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CAP. III DEMOCRACIA0001

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Carlos Eduardo SeU
Introdução à sociologia política
Política e sociedade na modernidade tardia
Ih EDITORA
Y VOZES
Petrópolis
III
Democracia
• ~ODELOS DE DEMOCRACiA
Uma das características fundamentais do atual estágio da modernidade é a
gitimidade da democracia como forma de organização política das sociedades
ntemporâneas. As experiências da primeira modernidade com o totalitarismo
ixaram como lição a importância da democracia como forma de organização
poder que garante a liberdade dos indivíduos. Mas, este consenso quanto ao
'alor" da democracia esconde por trás dele diferentes "concepções" de regimes
ocráticos. Por um lado, existem aqueles que defendem a adoção da democra-
eleitoral ou liberal e, de outro, autores e tendências que preconizam que o re-
e democrático representativo deve ser complementado por mecanismos dire-
de participação e deliberação. Os primeiros defendem a "extensão" da demo-
ia como forma superior de organização política para todos os Estados, en-
to os segundos advogam a "radicalização" da democracia liberal para for-
CIl
superiores ou qualitativamente diferentes e mais amplas de democracia. Para :~
. cutir criticamente estas diferentes posições, vamos começar caracterizando, 8..
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ponto de vista empírico, os diferentes modelos de democracia para, depois, re- '@)o
etir sobre as teorias da democracia. Õ'õo
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1. Democracia direta
Ao longo da história do Ocidente, o governo popular assumiu três modelos
damentais: a democracia direta, a democracia representativa e a democracia
icipativa. Neste primeiro tópico vamos perceber como a democracia pode ser ..J
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mpreendida e praticada em cada um destes modelos. &l
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É muito comum ouvirmos que a Grécia é o "berço da democracia". Mas a
ação é discutível, por duas razões. Em primeiro lugar, porque a democracia
temporânea não pode ser comparada à democracia dos gregos, razão pela qual
- deveríamos procurar suas raízes históricas para além do próprio mundo mo-
79
demo. Em segundo lugar, porque formas de democracia também podem ser loca-
lizadas de forma independente em diversos outros povos e momentos da história,
como em Roma, nas cidades-estado da Idade Média ou mesmo da Itália durante
o início da era moderna. Desta forma, não há como afirmar taxativamente que a
Grécia é, de fato, a única fonte da democracia ocidental. Contudo, embora as afir-
mações acima possam ser verdades do ponto de vista histórico, isto não anula o
fato de que a democracia praticada pelos atenienses aparece no pensamento mo-
derno e contemporâneo como um modelo do qual a democracia atual teria deri-
vado e diante da qual nossas formas de democracia costumam ser comparadas. O
que toma a democracia ateniense "exemplar" é principalmente o fato de que ela
seria uma forma de democracia "direta", na qual os cidadãos exercem o poder
sem intermediários ou representantes. É claro que isto também é alvo de contro-
vérsias I.Para determinadas visões, por estar baseada na escravidão, a democracia
grega não passava de um tipo de regime político das classes aristocráticas. Em par-
te, isto é verdade. Todavia, não se pode negar que, em relação aos outros povos
antigos, os gregos criaram uma forma bastante diferente de organizar o poder: o
governo popular. Por isso, neste debate, vamos assumir a posição de que a expe-
riência democrática da Grécia, ainda hoje, é fundamental para se compreender o
significado da democracia.
Sabemos que a Grécia (chamada de Hélade) teve suas origens no século VIII
a.c. Apesar da unidade cultural do mundo grego (falava-se a mesma língua e cul-
<'3 tuavam-se deuses comuns), cada cidade tinha sua independência. Os gregos cha-
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:-2 mavam suas cidades de "pólis" e a sua autonomia política era chamada de "au-
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c, tarquia" (poder próprio ou autonomia). Este fator foi fundamental para a idéia e a
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.~ experiência de democracia, pois cada cidade tinha independência para organizar-
e'ü se da forma que quisesse.
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Com base nesta autonomia, é na principal cidade do mundo grego, Atenas,
que a democracia alcançou seu maior desenvolvimento. Primeiro, Atenas foi go-
vernada por reis (chamados de basileus), depois por nove arcontes, e finalmente,
no século IV a.c., adotou o regime democrático. As reformas legais que introdu-
ziram a democracia em Atenas são atribuídas pelos historiadores aos governos
de Sólon (594-593 a.C.} e Clístenes (508-507 a.C.). Estes governantes podem ser
considerados os "pais fundadores" da democracia, pois introduziram na cidade
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= 1..Interessante estudo a respeito da democracia grega pode ser encontrado na obra de FINLEY, Moses.
Democracia: antiga e moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1981. Veja-se também o estudo de DAHL, Ro-
berto. Sobre a democracia. Brasília: UnB, 2001.
de Atenas uma série de mecanismos institucionais pelos quais o povo passou a
exercer, diretamente, o poder político. De acordo com o estudo de Finley, os prin-
cipais institutos de democracia grega são os seguintes:
a) Eclesia: que em grego chama-se "assembléia". Era convocada 40 vezes
por ano e era realizada nas praças públicas (chamadas de ágoras). Todos os
indivíduos maiores de 18 anos, do sexo masculino, podiam e deviam partici-
par das deliberações da assembléia.
b) lsegoria: para garantir a participação de todos existia o direito de "isego-
ria", ou seja, o direito de falar na praça (ágora). Todos tinham o direito de se
inscrever e falar nos debates. Só depois as questões eram votadas, ou se che-
gava a um consenso.
c) Conselho dos 500: que, em grego, chama-se Bulé. Clístenes dividiu a cidade
de Atenas em dez tribos. Cada tribo elegia 50 membros para fazer parte do con-
selho dos quinhentos. Cabia ao conselho implantar as decisões da assembléia.
O conselho, por sua vez, era organizado conforme algumas tarefas, especial-
mente os 9 arcontes (poder executivo) e 10 estrategos (cargos militares). É inte-
ressante observar ainda que todos os cargos eram escolhidos mediante sorteio.
d) Ostracismo: quando algum indivíduo fosse considerado perigoso para a
sobrevivência da democracia, seu nome podia ser denunciado mediante a sua e<:!
inscrição em uma ostra. Considerado culpado, seria banido (daí a designação ~E
de "ostracismo").
A importância da democracia, para os gregos, pode ser constatada em um dos
mais belos textos deste período: o discurso de Péricles diante dos mortos da Guer-
ra do Peloponeso. Neste texto, Péricles deixa muito claro o valor da democracia
entre os helenos:
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'50
Porém, muito mais do que estes mecanismos institucionais, a principal con- o
.9
tribuição dada pelos gregos à história da política ocidental é a clara distinção que g
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os mesmos introduzem entre a esfera privada (reservada para as mulheres e os .~
escravos) e a esfera pública (ou esfera da política), reservada para as atividades Ig.
"dos cidadãos. Para os gregos, a política se exerce na esfera pública (coletiva), e g
não é uma expressão do poder privado. É esta noção que dá suporte ao conceito .s
de "política" formulado pelos gregos e que distingue este conceito de política da ....l
sua versão em outros povos. ~
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Os que participam do governo da cidade (de Atenas) mantêm -c
as suas ocupações privadas, e os que se dedicam às suas ativi-
dades profissionais podem manter-se perfeitamente a par das
questões públicas. Nós somos, de fato, os únicos a pensar que
aquele que não se ocupa da política merece ser considerado
não como um cidadão tranqüilo, mas como um cidadão inú-
til. Intervimos todos, pessoalmente, no governo da pólis, quer
pelo nosso voto, quer pela apresentação de propostas. Pois não
somos dos que pensam que palavras prejudicam a ação. Pensa-
mos, ao contrário, que é perigoso passar aos
atos antes que a dis-
cussão nos tenha esclarecido sobre o que se deve fazer.
Mas, além dos elogios, a democracia também tinha os seus críticos. E foi es-
pecialmente no âmbito da filosofia que a democracia grega passou a ser analisada
e vários dos seus limites foram apontados. Entre as contribuições destes inte-
lectuais, podemos encontrar uma classificação das formas de governo que exer-
ceu uma longa influência ao longo da história'. De acordo com Platão, existiriam
seis formas de governo que estariam assim distribuídas: duas só existem de forma
ideal e quatro no mundo real. A teoria de Platão pode ser melhor compreendida
com o quadro abaixo:
Teoria das formas de governo de Pia tão
Governo Significado Localização
Monarquia Governo de um só Perfeita (mundo ideal)
Aristocracia Governo dos melhores Perfeita (mundo ideal)
Timocracia Governo dos militares Imperfeita (mundo real)
Oligarquia Governo de poucos Imperfeita (mundo real)
Democracia Governo do povo Imperfeita (mundo real)
Tirania Governo do forte Imperfeita (mundo real)
Mas é a classificação de Aristóteles que, além de exercer maior influência,
melhor nos ajuda a esclarecer o significado da democracia, comparando-a com
outros regimes de governo. Para Aristóteles, levando-se em consideração dois
critérios, o número de governantes (se eram um, poucos ou o povo) e ainda o modo
como o poder é exercido (se para o bem público ou para o interesse privado), po-
diam ser encontradas seis formas de governo. Vejamos seu esquema:
2. Uma acurada análise encontra-se na obra de BOBBI0, Norberto. A teoria das formas de governo.
9. ed. Brasília: UnB, 1997.
Teoria das formas de governo de Aristóteles
Formas perfeitas
GOVERNO ETIMOLOGIA SIGNIFICADO
Monarquia Mónos=um Governo de WIl só
Arqué = governo
Aristocracia Aristoi = melhores Governo dos melhores
Krátos = governo
Democracia Démos= povo Governo do povo
Krátos = governo
Formas corrompidas
GOVERNO ETIMOLOGIA SIGNIFICADO
Tirania Mónos=um Governo mau de um só
Arqué = governo
Oligarquia Oligoi = poucos Governo de poucos
Arqué = governo
Democracia Démos= povo Governo mau do povo
Krátos = governo
Quando Platão e Aristóteles fizeram a análise da "pólis", ela já estava entran- ro
odo em decadência. Enfraquecida por guerras internas (Guerra do Peloponeso), a :-e
õHélade foi conquistada pela Macedônia, em 350 antes de Cristo. Mais tarde todos o,
ro
estes domínios irão passar para o Império Romano. Todavia, no plano do pensa- .~
mento, a idéia de democracia ficou e passou a ser desenvolvida sob o conceito de ]
o
"soberania popular", especialmente no pensamento jurídico romano e no pensa- .~
mento teológico medieval. De acordo com Bobbi03: ,Zil
o-.g
15s::-
Os juristas meclievais elaboraram a teoria da soberania popular,
partindo de algumas conhecidas passagens do Digesto, tiradas
especialmente de Ulpiano (Democracia, I, 4,1), onde [ ] se diz
que o príncipe tem autoridade porque o povo lha deu [ ] e o de :J
~
Juliano (Democracia, I, I, 32), onde, a propósito do costume, rno
como fonte de direito, se diz que o povo cria o direito não ape- ~
nas através do voto, dando vida às leis, mas também rebus ipsis :J
oetfactis, dando vida aos costumes.
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3. BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1995, p. 321.
Para Bobbio, além da distinção entre a titularidade do poder (que pertence ao
povo) e o seu exercício (que pertence aos governantes), esta passagem afirma
ainda o direito do povo de criar direito (exercer o poder) através do costume. A
mesma distinção é afirmada ainda no final da Idade Média por Marsílio de Pádua,
ao propor que o direito de fazer leis pertence ao povo. Estas noções serão funda-
mentais para a re-elaboração do conceito de democracia no mundo moderno.
1.2. Democracia representativa
Durante a era moderna, a idéia e a prática da democracia passam a ganhar no-
vas configurações. O surgimento do aparelho estatal moderno ao longo de sécu-
los de mutação política, bem como os principais eventos políticos deste período,
como a Revolução Inglesa (1688), a independência dos Estados Unidos (1776) e
também a Revolução Francesa (1789) consolidaram um novo entendimento da
democracia: o governo representativo. Ou seja, diante da complexidade das insti-
tuições políticas foi necessário substitui a participação direta no poder político
pelo princípio da representação do poder. É neste contexto que surge a noção de
"democracia representativa" ou ainda "democracia indireta".
Para Norberto Bobbio, "a expressão 'democracia representativa' significa
genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem
respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela
fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade. Ponto e basta?". Como
o::
:~ seu deu esta transição? De que forma se caminhou da democracia direta (onde to-
8. dos decidem as questões coletivas) para a democracia indireta ou representativa
'51 (onde as decisões são tomadas por governantes eleitos)? Esta é a questão que te-
o
õ mos de esclarecer doravante.
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1.2.1. Teoria da representação
A principal matriz teórica que orientou quase toda reflexão política da idade
moderna foi a "teoria do contrato social". Refletindo a nova realidade social no
qual estavam imersos, os pensadores modernos romperam com as premissas do-<
ü pensamento clássico que partia do princípio de que a sociedade era uma realidade
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4. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986.
84
superior ao indivíduos e o tomaram como o ponto de partida de suas reflexões. A
idéia que será fundamental para a teoria democrática é a tese da transferência ou
ainda da "representação" do poder. Apesar da teoria do contrato social ter em vis-
ta muito mais a legitimação de uma situação de fato (a existência do Estado)
a partir de uma explicação racional, a tese da representação permitiu repensar a
nova realidade criada pelo surgimento do aparelho estatal. A ligação entre os go-
vernantes e os governados (ou entre Estado e cidadãos) podia ser pensada, dora-
vante, em termos de "representação".
Mas, afinal, o que é a representação? Apesar da variedade de definições so-
bre o tema, podemos recorrer novamente a Bobbio para definir o termo. Para o
pensador italiano "o sentido da representação política está, portanto, na possibili-
dade de controlar o poder político atribuída a quem não pode exercer pessoal-
mente o poder'". De acordo com as definições de Bobbio, para entender o sentido
da palavra representação precisamos compreender duas coisas: 1°) como se dá a
relação entre representante e representado; 2°) o que está sendo representado.
Sobre a relação entre o representante e o representado, Bobbio esclarece que
nas atuais democracias contemporâneas pode-se falar em dois tipos fundamen-
tais de relação que são:
b) Representação como relação de confiança (mandato fiduciário): neste mo-
delo o representante possui maior autonomia e supõe que a única orientação
para sua ação seja o interesse dos representados tal como ele é percebido pelo
próprio representante.
a) Representação como relação de delegação (mandato imperativo): o repre-
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sentante é concebido como um executor privado de iniciativa e autonomia. :B
Seu papel é apenas como o de um embaixador: executar a vontade popular. 8..
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"Og..sPara entender o sentido da representação, prossegue Bobbio, também é preci-
so considerar "o que" está sendo representado. Segundo o autor "A pode repre-
sentar B no que se refere aos seus interesses gerais de cidadão ou no que se refe-
j
re aos seus interesses particulares, por exemplo, de operário, de comerciante, de 83
profissional
liberal, etc:" Para resumir, levando-se em consideração "como" se o
~
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5. Uma excelente reflexão entre os modelos clássico e moderno de teoria política acha-se em
BOBBIO, Norberto & BOVERO, Michelangeio. Sociedade e Estado na filosofia política moderna.
4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 34-48.
6. BOBEIO, op. cit., 1995, p. 1101.
7. BOBEIO, op. cit. 1996, p. 46.
dá a relação entre representante e representado e "o que" está sendo representado,
temos duas concepções de representação: mandato imperativo e o mandato fidu-
ciário. É o que explica o esquema abaixo:
Teoria da representação
Mandato Imperativo Mandato fiduciário
"COMO" Mero embaixador Autonomia
"O QUE" Interesses particulares Interesses gerais
Atualmente, qual é a concepção de representação que predomina em nossos
sistemas políticos? Que tipo de relação existe entre o representante e o represen-
tado nas democracias contemporâneas? Segundo Bobbio:
as democracias representativas que conhecemos são democra-
cias nas quais por representantes entende-se uma pessoa que
tem duas características bem estabelecidas: a) na medida em
que goza da confiança do corpo eleitoral, uma vez eleito não é
mais responsável perante os próprios eleitores e seu mandato,
portanto, não é revogável; b) não é responsável diretamente
perante os seus eleitores exatamente porque convocado a tute-
lar os interesses gerais da sociedade civil e não os interesses
desta ou daquela categoria".
<1:1:€ Estes são os fundamentos da teoria da representação política. Nela o repre-
8.. sentante é eleito para representar os interesses coletivos (interesse geral e não in-
CI3
'§> teresses privados), agindo com autonomia diante dos representantes (mandato fi-
:§ duciário e não mandato imperativo)".
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1<1:1o-.g
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Embora seja essencial para a institucionalização da idéia moderna de demo-
cracia, a noção de representação, enquanto conceito teórico, não foi o único fator
concorrente para o surgimento dos regimes democráticos atuais. Para isso, opera-
ram também uma série de eventos históricos que tomaram "concreta" a idéia da
representação do poder. Os principais instrumentos responsáveis pela tradução
•.....••.....•.....
8. Idem,p. 36.
9. Apesar de termos utilizado a noção de representação defendida por Bobbio, o leitor não pode deixar
de conferir o clássico texto de PITKIN, Hanna. The concept of representation. Berkeley: Califórnia
Press, 1967. Outros textos que discutem o assunto são MANIN, Bernard. The principies ofrepresen-
tative government. Cambridge: Cambridge University Press, 1997; SARTORl, Giovanni. A teoria da
representação no Estado representativo moderno. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 22, 1962.
86
da idéia de representação em práticas efetivas da vida política são analisados no
tópico seguinte.
1.2.2. Mecanismos de representação
Até o momento fizemos a análise da democracia representativa em seus pres-
supostos teóricos. Cabe-nos agora demonstrar as mediações legais e institucionais
pelas quais o princípio da representação política foi institucionalizado nas moder-
nas sociedades ocidentais. Ou seja, trata-se de analisar o sistema representativo 10.
De acordo com Giovanni Sartori 11, o desenvolvimento político da Europa
compreende essencialmente dois processos principais. Se a Revolução Inglesa
(1668) tomou o rei e seu gabinete responsáveis perante o parlamento, o século
XIX viu surgir a constante expansão do sufrágio eleitoral, que toma o parlamento
responsável diante da sociedade. Neste percurso, a origem dos partidos políticos
(inicialmente facções parlamentares) e seu progressivo processo de inserção so-
cial (concomitante com a extensão do voto), fizeram deste organismo um dos prin-
cipais atores do cenário político da democracia representativa.
A partir desta evolução histórica, o principal mecanismo pelo qual os gover-
nantes se tomaram responsáveis diante da sociedade é o sufrágio eleitoral, ou o
voto, realizado através das eleições. De acordo com Lima Júnior o voto ou "o su- ro
frágio universal e a igualdade perante a lei são os princípios estruturantes do sis- ª
tema eleitoral democrático: um homem, um voto, um valor, constitui assim a ex- 8..
ro
pressão síntese e, simultaneamente, o teste efetivo da soberania popular't". To- '§>
davia, embora o voto (ou sufrágio eleitoral) seja o elemento determinante das de- ]
o
mocracias representativas, isto não significa que todas sejam iguais. Pelo contrá- .::;
rio, no processo de institucionalização da democracia, os Estados ocidentais cria- .&
ram sistemas políticos bastante diferenciados. Existem vários estudos empíricos .g
que procuram dar conta das diferentes características das modernas democracias ~
ocidentais. Arend Lijphart, por exemplo, levando em conta as características ins-
titucionais dos sistemas políticos contemporâneos, propõe classificar as demo- ::l~
cracias modernas em dois modelos distintos: o modelo majoritário (ou de West- ~
~~o
10. Sobre o sistema de representação, veja-se também MANTN,Bernard. As metamorfoses do governo
representativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 29, 1999. .
11. SARTORI, Giovanni. Partidos e sistemas partidários. Brasília: UnB, 1992.
12. LIMA JÚNlOR, Olavo Brasil. Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade..
Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 84.
minster) e o modelo consociativo (ou consensual). O quadro a seguir ilustra as
características dos diferentes modelos de democracia representativa construídos
pelo autor':':
Modelos de democracia representativa
Modelo majoritário Modelo consociativo
Governos uni partidários e de maioria Partilha do poder executivo por meio de
gabinetes de ampla coalizão
Gabinete dominante em relação à Equilíbrio de poder entre executivo e
legislatura legislativo
Sistema bipartidário Sistema multipartidário
Sistema eleitoral majoritário e Sistema eleitoral de representação
desproporcional proporcional
Pluralismo de grupos de interesse Corporativismo dos grupos de interesse
Governo Unitário/Centralizado Governo Federal e
Descentralizado
Legislatura unicameral Legislativo bicameral e assimétrico
Flexibilidade constitucional Rigidez constitucional
(Constituições rígidas) (Constituições modificáveis)
Ausência de revisão judicial Revisão judicial pela suprema corte
Banco central controlado pelo executivo Banco central independente
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~ Embora Arend Lijphart tenha construído seu modelo com base em dez carac-
.~ terísticas institucionais, dentre elas três elementos nos parecem ser os elementos-
o
'ü chave da configuração das atuais democracias representativas. São eles: 1) o sis-
o
.~ tema eleitoral; 2) o sistema partidário; 3) o sistema de governo.
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8c-
A principal razão para nossa escolha reside no fato de que por trás destes três
sistemas podemos localizar facilmente os três atores políticos fundamentais das
democracias contemporâneas: o cidadão-eleitor (sistema eleitoral), os candidatos
(sistema partidário) e os governos eleitos (sistema de governo). Assim, enquanto o
comportamento dos eleitores é mediado pelo sistema eleitoral, a ação dos candida-
tos e do próprio governo é condicionada pelas regras dos sistemas partidários e do
sistema de governo. Por esta razão, a análise destes diferentes elementos dos siste-
13. LUPHART, Arend. Modelos de democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
mas políticos dos Estados modernos será fundamental para nossa tentativa de en-
tender os mecanismos responsáveis pela institucionalização da democracia repre-
sentativa e, ainda, pelas suas diferentes características nos países contemporâneos.
1.2.2.1. Sistema eleitoral
Apesar da variedade de sistemas eleitorais concretos, as democracias con-
temporâneas adotam, fundamentalmente,
dois princípios distintos de representa-
ção: a representação majoritária e a representação proporcional. Nos sistemas
eleitorais de representação majoritária elegem-se os candidatos que obtiveram a
maioria dos votos, enquanto nos sistemas eleitorais de representação proporcio-
nal as cadeiras são distribuídas proporcionalmente à votação dos partidos.
Embora, teoricamente, estes diferentes princípios de representação possam
ser apresentados de forma "pura", na prática, eles estão associados a outros ele-
mentos da legislação eleitoral, dando origem aos mais diversos sistemas eleito-
rais. Tavares, por exemplo, em excelente obra dedicada ao assunto!", identifica
14 sistemas exclusivamente majoritários, 22 sistemas proporcionais e 4 tipos de
sistemas mistos, chegando a um total de 38 tipos de sistemas eleitorais.
Na verdade, o que acontece efetivamente é que cada um dos sistemas eleito-
rais mencionados prioriza uma destas funções: representar os cidadãos ou formar ro
os governos. Enquanto o sistema proporcional, por exemplo, tem como objetivo :~
central reproduzir no parlamento as escolhas eleitorais dos eleitores em relação 2-
ro
aos partidos; "associam-se à representação majoritária méritos tais como formar '§l
governo capaz de tomar decisões rápidas e ser indutor de estabilidade política':". ·3
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1.2.2.2. Sistema partidário
Um segundo elemento fundamental das democracias representativas é o sis-
tema de partidos. Os partidos políticos podem ser definidos como "elos" entre a
sociedade e o Estado. Ou seja, se, de um lado, eles cumprem a função de agregar e .....l
.....l
representar os interesses da sociedade, por outro, eles também têm o objetivo ex- iIS
plícito de conquistar e exercer o poder de governo. 8~
-c
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cn
14. TAVARES, José Antonio Giusti. Sistemas eleitorais nas democracias contemporâneas: teoria,
instituições, estratégia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. Veja também NTCOLAU, Jairo Marco-
ni. Sistemas eleitorais: uma introdução. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
15. LIMA JÚNIOR, op. cit., p. 67.
É comum encontrarmos nos manuais de teoria política a célebre divisão dos
sistemas partidários em sistemas de partido único, sistemas bipartidários e siste-
mas multipartidários. No entanto, como a mera contagem do número de partidos
é insuficiente para compreender suas características, Sartori 16 propõe duas variá-
veis para a classificação dos sistemas partidários: o número de partidos relevan-
tes e suas ideologias. Com base nestes critérios, ele distingue entre sistemas de
partidos de Estado (não-competitivos) e sistemas pluralistas (competitivos), apre-
sentando sete tipos de configurações partidárias:
Sistemas partidários
CRITÉRIOS TIPOS DE SISTEMAS NÚMERO
SISTEMAS 1)Partido Único SISTEMAS
NÃO-COMPETITIVOS 2) Partido Hegemônico UNIPARTIDÁRIOS(Partidos de Estado)
SISTEMAS 3) Partido Predominante
COMPETITIVOS 4) Dois partidos SISTEMAS
BIPARTIDÁRIOS
5) Multipartidarismo SISTEMAS
limitado MULTIPARTIDÁRIOS
6) Multipartidarismo
extremado
7) Multipartidarismo
atomizado03
:~
õo-
.5h Atualmente, há uma larga discussão sobre a crise, a validade e os limites dos
o
õ partidos para a democracia. Apesar das polêmicas o fato é que, como diz Bobbio,·u
Sl "no jogo político democrático [...] os atores principais estão dados, e são os parti-
·03
o dos políticosv'" .•03
o-.g
g
s::•..... 1.2.2.3. Sistema de governo
Finalmente, uma terceira variável fundamental dos sistemas políticos con-<:
ü temporâneos é o seu "sistema de governo". A discussão sobre este tema se tomou
~ bastante forte no Brasil por ocasião do plebiscito de abril de 1993, no qual a popu-o:2
c
16. SAR TORl, 1982.
17. BOBBIO, op. cit., 1986, p. 68.
lação brasileira pôde acompanhar o debate sobre os méritos e limites entre o siste-
ma parlamentarista e o sistema presidencialista e, fmalmente, manifestar sua pre-
ferência sobre um deles".
De acordo com Sartori 19 "um sistema político só é presidencialista se o che-
fe de Estado (o presidente): (i) é escolhido em eleição popular; (ii) durante o seu
mandato não pode ser demitido por votação parlamentar e; (iii) chefia ou de algu-
ma forma dirige os governos que nomeia".
Em oposição, o sistema parlamentarista é definido por Sartori da seguinte
forma:
os sistemas parlamentaristas devem seu nome ao princípio fun-
damental que os orienta: o parlamento é soberano. Assim, eles
não permitem a separação de poderes entre o parlamento e o
governo: esses dois braços do Estado baseiam-se na partilha
do poder entre Legislativo e Executivo. O que equivale dizer que
todos os sistemas que chamamos de parlamentaristas reque-
rem que os governos sejam nomeados, apoiados e, se necessá-
rio, demitidos por votação parlamentar'".
Sartori reconhece também a existência de sistemas de governo mistos, que
ele denomina de "semipresidencialistas". Este sistema tem as seguintes caracte-
rísticas: 03:~
oc,
03
'õo
o
õ
b) o chefe de Estado compartilha o poder executivo com um primeiro-minis- 'g
Vl
tro, em uma estrutura dupla de autoridade com os três seguintes critérios de .~
'03definição: g-
-o
g
\:-
a) o chefe de Estado (presidente) é eleito por votação popular - de forma dire-
ta ou indireta - com um mandato determinado;
b. l ) embora independente do parlamento, o presidente não tem o direito de
governar sozinho ou diretamente, e, portanto, sua vontade deve ser canaliza-
da e processada por seu governo;
18. Alguns textos deste período que se inserem neste debate são: RODRlGUES, Leôncio (org.) et alii.
Em defesa do presidencialismo. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1993; BOlTO JR., Armando. Par-
lamentarismo e presidencialismo: a teoria e a situação brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
19. SARTORl, Giovanni. Engenharia constitucional: como mudam as constituições. Brasília: UnB,
1996, p. 99.
20. Idem, p. 115.
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92
b.2) inversamente, o primeiro-ministro e seu gabinete independem do presi-
dente, na medida em que dependem do parlamento; estão sujeitos à confiança
e/ou à não confiança parlamentar, pelo que precisam do apoio da maioria do
parlamento;
b.3) a estrutura dupla de autoridade do semipresidencialismo permite diferen-
tes equilíbrios e a oscilação de prevalências do poder dentro do Executivo, es-
tritamente sob a condição de que subsista a "autonomia potencial" de cada com-
ponente do Executivo'" (1996, p. 147).
Arend Lijpharr", por sua vez, propõe uma definição mais simples, baseada
em três características. Assim, temos:
a) Parlamentarismo
• Características do chefe de governo: normalmente chamado de primei-
ro-ministro, este e seu gabinete são responsáveis perante o parlamento. Ou seja,
eles podem ser demitidos por um voto de desconfiança ou de censura do par-
lamento.
• Processo de seleção: o primeiro-ministro é selecionado pelo parlamento.
Existem vários tipos de procedimento: negociação entre os partidos, indica-
ção do rei ou chefe de Estado, etc.
• Tipos de executivos: no sistema parlamentarista os ministros formam um
gabinete, ou seja, um sistema executivo coletivo ou colegiado.
b) Presidencialismo
• Características do chefe de governo: chamado de presidente, é eleito por
um período determinado pela constituição e não pode ser afastado por voto de
desconfiança ou censura (como no parlamentarismo).
• Processo de seleção: o presidente é eleito pelo voto popular, seja de forma
direta (como no Brasil) ou mesmo indireta (como no caso do colégio dos de-
legados nos Estados Unidos da América).
• Tipos de executivos: os ministros são meros subordinados e assessores do
chefe de governo (presidente) e não formam um colegiado. As decisões são
21. Idem, p. 147.
22. LIJPHART, op. cit, p. 142-143.
tomadas pelo próprio presidente, ouvindo ou não a opinião do gabinete (dos
ministros) .
1.3.
Democracia participativa
Por democracia participativa podemos entender um conjunto de experiências
e mecanismos que tem como finalidade estimular a participação direta dos cida-
dãos na vida política através de canais de discussão e decisão. A democracia par-
ticipativa preserva a realidade do Estado (e a democracia representativa). Toda-
via, ela busca superar a dicotomia entre representantes e representados recupe-
rando o velho ideal da democracia grega: a participação ativa e efetiva dos cida-
dãos na vida pública.
Porém, de que forma, nas condições complexas da sociedade moderna, e do
próprio Estado, voltar a introduzir mecanismos possíveis de democracia direta?
o plano da teoria, as possibilidades parecem muito céticas. Norberto Bobbio,
por exemplo, afirma que "se por democracia direta se entende literalmente a par-
ticipação de todos os cidadãos em todas as decisões a ela pertinentes, a proposta é
insensata. Que todos decidam sobre tudo em sociedades sempre mais comple-
xas como são as modernas sociedades industriais é algo materialmente impossí-
vel,,23.Todavia, é no plano da prática que parecem estar surgindo novas respostas
para este desafio. Vejamos que novas práticas são estas.
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ro'@)
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]Para que a democracia participativa seja possível é preciso que sejam criados o
o
canais de participação que são os instrumentos pelos quais os cidadãos podem .~
oexercer ativamente sua cidadania política. Na literatura sociológica, estes ca- '~
::s
nais de participação estão sendo chamados de "esfera pública não-estatal" ou ainda "8
implesmente "esfera pública'r'". Conforme explica Vieira, este conceito pode ser {§
entendido da seguinte forma:
1.3.1. Esfera pública
:JA existência de espaços públicos independentes das insti- w
CIl
tuições do governo, do sistema partidário e das estruturas do o
~<:::lo23. BOBBI0, op. cit., 1986, p. 42. UJ
24. O tema da esfera pública é abordado, no Brasil, especialmente nos textos de COSIA, Sérgio. Esfe-
ra pública, redescoberta da sociedade civil e movimentos sociais no Brasil: uma abordagem tentativa.
. 'ovos Estudos, n. 38, 1995, p. 38-52; A democracia e a dinâmica da esfera pública. Lua Nova, n. 36
p. 55-65, 1995; Contextos da construção do espaço público no Brasil. Lua Nova, n. 47, 1997
p. 179-192.'
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93
Estado é condição necessária da democracia contemporânea.
Como intermediações entre o nível do poder político e as redes
da vida cotidiana, esses espaços públicos requerem simultanea-
mente os mecanismos de representação e de participação. [...].
Os espaços públicos são pontos de conexão entre as institui-
ções políticas e as demandas coletivas, entre as funções do go-
verno e a representação dos conflitos'".
A importância da esfera pública para a democracia participativa pode ser en-
tendida de duas formas. Para alguns, a esfera pública seria um espaço de partilha
de poder entre o Estado e a sociedade. Para esta versão, através da chamada esfera
pública não estatal, os indivíduos organizados e os atores da sociedade civil po-
dem tomar decisões políticas em parceria com o Estado. Para uma segunda ver-
tente, todavia, a importância da esfera pública reside no fato de que ela é um espa-
ço de organização da sociedade civil. Esta segunda concepção dá mais ênfase ao
fato de que a esfera pública é um espaço de discussão e de diálogo no qual indiví-
duos e grupos debatem seus problemas e formam os conceitos e os consensos que
vão nortear as decisões políticas. Estas duas concepções podem ser distinguidas
da seguinte maneira:
Esfera Pública
Esfera Pública Institucional Esfera Pública Informal
Definição Canais de mediação entre Estado Canais de articulação entre os
e Sociedade Civil atores da sociedade civil
Instituições Conselhos Gestores de Políticas Fóruns/Assembléias/Reuniões
Públicas e Orçamento
Participativo
Dinâmica Participação/Decisão Diálogo/Consenso
1.3.1.1. Esfera pública institucional
so
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De acordo com vários analistas, o fundamental na construção da democra-
cia participativa é a construção de espaços junto ao Estado abertos à participa-
ção efetiva dos cidadãos e da sociedade civil. No Brasil, ao longo dos anos 80 e
90, uma série de alternativas institucionais vêm sendo criadas para viabilizar
esta participação.
25.VIETRA,Liszt.Cidadania e globalização. 2. ed. Rio de Janeiro:Record, 1998,p. 65.
94
A primeira destas iniciativas são os chamados conselhos gestores de polí-
ticas públicas. A prática de formar conselhos para a participação dos cidadãos é
antiga e pode ser encontrada na Revolução Francesa e até na Revolução Russa
com seus famosos sovietes. No Brasil, os conselhos começaram a ser implanta-
dos especialmente no final da década de 80 para permitir que os atores da socie-
dade civil participassem da discussão e da definição das políticas estatais. Atual-
mente, existem no Brasil inúmeros conselhos tanto em nível federal quanto esta-
dual e municipal. De forma geral, estes conselhos são formados por representan-
tes do próprio governo e por representantes da comunidade. Muitos são regula-
dos e previstos em lei, como os Conselhos de Trabalho e Emprego, Conselhos da
Criança e Adolescentes e outros. Além disso, diferentes tipos de verbas públicas
somente podem ser destinadas a órgãos estatais onde haja o funcionamento de um
conselho, como no caso da saúde, por exemplo",
A importância dos conselhos é que eles garantem a participação da socieda-
de na tomada de decisões, na fiscalização das políticas públicas e na discussão
dos problemas. Por esta razão, os conselhos são um dos principais mecanismos
de alargamento da esfera pública não-estatal e um dos principais veículos de uma
prática participativa de democracia, na qual o governo partilha o seu poder com
a sociedade.
Entretanto, a experiência mais inovadora em termos de democracia participa- :~
tiva no Brasil é o orçamento participativo. Em linhas gerais, no orçamento par- o
o-
ticipativo a população de uma cidade é chamada para discutir a aplicação dos re- ~
'5b
cursos públicos destinada para investimento no município. Na cidade onde a ex- B
o
periência mostrou maior sucesso (Porto Alegre/RS), esta é dividida em várias re- 'g
'"giões, que discutem em plenárias quais as suas prioridades e principais proble- -ee
o
mas. Depois, as propostas são encaminhadas ao Conselho do Orçamento Partici- '~
pativo, onde é votada a proposta final. Só então a proposta é enviada para a apro- ]
t::•....•
...l
26. Excelente definição e discussão sobre os conselhos encontram-se em: TATAGIBA, Luciana. Os ül
conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil. ln DAGNINO, Evelina (org.). ~
ociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 47 - J 04. Outros estu- ~
dos são os trabalhos de FUKS, Mario de PERISSfNOTO, Renato & SOUZA, Nelson Rosário (orgs.). -c:JDemocracia e participação: conselhos gestores do Paraná. Curitiba: UFPR, 2004; FUKS, Mario & Cl
UJPERISSINOTO, Renato. Recursos, decisão e poder: conselhos gestores de políticas públicas de Curiti- Vl
ba. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 60,2006, p. 67-81; LAVALLE, Adrián Gurza; HOUT - g
ZAGER, Peter & CASTELLO, Graziela. Representação política e organizações civis: novas instân- ~
cias de mediação e os desafios da legitimidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 60,2006
p. 44-66. Um dos trabalhos pioneiros é o de RAICHELIS, Raquel. Esfera pública e conselhos de as-
sistência social: caminhos da construção democrática. São Paulo: Cortez, 1998.
95
1.3.1.2. Esfera pública informal: fóruns
vação da Câmara dos Vereadores. Finalmente, as obras são realizadas em cada
região, conforme a decisão soberana dos cidadãos".
A experiência dos conselhos e do orçamento participativo funciona como
ponte que faz a ligação e a conexão entre o Estado e a sociedade civil, proporcio-
nando aos indivíduos e atores coletivos um espaço para a prática da cidadania ati-
va e a participação efetiva nas decisões".
Fórum, segundo o Aurélio, era a "praça pública, na Roma Antiga", o lugar em
que os cidadãos discutiam a política do Estado. Fórum é antes de tudo um espaço
de debates, de reunião para um mesmo fim. Os que se reúnem têm interesses co-
muns que são tratados com uma certa informal idade e flexibilidade.
Atualmente, as iniciativas da sociedade civil no sentido de se reunirem para
debater e propor soluções para os problemas sociais recebem o nome de fóruns.
Um exemplo disto foi o Fórum Brasileiro de ONGs eMovimentos Sociais para o
Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que se reuniu no Rio de Janeiro, em 1992,
ao lado da Conferência Mundial da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvi-
mento. No Fórum Global reuniram-se ONGs e movimentos sociais de todas as
partes do mundo para debater as questões ligadas à ecologia. Este fórum repre-
sentou uma verdadeira esfera pública transnacional, composta de atores da socie-
C\l dade civil interessados em debater a relação entre economia, meio ambiente e
o
~ justiça social. Como demonstra este exemplo, a característica fundamental de um
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'"-ee 27. Entre os diversos textos que discutem os méritos e limites desta experiência, pode-se citar:
,g FEDOZZI, Luciano. Orçamento participativo: reflexões sobre a experiência de Porto Alegre. 3. ed.
o-.g Rio de Janeiro: UFRJ, 2000; SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Democratizar a democracia: os
e caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; AVRITZER, Leo-:5 nardo & NAVARRO, Zander (orgs.). A inovação democrática no Brasil. Rio de Janeiro: Cortez,
2003; COELHO, Vera Schattan P. & NOBRE, Marcos (orgs.). Participação e deliberação: teoria de-
mocrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Ed. 34, 2004; AVRlT-
ZER, Leonardo (org.). A participação em São Paulo. São Paulo: Uncsp, 2004.
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28. Um levantamento dos trabalhos acadêmicos existentes sobre estas experiências encontra-se dispo-
nível em GUGLlANO, Alfredo Alejandro. O impacto das democracias participativas na produção aca-
dêmica no Brasil: teses e dissertações (1988-2002). BIB - Revista Brasileira de Informação Biblio-
gráfica em Ciências Sociais, n. 59,2005, p. 43-60. Para urna visão mais crítica a respeito destes pro-
cessos veja-se também: MIGUEL, Luis Felipe. Promessas e limites da democracia deliberativa. Revis-
ta Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, n. 46,200 I; PINTO, Maria Céli. Espaços deliberativos e a
questão da representação. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 19, n. 54,2005.
96
fórum, portanto, é que ele constitui um espaço de debates e discussões entre os
atores da sociedade civil'".
Outro exemplo importante é o Fórum Social Mundial que reuniu-se diversas
vezes na cidade de Porto AlegrelRS, desde o ano de 2000. Este espaço público
tem uma história parecida com a Eco-92. Como esta, ele também surgiu para fa-
zer frente a um congresso realizado pelos governos: o fórum econômico de Da-
vos, que é realizado anualmente na Suíça para discutir a economia global. Con-
trapondo-se à suposta visão "neoliberal" dos governos, o Fórum Social procura
debater alternativas reais para uma globalização que não seja apenas econômica,
mas seja uma globalização da solidariedade. Ele reúne ONGs, movimentos so-
ciais, grupos organizados, militantes e ativistas de todas as partes do mundo para
mostrar, como eles mesmos dizem, que "um outro mundo é possível'r".
Todavia, não é apenas em nível mundial que existem fóruns. Eles se repetem
também no nível local e nacional. Um congresso municipal de associações de
moradores, por exemplo, é um bom modelo de um fórum local. Em nível nacio-
nal, podemos citar o Fórum pela Reforma Urbana, que foi realizado na cidade de
Belo Horizonte/MG. O importante é que, na medida em que se reúnem para dis-
cutir, os atores da sociedade civil constroem esferas públicas, que são verdadeiras
àgoras (praça pública grega), nas quais acontece uma nova prática da democra-
cia, feita de discussão e participação. ro.g
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A organização autônoma da sociedade é um dos pressupostos da construção :g
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da esfera pública. Por isto, temos que refletir sobre o conceito de sociedade civil e ,:
discutir o seu papel na promoção da democracia participativa. ,&
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1.3.2. Sociedade civil
O conceito de sociedade civil tem uma longa história no pensamento políti-
co, passando por nomes clássicos como Hobbes, Hegel, Marx, Gramsci, Tocque-
ville e muitos outros. Mas, de modo geral, estes autores se dividem em dois gru- ....J
poso De um lado, estão aqueles que definem a sociedade civil em oposição ao tI]
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29. Ainda há poucos estudos sobre este tipo de arranjo participativo. Um estudo de caso interessante é
apresentado por SILVA, Carla Almeida. Os fóruns temáticos da sociedade civil: um estudo sobre o Fó-
rum Nacional de Reforma Urbana. In DAGNINO, Evelina (org.). Sociedade civil e espaços públicos
no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 143-186.
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30. A respeito desta iniciativa, existe uma discussão no texto de GOHN, Maria da Glória. I e II Fórum c...,
ocial Mundial em Porto Alegre. ln Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e novos
atores sociais. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 53-87.
Estado I Sociedade civil
Estado (visão dualista) e, de outro, aqueles que adotam um esquema tripartite: as-
sim, temos o Estado, o mercado e a sociedade civil. Éjustamente este segundo en-
foque que adotaremos em nosso trabalho. Graficamente, estas concepções pode-
riam ser apresentadas como segue:
Teoria dualista de sociedade civil
Teoria tripartite de sociedade civil
Estado
Mercado I Sociedade civil
Atualmente, o conceito de sociedade civil vem sofrendo uma larga utilização
na teoria e mesmo na prática política. Entre os autores contemporâneos que fa-
zem uso do termo destacam-se especialmente Cohen e Arato (1992) que, basea-
dos no esquema sociológico de Jürgen Habermas (1987), propõem um conceito
de sociedade civil que, conforme Vieira, pode ser explicado da seguinte forma:
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o Entre os atores da sociedade civil, portanto, estão os movimentos sociais, as
,'".g organizações não-governamentais, as associações de moradores, grupos de base
g e de ajuda mútua, associações filantrópicas, sindicatos, entidades estudantis e to-e
,......das aquelas formas de associativismo (mesmo aquelas informais e esporádicas)
que, de alguma forma, lutam pela resolução de problemas sociais, ampliação dos
direitos políticos e da consciência da cidadania e ainda mudanças na esfera dos va-
lores e do comportamento dos indivíduos. Estas associações reúnem homens e
A sociedade civil representa apenas uma dimensão do mundo
sociológico de normas, práticas, papéis, relações, competên-
cias ou um ângulo particular de olhar este mundo do ponto de
vista da construção de associações conscientes, vida associa-
tiva, auto-organização e comunicação organizada. [...] Refe-
re-se às estruturas de socialização, associação e formas orga-
nizadas de comunicação do mundo da vida, na medida em que
estas estão sendo institucionalizadas".
31. VIElRA, Liszt. Cidadania e gIobalização. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 46.
98
mulheres, interessados em assumir sua dimensão de cidadão de uma forma ativa,
buscando agir na sociedade em busca de transformações ".
Com sua participação em conselhos e outras instâncias de participação, os
atores da sociedade civil são cada vez mais chamados a interagir com o Estado na
busca de soluções para os problemas sociais. Nestas iniciativas pode-se notar a
preocupação destas entidades em propiciar canais de comunicação entre o poder
público e a sociedade organizada, a ênfase
na legalidade e no interesse público
das ações do Estado e ainda a priorização das políticas sociais em favor das cama-
das de baixa renda. A segunda contribuição importante dos atores da sociedade
civil na ampliação da democracia tem a ver com a formação de esferas públicas
no espaço da própria sociedade, principalmente através dos fóruns da sociedade
civil. Para Sérgio Costa", a esfera pública composta por atores da sociedade civil
contribui para o processo democrático de duas formas fundamentais: a) através
da ampliação dos problemas tratados publicamente; b) através da ampliação das
possibilidades comunicativas ancoradas no mundo da vida. Portanto, seja através
de sua ação diante do poder público, seja através das suas articulações em for-
ma de fóruns, a sociedade civil é vital para a construção da esfera pública e para a
promoção da democracia participativa.
2. TEORIAS DA DEMOCRACIA ro
~~
A existência de diferentes modelos de democracia provocou uma divisão en- 8.
tre os teóricos da democracia contemporânea. De um lado temos a "teoria mini- 'So
omalista" que afirma que a única forma de democracia possível no mundo moder- õ'(3
no é a democracia representativa. Estes teóricos, de forma geral, partem da idéia Sl
·rode que o regime democrático é apenas um método para escolha dos governantes. olro
Do outro lado, por sua vez, estão as "teorias amplas de democracia" que defen- ,g
dem a idéia de que a democracia deve ser entendida como fazendo parte de toda gc......
32. Uma análise histórico-conceitual deste termo pode ser encontrada ainda nas seguintes obras: :J
BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982; COSTA, Sér- ~
gio. Categoria analítica ou passe-partout político-normativo: notas bibliográficas sobre o conceito de g
sociedade civil. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais. Rio de Janei- ~
ro: Re1ume-Dumará, n. 43, p. 3-26, 1997; COSTA, Sérgio. As cores de Ercília: esfera pública, demo- Ô
cracia, configurações pós-nacionais. Belo Horizonte: UFGM, 2002. Para uma visão crítica a respeito u.l
da utilização deste conceito para a realidade brasileira, vide LAVALLE, Adrián Gurza. Crítica ao mo-
delo da nova sociedade civil. Lua Nova, n. 47, 1999, p.121-136; NOGUEIRA, Marco Aurélio. So-
ciedade civil, entre o político estatal e o universo gerencial. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
n. 52, 2003,p. 185-2002.
33. COSTA, op. cit. 1997.
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vida social, enquanto modelo de convivência política entre os cidadãos, no qual
todos participam igualmente da distribuição do poder, dos bens econômicos e
culturais. Este segundo grupo de teorias, portanto, defende o modelo da democra-
cia participativa. A seguir, apresentaremos os principais autores de cada uma des-
tas teorias e seus principais argumentos em prol da democracia representativa ou
da democracia participativa".
2.1. Teoria minimalista
A teoria minimalista da democracia, que tem suas raízes na teoria das elites
de Vilfredo Pareto, Gaetano Mosca e Robert Michels, é composta por nomes cé-
lebres na teoria social e política, como Max Weber, Joseph Schumpeter, Robert
Dahl, Antony Downs e Giovanni Sartori, entre outros. Por isso, esta teoria tam-
bém é chamada de elitismo democrático. Como o próprio nome já indica, esta te-
oria aponta para a impossibilidade de realização dos ideais de participação políti-
ca direta diante da complexidade do mundo moderno.
Embora os fundamentos da teoria minimalista da democracia já estejam pre-
sentes na obra de Max Weber35, será o pensador austríaco Joseph Schumpeter
que apresentará esta teoria em sua versão mais acabada. Em sua obra, Schumpe-
ter ataca o que ele considera serem dois pressupostos falsos da doutrina clássica da
democracia: a possibilidade de se chegar ao bem comum (teoria de Rousseau) e a
racionalidade dos atores sociais. Opondo-se à doutrina clássica, o autor apresenta a
~~ sua nova teoria nos seguintes termos: "O método democrático é aquele acordo
õ institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirema.
.~ o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população=".
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Portanto, em Schumpeter, a democracia é reduzida a um método pelo qual as
elites políticas disputam o poder. Note-se que o ator fundamental não é povo que,
através do voto, escolhe os governantes. Em Schumpeter acontece o contrário. O
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34. Para uma análise das teorias clássicas e contemporâneas da democracia ao longo da história do pen-
samento político, você pode conferir o excelente estudo de HELD, David. Modelos de democracia.
Belo Horizonte: Paidéia, 1987. Para uma discussão atual, veja: SOUZA, Jessé (org.). Democracia
hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UnE, 200 I; e o levantamen-
to feito por MIGUEL, Luiz Felipe. Teoria democrática atual: esboço de mapeamento. BIB - Revista
Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, 2005, n. 59, p. 5-42.
35. Uma critica aos pressupostos do elitismo democrático sob uma perspectiva habermasiana pode
ser encontrada na obra de AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia. Belo Horizonte:
UFMG,1996.
•..••....••....•
36. SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1984,p. 336.
100
ator fundamental são as elites políticas que buscam apoio na população que, por-
tanto, tem um papel passivo. Além de pretender estar desligada de qualquer pres-
suposto ético-normativo, esta seria a única possibilidade realista de efetivação da
democracia nas condições complexas do mundo moderno.
São justamente estas duas idéias fundamentais que serão retomadas pelos de-
fensores da tradição do elitismo democrático no pensamento contemporâneo. Ro-
bert Dahl, por exemplo, em seu texto de 1956, já acena para a necessidade de de-
finir a democracia a partir dos regimes democráticos realmente existentes (teo-
ria empirista). Neste texto, Dahl distingue três tipos de regimes democráticos: a
democracia madisoniana, a democracia populista e a democracia poliárquica ".
Dando continuidade a esta perspectiva, em texto de 197138, Dahl define a demo-
cracia como "poliarquia", ou seja: um sistema político é democrático na medida
em que nele seus principais formuladores de decisões sejam selecionados através
de eleições periódicas, honestas e imparciais. A poliarquia envolve basicamente
duas dimensões (liberalização e participação) e oito dimensões institucionais que
garantem: a) o direito de formular preferências; b) exprimir preferências e, ainda,
c) ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo. Estes re-
quisitos básicos para a existência da democracia são apresentados pelo autor da
seguinte forma:
1) Liberdade de formar e aderir a organizações
2) Liberdade de expressão
3) Direito de voto
4) Elegibilidade para cargos públicos
5) Direito de líderes políticos disputarem apoio
6) Fontes alternativas de informação
7) Eleições livres e idôneas
...:I
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Para o pensador italiano Giovanni Sartori é preciso distinguir dois tipos de ~
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análise da democracia: as análises descritivas (que falam das democracias real- ow
cr.:
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8) Instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de
eleições e de outras manifestações de preferência.
37. DAHL, Robert. Um prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
38. DAHL, Robert. Poliarquia. São Paulo: Edusp, 1997.
101
mente existentes ou empíricas) e as análises prescritivas (que falam de um ideal
de democracia). Para ele, a perspectiva normativa defende a democracia partici-
pativa e a perspectiva descritiva advoga a democracia competitiva. Para escapar a
este dilema Sartori propõe que se faça uma análise dos mecanismos reais de to-
mada de decisão
que leve em conta o método para formar o órgão decisório e a re-
gra de tomada de decisões. Neste sentido ele afirma que:
um sistema ideal de tomada de decisões teria de satisfazer os
seguintes requisitos: a) todo indivíduo deve ter o mesmo
peso; b) intensidades iguais (de preferência) devem ter o mes-
mo peso; c) resultados de soma zero e resultados de soma posi-
tiva devem ser adequadamente contrabalançados; d) os riscos
externos devem ser minimizados; e) os custos da tomada de
decisão devem ser minimizados39.
Apesar desta variedade de autores, as teorias do elitismo democrático têm
duas características em comum. Em primeiro lugar, elas rejeitam qualquer ideal
de democracia e limitam-se a descrever os regimes democráticos atualmente exis-
tentes. Por essa razão, estas teorias definem a democracia corno um método de es-
colha de dirigentes.
2.2. Teoria ampla
As teorias do elitismo democrático lançaram um sério desafio para as propos-
roª tas de ampliação da democracia. Será justamente este desafio o tema dos autores
8.. pertencentes ao paradigma das teorias amplas de democracia. Por "teoria ampla"
ee
'§l da democracia entendemos todos aqueles autores ou teorias que, de diferentes
] formas, têm se colocado na perspectiva de complementar ou superar os mecanis-
o.: mos da democracia representativa moderna por formas de participação direta dos
.& cidadãos nas decisões políticas. A teoria ampla de democracia pode ser dividida
~ em dois grupos de autores. Enquanto o primeiro privilegia o conceito de partici-
•...
.:9 pação, o segundo grupo dá mais ênfase ao conceito de diálogo ou deliberação.
A principal diferença é que na teoria da participação o elemento privilegiado é
d o processo decisório, enquanto na teoria deliberativa o elemento fundamental é o
;;i processo de discussão.oo
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lLl
a
39. SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1987, p. 112.
102
2.2.1. Teoria da democracia participativa
O elemento central das teorias participacionistas é a idéia de que a ampliação da
democracia depende da criação de mecanismos de participação dos cidadãos nas de-
cisões. O importante é que os cidadãos decidam, diretamente, as questões públicas.
A denúncia dos limites inerentes à representação política tem origem em
Rousseau, considerado também um dos primeiros formuladores da idéia de de-
mocracia participativa. Para Rousseau, a idéia de representação não faz sentido:
"a soberania não pode ser representada, (pois) consiste essencialmente na vonta-
de geral e a vontade não se representa; é ela própria, ou então é outra; não há meio-
termo,,40. Outra fonte teórica para a idéia de democracia participativa é Karl
Marx, quando faz suas famosas análises da Comuna de Paris. Entre as passagens
célebres de sua análise desta experiência está a afirmação de que "a comuna era
constituída pelos conselheiros municipais eleitos através do sufrágio universal
nos diversos distritos de Paris. Eram responsabilizáveis e substituíveis a qualquer
momento. A maioria deles era composta naturalmente por trabalhadores ou por
reconhecidos representantes da classe operária'"".
Atualmente, os principais teóricos da teoria participativa são Carole Pate-
man, MacPherson e Nicos Poulantzas.
Em sua obra, Carole Paternan distingue dois tipos de análise sobre a demo- es
cracia. De um lado temos o que a autora chama de "teoria contemporânea da de- :.e
mocracia", cujos principais representantes seriam Schumpeter, Berelson, Dahl, 8..
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Sartori e Eckstein. De outro lado estaria a "teoria participativa da democracia" 'ÕlJo
cujos representantes seriam Rousseau, John Stuart Mill e Cole. Segundo a autora: ·3
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a teoria da democracia participativa é construída em tomo da
afirmação central de que os indivíduos e suas instituições não
podem ser considerados isoladamente. A existência de institui-
ções representativas a nível não basta para a democracia; pois
o máximo de participação de todas as pessoas, a socializa-
ção ou "treinamento social", precisa ocorrer em outras esfe- ....J....J
ras, de modo que as atitudes e qualidades psicológicas neces- ~
sárias possam se desenvolver'f. g
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40. ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril, p.186-187 (Coleção Os pensa-
dores).
41. MARX, Karl. A guerra civil na França. ln FERNANDES, Florestan (org.). Marx e Engels. São Pau- .<
10: Ática, 1989, p. 296.
42. PATEMA , Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 60.
Para MaPcherson a democracia representativa deve ser complementada com
novas formas institucionais como os conselhos estruturados em pirâmides. Se-
gundo ele "a combinação de um aparelho democrático piramidal direto e indireto
com a continuação de um sistema partidário parece essencial. Nada, a não ser um
sistema piramidal, incorporará qualquer democracia direta numa estrutura de âm-
bito nacional de governo, e exige-se certa significativa quantidade de democracia
direta para o que quer se possa chamar de democracia de participação'?".
Finalmente, no âmbito da teoria marxista, vale lembrar também a importân-
cia da obra de Nicos Poulantzas'". Rejeitando a idéia leninista-staliniana de con-
quista do Estado através dos sovietes (duplo poder), este autor propõe que a via
democrática para o socialismo combine a democracia representativa com a de-
mocracia direta:
Como compreender uma transformação radical do Estado ar-
ticulando a ampliação e o aprofundamento das instituições da
democracia representativa e das liberdades (que foram tam-
bém uma conquista das massas populares) com o desenvolvi-
mento das formas de democracia direta na base e a prolifera-
ção de focos autogestores, esse é o problema essencial de uma
via democrática para o socialismo e de um socialismo demo-
crático'".
2.2.2. Teoria da democracia deliberativa
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~€õ Os teóricos da "democracia deliberativa" concordam com os teóricos partici-c,
«l pacionistas sobre a necessidade de superar os limites da democracia representati-'5iJ
~ va. Mas, para esta vertente teórica, o fundamental é criar na sociedade espaços de
'g discussão e deliberação nos quais a sociedade possa manifestar suas opiniões e
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-ee suas idéias e, desta forma, influenciar os tomadores de decisão.o
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Um dos principais teóricos da democracia deliberativa é o sociólogo alemão
Jürgen Habermas. Do ponto de vista teórico, Habermas apresenta o que ele cha-
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43. MacPHERSON, Crawford B. A democracia liberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar,
1978, p. 114.
44. Abordagens bastante recentes no âmbito da literatura marxista sobre a democracia participativa
podem ser encontradas em MILlBAND, Ralph. Socialismo & ceticismo. São Paulo: Edusc/Unesp,
2000, p. 107-138; HARNECKER, Marta. Tornar possível o impossível: a esquerda no limiar do sécu-
lo XXI. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 408-414.
45. POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1980, p. 293.
104
ma de uma concepção procedimental de democracia, que se distancia tanto da
concepção liberal (ou seja, da teoria da democracia representativa) quanto da con-
cepção republicana (ou seja, da teoria da democracia participativa). Segundo suas
próprias palavras:
A teoria do discurso, que associa ao processo democrático co-
notações normativas mais fortes do que o modelo liberal, po-
rém mais fracas do que o modelo republicano, toma elemen-
tos de ambos e os articula de uma forma nova e distinta. Coin-
cidindo com o modelo republicano, ela concede um lugar cen-
tral ao processo político de formação da opinião e da vontade
comum, mas sem entender como algo secundário a estrutura-
ção em termos de Estado de direito. Em vez disso, a teoria do
discurso entende os direitos fundamentais e os princípios do
Estado de Direito como
uma resposta conseqüente à questão
de como institucionalizar os exigentes pressupostos comuni-
. d democrá 46cativos o processo emocratJco .
Do ponto de vista empírico, Habermas busca mostrar que o conceito norrr.ati-
\'0 de democracia proposta por sua teoria pode ser amparado, concretamente, nos
onceitos de esfera pública e sociedade civil que, segundo ele, funcionariam
orno estruturas comunicacionais do mundo da vida. Nas palavras de Habermas,
....a esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir :~
orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir 8..
omunicativo?", Quanto à sociedade civil, esta "compõe-se de movimentos, or- .~
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ganizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que res- õ
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soam nas esferas privadas, condensam-nas e os transmitem, a seguir, para a esfe- ~
ra pública política'r". Quanto à sua importância para o processo político, comen- .~
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o autor que, "em sociedades complexas, a esfera pública forma uma estrutura .g
intermediária que faz a mediação entre o sistema político, de um lado, e os setores g
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ivados do mundo da vida e sistemas de ação especializados em termos de fun- .
ões, de outro lado,,49.
HABERMAS, Jürgcn. Três modelos normativos de democracia. Lua Nova, n. 36, 1995, p. 39-54 .
. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
ileiro, 1997, p. 92.
Idem, p. 99.
. Idem, p. 99.
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Portanto, é justamente através da associação e da participação na esfera pú-
blica que a sociedade civil pode "influenciar" o sistema político: "pretendo mos-
trar que a sociedade civil pode, em certas circunstâncias, ter opiniões públicas
próprias, capazes de influenciar o complexo parlamentar (e os tribunais), obri-
gando o sistema político a modificar o rumo do poder oficial't'". Vale lembrar
também que Habermas não vincula a participação direta do cidadão na vida polí-
tica na relação entre este e o Estado. É na sociedade civil que se dá a participação
política e é o espaço público que funciona como um canal de comunicação entre o
Estado e a sociedade.
São justamente estas supostas limitações da teoria habermasiana que buscam ser
superadas pela importante contribuição de Joshua Cohen. Conforme explica Faria:
Para esse autor, a proposta discursiva de Habennas toma a de-
mocracia "estranha às rotinas institucionais estabelecidas pela
política moderna" na medida em que ela valoriza condições
excepcionais de influência das associações que se localizam
fora do circuito institucionalizado do poder, ou seja, das regras
do sistema [...]. Para que esses atores desempenhem um papel
ofensivo não basta apenas enfatizar, como faz Habennas, a in-
fluência autônoma oriunda da periferia da esfera pública sob
condições de crise social. É necessário apontar outras formas
de participação que realizem, de fato, a promessa de democra-
cia radical e, com isso, do governo legítimo".
Portanto, existem duas diferenças importantes entre Cohen e Habermas. Em
õ
~ primeiro lugar, Cohen critica Habermas porque este se limita a mostrar que os
'§> atores da sociedade civil podem "influenciar" em momentos de crise o sistema
Õ
'ü político. Para Cohen, ao contrário, é preciso pensar em formas de participaçãoo
.: direta da sociedade civil nas decisões políticas. Portanto, trata-se de participa-
o
I~ ção e não de mera influência. A segunda diferença importante é que em Haber-
;::s
-g mas a democracia participativa ficou restrita ao conceito de discussão ou diálo-
t;
..s go. Para Cohen, as duas coisas são importantes: a democracia deliberativa en-
volve tanto o diálogo quanto a participação. Por isso, Cohen propõe a chamada
"poliarquia diretamente deliberativa" cuja idéia fundamental, explica Faria, "é
institucionalizar soluções de problemas diretamente pelos cidadãos e não sim-
S 50. Idem, p.l 06.
51. FARlA, Cláudia Feres. Democracia deliberativa: Habermas, Cohen e Bohrnan. Lua Nova, n. 50,
2000, p. 55.
106
plesmente promover a discussão informal com promessas de influência na are-
na política formal"s2.
Evidentemente, existem diferenças importantes entres esses dois autores. No
entanto, a marca fundamental das suas teorias é a central idade do conceito de de-
liberação (ou da discussão mediada pelo diálogo), seja para influenciar o poder
político (como quer Habermas), seja para fundamentar as decisões coletivas (como
defende Joshua Cohen).
3. A DEMOCRACIA COMO VALOR UNIVERSAL
Alexis de Tocqueville, na advertência que faz à 12a edição de seu livro A de-
mocracia na América, relembra seu frontispício, onde ele afirmava:
O desenvolvimento gradual da igualdade [democracia] é um
fato providencial e tem deste as seguintes características prin-
cipais: é universal, durável, escapa dia a dia ao controle huma-
no, e todos os acontecimentos e todos os homens favorecem seu
dcscnvolvimento'".
Tocqueville parece ser um dos poucos "profetas" no campo das humanidades
que acertou em cheio em suas previsões: a democracia tomou-se hoje um valor
universal. Mas, isto não resolve o dissenso entre os analistas da democracia, divi- C\l
:~didos entre uma concepção mínima e ampla do regime democrático. Representa- o
ção ou participação? Que tipo de participação: decisória ou discursiva? Eis os de- :i
'5iJsafios do momento, no campo da teoria e no campo da prática. o
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Em nossa visão, ambos os ideais não são incompatíveis. As experiências to-
talitárias do século XX mostraram que somente regimes em que o povo escolhe
eus líderes são capazes de garantir a liberdade dos indivíduos. Neste sentido, a
extensão quantitativa da democracia representativa entre os Estados modernos
deve ser apoiada e defendida. A soberania popular é a única fonte de um poder
legítimo capaz de garantir o controle do poder e sua submissão aos interesses da ....l
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maioria. De qualquer forma, a complementação da democracia liberal com meca- ~
nismos de participação social apenas reforça a democracia. Embora o "modelo 8
~
participativo" não substitua a versão representativa do regime democrático, cria :3
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52. TOCQUEV1LLE, Alexis de. A democracia na América. In WEFFORT, Francisco (org.). Os clás- «;
.cos da política. São Paulo: Ática, 1995, vol. 2.
53. Idem, p. 55.
condições para que, com a ampliação dos atores sociais no debate, as decisões
formuladas beneficiem, de fato, a maioria. Em outros termos, se o valor da demo-
cracia representativa está em garantir o valor da "liberdade", a chamada demo-
cracia participativa estimula a busca do "bem comum" ou da "vontade geral" (no
dizer de Rousseau), outro pilar da idéia de democracia. A democracia participati-
va não pode excluir a idéia de que líderes eleitos por seus cidadãos tenham legiti-
midade para tomar decisões sozinhos, ainda que tenham que prestar contas à so-
ciedade. Além disso, substituir a democracia liberal por outro tipo de democracia
considerada melhor (como se a democracia "liberal" pudesse ser trocada por al-
gum tipo de democracia "proletária", por exemplo) não reconhece os valores do
regime representativo. Este, por sua vez, só tende a reforçar sua legitimidade e
cumprir melhor seu papel se estiver aberto a mecanismos que possibilitem aos ci-
dadãos organizados participarem do debate e, quando possível, das decisões. De-
mocracias representativas e participativas não são opostos que se excluem. Pelo
contrário, vão solidificando nossa visão da democracia como valor universal.
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