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SHAPIRO, Scott J - Legality. Capítulo 2 - Uma coisinha louca chamada Direito

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Shapiro, Scott J. Legality. London: The Belknap Press of Harvard University Press, 
2011. 
 
 
Tradução das páginas 35 a 53. 
Mariana Kuhn de Oliveira 
 
 
Juridicidade 
Scott J. Shapiro 
 
Capítulo 2: Coisinha louca chamada “Direito’ 
A invenção do direito 
 
 Thomas Hobbes, como é bem conhecido, sustentou que o estado de natureza- ou 
seja, a condição social sem lei e governo- seria “uma guerra de todos contra todos” na 
qual a vida seria “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”1. Sem uma autoridade 
reconhecida para resolver as disputas, cada pessoa agindo como juiz, como júri e como 
carrasco, o conflito e a competição por recursos escassos trariam constantemente a 
ameaça de irromper em violência. No entanto, Hobbes disse de modo muito claro que 
ele entendeu que o estado de natureza é uma grande construção ficcional: ninguém 
nunca viveu totalmente sem lei, embora ele tenha pensado que alguns povos civilizados 
tenham emergido do estado de natureza e que “os povos selvagens da América” 
estivessem vivendo nessa condição miserável. A questão trazida por Hobbes não era 
que a vida fosse intolerável sem a lei, mas que ela poderia sê-lo, e que ao invés de 
correr o risco de um tal destino, as pessoas afortunadas o bastante para viver sob 
governos estáveis, mesmo os tirânicos, não deveriam tentar destituí-los; ao contrário, 
elas obedeceriam a seus líderes em quase todas as circunstâncias. 
 Acontece que Hobbes estava duplamente errado. O primeiro erro dele foi 
relativamente pequeno. Antropólogos acreditam atualmente que humanos viveram sem 
lei a maior parte de seu tempo na terra. Evidências arqueológicas e estimativas de 
observações etnográficas de humanos que ainda hoje caçam ou colhem seus alimentos 
 
1 HOBBES, Thomas. Leviathan, Ed. Richard Tuck, 2ª Ed., capítulo 13, p. 89. (Cambridge: Cambridge 
University Press. 1996). 
sugerem que, até 12.000 anos atrás, a maioria dos humanos vivia em grupos chamados 
“bandos”.2 Bandos são pequenos grupos de indivíduos, geralmente nômades, seus 
membros são relativamente instáveis e subsistem através da caça e coleta. Não há 
estruturas formais de autoridade nesses grupos e eles são governados principalmente 
pela tradição, consenso e persuasão dos mais velhos. Em outras palavras, aqueles que 
vivem em bandos, não possuem lei. 
 O segundo e mais sério erro de Hobbes foi assumir que o estado de natureza 
seria um estado de guerra. Embora quase que certamente brutal e curta, a vida humana, 
ao menos nos bandos, não parece ter sido particularmente solitária ou sórdida3. Seres 
humanos são criaturas sociais e trabalharam em grupos de forma mais ou menos 
pacífica para coletar comida, criar as crianças e proteger um ao outro dos predadores 
externos. Esses grupos também parecem ter sido governados por regras que regulavam 
aquilo que é mais essencial na vida social: o compartilhamento da comida, a seleção de 
parceiros, a contenção de agressões físicas etc. 
 Em outras palavras, cooperação e ordem não foram possíveis apenas durante a 
pré-história: elas têm sido a norma. A sociedade pré-histórica tem sido anárquica apenas 
no sentido estrito, literal: o de não ter o que hoje chamamos “direito”. É provavelmente 
verdade que as pessoas não conseguem coexistir em grupos sem regras. No entanto, elas 
podem viver e de fato viveram juntas por milênios sem sistemas jurídicos. 
Contrariamente a Hobbes, portanto, o estado de natureza não é uma fantasia da filosofia, 
porém uma realidade histórica experienciada por muitas gerações de seres humanos. De 
fato, é plausível supor que o direito é, uma invenção comparativamente recente, 
sucedendo a roda, a linguagem, a agricultura, a arte e a religião. 
 Hobbes estava certo quando afirmou que sem o direito não haveria “cultivo da 
terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas do mar; não 
há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que 
precisam de grande força; não há conhecimento da face da terra, nem cômputo do 
tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade”.4 Civilização só é possível com alto 
nível de cooperação social e interdependência, o que, por sua vez, só é possível quando 
a comunidade tem a habilidade de regular as relações sociais de forma eficiente e 
 
2 Ver, por exemplo, The Cambridge Encyclopedia of Hinters and Gatherers, ed. Richard Lee e Richard 
Daily, 1-4 (Cambrigde: Cambridge University Press, 1999) 
3 A bibliografia da antropologia sugere que a violência intergrupal entre os humanos era bastante grande. 
Nesse sentido: Azar Gat, War and Human Civilization (Oxford: Oxford University Press, 2006). 
4 HOBBES, Leviathan, p. 89. 
efetiva. O direito foi uma invenção revolucionária exatamente porque permitiu essa 
regulação. As pessoas poderiam, então, usar o direito para criar, modificar e aplicar 
regras e, assim, gerenciar o grande número de aspectos da vida social sem contar apenas 
com o costume, com a tradição, com a persuasão e com o consenso. 
 
 
Como o Direito é Possível? 
 
Não há forma de saber, é claro, se a primeira sociedade a ter direito começou a 
criar um método eficiente de regulação social ou se ela simplesmente descobriu 
acidentalmente esse método. Ao criar o direito, todavia, essa sociedade produziu uma 
tecnologia que continua sendo - assim como religiões organizadas, a moral popular e as 
convenções sociais - uma ferramenta de grande valor para o controle da comunidade. 
Além disso, mesmo com toda a certeza que temos de que as instituições legais 
foram criadas em algum ponto da pré-história e que aqueles responsáveis tinham boas 
razões para criá-las, continuamos confusos sobre como o direito pode ter sido 
inventado. Assim como pessoas que procuram o primeiro emprego encontram-se na 
difícil situação de precisar de experiência de trabalho para conseguir essa experiência, 
adquirir autoridade jurídica parece envolver uma situação sem saída: para conseguir 
poder legal, já se tem que ter poder legal. 
Assim, vou discorrer mais sobre esse quebra-cabeça. Deixe-me falar mais sobre 
esse quebra-cabeça através de uma fantasia filosófica. Imagine que o direito foi 
inventado em uma pequena vila de agricultores no Crescente Fértil em 1º de janeiro de 
10.000 a.C. Nesse dia, o ancião da vila, Lex, teve uma idéia e chamou uma reunião com 
a comunidade para discuti-la. Ele, então, disse a seu povo: “muitos de vocês vieram 
recentemente a mim reclamar da crescente discórdia em nosso vilarejo. Temos passado 
grande parte do nosso tempo de lazer em reuniões comunais, ouvindo reclamação após 
reclamação, discutindo os méritos de cada queixa, em uma deliberação sem fim sobre o 
quanto de ajuda cada família deve fornecer a outra durante o plantio e a colheita, quanto 
cada família deve contribuir para o armazenamento de comida para o inverno, quais 
meninos devem poder casar com quais meninas, quando as vacas devem poder pastar na 
praça da vila, onde largar o lixo etc. Ano após ano, com o crescimento da vila, a 
situação piora. Vocês devem lembrar que não fomos capazes de resolver a questão sobre 
o dízimo no ano passado e, como resultado, ficamos sem grão antes da colheita. Além 
disso, a vila está freqüentemente quase que sem reserva de feno, e vocês concordariam 
que isso é uma tragédia.” 
“Com a intenção de remediar a situação, eu proponho o seguinte: eu vou criar 
um conjunto de regras relativas aos assuntos mais urgentes. Vocês saberão quando eu 
tiver criado uma regra, pois a transmitirei sentado sob a grande palmeira que se encontra 
na praça da vila. Também estarei disponível para resolver disputassobre a maneira certa 
de aplicar as regras que eu criei. Minhas decisões serão finais e ninguém poderá desafiá-
las. Por fim, quando eu morrer, todas as regras que eu criei continuarão válidas e um 
dos meus dois filhos assumirá como líder oficial da vila. Meu sucessor escolhido poderá 
modificar as regras se desejar.” 
Quase todos na vila gostaram da proposta de Lex. Eles respeitavam a sabedoria e 
o caráter do ancião e confiaram que ele criaria boas regras. Eles também reconheceram 
os enormes benefícios que poderiam advir da liderança de Lex. Com Lex no comando, 
eles não perderiam tempo deliberando e tentando atingir um consenso em cada 
problema da comunidade. Ter regras firmes e anteriores aos fatos impede o início de 
disputas e ajuda a coordenar comportamentos com o propósito de produzir mais bens a 
partir dos quais todos poderiam lucrar. 
Apenas um morador da vila fez uma objeção ao plano de Lex: Phil, o filósofo da 
vila. “Lex, sua proposta parece boa, mas nunca irá funcionar. Veja bem, para você ter o 
poder de criar, modificar e aplicar regras para nossa vila, deveria haver uma regra que 
concedesse esse poder a você. No entanto, tal regra ainda não existe. Se você tentar criar 
uma regra sob a palmeira sem que uma regra anterior autorize você a fazê-lo, isso terá 
tanta força quanto se eu tentasse fazer uma regra, ou seja, ‘nenhuma’”. 
Lex ponderou a objeção por um curto espaço de tempo e respondeu: “Phil, eu 
não poderia apenas fazer uma regra que me autorizasse a criar regras para a 
comunidade?” Phil balançou sua cabeça de forma melancólica e disse: “infelizmente, 
isso também não iria funcionar. Como não há regra autorizando você a fazer uma regra 
autorizadora, a tentativa de criar tal regra será, de forma similar, nula e vazia.” 
Lex tentou novamente: “bom, não poderiam todos na vila votar para me 
autorizar a criar regras?” Phil respondeu: “o mesmo problema que surge para você, 
surgiria para eles. Como não há regras autorizando eles a autorizarem você, a 
autorização deles também seria nula e vazia.” 
Lex ainda não estava convencido. “Você está certo em dizer que eu não posso 
criar regras sem estar autorizado, mas por que você está tão certo de que essa regra não 
existe?” “Isso é fácil demonstrar”, disse Phil. “Para que uma regra autorizadora exista, 
ela teria que ser criada por alguém que tenha esse poder. Isso exigiria uma regra pré-
existente autorizando esse alguém. No entanto, na mesma lógica, essa regra pré-
existente teria que ser criada por alguém autorizado a fazê-lo, o que significaria que 
deveria existir uma regra autorizando essa pessoa a criar regras autorizando outros a 
criar regras autorizadoras. Podemos ficar nesse raciocínio para sempre; ao menos que 
você queira postular um número infinito de regras e um número infinito de atos que os 
efetuariam, eu acredito que está bem claro que não existam tais regras autorizadoras.” 
“Mas no seu raciocínio”, concluiu Lex, “ninguém nunca poderá criar ou 
modificar regras na comunidade”. Phil respondeu: “sim, é verdade. Sinto muito.” 
Lex e o resto dos moradores da vila não deram ouvidos a Phil. Até mesmo nos 
tempos pré-histórico, aparentemente, as pessoas tinham a tendência a ignorar os 
filósofos. Lex começou a criar regras e o resto da comunidade seguiu-o. E, então, o 
direito foi criado. 
Apesar do fato de os moradores da vila não terem prestado atenção nas 
advertências de Phil, o argumento dele é forte. Lógica básica parece ditar que a 
afirmação de Lex sobre o poder jurídico não pode ter sido verdadeira. E se ela não foi 
verdadeira, então ele não tinha uma autoridade legal. Assim, o direito não foi criado no 
tempo suposto por nós. 
Na verdade, o argumento de Phil pode ser usado para demonstrar que nenhuma 
afirmação sobre poder jurídico jamais poderia ser verdadeira. Considere a afirmativa de 
que o Congresso tem o poder de regular o comércio entre estados. Para justificar essa 
afirmativa, se poderia, presumidamente, referir o artigo primeiro da seção 8 da 
Constituição dos Estados Unidos da América: “O Congresso terá o Poder Para... regular 
o Comércio com Nações estrangeiras e entre os vários Estados”.5 Claramente, essa 
afirmação pressupõe que a Constituição dos Estados Unidos é direito válido. No 
entanto, o que justificaria essa afirmativa? A resposta natural seria que a Constituição 
foi ratificada por três quartos dos 13 estados originais. Então podemos perguntar: qual 
regra conferiu autoridade para que esses estados ratificassem a Constituição? 
Alguém pode se sentir tentado a mencionar o artigo VII da própria Constituição, 
que diz: “A Ratificação da Convenção dos nove Estados será suficiente para o 
 
5 Constituição dos EUA, art. I, seção 8. No original: “The Congress shall have Power To... regulate 
Commerce with foreign Nations, and among the several States.” 
Estabelecimento desta Constituição entre os Estados que ratificaram a mesma.”6 Essa 
resposta, todavia, não justificaria o poder jurídico, na medida em que o artigo é parte da 
própria Constituição. Ele não pode conferir autoridade aos que ratificam para ratificar a 
Constituição antes que ela própria esteja ratificada. Argumentar em outro sentido é o 
mesmo que entrar em círculo vicioso de pensamento. 
A única opção nesse caso é identificar alguma outra norma que confira poder aos 
ratificadores para ratificar a constituição do estado. Contudo, quem criou essa norma e 
de onde retiraram autoridade para fazê-lo? Novamente, qualquer resposta a essa 
pergunta irá simplesmente trazer uma nova pergunta. Tentar encontrar o topo da cadeia 
de autoridade, aparentemente, levar-nos-ia ou a um raciocínio em círculo ou a um 
regresso sem fim. Ainda, é precisamente esse tipo de autoridade última que deve ser 
encontrado para que afirmações sobre autoridades jurídicas sejam verdadeiras. 
Note que esse paradoxo é um clássico problema “do ovo e da galinha”. Por um 
lado, todas as galinhas devem vir de ovos de galinha. Por outro, todos os ovos de 
galinha devem ser colocados por galinhas. Esses dois princípios combinados sugerem 
que nem galinhas ou ovos de galinha podem existir em um universo finito, porque a 
existência de um pressupõe a existência do outro. 
Nosso paradoxo sobre a possibilidade do direito tem a mesma estrutura. Imagine 
que normas que confiram o poder legal sejam “ovos” e aquelas com poder de criar 
normas legais são as “galinhas”. Os princípios do Ovo e da Galinha podem ser assim 
representados: 
 
Ovo: alguém tem o poder de criar normas legais se uma norma pré-
existente lhe confere esse poder. 
Galinha: uma norma conferindo poder para criar normas legais existe 
apenas se alguém com poder a crie. 
 
Para perceber por que esses dois princípios tornam impossível a autoridade 
jurídica, assuma que A1 tem o poder de criar um conjunto de normas legais. Pelo 
princípio do Ovo, existe uma norma que confere poder a A1. Chame essa norma que 
confere poder de n1. Pelo princípio da Galinha, alguém com poder para criar n1 de fato a 
criou. Então, pergunta-se: quem criou n1, que conferiu poder a A1? A resposta não pode 
 
6 Constituição dos EUA, artigo VII. No original: “The Ratification of the Convention of nine States, shall 
be sufficient for the Establishment of this Constitution between the States so ratifying the Same.” 
ser “A1” porque ele não tinha o poder de criar nenhuma norma até que n1 existisse. 
Ficaríamos em um raciocínio circular ao dizer que A1 concedeu poder a si mesmo, 
porque n1 deveria existir antes que A1 pudesse criá-la. Assim, uma autoridade diferente, 
chamada A2, deve ter criado a norma que conferiu poder a A1. No entanto,de onde A2 
obteve o poder para criar n1? Novamente, se queremos evitar um raciocínio circular, a 
única resposta possível é que A2 obteve sua autoridade de A3. Não há, todavia, fim, 
nessa linha de raciocínio, mesmo que A3 existisse, deveria haver A4, A5, A6, A7 e assim 
por diante. Essa linha de argumentação pretende mostrar que nenhum argumento sobre 
autoridade jurídica é compatível com os princípios do Ovo e da Galinha sem acabar em 
círculos viciosos ou em regressos ao infinito. 
 
 
Nota sobre normas 
 O leitor mais cuidadoso deve ter notado que, na última seção, mudei a 
terminologia na metade do texto. Quando contei e história de Lex e de Phil, falei em 
“regras”. No entanto, ao formular a história dos princípios do Ovo e da Galinha e ao 
estabelecer a versão formal do paradoxo, utilizei o termo “norma”. Por que a mudança? 
 Ao construir uma narrativa, a razão para não usar a palavra “norma” é que 
pessoas comuns “normalmente” não a usam, ao menos no contexto da história. 
Podemos dizer que, por exemplo, mandar uma nota de agradecimento a alguém após 
receber um presente é “a norma”, mas não que existe “uma norma” para esse efeito. Em 
um contexto não acadêmico, poderíamos dizer que “existe uma regra segundo a qual 
devemos mandar uma nota de agradecimento, após receber um presente”, ou, talvez, de 
forma mais simples: “a regra é que todos devem mandar uma nota de agradecimento 
após receber um presente”. 
 “Norma”, por outro lado, é um termo da filosofia.7 Uma das razões pelas quais 
os filósofos usam o termo “norma”, ao invés de “regra”, é que regras necessariamente 
são gerais. Se o Congresso promulga uma legislação que impõe um tributo único a 
Acme Corp., ele não cria uma regra, pois a regra criada é individualizada e 
particularizada, aplica-se apenas a Acme e por apenas uma vez. Os filósofos precisam 
 
7 A palavra “norma” também é utilizada por juristas europeus para se referir ao que os juristas anglo-
americanos chamam de “regra”. 
de uma palavra que se refira aos procedimentos individuais e particulares, bem como 
àqueles gerais, então empregam o termo “norma” com esse propósito.8 
 A vantagem de usar o termo “norma” é que podemos jogar nossa rede da forma 
mais ampla possível. Formular o Princípio do Ovo em termos de “regras” deixa o 
princípio restrito, de forma arbitrária, a padrões generalizados de conduta. Há, 
entretanto, uma desvantagem em usar um termo técnico, como “norma”: os filósofos 
dispõem dele em muitas formas, frequentemente sem especificar explicitamente qual, 
em particular, estão usando naquele momento. 
 Na sequência, utilizarei o termo “norma” para indicar qualquer padrão - geral, 
individualizado ou particularizado - ou seja, algo que deve guiar a conduta e servir de 
base para avaliação ou para crítica.9 Regras rigorosas, máximas de experiência, 
presunções, princípios, padrões, linhas gerais, planos, receitas, ordens, máximas e 
recomendações, podem todos ser normas. Além disso, padrões morais, religiosos, 
institucionais, racionais, lógicos, familiares e sociais são também normas. 
 As normas devem ser distinguidas das sentenças que a representam. “Proibido 
tráfego de veículos no parque” é uma sentença que descreve a norma de que veículos 
não poderão trafegar no parque e, portanto, não pode ser a própria norma. Nem mesmo 
os textos que criam normas são normas. Quando o sargento diz: “limpe a latrina”, ele 
cria uma norma sobre limpar a latrina, mas a frase em si não é a norma criada. 
 Como seu nome mesmo sugere, normas são “normativas”, não descritivas. Elas 
não pretendem dizer aos seus sujeitos o que eles farão ou poderiam fazer, mas sim elas 
pretendem dizer o que, em certo sentido, os sujeitos estão autorizados, devem ou podem 
fazer. Por essa razão, é possível violar uma norma sem que ela se torne inválida, como é 
o caso de agir contrariamente a uma generalização de comportamento estrito: muitas 
pessoas em Nova York atravessam a rua fora da faixa de segurança, mesmo que essa 
prática seja proibida. 
 Tal como empregarei o termo, normas não precisam ser válidas. As normas 
sempre pretendem dizer o que você deve fazer ou o que é desejável, bom ou aceitável, 
 
8 Outra razão para que esse uso exista é que regras seguidamente são contrastadas com princípios (a regra 
seguindo o padrão tudo ou nada, enquanto o princípio ampara várias opções sem ser conclusivo) e, muitas 
vezes, com padrões (regras são objetos que podem ser aplicados sem avaliação, enquanto padrões devem 
ser aplicados utilizando avaliações). Sobre essas distinções, veja o capítulo 9 desse livro. Como regras, 
princípios e padrões são todos entidades normativas – e têm a intenção de dizer a você o que fazer ou que 
possui valor, o que é desejável, aceitável, etc – eles são todos normas. 
9 Como a norma adquire seu objetivo de guiar e avaliar depende do tipo de norma que ela é. Normas 
morais e lógicas adquirem seus objetivos da sua validade intrínseca. Planos pessoais, por outro lado, 
derivam suas funções das intenções a partir das quais eles foram criados. 
mas se elas de fato têm sucesso nessa tarefa é uma outra questão a ser discutida. Uma 
norma que diz para você fazer algo que você não deveria, é uma norma inválida. É uma 
norma ruim, mas continua sendo uma norma. Normas, nesse sentido, são como nomes, 
pois sempre têm como objetivo se referir a algo, apesar de algumas vezes não 
cumprirem o objetivo. “Papai Noel” é um nome, apesar de não se referir a ninguém. 
 
 
Soluções possíveis 
 
 O paradoxo que escolhi para esse tópico- que chamarei de “Paradoxo da 
Possibilidade”- desafia a idéia de que autoridades legais são possíveis. Nesse tópico, 
vou esboçar várias soluções para o paradoxo. O objetivo desse esboço não é descrever 
exaustivamente cada solução e avaliar seus méritos, mas familiarizar o leitor com as 
variadas respostas disponíveis na teoria jurídica e então fornecer um guia para o restante 
da discussão. 
 Começaremos com uma visão mais ampla. Conforme vimos nas sessões 
anteriores, chegamos até o paradoxo da Possibilidade porque aparentemente ninguém 
com poder de criar normas legais pode derivar seu poder de alguma norma, enquanto 
que qualquer norma que poderia conferir esse poder deve, ela mesma, ser criada por 
alguém com poder para tanto. No entanto, para demonstrar que o direito é possível, 
teremos que parar com esse regresso ameaçador. Há duas formas óbvias de fazer isso. 
Primeiramente, poderíamos rejeitar o princípio do Ovo achando algo cujo poder não 
necessite ser derivado de alguma norma. Chamemo-lo de “autoridade última”. Se uma 
autoridade última pudesse ser estabelecida, resolveríamos o enigma demonstrando que 
qualquer autoridade em qualquer sistema jurídico terá seu poder derivado dessa 
autoridade última. Não haverá risco de um regresso ao infinito porque a autoridade 
última não deriva sua autoridade de outra norma. 
 De forma alternativa, alguém pode frustrar o paradoxo encontrando uma norma 
que confira poder para criar normas legais, mas que não foi criada por alguém com um 
poder similar. Chamemo-la “norma última”. Normas últimas, se é que elas existem, 
param o regresso ao rejeitar o princípio da Galinha. O poder legal de qualquer pessoa 
em um sistema jurídico em particular poderia, assim, ser rastreado até uma norma 
última que exista sem ter sido posta por ninguém. 
 Durante toda a história da teoria do direito, diferentes autores optaram por 
diferentes estratégias. Uma bastante popular é dizer que Deus é a Autoridade Última. 
Assim, na visão clássica do direito natural, Deus criou a lei natural que confere o direito 
legal aos legisladorespara legislarem. A autoridade moral de Deus é, dessa forma, 
necessária e suficiente para criar autoridade jurídica. Um dos benefícios dessa 
concepção é que, se Deus existe, ele é um grande candidato a ser a Autoridade Última. 
Ao menos em concepções “voluntaristas” de ética teológica, Deus não deriva autoridade 
moral de alguma outra norma ou poder, mas é o motor imóvel de todas as regras e 
autoridade, jurídica ou não. 
 Como você deve estar imaginado, autores de direito natural moderno não se 
baseiam em Deus para resolver o paradoxo da Possibilidade. Eles tenderam a olhar a 
certos direitos morais de comunidades políticas para determinar os termos e direção da 
cooperação social. Na concepção padrão pós-Iluminista, por exemplo, o povo possui a 
autoridade moral para orientar suas vidas em comunidade como acreditarem ser melhor. 
Esse direito de soberania não deriva de Deus: deriva das regras ou princípios de 
moralidade política. E porque as regras de moralidade políticas são últimas – ninguém 
as criou – não há preocupação com o regresso ao infinito. O povo recebe dessas normas 
últimas sua autoridade para influenciar o processo legal e, assim, possui o poder para 
transmitir a legitimidade para legisladores democraticamente escolhidos. 
 Isso não significa que os autores de direito natural moderno estão 
comprometidos a reservar o rótulo de “direito” apenas para sistemas jurídicos 
democráticos. Eles também concedem esse poder a outros regimes em certas 
circunstâncias. No que eles realmente insistem, entretanto, é que a autoridade jurídica 
deve, em última instância, derivar de alguma norma moral. Explicando de uma forma 
um pouco diferente, isso significa que, segundo o direito natural, a existência de uma 
autoridade jurídica última repousa, em última instância, em fatos morais. É o fato moral 
de que Deus ou o Povo (ou possivelmente um ditador benevolente) possui a autoridade 
moral para conceder o poder a outros de agirem que os investe com autoridade jurídica. 
 As próximas duas soluções possíveis são “positivistas”, pois baseiam a 
autoridade jurídica não em fatos morais, mas em fatos sociais. A opção mais simples 
nessa ramificação é argumentar que a autoridade jurídica repousa ao fim e ao cabo no 
poder bruto – que “pode”, em última instância, produzir “direito” legal. Na concepção 
de John Austin, como veremos, o soberano deriva sua autoridade jurídica não de uma 
outra norma existente, mas da sua própria habilidade de coerção de acordo com sua 
vontade. O soberano é uma autoridade última porque seu poder de criar normas legais 
repousa meramente nos fatos sociais de que sua vontade é obedecida habitualmente pela 
comunidade política e de que ele habitualmente não obedece a ninguém mais. 
 Outra solução positivista é aquela em que se argumenta que todas as instâncias 
da autoridade jurídica são, em última análise, rastreáveis até uma regra social. Nessa 
visão, por exemplo, o povo possui, em países democráticos, o poder legal de selecionar 
seus legisladores não porque ele está moralmente autorizado a realizar tal ato, mas 
porque tribunais e outros funcionários públicos seguem regras que impõem deferência à 
sua escolha. Na concepção de H. L. A. Hart, por exemplo, essas regras existem não pelo 
exercício do poder normativo – os tribunais não possuem a autoridade jurídica para criar 
um sistema jurídico –, elas são simplesmente produtos de uma prática estabelecida de 
deferência Em outras palavras, as regras fundamentais de um sistema jurídico são 
normas últimas que repousam puramente em fatos sociais. 
 
 
A última instância 
 Conforme descrevi o debate na filosofia do direito, o positivismo jurídico afirma 
que o direito é, em última instância, determinado por fatos sociais apenas, enquanto que 
os autores de direito natural acreditam que os fatos morais desempenham também esse 
papel. É importante precaver o leitor para não interpretar essa descrição de forma literal. 
O positivismo jurídico não pretende seriamente dizer que o direito, em última instância, 
é determinado apenas por fatos sociais, pela simples razão de que pouquíssimas pessoas 
acreditam que os fatos sociais estejam entre os componentes últimos do universo. Que 
certos membros de um grupo pensem e ajam de um certo modo, não é um fato bruto 
semelhante à localização de um quark no espaço-tempo. Muitos filósofos acreditam, por 
exemplo, que fatos sociais podem ser reduzidos a fatos relativos à ação e à psicologia 
individuais. Alguns defendem que fatos sociais podem ser reduzidos a fatos morais. Da 
mesma forma, muitos filósofos acreditam que fatos morais são redutíveis a fatos não-
morais mais básicos. Na verdade, alguns afirmam até mesmo que fatos morais são 
redutíveis a fatos sociais de alguns tipos. 
 Para o nosso propósito, entretanto, essas questões metafísicas mais profundas 
serão ignoradas. Desenharemos uma linha metodológica abarcando o social e o moral e 
trataremos fatos sociais e morais como se eles fossem últimos. A nossa classificação de 
filósofos do direito, portanto, irá considerar apenas aqueles que estiverem acima da 
linha traçada. Iremos, por exemplo, classificar os autores como positivistas desde que 
eles pensem que fatos jurídicos são determinados apenas por fatos sociais, apesar de 
muitas vezes eles acreditarem que fatos sociais que baseiam fatos jurídicos são, em um 
momento posterior, redutíveis a fatos morais. 
 
 
O desafio de Hume 
 Não há dúvida de que alguns irão ver o Paradoxo da Possibilidade como uma 
charada, do tipo que filósofos adoram discutir, mas que tem pouco interesse para 
aqueles que não apreciam quebra-cabeças. Outros podem ainda considerar o Paradoxo 
irritante ou exasperante, uma artimanha filosófica, o equivalente, na teoria do direito a 
“Como sabemos que não estamos sonhando?” Já que sabemos que o direito é possível, 
da mesma forma que estamos convencidos de que não estamos sonhando, é inútil 
perdermos tanto tempo tentando refutar uma proposição que, usando uma frase do 
pragmático Charles Peirce, não é “uma dúvida real e viva”.10 
 No entanto, conforme mencionei no capítulo anterior, filósofos usualmente usam 
paradoxos como instrumentos analíticos para resolver problemas filosóficos 
importantes. Enigmas possibilitam que eles isolem suposições profundas e muitas vezes 
nunca examinadas que subjazem a nossa concepção de certa área ou assunto e mostram 
que essas pressuposições se chocam de alguma forma fundamental. O envolvimento 
com o enigma permite aos filósofos testar a validade de suas suposições e remover 
aquelas consideradas equivocadas. 
 O Paradoxo da Possibilidade, portanto, é melhor entendido como um 
instrumento analítico que filósofos do direito podem usar para determinar os 
fundamentos dos sistemas jurídicos. A questão ainda não respondida – “Em que se 
baseia a autoridade jurídica, apenas fatos sociais ou em fatos morais também?” – é 
muito abstrata para qualquer um fazer algum avanço. Perguntar a mesma coisa em 
forma de um paradoxo sobre a possibilidade do direito, todavia, fornece-nos um melhor 
indicativo de como resolver um assunto sobre o qual há dúvidas reais e vivas. Isso 
permite que filósofos olhem para a questão de um ângulo diferente e sugiram, assim, 
novas formas de resolvê-la. Isso nos instiga a, por exemplo, considerar os vários tipos 
 
10 PIERCE, Charles S. Selected Writings 100 (New York Courier Dover Publications, 1966). 
de normas ou autoridades últimas que existem e se a autoridade jurídica pode ser 
fundada em alguma delas. 
 Na medida em que o Paradoxo da Possibilidade afeta os fundamentos últimos 
dos sistemas jurídicos, sua solução possui grande influênciaprática, pois se as soluções 
positivistas estão corretas e o direito baseia-se apenas em fatos sociais, então a única 
forma de determinar definitivamente as regras fundamentais de um sistema jurídico e 
sua metodologia interpretativa própria é dedicando-se a uma pesquisa sociológica. No 
entanto, se os autores de direito natural estão corretos e o direito baseia-se também em 
fatos morais, então essas questões legais podem ser respondidas com o auxílio apenas 
de argumentos morais. O Paradoxo da Possibilidade, portanto, não é versão glorificada 
de palavras-cruzadas ou de Sudoku, resolvê-lo é uma questão de particular urgência 
para todos que se importam com a doutrina jurídica. 
 
 
Positivo vs. Natural 
 Conforme vimos, a solução para o Paradoxo da Possibilidade tem implicações 
importantes para o raciocínio jurídico. Como juízos legais devem seguir fatos jurídicos, 
uma teoria que nos diga quais fatos determinam, em última instância, o conteúdo do 
direito, será essencial para o desenvolvimento de uma outra teoria que nos mostre como 
descobrir o conteúdo do direito (como diria um filósofo, a metafísica do direito tem 
envolvimento direto com sua epistemologia). 
 Uma vez que a conexão entre a solução do Paradoxo da Possibilidade e o 
raciocínio jurídico se tornar evidente, um problema óbvio aparecerá para a teoria 
positivista. Para percebê-lo, voltemos ao nosso primeiro sistema jurídico fictício trinta 
anos a frente do que o deixamos. Lex está em seu leito de morte e precisa decidir qual 
de seus dois filhos, “Positivo” ou “Natural”, deve sucedê-lo. Já que Positivo era um 
pouco mais esperto que Natural, Lex apontou-o como seu sucessor. Naturalmente, 
Natural ressentiu a decisão e passou a odiar Positivo. 
 Com alguns anos de reinado, Positivo modificou a regra do dízimo, aumentando 
a quantidade de grão que cada membro deveria contribuir para o depósito coletivo. 
Como ninguém ficou feliz com essa decisão, Natural viu uma possibilidade para 
desafiar o poder do irmão. Durante a próxima reunião da vila, Natural levantou-se e 
enunciou que ele não ia se submeter à nova regra sobre o dízimo. “Mas Natural” 
protestou Positivo “Eu sou o legislador e você está juridicamente obrigado a me 
escutar”. 
 Natural já tinha convivido o bastante com Phil e aprendido alguns de seus 
truques. Em resposta ao protesto de Positivo, Natural utilizou-se do mesmo paradoxo 
sobre a possibilidade da autoridade jurídica que Phil havia criado para seu pai há 
décadas: como pode Positivo ter uma autoridade jurídica para criar regras, se regras são 
exigidas para conferir tal autoridade e a autoridade para criar tais regras? Positivo, no 
entanto, já tinha ouvido o enigma da boca de seu pai diversas vezes e já tinha pensado 
em uma resposta. Agora ele teria a chance de experimentá-la. 
 Positivo afirmou que a autoridade jurídica baseia-se, em última instância, no 
poder político. Como ele possui a capacidade de punir qualquer um que não pague o 
dízimo, ele tem um direito legal de impor uma obrigação de obediência a eles. Natural, 
entretanto, tinha uma resposta: “O mero fato de que você pode me punir é apenas um 
fato descritivo sobre o mundo. Sua argumentação apenas reporta o que é o caso, No 
entanto, para que eu esteja legalmente obrigado a escutá-lo, você precisa demonstrar 
que você deve ser juridicamente obedecido. Como ninguém pode derivar um dever de 
um ser, eu não posso ser juridicamente obrigado a escutá-lo.” 
 Positivo admitiu que Natural estava certo, mas tentou outra idéia na qual ele 
estava pensando. Autoridade jurídica, nessa visão alternativa, deriva da prática de 
deferência entre os membros do grupo. Positivo possui autoridade jurídica para obrigar 
outros porque todos o consideram com tendo tal autoridade. Natural, então, oferece a 
mesma resposta: “Dizer que todos pensam que você tem o direito de dizer a eles o que 
fazer é meramente um argumento descritivo sobre o mundo. Por outro lado, inferir que 
você realmente tem um direito é o mesmo que esboçar uma conclusão normativa. 
Afirmações normativas nunca podem ser deduzidas simplesmente de afirmações 
descritivas.” Positivo percebeu o ponto de Natural e então não soube o que responder. 
Assim, ele fez o que governantes fizeram durante os séculos àqueles dissidentes 
coerentes: Positivo executou-o.11 
 
11 Nesse sentido, ver a famosa resposta de John Austin ao jurista que defende o direito natural na obra The 
Province of Jurisprudence Determined, 158, Ed. Wilfred E. Rumble (Cambridge: Cambridge University 
Press, 1995). (“Suponha que um ato inócuo ou positivamente benéfico seja proibido pelo soberano e 
tenha como condenação a pena de morte; se eu cometer esse ato, devo ser julgado e condenado e, se eu 
apelar da sentença dizendo que a sentença é contrária à lei de Deus, que ordenou que legisladores 
humanos não proíbam atos que não tenham conseqüências más, a Corte de Justiça demonstrará a 
redundância dos meus argumentos e me enforcará, dando continuidade à lei cuja a validade eu 
impugnei.”) 
 Natural tinha boas respostas para as tentativas de Positivo de resolver o 
Paradoxo da Possibilidade e legitimar suas regras. Podem igualmente generalização 
suas objeções para aplicá-la a todas as formas de positivismo jurídico. De acordo com o 
positivismo jurídico, o conteúdo do direito é, em última instância, determinado apenas 
por fatos sociais. Para saber o direito, portanto, deve-se (ao menos em princípio) ser 
capaz de derivar essa informação exclusivamente do conhecimento de fatos sociais. No 
entanto, o conhecimento do direito é normativo enquanto que o conhecimento dos fatos 
sociais é descritivo. Como pode o conhecimento normativo ser derivado exclusivamente 
do conhecimento descritivo? Isso seria derivar juízos sobre o que juridicamente se deve 
fazer a partir de juízos sobre o que socialmente é o caso. O positivismo jurídico, 
portanto, aparentemente viola o famoso princípio introduzido por David Hume 
(geralmente chamado “Lei de Hume”), segundo o qual ninguém pode derivar um deve 
ser de um ser. 12 
 Já que esse é um desafio extremamente sério para o positivismo jurídico, 
passaremos mais tempo examinando como diferentes positivistas têm tentado resolvê-
lo. Primeiramente, contudo, quero descrever o desafio em maiores detalhes. 
 
 
Nino e Dino 
 Suponha que eu diga para uma criança “guarde seus brinquedos!” A criança me 
olha com cara de perplexidade e responde “por que eu deveria obedecer a você?” Eu, 
então, digo “porque eu disse”. Nesse ponto, a criança reclamaria “mas por que eu 
deveria obedecer a você só porque você disse?” Quando digo “porque sou seu pai”, ela 
responde “e por que os filhos devem obedecer a seus pais?”. Eu respondo “porque os 
filhos sempre obedecem a seus pais” e meu filho dispara “sim, mas o fato de que 
crianças sempre obedeceram a seus pais não significa que elas devem obedecer”. 
 Note que apesar de estar sendo inconveniente e imprudente, a criança tem, de 
fato, um ponto. Ela está correta em sustentar que quando eu digo para ela guardar seus 
brinquedos porque eu sou seu pai, ou porque as crianças sempre escutam seus pais, nada 
disso pode, por si só, ou conjuntamente, fornecer uma razão para que ela me obedeça. 
Esses fatos são meramente descritivos e, segundo a Lei de Hume, nenhuma conclusão 
normativa pode seguir-se de sentenças que os descrevam. Com o objetivo de justificar 
 
12 Ver HUME, David. A Treatise of Human Nature, vol. III, parte 1, fim da seção 1. 
minha reivindicação por autoridade, eu devo produzir um princípio que faça uma ponte 
entre o descritivo e o normativo. Tem que ser algo do tipo“você deve me obedecer 
porque crianças devem respeitar seus pais” ou “se você não obedecer, eu vou puni-lo e 
punições são ruins”. 
 Como conclusões normativas não podem ser derivadas exclusivamente de 
premissas descritivas, raciocínios normativos devem ter certo grau de dedução: eles 
devem assegurar que seu raciocínio utilize um juízo normativo como input para que um 
juízo normativo seja um output. Chamo esse modelo de dedução do tipo “entra 
normativo/sai normativo”13 de uma inferência modelo “NINO”. A Lei de Hume é 
violada, portanto, se um juízo normativo for produzido na base apenas de juízos 
descritos. Chamemos essa sequência de modelo “DINO”. 
 A preocupação relativa ao positivismo jurídico, pode-se dizer, é que ele viola a 
Lei de Hume por permitir padrões DINO de inferência. Suponha que alguém realizando 
um raciocínio jurídico quer responder alguma questão que exija conhecimento das 
regras fundamentais de um sistema jurídico. Digamos que ele quer saber se o presidente 
possui o poder de declarar guerra ou se a pena de morte é constitucional. Para obter a 
resposta, o positivismo requer que a pessoa considere alguns fatos sociais. Assim, a 
teoria positivista permite àquele que está pensando sobre a questão derivar juízos 
normativos sobre direitos e deveres a partir de juízos descritivos sobre fatos sociais. 
Juízos normativos saíram, mas nenhum entrou. Essa objeção ao positivismo jurídico é 
chamada de “Desafio de Hume”. 
 A teoria do direito natural passa intocada pela Lei de Hume, uma vez que 
resolve o Paradoxo da Possibilidade através de fatos morais, ao invés de sociais. Para 
responder questões que requerem o conhecimento de regras jurídicas fundamentais, 
deve-se formar juízos morais e usá-los como premissas para deduzir conclusões 
jurídicas. Como tanto o juízo jurídico quanto o moral aparentam ser normativos, o 
direito natural respeita o modelo NINO. Juízos normativos sobre o direito podem ser 
deduzidos apenas porque juízos normativos sobre a moral serviram como ponto de 
partida. 
 
 
 
13 N.T. No original o modelo de dedução é dito “normative in, normative out”, formando com a primeira 
letra de cada palavra o termo NINO. O mesmo acontece com DINO, pois podemos inferir do texto a 
seguinte frase “descriptive in, normative out”. 
Escolha seu remédio amargo 
 Poder-se-ia pensar que a teoria positivista foi de tal modo avariada pelo Desafio 
de Hume, que devesse ser rejeitada em favor da teoria do direito natural. No entanto, a 
teoria do direito natural também possui problemas sérios. Por insistir em basear a 
autoridade jurídica na autoridade moral ou em normas morais, a teoria do direito natural 
afasta a possibilidade de sistemas jurídicos maus. Conforme observamos no último 
capítulo, é um truísmo que a União Soviética possuía um direito, mesmo que a liderança 
exercida pelo Partido Comunista não tivesse legitimidade moral. 
 Chamemos isso o “Problema do Mal”. Assim como teólogos se esforçaram para 
provar que o mal é possível, tendo em vista a bondade de Deus, o direito natural deve 
contar com a possibilidade de um sistema jurídico mau, já que, segundo esses autores, o 
direito é baseado em fatos morais. Positivistas, por outro lado, não possuem essa 
dificuldade. Segundo a teoria positivista, a União Soviética teve um sistema jurídico 
porque os oficiais soviéticos tinham poder de coerção sobre a população ou porque os 
oficiais soviéticos reconheciam a autoridade soviética. Em ambos os casos, a autoridade 
jurídica de regimes maus pode ser explicada apelando-se para certos fatos sociais, em 
oposição aos fatos morais. 
 Escolher um ponto de partida para o nosso exame, portanto, é como um 
exercício de escolher entre remédios amargos. Assim, não seria errado dizer que ambas 
as posições são, perante a ciência do direito, altamente problemáticas. Com efeito, o 
debate entre positivismo jurídico e direito natural é tão interessante e dura há tanto 
tempo, que parece que nenhum dos lados é o correto. Por um lado, se seguirmos o 
direito natural e tentarmos resolver o Paradoxo da Possibilidade baseando o direito em 
fatos morais, excluiríamos a existência de sistemas jurídicos moralmente ilegítimo. 
Mesmo que evitássemos completamente apelar a fatos morais e seguíssemos a teoria 
positivista, que baseia o direito apenas em fatos sociais, resolveríamos o Paradoxo da 
Possibilidade apenas pagando o preço de violar a Lei de Hume. Filósofos do direito 
encaram, dessa forma, um terrível dilema: são execrados se baseiam o direito em fatos 
morais e também o são se não o fizerem. 
 Nos próximos capítulos, examinaremos as respostas que o positivismo jurídico 
tem oferecido a esses paradoxos e desafios, começando pela teoria do direito de John 
Austin e então passando a considerar outras explicações positivistas. Quero começar 
com os positivistas não porque as objeções à teoria do direito natural sejam mais fortes, 
mas pela simples razão de que as objeções à teoria positivista são mais interessantes e 
possuem uma prioridade lógica. Assim, considere de que modo os filósofos do direito 
natural devem responder ao Problema do Mal. Eles devem: (1) negar que estejam 
desdenhando um truísmo; (2) afirmar que o desdenho do truísmo não é tão ruim quanto 
os problemas encontrados pelos positivistas. A primeira parte dessa resposta pode estar 
correta (embora eu duvide disso), mas não é interessante, porque, afinal, ela não é nada 
mais que uma declaração desafiadora de que regimes jurídicos maus não são possíveis. 
Uma vez que esse caminho é adotado, não é claro onde a conversa pode parar. Por outro 
lado, a segunda parte da resposta dos jusnaturalistas é filosoficamente interessante, mas 
sua validade pode ser avaliada apenas quando tivermos determinado a força das 
objeções contra os positivistas. Assim, saberemos qual remédio amargo escolher apenas 
quando avaliarmos o grau de toxidade dos positivistas. 
 
 
 
Capítulo 3: A Teoria da Sanção de Austin 
 
Brincadeira de criança 
 Para ter uma idéia do quão difícil é encontrar uma teoria do direito plausível, 
tente explicar o que é direito para uma criança esperta de cinco anos de idade. Crianças 
dessa idade são ótimas pra testar teorias desse tipo, porque mesmo que elas já tenham 
adquirido certo conhecimento sobre idéias normativas, como o significado de: REGRA, 
DEVER e ERRADO, elas não possuem qualquer dos conceitos jurídicos distintivos. A 
ingenuidade para com os conceitos impede a nossa tentação de descrever o direito como 
sendo “aquelas regras feitas por autoridades jurídicas”, pois a criança de cinco anos não 
tem idéia do que seja uma autoridade jurídica. Crianças não dominam conceitos 
normativos sofisticados, como PRÁTICA ou INSTITUIÇÃO, então qualquer descrição 
do direito teria que explicar a prática jurídica e as instituições em termos mais simples. 
 Se você for como eu, você provavelmente vai ficar tentado a oferecer uma 
explicação como a seguinte: “o direito consiste naquelas regras que, se desobedecidas 
por um adulto, um policial poderá puni-lo, forçando-o a pagar algum dinheiro ou a ficar 
um tempo em um lugar chamado ‘cadeia’”. Essa descrição, entretanto, não é satisfatória 
o bastante, não apenas porque policiais normalmente não punem quem viola a lei, mas 
porque ela faz referência a policiais e usa, portanto, um conceito jurídico (embora seja 
um dos poucos conceitos jurídicos que as crianças parcialmente dominem). Então, 
alguém pode tentar dizer que “o direito consiste naquelas regras que se desobedecidas 
por um adulto, pessoas cujo trabalho é pegar e punir quem desobedece à lei podem 
puni-lo, forçando-o a pagar algum dinheiro ou a ficarum tempo em um lugar chamado 
‘cadeia’”. 
 Essa descrição, é claro, é incompleta, não nos diz, por exemplo, de onde vêm as 
regras, nem especifica como essas regras devem ser interpretadas. Esse esboço, no 
entanto, não tem o objetivo de ser uma teoria completa do direito – é supostamente para 
exprimir em uma frase a identidade do direito, ou seja, a propriedade ou as propriedades 
que façam do direito o que ele é e que o distingam de outras regras ou práticas sociais. E 
à primeira vista ao menos, a descrição desempenha bem seu papel. Primeiro, porque a 
descrição faz referência a conceitos normativos simples, relativamente sem problemas, 
como REGRA, EMPREGO e PUNIÇÃO- conceitos perfeitamente entendidos por 
crianças. Segundo, ela é razoavelmente boa ao separar o direito de outras práticas 
sociais. Normalmente, punem-se as crianças tirando algo de valor delas ou deixando-as 
de castigo, o que não acontece com adultos. Isso é extraordinário, pois quando ocorre, 
apenas algumas pessoas podem utilizar-se da força para garantir o cumprimento das 
regras jurídicas. Terceiro, a descrição revela por que muitas pessoas se importam com o 
que é o direito: para não serem punidas. A motivação é, mais uma vez, clara para uma 
criança de cinco anos de idade. 
 Nesse capítulo, discutirei uma família de teorias jurídicas que melhoraram essa 
descrição básica. Tendo em vista que essas justificativas usam sanções como centrais 
para estabelecer a natureza do direito, vou me referir a elas como “teorias jurídicas da 
sanção”. Conforme veremos, mesmo que as teorias da sanção sejam intuitivamente 
atraentes, elas estão, contudo, seriamente equivocadas e não podem representar teorias 
plausíveis do direito.

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