferente de um instinto, o frescor da descoberta 
nos mascara o que o Trieb implica em si de um advento do 
significante. Mas, quando Freud traz à luz o que só podemos 
chamar de linhas de destino do sujeito, é pela figura de Tirésias 
que nos interrogamos diante da ambigüidade em que opera seu 
veredito. 
Pois essas linhas adivinhadas concemem tão pouco ao Eu do 
sujeito, ou a tudo o que ele pode presentificar hic e nunc na 
relação dual, que é ao topar na hora certa, no caso do Homem 
dos Ratos, com o pacto que regeu o casamento dos pais deste, 
com o que se passou, portanto, muito antes do nascimento dele, 
que Freud reencontra ali uma mistura de condições - honra 
salva no último minuto, traição sentimental, compromisso social 
e dívida prescrita - das quais o grande roteiro compulsivo que 
lhe foi levado pelo paciente parece ser o decalque criptográfico, 
e no qual vem a motivar enfim os impasses onde se desgarram 
sua vida moral e seu desejo. 
Porém o mais incrível é que o acesso a esse material só tenha 
sido aberto por uma interpretação em que Freud presumiu uma 
interdição que o pai do Homem dos Ratos teria imposto com 
relação à legitimação do amor sublime a que se devotou, para 
explicar a marca de impossível de que, sob todas as suas 
modalidades, esse laço lhe parece ter o cunho. Interpretação da 
qual o mínimo que se pode dizer é que ela é inexata, uma vez 
que é desmentida pela realidade que presume, mas que mesmo 
assim é verdadeira na medida em que Freud nela dá mostras de 
uma intuição em que ele antecipa o que introduzimos sobre a 
604 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
função do Outro na neurose obsessiva, demonstrando que essa 
função, na neurose obsessiva, admite ser sustentada por um 
morto, e que, nesse caso, não poderia ser mais bem exercida do [598) 
que pelo pai, uma vez que, estando efetivamente morto, ele 
retomou à posição que Freud reconheceu como sendo a do Pai 
absoluto. 
8. Que nos perdoem aqueles que nos lêem e os que acompanham 
nosso ensino, se eles encontram aqui exemplos um tanto repi­
sados por mim em seus ouvidos. 
Não é apenas que eu não possa citar minhas próprias análises 
para demonstrar o plano em que incide a interpretação, por não 
poder a interpretação, revelando-se coextensiva à história, ser 
comunicada no meio comunicante em que se passam muitas de 
nossas análises sem risco de trair o anonimato do caso. É que, 
em certa ocasião, consegui dizer o bastante sem falar demais, 
ou seja, deixar claro meu exemplo sem que ninguém, a não ser 
o interessado, o reconhecesse. 
Tampouco se trata de que eu considere o Homem dos Ratos 
um caso que Freud tenha curado, pois, se eu acrescentasse que 
não creio que a análise não tenha tido nada a ver com a trágica 
conclusão de sua história com sua morte no campo de batalha, 
o quanto não estaria eu contribuindo para infamar aqueles que 
mal pensam nisso? 
Digo que é numa direção do tratamento que se ordena, como 
acabo de demonstrar, segundo um processo que vai da retificação 
das relações do sujeito com o real, ao desenvolvimento da 
transferência, e depois, à interpretação, que se situa o horizonte 
em que a Freud se revelaram as descobertas fundamentais que 
até hoje experimentamos, no tocante à dinâmica e à estrutura da 
neurose obsessiva. Nada mais, porém também nada menos. 
Coloca-se agora a questão de saber se não foi por terinvertido 
essa ordem que perdemos esse horizonte. 
9. O que se pode dizer é que as novas vias em que se pretendeu 
legalizar a marcha aberta pelo descobridor demonstram uma 
confusão nos termos, que requer a singularidade para se revelar. 
Retomaremos, pois, um exemplo que já contribuiu para o nosso 
ensino; naturalmente, ele foi escolhido de um autor qualificado 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 605 
e que é especialmente sensível, por sua origem, à dimensão da 
interpretação. Trata-se de Emst Kris e de um caso que ele não 
nos dissimula haver retomado de Melitta Schmideberg [ 15]. 
Trata-se de um sujeito inibido em sua vida intelectual e [599] 
particularmente incapaz de conseguir publicar qualquer de suas 
pesquisas - isso em razão de um impulso de plagiar do qual 
ele não parece capaz de assenhorear-se. Esse é o drama subjetivo. 
Melitta Schmideberg o havia compreendido como a recorrên­
cia de uma delinqüência infantil; o sujeito costumava furtar 
guloseimas e alfarrábios, e por esse viés é que ela empreendeu 
a análise do conflito inconsciente. 
Emst Kris vangloria-se de haver retomado o caso de acordo 
com uma interpretação mais metódica, a que procede da super­
fície à profundidade, como ele diz. Que ele a coloque sob a 
égide da psicologia do ego segundo Hartmann, da qual julgou 
dever ser seu propugnador, é secundário para apreciarmos o que 
vai acontecer. Emst Kris modifica a perspectiva do caso e 
pretende dar ao sujeito o insight de um novo começo, a partir 
de um fato que não passa de uma repetição de sua compulsão, 
mas no qual Kris, muito louvavelmente, não se contenta com os 
dizeres do paciente; e, quando este presume haver, a despeito 
de si mesmo, colhido as idéias de um trabalho que acaba de 
concluir num livro que, tendo-lhe voltado à memória, permitiu­
lhe controlar isso a posteriori, Kris examina as provas e descobre 
que, aparentemente, nada nelas ultrapassa o que a comunidade 
do campo de pesquisas comporta. Em suma, havendo se certi­
ficado de que seu paciente não é plagiário, embora acredite sê-lo, 
Kris tenciona demonstrar-lhe que ele quer sê-lo para se impedir 
de sê-lo realmente - o que se chama analisar a defesa antes da 
pulsão, que aqui se evidencia na atração pelas idéias dos outros. 
Pode-se presumir que essa intervenção seja errônea, pelo 
simples fato de supor que defesa e pulsão sejam concêntricas e, 
por assim dizer, moldadas uma pela outra. 
O que prova que ela efetivamente o é é aquilo em que Kris 
a vê confirmada, ou seja, o fato de que, no momento em que 
ele acredita poder perguntar ao doente o que ele acha dessa 
virada de casaca, este, pensando por um momento, retruca-lhe 
que há algum tempo, ao sair da sessão, vagueia por uma rua 
repleta de restaurantezinhos atraentes, para cobiçar em seus 
cardápios o anúncio de seu prato predileto: miolos frescos. 
606 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
Declaração que, em vez de ser considerada como sancionadora 
do caráter feliz da intervenção pelo material que traz, parece-nos, 
antes, ter o valor corretivo do acting out, no próprio relato que [600] 
é feito dele. 
Essa mostarda depois do jantar que o paciente respira10 mais 
me parece dizer ao anfitrião que ela faltou no serviço. Por mais 
compulsivo que ele seja ao cheirá-la, ela é um hint11;' sendo 
sintoma transitório, sem dúvida, ela adverte o analista: você 
passou ao largo. 
De fato você passou ao largo, retomo eu, dirigindo-me à me­
mória de Emst Kris, tal como recordo o Congresso de Marienbad, 
do qual, no dia seguinte à minha comunicação sobre o estádio do 
espelho, fui embora, preocupado que estava em ir respirar o ar do 
tempo, de um tempo carregado de promessas, na Olimpíada de 
Berlim. Ele me objetou gentilmente: "Ça ne se fait pas !" (essa 
locução, em francês), já seduzido por essa tendência ao respeitável 
que talvez aqui tenha infletido seu procedimento. 
Será isso que o faz extraviar-se, Emst Kris, ou apenas o serem 
retas as suas intenções, pois seu julgamento também o é, sem 
dúvida, enquanto as coisas, por sua vez, estão em ziguezague? 
Não é o fato de seu paciente não roubar que importa aqui. É 
que ele não ... Sem "não" : é que ele rouba nada. E era isso que 
teria sido preciso fazê-lo ouvir. 
Muito ao contrário do que você acredita, não é a defesa dele 
contra a idéia de roubar que o faz crer que rouba. Que ele possa 
ter uma idéia própria é que não lhe vem à idéia, ou que só o 
visita com dificuldade. 
Inútil, pois, engajá-lo nesse processo de determinar a parte, 
onde nem Deus poderia reconhecer-se, daquilo que seu colega 
lhe surrupia de mais ou menos original quando o sujeito bate 
papo com ele. 
Não pode essa ânsia de miolos frescos refrescar-lhe seus 
próprios conceitos e fazer você se lembrar, nas formulações de 
Roman Jakobson, da função da metonímia? - voltaremos a isso 
dentro em pouco. 
10. Metáfora a partir do idiomatismo la moutarde lui monte au nez - "ele é 
tomado de impaciência, de cólera". (N.E. ) 
11. Uma pista, um indício. (N.E.) 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 607 
Você fala de Melitta Schmideberg como se ela houvesse 
confundido a delinqüência com o Isso. Não estou tão seguro 
disso, e, ao me referir ao artigo em que ela cita esse caso, os 
termos de seu título me sugerem uma metáfora. 
Você trata o paciente como um obsessivo, mas ele está lhe 
estendendo a mão com sua fantasia de comestível : para lhe dar 
a oportunidade de adiantar um quarto de hora sobre a nosologia [6011 
de sua época, diagnosticando: anorexia mental. Ao mesmo tempo, 
você refrescaria, restituindo-o a seu sentido próprio, esse par de 
termos, cujo uso comum o reduziu à qualidade duvidosa de uma 
indicação etiológica. 
Anorexia, no caso, quanto ao mental, quanto ao desejo do 
qual vive a idéia, o que nos leva ao escorbuto que impera na 
jangada em que a embarco junto com as virgens magras. 
A recusa delas, simbolicamente motivada, parece-me ter muita 
relação com a aversão do paciente por aquilo que ele cogita. 
Ter idéias era um recurso de que já o papai dele, como nos diz 
você, não dispunha. Será que o avô [grand-pere], que nelas se 
havia ilustrado, lhe teria inspirado essa aversão? Como saber? 
Você por certo tem razão em fazer do significante grand, incluído 
no termo de parentesco, a origem pura e simples da rivalidade 
exercida com o pai pelo peixe maior fisgado na pescaria. Mas 
esse desafio de pura forma inspira-me, antes, que ele queira 
dizer : nada a fritar. 
Nada em comum, portanto, entre o modo de proceder que 
você usa, dito a partir da superfície, e a retificação subjetiva 
posta em destaque mais acima no método de Freud, onde ela 
também não é motivada por nenhuma prioridade tópica. 
É que, ademais, essa retificação em Freud é dialética e parte 
dos dizeres do sujeito para voltar a eles, o que significa que uma 
interpretação só pode ser exata se for ... uma interpretação. 
Tomar o partido do objetivo, aqui, é um abuso, nem que seja 
pelo fato de o plágio ser relativo aos costumes vigentes. 1 2 
12. Eis um exemplo: nos EUA, onde acabou Kris, publicação tem valor de título, 
e um ensino como o meu deveria, toda semana, garantir sua prioridade contra 
a pilhagem a que não deixaria de dar ensejo. Na França, é à maneira da infiltração 
que minhas idéias penetram num grupo onde são obedecidas as ordens que 
608 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
Mas a idéia de que a superfície seja o nível do superficial é 
perigosa em si mesma. 
Outra topologia é necessária para não haver engano quanto 
ao lugar do desejo. 
Apagar o desejo do mapa, quando ele já está recoberto na [6021 
paisagem do paciente, não é o melhor seguimento a dar à lição 
de Freud. 
Nem o meio de acabar com profundidade, pois é na superfície 
que ela é visível como herpes em dia de festa a florescer no 
rosto.III. Em que ponto estamos com a transferência? 
1 . É ao trabalho de nosso colega Daniel Lagache que convém 
recorrer para constituir uma história exata dos trabalhos que, em 
torno de Freud, dando seguimento à sua obra e desde que ele a 
legou a nós, foram dedicados à transferência, por ele descoberta. 
O objeto desse trabalho vai muito além disso, introduzindo na 
função do fenômeno as distinções de estrutura, essenciais à sua 
crítica. Basta lembrar a alternativa muito pertinente que ele 
formula, quanto à sua natureza última, entre necessidade de 
repetição e repetição da necessidade. 
Tal trabalho, a acreditarmos haver sabido em nosso ensino 
extrair as conseqüências que ele acarreta, torna bem evidente, 
pela ordenação que introduz, a que ponto são freqüentemente 
parciais os aspectos em que se concentram os debates e, em 
especial, o quanto o emprego comum do termo, na própria 
análise, continua aderido à sua abordagem mais discutível, se 
bem que mais vulgar: fazer dela a sucessão ou a soma dos 
sentimentos positivos ou negativos que o paciente vota a seu 
analista. 
Para avaliar a que ponto chegamos em nossa comunidade 
científica, podemos dizer que não se fizeram nem acordo e nem 
proíbem meu ensino. Por serem malditas ali, as idéias só podem servir de adorno 
para alguns dândis. Não importa: o vazio que elas fazem ressoar, quer me citem 
ou não, faz ouvir uma outra voz. 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 609 
luz sobre os seguintes aspectos, onde no entanto eles pareceriam 
exigíveis: será que é o mesmo efeito da relação com o analista 
que se manifesta no enamoramento primário observado no início 
do tratamento e na trama de satisfações que torna essa relação 
tão difícil de romper, quando a neurose de transferência parece 
ultrapassar os meios propriamente analíticos? E será também 
que são a relação com o analista e sua frustração fundamental 
que, no segundo período da análise, sustentam a escansão frus­
tração-agressão-regressão, em que se inscreveriam os efeitos 
mais fecundos da análise? Como havemos de conceber a subor-
dinação dos fenômenos, quando sua esfera é atravessada pelas [603] 
fantasias que implicam abertamente a figura do analista? 
Dessas obscuridades persistentes, a razão foi formulada num 
estudo excepcional por sua perspicácia: a cada uma das etapas 
em que se tentou revisar os problemas da transferência, as 
divergências técnicas que motivavam sua urgência não deram 
margem a uma crítica verdadeira de sua noção [20]. 
2. É tão central para a ação analítica a noção que queremos aqui 
alcançar que ela pode servir de medida para a parcialidade das 
teorias em que há quem se detenha em pensá-la. Ou seja, não 
estaremos enganados em julgá-las segundo o manejo da trans­
ferência que elas implicam. Esse pragmatismo é justificado. É 
que esse manejo da transferência é idêntico à noção dela, e por 
menos elaborada que seja esta na prática, ela só pode incluir-se 
nas parcialidades da teoria. 
Por outro lado, a existência simultânea dessas parcialidades 
nem por isso as faz se completarem. O que confirma que elas 
sofrem de um defeito central. 
Para já ir introduzindo nisso um pouco de ordem, reduziremos 
a três essas particularidades da teoria, ainda que desse modo 
tenhamos, nós mesmos, de nos conformar a alguma opinião 
preconcebida, menos grave por ser apenas de exposição. 
3. Ligaremos o geneticismo, na medida em que ele tende a 
fundamentar os fenômenos analíticos nos momentos de desen­
volvimento implicados e a se nutrir da chamada observação 
direta da criança, a uma técnica particular: a que faz a essência 
desse procedimento incidir sobre a análise das defesas. 
610 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
Esse laço é historicamente manifesto. Pode-se até dizer que 
não tem outro fundamento, já que só se constituiu pelo fracasso 
da solidariedade que supõe. 
Podemos mostrar seu início no crédito legítimo dado à noção 
de um eu inconsciente pela qual Freud reorientou sua doutrina. 
Daí passar à hipótese de que os mecanismos de defesa que se 
agrupavam sob sua função deviam poder, eles mesmos, trair uma 
lei de manifestação comparável, ou até mesmo correspondente 
à sucessão de fases pela qual Freud havia tentado ligar a 
emergência pulsional à fisiologia, eis o passo que Anna Freud, 
em seu livro sobre Os mecanismos de defesa, propõe transpor, [604] 
para submetê-lo à prova da experiência. 
Isso poderia ter sido a oportunidade de uma crítica fecunda 
das relações do desenvolvimento com as estruturas manifesta­
mente mais complexas que Freud introduziu na psicologia. Mas 
a operação deslizou mais abaixo, tão mais tentador era buscar 
inserir nas etapas observáveis do desenvolvimento sensório-mo­
tor e das capacidades progressivas de um comportamento inte­
ligente esses mecanismos, supostamente desvinculados do pro­
gresso delas. 
Pode-se dizer que as esperanças que Anna Freud depositava 
nessa exploração foram frustradas: por essa via, nada se revelou 
de esclarecedor para a técnica, embora os detalhes que se pôde 
discernir através da observação da criança, esclarecida pela 
análise, sejam às vezes muito sugestivos. 
A noção de pattern, que vem funcionar aqui como um álibi 
da tipologia malograda, apadrinha uma técnica que, por seguir 
na detecção de um pattern não atual, se inclina de bom grado 
a julgá-lo por seu desvio de um pattern que encontra em seu 
conformismo as garantias de sua conformidade. Não é sem 
constrangimento que evocamos os critérios de êxito a que leva 
esse trabalho postiço: a passagem para o patamar superior de 
renda e a saída de emergência da ligação com a secretária, 
regulando o escape de forças rigorosamente subjugadas no ma­
trimônio, na profissão e na comunidade política, não nos parecem 
de uma dignidade que requeira o apelo, articulado no planning 
do analista ou mesmo em sua interpretação, à Discórdia entre 
os instintos de vida e de morte - mesmo ornamentando seu 
propósito com o pretensioso qualificativo de "econômico" , para 
levá-lo adiante, em completo contra-senso com o pensamento 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 611 
de Freud, como o jogo de um par de forças homólogas em sua 
oposição. 
4. Menos degradada em seu relevo analítico parece-nos a segunda 
face em que surge aquilo que se furta da transferência, ou seja, 
o eixo tomado da relação de objeto. 
Essa teoria, não importa a que ponto de aviltamento tenha 
chegado nestes últimos tempos na França, tem, como o geneti­
cismo, sua origem nobre. Foi Abraham quem inaugurou seu 
registro, e a noção de objeto parcial foi uma contribuição original 
sua. Este não é o lugar de lhe demonstrar o valor. Estamos mais 
interessados em indicar sua ligação com a parcialidade do aspecto [605] 
que Abraham desvincula da transferência, para promovê-lo em 
sua opacidade como a capacidade de amar, ou seja, como se 
esse fosse um dado constitucional do doente em que se pudesse 
ler o grau de sua curabilidade, e, em especial, o único em que 
fracassaria o tratamento da psicose. 
Temos aqui, na verdade, duas equações. A transferência 
qualificada de sexual (Sexualübertragung) acha-se no princípio 
do amor a que, em francês, chamou-se objetai (em alemão, 
Objektliebe). A capacidade de transferência mede o acesso ao 
real. É impossível enfatizar em demasia o quanto há nisso de 
petição de princípio. 
Ao contrário dos pressupostos do geneticismo, que pretende 
se basear numa ordem das emergências formais no sujeito, a 
perspectiva de Abraham explica-se numa finalidade que se 
autoriza por ser instintual, na medida em que se faz imagem da 
maturação de um objeto inefável, o Objeto com maiúscula que 
comanda a fase da objetalidade (significativamente distinguida 
da objetividade por sua substância de afeto). 
Essa concepção ectoplásmica do objeto logo mostrou seusriscos ao se degradar na dicotomia grosseira que se formula 
opondo o caráter pré-genital ao caráter genital. 
Essa temática primária se desenvolve, de um modo sumário, 
atribuindo-se ao caráter pré-genital os traços acumulados do 
irrealismo projetivo, do autismo mais ou menos comedido, da 
restrição das satisfações pela defesa, e do condicionamento do 
objeto por um isolamento duplamente protetor quanto aos efeitos 
de destruição que o conotam, ou seja, um amálgama de todos 
os defeitos da relação de objeto, para mostrar os motivos da 
612 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
extrema dependência que resulta dela para o sujeito. Quadro que 
seria útil, a despeito de sua tendência à confusão, se não parecesse 
feito para servir de negativo do estilo água-com-açúcar "da 
passagem da forma pré-genital à forma genital" , onde as pulsões 
"já não assumem o caráter de necessidade de posse incoercível, 
ilimitada, incondicional, que comporta um aspecto destrutivo. 
Elas são verdadeiramente ternas, amorosas, e, se o sujeito nem 
por isso se mostra oblativo, isto é, desinteressado, e se esses 
objetos" (neste ponto, o autor se lembra de meus comentários) 
"são tão intrinsecamente objetos narcísicos quanto no caso 
anterior, aqui ele é capaz de compreensão e de adaptação ao 
outro. Aliás, a estrutura íntima dessas relações objetais mostra 
que a participação do objeto em seu próprio prazer é indispen- [6061 
sável para a felicidade do sujeito. As conveniências, os desejos 
e as necessidades do objeto (que salada !)13 são levados em 
consideração no mais alto grau" . 
Isso não impede, contudo, que "o Eu tenha aqui uma estabi­
lidade que não corre o risco de ser comprometida pela perda de 
um Objeto significativo. Ele permanece independente de seus 
objetos" . 
"Sua organização é tal que o modo de pensamento que ele 
utiliza é essencialmente lógico. Ele não exibe espontaneamente 
uma regressão a um modo de apreensão da realidade que seja 
arcaico, o pensamento afetivo e a crença mágica desempenham 
nele apenas um papel absolutamente secundário, e a simbolização 
não ultrapassa, em extensão e importância, o que ela é na vida 
habitual ( ! !)_13 O estilo das relações entre o sujeito e o objeto é 
dos mais evoluídos (sic)." 13 
Eis o que se promete àqueles que, "ao fim de uma análise 
bem sucedida ( ... ), apercebem-se da enorme diferença entre o 
que eles outrora acreditavam ser a alegria sexual e aquilo que 
experimentam agora" . 
É compreensível que, para os que têm de saída essa alegria, 
"a relação genital seja, em suma, desprovida de história" [21 ] . 
Sem outra história senão a de se conjugar irresistivelmente 
no verbo "bater com o traveseiro no lustre", cujo lugar nos 
parece marcado aqui para o futuro escoliasta, por encontrar nisso 
sua eterna oportunidade. 
13. Parênteses do autor do presente relatório. 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 613 
5. Se de fato é preciso seguir Abraham quando ele nos apresenta 
a relação de objeto como tipicamente demonstrada na atividade 
do colecionador, talvez sua regra não se dê nessa antinomia 
edificante, mas deva antes ser buscada em algum impasse cons­
titutivo do desejo como tal. 
O que faz o objeto apresentar-se como quebrado e decomposto 
talvez seja algo diferente de um fator patológico. E que tem a 
ver com o real esse hino absurdo à harmonia do genital? 
Convirá riscar de nossa experiência o drama do edipianismo, 
quando por Freud ele teve de ser forjado justamente para explicar 
as barreiras e as degradações (Emiedrigungen) que são o que [6071 
há de mais banal na vida amorosa, mesmo a mais realizada? 
Caberá a nós camuflar Eros, o Deus negro, de cameirinho do 
Bom Pastor? 
A sublimação decerto é empregada na oblação que se irradia 
do amor, mas dediquemo-nos a ir um pouco mais longe na 
estrutura do sublime, e que não o confundamos, coisa a que 
Freud, sempre acusa de falso, com o orgasmo perfeito. 
O pior é que as almas que se derramam na mais natural ternura 
acabam se perguntando se satisfazem a normalidade delirante 
da relação genital - fardo inédito que, a exemplo dos que o 
Evangelista amaldiçoa, amarramos para os ombros dos inocentes. 
Mas ao nos lerem, se algo disso chegar a épocas em que já 
não se saiba a que correspondiam na prática essas efervescentes 
colocações, poderão imaginar que nossa arte se dedicava a 
reavivar a fome sexual em retardados da glândula - para cuja 
fisiologia, no entanto, não contribuímos em nada, e por haver 
feito de fato, muito pouco para conhecê-la. 
6. É preciso que haja ao menos três faces em uma pirâmide, 
ainda que de heresia. A que fecha o diedro aqui descrito na 
hiância da concepção da transferência se esforça, por assim dizer, 
por lhe juntar as bordas. 
Se a transferência retira sua virtude do ser reconduzida à 
realidade da qual o analista é o representante, e se se trata de 
fazer o Objeto amadurecer na estufa de uma situação confinada, 
já não resta ao analisado senão um objeto, se nos permitem a 
expressão, em que fincar os dentes, e este é o analista. 
Daí a noção de introjeção intersubjetiva, que é nosso terceiro 
erro, se instalar, lamentavelmente, numa relação dual. 
614 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
Pois trata-se mesmo de uma via unitiva, da qual os diversos 
molhos teóricos que a preparam, de acordo com a tópica a que 
se faz referência, só podem conservar a metáfora, variando-a 
conforme o nível de operação considerado sério: introjeção, em 
Ferenczi, identificação com o Supereu do analista, em Strachey, 
e transe narcísico terminal, em Balint. 
Tencionamos chamar atenção para a substância dessa consu- [608] 
mação mística, e se mais uma vez temos que denunciar o que 
acontece à nossa porta, é por sabermos que a experiência analítica 
extrai sua força do particular. 
Assim é que a importância dada no tratamento à fantasia de 
devoração fálica suprida pela imagem do analista parece-nos 
digna de ser destacada, em sua coerência com uma direção da 
análise que a faz caber inteira na disposição da distância entre 
o paciente e o analista como objeto da relação dual. 
Pois, a despeito da debilidade da teoria com que um autor 
sistematize sua técnica, nem por isso ele deixa de analisar 
realmente, e a coerência revelada no erro constitui aqui o garante 
de que efetivamente se toma o bonde errado. 
É a função privilegiada do significante falo no modo de 
presença do sujeito no desejo que se ilustra aqui, mas numa 
experiência que podemos chamar de cega: isso, por falta de 
qualquer orientação sobre as verdadeiras relações da situação 
analítica, a qual, do mesmo modo que qualquer outra situação 
em que se fale, só pode, ao querer inscrevê-lo numa relação 
dual, ser destroçada. 
Sendo desconhecida, não sem motivo, a natureza da incorpo­
ração simbólica, e não havendo possibilidade de que se consuma 
seja o que for de real na análise, evidencia-se, pelas balizas 
elementares de meu ensino, que nada mais pode ser reconhecido 
senão de imaginário naquilo que se produz. Pois não é necessário 
conhecer a planta de uma casa para bater a cabeça contra as 
paredes: para isso, aliás, prescinde-se muito bem dela. 
Eu mesmo indiquei a esse autor, numa época em que deba­
tíamos entre nós, que, em se ficando preso a uma relação 
imaginária entre os objetos, restava apenas a dimensão da dis­
tância para poder ordená-la. Isso não estava na visada em que 
ele abunda em seus pareceres. 
Fazer da distância a única dimensão em que se articulam as 
relações do neurótico com o objeto gera contradições insuperá-
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 615 
veis, que são bastante discemíveis, tanto no interior do sistema 
quanto na direção oposta que autores diferentes extraem da 
mesma metáfora para organizar suas impressões. As distâncias 
excessiva ou insuficientedo objeto parecem, às vezes, confun­
dir-se a ponto de se embaralhar. E não era a distância do objeto, 
mas sua intimidade grande demais no sujeito, que parecia a [6091 
Ferenczi caracterizar o neurótico. 
O que decide sobre o que cada um quer dizer é sua utilização 
técnica, e a técnica do rapprocher, por mais impagável que seja 
o efeito desse termo, não traduzido, numa exposição em inglês, 
revela na prática uma tendência que confina na obsessão. 
É difícil acreditar que o ideal prescrito na redução dessa 
distância a zero (nil, em inglês) não deixe seu autor perceber 
que nisso se concentra seu paradoxo teórico. 
Seja como for, não há dúvida de que essa distância é tomada 
por um parâmetro universal, regendo as variações da técnica 
(por mais extravagante que se afigure o debate sobre a amplitude 
delas) em prol do desmantelamento da neurose. 
O que tal concepção deve às condições especiais da neurose 
obsessiva não deve ser colocado por inteiro do lado do objeto. 
Nem sequer parece haver, no rol de suas realizações, um 
privilégio a destacar dos resultados que ela obteria na neurose 
obsessiva. Pois, se como a Kris nos é permitido citar uma análise 
retomada na condição de segundo analista, podemos testemunhar 
que tal técnica, na qual o talento não deve ser contestado, acabou 
provocando, num caso clínico de pura obsessão num homem, a 
irrupção de um enamoramento não menos desmedido por ser 
platônico, e que não se revelou menos irredutível por ter-se 
exercido, depois do primeiro, sobre os objetos do mesmo sexo 
a seu alcance. 
Falar de perversão transitória pode satisfazer aqui um otimis­
mo ativo, mas ao preço de se reconhecer, nessa restauração 
atípica do terceiro da relação, excessivamente negligenciado, 
que convém não puxar demais para o recurso da proximidade 
na relação com o objeto. 
7. Não há limite para os desgastes da técnica por sua descon­
ceituação. Já fizemos referência aos achados de uma certa análise 
selvagem a respeito dos quais foi doloroso nosso espanto que 
616 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
nenhuma supervisão se alarmasse. Poder sentir14 o odor do 
analista apareceu num trabalho como uma realização a ser tomada 
ao pé da letra, para assinalar a saída exitosa da transferência. 
Podemos discernir aí uma espécie de humor involuntário que 
é o que dá valor a esse exemplo. Ele teria encantado Jarry. 
Trata-se apenas, em suma, da conseqüência previsível de tomar [6101 
ao real o desenvolvimento da situação analítica: e é verdade que, 
afora a gustação, o olfativo é a única dimensão que permite 
reduzir a zero (nil) a distância, dessa vez no real. O indício a 
encontrar nele para a direção do tratamento e os princípios de 
seu poder é mais duvidoso. 
Mas, que um odor de gaiola vagueie por uma técnica que se 
conduz "pelo faro" , como se costuma dizer, não é apenas um 
traço de ridículo. Os alunos de meu seminário estão lembrados 
do odor de urina que marcou o momento decisivo de um caso 
de perversão transitória, no qual nos detivemos em prol da crítica 
dessa técnica. Não se pode dizer que ele não tenha tido ligação 
com o acidente que motivou a observação, já que foi ao espiar 
uma mulher que urinava, através do tabique de um water que, 
súbito, o paciente transmudou sua libido, sem que nada, ao que 
parecia, o predestinasse a isso, porquanto as emoções infantis 
ligadas à fantasia da mãe fálica haviam assumido até então as 
feições da fobia [23]. 
Mas essa não é uma ligação direta, assim como não seria 
correto ver nesse voyeurismo uma inversão da exibição implicada 
na atipia da fobia, no diagnóstico muito precisamente formulado: 
sob a angústia do paciente de ser ridicularizado por sua estatura 
demasiadamente grande. 
Como dissemos, a analista a quem devemos essa notável 
publicação deu mostras de rara perspicácia, retomando, até a 
exaustão, à interpretação que dera de uma certa armadura surgida 
num sonho, em posição de perseguidor, e, ainda por cima, armada 
com uma bomba de Flit, como sendo um símbolo da mãe fálica. 
Não deveria eu ter, antes, falado do pai? - pergunta-se ela. 
E justifica ter-se desviado disso pela carência do pai real na 
história do paciente. 
14. Vale notar que sentir ("cheirar" em francês) tem também a acepção de 
" suportar" ou "tolerar" , como no coloquialismo ne pas pouvoir sentir quelqu 'un. 
(N.E.) 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 617 
Meus alunos hão de aqui deplorar que o ensino de meu 
seminário não tenha podido ajudá-la na época, já que eles sabem 
com base em que princípios lhes ensinei a distinguir o objeto 
fóbico como significante para todo uso, para suprir a falta do 
Outro, e o fetiche fundamental de toda perversão como objeto 
percebido no corte do significante. 
Na falta disso, por que não se lembrou essa novata talentosa 
do diálogo das armaduras no Discours sur le peu de réalité, de [611] 
André Breton? Isso a teria colocado no trilho. 
Mas, como esperá-lo, quando essa análise recebia na super­
visão uma orientação que a fazia pender para uma pressão 
constante no sentido de reconduzir o paciente à situação real? 
Como nos espantarmos com o fato de, ao contrário da rainha da 
Espanha, a analista ter pernas, quando ela mesma o enfatizava 
na rudeza de seus chamamentos à ordem do presente? 
É claro que tal procedimento não deixou de ter a ver com o 
desfecho benigno do acting out aqui examinado, uma vez que 
também a analista, aliás consciente disso, viu-se permanente­
mente numa intervenção castradora. 
Mas, sendo assim, por que atribuir esse papel à mãe, da qual 
tudo indica, na anamnese dessa observação, que ela sempre 
funcionou mais como alcoviteira? 
O Édipo faltoso foi compensado, mas sempre sob a forma, 
aqui de desconcertante ingenuidade, por uma invocação total­
mente forçada, senão arbitrária, da pessoa do marido da analista, 
no caso favorecida pelo fato de, sendo ele mesmo psiquiatra, ter 
sido ele quem lhe forneceu esse paciente. 
Essa não é uma circunstância comum. De qualquer modo, 
deve ser recusada como exterior à situação analítica. 
Os desvios imperdoáveis do tratamento não são em si o que 
cria reservas quanto a seu desfecho, e o humor, provavelmente 
não sem malícia, dos honorários surrupiados da última sessão 
como preço pelo estupro, não é um augúrio nada mau para o futuro. 
A questão que podemos levantar é a do limite entre a análise 
e a reeducação, quando seu próprio processo é norteado por uma 
solicitação preponderante de suas incidências reais . Coisa que 
se vê ao comparar, nessa observação, os dados da biografia com 
as formações transferenciais: a contribuição do deciframento do 
inconsciente é realmente mínima. A ponto de nos perguntarmos 
se sua maior parte não permanece intacta no enquistamento do 
enigma que, sob o rótulo de perversão transitória, é objeto dessa 
instrutiva comunicação. 
618 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
8. Que o leitor não analista não se engane: nada disto é para 
depreciar um trabalho que o epíteto virgiliano improbus qualifica 
com justeza. 
Não temos outro desígnio senão o de advertir os analistas [612] 
sobre o deslizamento sofrido por sua técnica, quando se desco-
nhece o verdadeiro lugar em que se produzem seus efeitos. 
Incansáveis na tentativa de defini-la, não podemos dizer que, 
encerrando-se em posições de modéstia e até mesmo guiando-se 
por ficções, a experiência que eles desenvolvem seja sempre 
infecunda. 
As pesquisas genéticas e a observação direta longe estão de 
estar desvinculadas de um ânimo propriamente analítico. E, por 
havermos nós mesmos retomado, num ano de nosso seminário, 
os temas da relação de objeto, mostramos o valor de uma 
concepção em que a observação da criança se nutre da mais 
precisa reformulação da função dos cuidados matemos na gênese 
do objeto : referimo-nos à noção de objeto transicionalintroduzida 
por D.W. Winnicott, ponto-chave para a explicação da gênese 
do fetichismo [27]. 
A verdade é que as flagrantes incertezas da leitura dos grandes 
conceitos freudianos são correlatas às fraquezas que oneram o 
labor prático. 
Queremos deixar claro que é na medida dos impasses expe­
rimentados para captar sua ação em sua autenticidade que os 
pesquisadores, assim como os grupos, acabam por forçá-la no 
sentido do exercício de um poder. 
Esse poder, eles o substituem pela relação com o ser em que 
se dá essa ação, fazendo com que seus meios, nomeadamente 
os da fala, decaiam de sua eminência verídica. Eis por que é 
realmente uma espécie de retomo do recalcado, por mais estranho 
que seja, que faz com que, das pretensões menos inclinadas a 
se preocupar com a dignidade desses meios, eleve-se a algaravia 
do recurso ao ser como a um dado do real, quando o discurso 
que ali impera rejeita qualquer interrogação que uma estupenda 
mediocridade já não tenha reconhecido. 
IV. Como agir com seu ser 
1 . É muito cedo na história da análise que aparece a questão do 
ser do analista. Que isso se dê através daquele que foi o mais 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 619 
atormentado pelo problema da ação analítica não é de nos 
surpreender. Com efeito, pode-se dizer que o artigo de Ferenczi [613] 
intitulado " Introjeção e transferência", datado de 1909 [3], é 
inaugural nesse aspecto e se antecipa de longe a todos os temas 
posteriormente desenvolvidos da tópica. 
Se Ferenczi concebe a transferência como a introjeção da 
pessoa do médico na economia subjetiva, já não se trata aqui 
dessa pessoa como suporte de uma compulsão repetitiva, de uma 
conduta inadaptada, ou como figura de uma fantasia. Ele entende 
com isso a absorção, na economia do sujeito, de tudo o que o 
psicanalista presentifica no duo como hic et nunc de uma 
problemática encarnada. Pois não chega esse autor ao extremo 
de articular que a conclusão da análise só pode ser atingida na 
declaração que o médico faz ao doente do abandono que ele 
mesmo está em vias de sofrer?15 
2. Será preciso pagar com esse preço em comicidade para que 
simplesmente se veja reconhecida a falta-a-ser do sujeito como 
o cerne da experiência analítica, como o campo mesmo em que 
se exibe a paixão do neurótico? 
Excetuado esse núcleo da escola húngara, de archotes hoje 
dispersos e logo transformados em cinzas, somente os ingleses, 
em sua fria objetividade, souberam articular a hiância que o 
neurótico atesta ao querer justificar sua existência, e, com isso, 
souberam implicitamente distinguir da relação inter-humana, de 
seu calor e seus engodos, a relação com o Outro onde o ser 
encontra seu status. 
Basta-nos citar Ella Sharpe e seus comentários pertinentes ao 
acompanhar as verdadeiras preocupações do neurótico [24]. A 
força deles encontra-se numa espécie de ingenuidade que se 
reflete nas asperezas, justificadamente célebres, de seu estilo de 
terapeuta e escritora. Não é um traço corriqueiro que ela chegue 
até mesmo à ostentação, na exigência que impõe de uma onis­
ciência ao analista para ler corretamente as intenções dos dis­
cursos do analisado. 
15. Retificação do texto na antepenúltima frase e na primeira linha do parágrafo 
seguinte ( 1966). 
620 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
Devemos reconhecer-lhe o mérito de colocar em primeiro 
lugar nas escolas do praticante uma cultura literária, mesmo que 
ela não pareça perceber que, na lista de leituras mínimas que 
lhes propõe, predominam as obras da imaginação em que o [614] 
significante do falo desempenha um papel central, sob um véu 
transparente. Isso apenas prova que a escolha é tão menos guiada 
pela experiência quanto é feliz a indicação de princípio. 
3. Autóctones ou não, foi ainda pelos ingleses que o fim da 
análise foi mais categoricamente definido através da identificação 
do sujeito com o analista. Certamente, varia a opinião quanto a 
ser de seu Eu ou de seu Supereu que se trata. Não se domina 
com tanta facilidade a estrutura que Freud destacou no sujeito, 
quando nela não se distingue o simbólico do imaginário e do 
real. 
Digamos apenas que não se forjam colocações tão apropriadas 
para chocar sem que alguma coisa pressione aqueles que as 
formulam. A dialética dos objetos fantasísticos promovida na 
prática por Melanie Klein tende a se traduzir, na teoria, em 
termos de identificação. 
É que esses objetos, parciais ou não, mas seguramente signi­
ficantes - o seio, o excremento, o falo -, o sujeito decerto os 
ganha ou os perde, é destruído por eles ou os preserva, mas, 
acima de tudo, ele é esses objetos, conforme o lugar em que 
eles funcionem em sua fantasia fundamental, e esse modo de 
identificação só faz mostrar a patologia da propensão a que é 
impelido o sujeito num mundo em que suas necessidades são 
reduzidas a valores de troca, só encontrando essa mesma pro­
pensão sua possibilidade radical pela mortificação que o signi­
ficante impõe à sua vida numerando-a. 
4. Ao que parece, o psicanalista, simplesmente para ajudar o 
sujeito, deveria estar a salvo dessa patologia, que, como vemos, 
não se insere em nada menos do que uma lei férrea. 
É justamente por isso que se imagina que o psicanalista deva 
ser um homem feliz. Não é a felicidade, aliás, que se vai 
pedir-lhe? E como lhe seria possível dá-la se não tivesse um 
pouco dela, diz o bom senso? 
É fato que não nos recusamos a prometer a felicidade, numa 
época em que a questão de sua medida se complicou: antes de 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 621 
mais nada porque a felicidade, como disse Saint-Just, tornou-se 
um fator da política. 
Sejamos justos: o progresso humanista, de Aristóteles a são [615] 
Francisco (de Sales), não satisfez as aporias da felicidade. 
Perde-se tempo, como sabemos, procurando a camisa de um 
homem feliz, e aquilo a que se chama uma sombra feliz deve 
ser evitado, pelos males que propaga. 
É realmente na relação com o ser que o analista tem de assumir 
seu nível operatório, e as chances que para esse fim lhe oferece 
a análise didática não devem ser calculadas apenas em função 
do problema supostamente já resolvido pelo analista que o guia 
nela. 
Há desventuras do ser que a prudência dos colégios e o falso 
pudor que garante as dominações não ousam suprimir deles 
mesmos. 
Cabe formular uma ética que integre as conquistas freudianas 
sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo 
do analista. 
5. A decadência que marca a especulação analítica, especialmente 
nessa ordem, não tem como não causar impacto, simplesmente 
ao sermos sensíveis à ressonância dos trabalhos antigos. 
De tanto compreender um monte de coisas, os analistas em 
geral imaginam que compreender é um fim em si e que só pode 
ser um happy end. O exemplo da ciência física, no entanto, pode 
mostrar-lhes que os mais grandiosos sucessos não implicam que 
se saiba aonde se está indo. 
Muitas vezes, mais vale não compreender para pensar, e é 
possível percorrer léguas compreendendo sem que disso resulte 
o menor pensamento. 
Foi justamente esse o ponto de partida dos behavioristas: 
renunciar a compreender. Mas, na falta de qualquer outro pen­
samento numa matéria - a nossa, que é a antiphysis -, eles 
tenderam a se servir, sem compreendê-lo, daquilo que compreen­
demos: ensejo, para nós, de um resgate de orgulho. 
Uma amostra do que somos capazes de produzir em matéria 
de moral é dada pela noção de oblatividade. Essa é uma fantasia 
de obsessivo, em si incompreendida: tudo para o outro, meu 
semelhante, é o que se profere, sem reconhecer nisso a angústia 
que o Outro (com maiúscula) inspira por não ser um semelhante. 
622 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
6. Não pretendemos ensinar aos psicanalistas o que é pensar. [616] 
Eles o sabem.Mas não é que o tenham compreendido por si. 
Aprenderam essa lição com os psicólogos. O pensamento é uma 
tentativa de ação, repetem eles gentilmente. (O próprio Freud 
cai nessa esparrela, o que não o impede de ser um pensador 
rigoroso e cuja ação se consuma no pensamento.) 
A bem da verdade, o pensamento dos analistas é uma ação 
que se desfaz. O que deixa uma certa esperança de que, se os 
fizermos pensar nisso, eles, ao retomá-la, acabem repensando-a. 
7. O analista é o homem a quem se fala e a quem se fala 
livremente. Está ali para isso. E o que isso quer dizer? 
Tudo o que se pode dizer sobre a associação de idéias não 
passa de um figurino psicologista. Os jogos de palavras induzidos 
já vão longe; aliás, a julgar por seu protocolo, nada é menos 
livre. 
O sujeito convidado a falar na análise não mostra naquilo que 
diz, para dizer a verdade, uma liberdade muito grande. Não que 
ele seja agrilhoado pelo rigor de suas associações: elas decerto 
o oprimem, mas é que, antes, desembocam numa fala livre, numa 
fala plena que lhe seria penosa. 
Nada é mais temível do que dizer algo que possa ser verda­
deiro. Pois logo se transformaria nisso, se o fosse, e Deus sabe 
o que acontece quando alguma coisa, por ser verdadeira, já não 
pode recair na dúvida. 
Será esse o procedimento da análise, um progresso da verdade? 
Já escuto os coxas-grossas a murmurarem sobre minhas análises 
intelectualistas, quando sou o primeiro, ao que eu saiba, a 
preservar nelas o indizível. 
Que seja para-além do discurso que se acomoda nossa escuta, 
sei disso melhor do que ninguém, quando simplesmente tomo o 
caminho de ouvir, e não de auscultar. Sim, isso mesmo, não de 
auscultar a resistência, a tensão, o opistótono, a palidez, a 
descarga de adrenalina (sic) em que se reconstituiria um Eu mais 
forte (resic): o que escuto é por ouvir. 16 
16. Entendement, no original, que tem a acepção de " forma discursiva do 
pensamento" , além de estar ligado ao verbo entendre (usado logo a seguir), que 
significa " ouvir" e também "entender, captar, reconhecer" etc. (N.E.) 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 623 
Ouvir não me força a compreender. O que ouço não deixa de 
ser um discurso, mesmo que tão pouco discursivo quanto uma 
interjeição. Pois uma interjeição é da ordem da linguagem, e 
não do grito expressivo. É uma parte do discurso que não cede 
a nenhuma outra no que tange aos efeitos de sintaxe numa língua 
determinada. 
Naquilo que ouço, sem dúvida, nada tenho a replicar, se nada [617] 
compreendo disso ou se, ao compreender algo, tenho certeza de 
estar enganado. Isso não me impediria de responder. É o que se 
faz, fora da análise, em casos similares. Eu me calo. Todos 
concordam em que frustro o falante, e ele em primeiríssimo 
lugar, assim como eu. Por quê? 
Se eu o frustro, é que ele me demanda alguma coisa. Que eu 
lhe responda, justamente. Mas ele sabe muito bem que isso 
seriam apenas palavras. Tais como as recebe de quem quiser. 
Ele nem tem certeza de que me seria grato pelas boas palavras, 
muito menos pelas ruins. Essas palavras não são o que ele me 
pede. Ele me pede... pelo fato de que fala: sua demanda é 
intransitiva, não implica nenhum objeto. 
É claro que sua demanda se manifesta no campo de uma 
demanda implícita, aquela pela qual ele está ali: de ser curado, 
de ser revelado a si mesmo, de ser levado a conhecer a psicanálise, 
de ser habilitado como analista. Mas essa demanda, ele sabe, 
pode esperar. Sua demanda atual nada tem a ver com isso, nem 
sequer é dele, pois, afinal, fui eu que lhe fiz a oferta de falar. 
(Somente o sujeito é transitivo aqui.) 
Consegui, em suma, aquilo que se gostaria, no campo do 
comércio comum, de poder realizar com a mesma facilidade: 
com a oferta, criei a demanda. 
8. Mas trata-se de uma demanda, por assim dizer, radical. 
Sem dúvida a sra. Macalpine tem razão em querer buscar na 
simples regra analítica o motor da transferência. Mas ainda assim 
ela se extravia, ao apontar na ausência de qualquer objeto a porta 
aberta para a regressão infantil [24]. Isso mais seria um obstáculo, 
pois todos sabem, e os psicanalistas de crianças em primeiro 
lugar, que é preciso um bocado de pequenos objetos para manter 
uma relação com a criança. 
Por intermédio da demanda, todo o passado se entreabre, até 
recônditos da primeira infância. Demandar: o sujeito nunca fez 
outra coisa, só pôde viver por isso, e nós entramos na seqüência. 
624 Escritos [Écrits[ - ]acques Lacan 
É por essa via que a regressão analítica pode se produzir e 
que de fato se apresenta. Fala-se dela como se o sujeito se 
pusesse a bancar a criança. Sem dúvida isso acontece, e essa 
momice não é do melhor augúrio. De qualquer modo, ela sai do 
que é comumente observado no que é tido por regressão. Pois [618] 
a regressão não mostra outra coisa senão o retorno, no presente, 
de significantes comuns, em demandas para as quais há uma 
prescrição. 
9. Voltanto ao ponto de partida, essa situação explica a transfe­
rência primária e o amor em que ela às vezes se declara. 
Pois, se o amor é dar o que não se tem, é verdade que o 
sujeito pode esperar que isso lhe seja dado, uma vez que o 
psicanalista nada mais tem a lhe dar. Mas nem mesmo esse nada 
ele lhe dá, e é bom que seja assim: e é por isso que se paga a 
ele por esse nada, e generosamente, de preferência, para deixar 
bem claro que, de outro modo, isso não valeria grande coisa. 
Mas, se na maioria das vezes a transferência primária man­
tém-se no estado de sombra, não é isso que impede essa sombra 
de sonhar e de reproduzir sua demanda, quando não há mais 
nada a demandar. Essa demanda, por ser vazia, será ainda mais 
pura. 
Observa-se que o analista, no entanto, dá sua presença, mas 
creio que a princípio ela é apenas a implicação de sua escuta, e 
que esta é apenas a condição da fala. Aliás, por que exigiria a 
técnica que ele a fizesse tão discreta, se assim não fosse? É mais 
tarde que sua presença se faz notar. 
Além do mais, o sentimento mais agudo de sua presença está 
ligado a um momento em que o sujeito só pode se calar, isto é, 
em que recua até mesmo ante a sombra da demanda. 
Assim, o analista é aquele que sustenta a demanda, não, como 
se costuma dizer, para frustrar o sujeito, mas para que reapareçam 
os significantes em que sua frustração está retida. 
10. Ora, convém lembrar que é na demanda mais antiga que se 
produz a identificação primária, aquela que se efetua pela oni­
potência materna, ou seja, a que não apenas torna dependente 
do aparelho significante a satisfação das necessidades, mas que 
as fragmenta, as filtra e as molda nos desfilamentos da estrutura 
do significante. 
A direção do tratamento e os princípios de seu poder- 1958 625 
As necessidades subordinam-se às mesmas condições conven­
cionais que são próprias do significante em seu duplo registro 
- sincrônico, de oposição entre elementos irredutíveis, e dia­
crônico, de substituição e combinação -, pelas quais a lingua-
gem, se certamente não preenche tudo, estrutura a totalidade da [6191 
relação inter-humana. 
Daí a oscilação que se observa nas colocações de Freud sobre 
as relações entre o Supereu e a realidade. O Supereu não é, 
evidentemente, a fonte da realidade, como ele diz em algum 
lugar, mas rastreia suas vias, antes de se encontrar no inconsciente 
as primeiras marcas ideais em que as tendências se constituem 
como recalcadas, na substituição das necessidades pelo signifi­
cante. 
1 1. Não há qualquer necessidade, portanto, de ir buscar mais 
longe a mola da identificação com o analista. Ela pode ser muito 
variada, mas será sempre uma identificação com significantes. 
À medida que se desenvolve uma análise, o analista lida 
alternadamente com todas as articulações da demanda do sujeito. 
Mas só deve, como diremos mais adiante, responder

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