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Capítulo 5 Fenomenologia e Psicologia Vinculações Adriano Holanda Joanneliese de Lucas Freitas Introdução Há hoje, certamente, um problema no campo da psicologia quando se pensa nas relações possíveis entre a psicologia e a fenomenologia. Com uma profusão de teorias e práticas que se denominam fenomenológicas, percebe-se a fragilidade com que a fenomenologia, e seu método vêm sendo tomados. Por vezes, torna-se pouco clara a filiação ou relação entre tais abordagens e a proposta fenomenológica. De fato, Husserl, pensador que inaugura a fenomenologia transcendental, foi com certeza um dos mais importantes e influentes pensadores do século XX, bastando para tal, observar o conjunto de pensamentos que brotaram de suas reflexões – direta ou indiretamente – como podemos verificar em praticamente todas as filosofias da existência contemporâneas. Seu pensamento possui implicações para diversas áreas do conhecimento, tais como psicologia, 98 Adriano Holanda e Joanneliese de Lucas Freitas C on fir m ar psiquiatria, filosofia, teoria do conhecimento, existencialismo e para os estudos da cognição. Neste estudo nos interessam os entrelaçamentos entre a fenomenologia e a psicologia desde sua fundação. Para abrir a discussão sobre as possíveis relações entre a fenomenologia e a psicologia, devemos entender o vínculo estreito entre ambas. Husserl defenderá, ao longo do seu trabalho, que a psicologia fenomenológica “pretende ser o fundamento metódico sobre o qual se possa por princípio erigir uma psicologia empírica cientificamente rigorosa” (Husserl, 1992, p. 35). A psicologia puramente fenomenológica seria o princípio de uma psicologia empírica exata, bem como desvelar a essência da fenomenologia transcendental. Pela redução eidética, poderíamos ter acesso às configurações essenciais da consciência e então alcançaríamos a possibilidade de uma “psicologia pura”, assim como há a “lógica pura” ou a “matemática pura”. Isso introduz um “projeto” para a psicologia, que Husserl desenvolve ao longo de sua obra, e que caracteriza, inclusive, uma das “etapas” de seu pensamento. Sobre a evolução da obra Husserliana Para que possamos compreender a Fenomenologia, faz-se necessário um olhar de totalidade, que recupere dois movimentos – constantes na obra husserliana – que são o de um trabalho contínuo, ininterrupto e constante, de reflexão (o que faz com que Husserl pense e repense continuadamente seus conceitos e sua obra, em um movimento incessante de ir e vir) e o de inacabamento (Holanda, 2002). Este, a nosso ver, é um dos problemas inerentes ao pensamento husserliano, que torna sua obra de difícil acesso e, por vezes, árida: o fato de que uma visão continuada – histórica – e ao mesmo tempo prospectiva seja necessária para apreender-lhe como um todo. Com isso, queremos significar o fato de ser comum uma apreensão limitada do pensamento e da obra de Husserl, descaracterizando-se dois aspectos cruciais: a) em primeiro lugar, e metaforicamente caracterizado por um de seus mais brilhantes escritos – A Filosofia como Ciência de Rigor (Husserl, 1965) – o de que suas ideias caminham numa linha de Fenomenologia e Psicologia 99 desenvolvimento “rigoroso”, fiel à sua história com as matemáticas, e que tal caminhar nos dá passos necessários de serem considerados numa cadeia de entrelaçamentos e b) o de que suas ideias podem ser organizadas em “etapas” ou “fases”, relativamente bem-definidas, como tentativas de compreender seu pensamento nesse fluxo contínuo de desenvolvimentos, como o fizeram diversos comentadores (Lantéri-Laura, 1963; Dartigues, 1992; Mora, 1994; Smith; Smith, 1996, Holanda, 2002). O “recorte” da obra de Husserl – muito comum em comentários apressados sobre seu pensamento – é responsável pela maior parte dos mal-entendidos sobre suas ideias, e recrudesce a percepção de hermetismo que a fenomenologia carrega. Assim, tomando sua obra com base na complexidade que lhe é característica, numa visão de “todo”, podemos perceber que boa parte dos desenvolvimentos da fenomenologia tardia já se encontrava presente em suas primeiras intuições, mas que somente poderiam vir a ser concretizadas a posteriori, dentro do processo evolutivo de seu pensamento. Salientamos a hipótese de que um olhar progressivo e prospectivo para as ideias fenomenológicas se faz necessário. Exemplifiquemos com um comentário relativamente comum associado à fenomenologia, qual seja, de caracterizá-la como um “subjetivismo”, associada ao “idealismo transcendental”. De fato, esse foi um movimento necessário do pensamento husserliano, mas que não o constitui em sua totalidade. Com isso, queremos afirmar, por exemplo, que a fenomenologia não é um idealismo transcendental, mas também o foi em determinado momento, necessário para a evolução desta. Recuperemos um lúcido comentário de Merleau-Ponty (1945), que, em sua magistral Fenomenologia da Percepção, afirma que o método fenomenológico somente é acessível se o compreendermos como um estudo das essências que as recoloca na existência, que a fenomenologia é uma filosofia transcendental, com a ambição de uma ciência exata que busca continuadamente a descrição da experiência tal qual ela se apresenta num mundo que está sempre lá. Somente através desse olhar progressivo compreendemos como Husserl alcança o “mundo-vida” – o Lebenswelt – ao final de sua obra, tendo essa ideia já de forma embrionária em suas Ideen, de 1913 (Smith; 100 Adriano Holanda e Joanneliese de Lucas Freitas Smith, 1996; Holanda, 2002), e como, ainda, a fenomenologia pode ser a precursora de todo um movimento existencialista de meados do século XX, como já afirmara Pierre Thévenaz, em 1952, num estudo sobre a “descendência espiritual” de Husserl, quando afirma que “para ele [Thévenaz], os verdadeiros herdeiros de Husserl são os existencialistas franceses” (Ricoeur, 2010, p. 154)1. Com isso, já adiantamos nossa discussão sobre as relações da fenomenologia com a psicologia, considerando-as como um momento importante do pensamento e da obra husserlianas. Nesse debate sobre a evolução e desenvolvimento das ideias fenomenológicas, considera-se um entrelaçamento entre o trabalho acadêmico de Husserl e sua produção intelectual, diferenciando-se as diversas “fases” de seu pensamento, associando-o aos momentos nos quais esteve envolvido em trabalhos acadêmicos nas variadas instituições em que lecionou. Husserl lecionou em três universidades, em períodos distintos: de 1887 a 1901, na Universidade de Halle; de 1901 a 1916, em Göttingen e, de 1916 a 1928, em Freiburg. Nesta última, ao retirar-se, quem o substituiu foi ninguém menos que Martin Heidegger, situação esta que gerou considerável polêmica na época e ainda hoje alimenta discussões diversas. Para além de seu trabalho acadêmico, vale lembrar que, mesmo fora da universidade, Husserl não para de produzir, havendo inclusive um período – de 1928 a 1938 (ano de seu falecimento) – que corresponde ao único período “não acadêmico” de seu pensamento. Tal movimento de tentar organizar a complexidade do pensamento husserliano leva vários comentadores a buscas por sistematizações de sua obra. Mora (1994), por exemplo, cita especificamente duas dessas empreitadas e de seus propositores: Eugen Fink (que foi colaborador direto de Husserl) – para quem Husserl passa por três períodos, relativos às universidades nas quais trabalhou, qual sejam: o período de Halle, cuja obra representativa seria as Investigações Lógicas; o período de Göttingen, na qual Husserl escreve as Idéias; e o período de Freiburg, período da Lógica Formal e Transcendental – e Herbert Spiegelberg (um 1. Nesse texto, Ricoeur refere-se ao artigo intitulado “Qu’est-ce que la phénoménologie?”, de Thévenaz, publicado na Revue de Théologie et de Philosophie deLausanne, em 1952. Fenomenologia e Psicologia 101 dos mais importantes comentadores da fenomenologia para a psicologia e a psiquiatria) – que propõe igualmente três períodos, a saber: o Pré fenomenológico, até 1901 (ao que corresponde o primeiro volume das “Investigações”); o Fenomenológico, até 1906 (segundo volume das “Investigações”) e o da Fenomenologia Pura, do idealismo transcendental. O que mais nos interessa tomando por base essa discussão, são dois aspectos: primeiramente, o fato de que tanto a preocupação de Husserl com a epistemologia, quanto os primeiros passos da fenomenologia se dão em relação direta com a psicologia. Ao que a maioria dos comentadores se refere como a “primeira” fase de seu pensamento, designa-se como uma “fase psicologista” ou “pré-fenomenológica”, e que corresponde à fenomenologia como uma psicologia descritiva. Esse primeiro período do pensamento husserliano coloca-o em relação direta com os trabalhos de Franz Brentano, Carl Stumpf, Alexius von Meinong e outros, o que revela a mencionada relação estreita com a psicologia (Mora, 1994). Smith e Smith (1996) – que igualmente propõem uma leitura em três etapas da fenomenologia – assinalam que seu primeiro momento seria caracterizado como uma posição psicologista dos fundamentos da aritmética como ponto de partida de uma posterior posição antipsicologista para a lógica e as matemáticas. Somente depois Husserl tomaria uma posição voltada para uma concepção de filosofia baseada na psicologia descritiva de Brentano até o desenvolvimento da fenomenologia e do idealismo transcendental, dirigindo-se posteriormente, para uma “fenomenologia da intersubjetividade” e para uma ontologia do mundo da vida, abarcando os mundos sociais da cultura e da história. Psicologia: um problema fenomenológico? As relações entre a fenomenologia e a psicologia remontam, pois, à própria origem da fenomenologia husserliana. Seus primeiros estudos versaram sobre a questão da lógica e dos números. Como aluno de Brentano, Husserl é herdeiro de sua psicologia descritiva – título inclusive de uma das obras de Brentano, Psicologia Descritiva, de 1894 – e da compreensão da consciência enquanto ato. Ele se dedicará, nos 102 Adriano Holanda e Joanneliese de Lucas Freitas primeiros anos, a compreender quais são as operações necessárias para a aritmética. Desde o princípio, emprenhou-se em explorar os problemas em torno das possibilidades cognitivas do pensamento, mesmo que negasse o pensamento vigente na filosofia da época, que postulava uma identidade entre o ato psicológico e seu conteúdo. Do projeto brentaniano de psicologia, destacam-se alguns prin- cípios que serão retomados por Husserl na Fenomenologia. Um desses princípios – derivado igualmente das reflexões de Wilhelm Dilthey – diz respeito ao fato de que, no que se refere aos fenômenos psicológicos, a descrição deve preceder a explicação. Tanto para Dilthey, quanto para Brentano, uma psicologia explicativa fundamenta-se nas ciências da natureza, que trabalha com leis gerais e vínculos de dependência entre o psíquico e o orgânico; já uma psicologia descritiva não firmará relações da causalidade entre a vida anímica – o “espírito”, o “psíquico” – e a vida natural (Holanda, 2002; Maciel, 2003; Goto, 2008). É nessa direção que Dilthey vai afirmar a necessidade de compreender a vida pela própria vida: As ciências do espírito distinguem-se das ciências da natureza, em primeiro lugar, porque estas têm como objecto seu factos que se apresentam na consciência dispersos, vindos de fora, como fenómenos, ao passo que naquelas se apresentam a partir de dentro, como realidade e, originaliter, como uma conexão viva. Por isso, nas ciências da natureza é-nos oferecido um nexo natural só através de ilações suplementares, mediante um complexo de hipóteses. Pelo contrário, nas ciências do espírito, a base é a conexão da vida anímica como algo originariamente dado. “Explicamos” a natureza, “compreendemos” a vida anímica. Na experiência interna são também dados os processos de causação, dos laços das funções, como membros singulares da vida psíquica, num todo. Primordial é, aqui, a conexão vivida, secundária a distinção dos seus diversos membros (Dilthey, 2002, p. 22).2 Retornando a Brentano, há ainda que se destacar a sua consi deração da inseparabilidade entre ciência e filosofia, como duas “visadas” da mesma 2. Texto publicado em 1894, cujo título original é Ideen über eine beschreibende und zergliedernde Psychologie. Fenomenologia e Psicologia 103 realidade, a atestação da existência de aspectos gerais ou “universais” com base nos dados relevantes da realidade, e a possibilidade de se acessarem os dados da consciência de forma imediata, mediante a Wahrnehmung – a “apercepção” ou a “percepção interior”, também designada por “intuição” –, em oposição à Selbstbeobachtung, a “introspecção” ou “autoinspeção” (Maciel, 2003). Para Brentano, é a intencionalidade, como característica funda- mental dos atos psíquicos, que designa o conhecimento como “um concreto e total estar referido a alguma coisa exterior” ou, como um “reportar- -se incessantemente ao mundo” (Maciel, 2003, p. 31). Husserl – que principia suas reflexões psicológicas e filosóficas a respeito da natureza e apreensão do número – em sua Filosofia da Aritmética, de 1891, sustenta que os números não estão prontos na natureza, mas são resultantes de uma operação mental. Foi Karl Weierstrass, matemático com quem Husserl trabalhou, que o incentivou a começar pelo estudo do conceito de número, com vistas a encontrar o fundamento último ou o “sentido radical da aritmética”: Para Husserl [...], a análise dos números deveria iniciar pela análise da multiplicidade, porque, como expressa a definição universalmente aceita, os números são, em verdade, quantidades de unidades. Assim, se o número é uma multiplicidade de unidades e, como indicara Weierstrass, a multiplicidade ocorre pelo ato de contar, a única forma de investigação estaria no alicerce psicológico do conceito de número, recorrendo à Psicologia Descritiva, elabo rada por Brentano nas suas preleções de 1884 a 1886 (Goto, 2008, p. 42). É nesse esteio que Husserl se depara com a noção de intencionalidade, tomada de empréstimo por Brentano dos escolásticos medievais, e sob o qual se sustenta a psicologia brentaniana. Nada mais natural que, dessa forma, Husserl adote o psicologismo como justificação filosófica para seus estudos sobre o número (Goto, 2008). Do ponto de vista da psicologia brentaniana e com as críticas que recebeu, Husserl começou a questionar-se sobre as relações entre a lógica e os atos psicológicos. A concepção de número adotada por Husserl foi duramente criticada por Frege, que o acusa de assumir uma posição ingênua. Tal crítica faz que Husserl descubra as Wissenschaftslehre de Bolzano (Holanda, 2002). 104 Adriano Holanda e Joanneliese de Lucas Freitas Essencialmente apreciado como matemático, embora tivesse discípulos conhecidos [Bolzano] não exerceu influência filosófica de relevo durante a vida. A psicologia dos juízos e das representações da Wissenschaftslehre, parte fundamental da sua teoria do conhecimento, já foi relevante para Brentano. Todavia, só quando Husserl chamou a atenção para o empenho de Bolzano em fundar uma lógica liberta de prejuízos psicologistas é que se generalizou o apreço por este filósofo [...]. Em 1905, cinco anos depois,3 numa carta a Brentano, Husserl confirma a influência que sobre ele Bolzano exerceu, mas esclarece que qualquer exploração místico-metafísica de idéias ou de possibilidades ideais é alheia à sua filosofia e que não se considera propriamente seu discípulo, porque Bolzano permaneceu fora da teoria e da fenomenologia do conhecimento (Fraga, 1990, p. 724). A crítica de Frege e oaprofundamento do pensamento de Bolzano levam Husserl a rejeitar o psicologismo. Já nas Investigações Lógicas, de 1900-1901, Husserl afirma que as leis lógicas são rigorosamente universais e não dependem de leis psicológicas (Holanda, 2002). Apesar de rapidamente abandonar a psicologia descritiva de Brentano, Husserl mantém sua dedicação à reflexão rigorosa sobre as relações entre os atos psíquicos e seus conteúdos, ou seja, sobre como se dão as relações entre sujeito e objeto, o que o obrigou a um retorno à filosofia e à psicologia para compreender o papel do “eu” na constituição do mundo. A Fenomenologia – propriamente dita – inicia-se, portanto, com um retorno ao “eu” e suas relações com o mundo (Fink, 1966; Bello, 2006). Para tal empreitada, e como bom matemático que foi, Husserl percebe que é necessária a estruturação de um método e delimita o campo do seu método pelas reduções, numa direção similar a Descartes, a quem apontava como responsável por suscitar o problema transcendental. Ao buscar compreender essa relação homem-mundo (noesisnoema) pela via das reduções – mas evitando o equívoco cartesiano que mantém a subjetividade separada do mundo – Husserl caminha em direção à compreensão do sujeito do ponto de vista transcendental. A fenomenologia 3. Aqui o autor se refere à publicação de Husserl das Logische Untersuchungen (As Investigações Lógicas) de 1900-1901. Fenomenologia e Psicologia 105 transcendental poderá marcar a diferença entre a psicologia e a fenomenologia psicológica, quando diferenciará o ego transcendental da camada psíquica, inaugurando a possibilidade de se pensar um fenômeno fora das esferas psíquicas ou naturais. Com a publicação das Investigações Lógicas, em 1900-1901, Husserl procura circunscrever um espaço de delimitação entre o psicologismo e a lógica formal, dando origem à fenomenologia. Husserl entende a psicologia como uma ciência pura dos fatos psíquicos e defende que somente a análise fenomenológica será capaz de evidenciar a dimensão psíquica, onde esta se encontra intimamente relacionada ao mundo, mas não a um mundo de fatos e dados, mas, sim, a um mundo de sentidos (Bello, 2006). É assim que Husserl – “via uma crítica do logicismo” – propõe uma “psicologia descritiva das vivências” (Depraz, 2007, p. 21), erigindo sua nova disciplina na crítica a duas concepções: de um lado, que as categorias lógicas não têm existência fora de um sujeito que as concebe, como seria a tese do logicismo e, por outro lado, que essas mesmas concepções não são produtos exclusivos de um sujeito singular, como seria a tese do psicologismo, na pretensão de reduzir os conceitos universais aos processos psicológicos. Sob essa égide, Husserl constrói um projeto que vai caracterizar a fenomenologia como “psicologia fenomenológica” (Depraz, 2007). A contribuição metodológica e a esfera transcendental Já em sua Filosofia como Ciência de Rigor, de 1910, e, poste- riormente, em Psicologia Fenomenológica, Husserl (2001) aponta que a psicologia não resistiu à tentação do naturalismo que é cego à essência específica da vida psíquica – o que ainda podemos constatar em nossos dias. Tal crítica possui implicações relevantes de ordem metodológica, o que, por conseguinte, se torna uma das contribuições de maior relevo de Husserl à psicologia. Husserl pretendeu oferecer um fundamento metodológico ao estudo da consciência que considerasse como central o aparecer do 106 Adriano Holanda e Joanneliese de Lucas Freitas fenômeno com base em sua própria estrutura e não apenas como um dado natural, desconectado do sujeito. Com a psicologia fenomenológica, Husserl recoloca a objetividade na subjetividade, apresenta um esforço de “voltar às coisas mesmas”, convidando-nos a “colocar entre parênteses e começar tudo de novo” (Bello, 2006). Quando a trajetória husserliana é colocada desse ponto de vista, uma pergunta que pode surgir – ou um equívoco –, é a de que a fenomenologia seria um “tipo” ou uma espécie de psicologia. Entretanto, apesar de relações importantes entre as duas correntes de pensamento, não há como confundir o projeto de Husserl com um projeto de uma psicologia, tal como ocorre em Brentano com sua psicologia do ato. Para Husserl, é a filosofia que deve oferecer fundação à psicologia. Para entendermos as suas diferenças, desde que estejam claras as suas íntimas relações, primeiro é necessário esclarecer o projeto fenomenológico de Husserl. Segundo Fink (1966), a pretensão de Husserl era a de fundar não uma nova psicologia – apesar de querer, com a fenomenologia, oferecer a esta um terreno seguro para seu desenvolvimento – mas (re)fundar a própria filosofia. Dar-lhe, enfim, um fundamento e estatuto de rigor com seu método, que permitiria, com o ato de filosofar, um retorno ao próprio sujeito, mas colocado da perspectiva transcendental. A Fenomenologia constitui-se, assim, como um esforço que rompe com a atitude natural para que consigamos – não sem muita dor – divisar o que é próprio da subjetividade e não mais nos enganar com sua facticidade. A redução faz aparecer a consciência transcendental, como autêntica essência do espírito, ao mesmo tempo em que revela a própria esfera natural. O sentido essencial do problema transcendental é, segundo Husserl (1992), sua universalidade. O psicologismo pode então ser superado quando é a filosofia que fundamenta a psicologia e não o inverso. A fenomenologia inaugura, assim, um novo olhar sobre a subjetividade, diferenciando a subjetividade transcendental – que se desvela apenas pelo método fenomenológico e suas reduções – da subjetividade psicológica. A Fenomenologia consegue cumprir essa tarefa, alargando os limites da própria subjetividade, proporcionando um novo olhar sobre esta. Tomando-se por base a redução transcendental, o homem não é compreendido apenas como Fenomenologia e Psicologia 107 eu empírico, mas, a cada passo metodológico, aproxima-se do lugar originário do próprio ser, da estrutura de sua essência. A questão fundamental para essa virada fenomenológica torna- se, portanto, estabelecer a diferença entre subjetividade transcendental e a subjetividade psicológica, a diferença entre o eu puro constituinte – transcendental – e o eu real constituído (empírico). Segundo Bonomi (1971, p. 31), “o eu transcendental é, por assim dizer, a estrutura permanente no âmbito dos múltiplos atos intencionais que fluem na vida subjetiva concreta”. Já nas Investigações Lógicas, Husserl divisa o critério que será fundamental para o estabelecimento desse novo projeto de uma psicologia fenomenológica: a vivência. No fundo, é em torno à noção de “vivência” (Erlebnis) que se cristaliza a originalidade do projeto husserliano. Nem conteúdos, nem estados, nem atos da consciência, as vivências de um sujeito formam a textura imanente de sua consciência, pela qual é capaz de se apropriar dos objetos do mundo, recebendo-os a princípio pela sua qualidade sensorial, material e sensível. Assim, falaremos de uma vivência de percepção, mas também de uma vivência de empatia, ou ainda de uma vivência lógica. Entretanto, a vivência não é puramente interna à consciência, sem a qual permaneceria privada e não teria qualquer chance de alcançar a objetividade de uma verdade possível. Husserl também confere à vivência uma dupla objetivação, que passa, por um lado, por seu vínculo com os objetos do mundo, e, por outro, pela necessária liberação de sua essência (Depraz, 2007, p. 21). Para Husserl, o eu não é mais pura abstração psicológica no interior do mundo, como em Descartes, mas uma unidade sintética dos múltiplos vividos, um retorno às modalidades constitutivas do ser. Nessa virada, nesse, “giro transcendental”, Husserl consegue desvincular a teoria do conhecimento da psicologia e demonstrar, por meio da reduçãofenomenológica, que conhecer não é meramente uma atividade psicológica e o faz quando delimita uma região transcendental. O modo de compreensão dos fenômenos na fenomenologia transcendental é inédito na filosofia, pois, doravante, os fenômenos não se encaixarão mais na máxima de que só poderiam ser ou psicológicos, ou fenômenos 108 Adriano Holanda e Joanneliese de Lucas Freitas naturais. Com isso, inaugura-se um novo campo de pesquisas, que não mais exclui ou elementariza o terreno das ciências, mas o (re)constitui, no entrelaçamento explícito entre sujeito e mundo. Psicologia fenomenológica e posteridades fenomenológicas na Psicologia Segundo Ricoeur (2010), não é possível compreender a psicologia sem uma ancoragem na fenomenologia. Entender a subjetividade, a consciência psicológica, só se torna viável quando ancorada no eu espiritual constitutivo de todo o resto. É o ego puro que elucida a própria subjetividade como uma realidade constituída. O psicólogo, mesmo quando opera a redução eidética, é transcendentalmente ingênuo, pois “conserva o sentido de ser do que está mundanamente aí adiante” (Husserl, 1992). Dessa forma, distingue-se a fenomenologia de uma psicologia fenomenológica. A fenomenologia, com seu método, passa a constituir- -se como possibilidade de compreensão da subjetividade com base em sua própria forma ideal. É um método que exige o abandono de qualquer perspectiva ou concepção dada anteriormente sobre o sujeito, que pudesse delimitá-lo dentro de um campo natural constituído pela “atitude natural”, própria ao psicologismo e ao positivismo. Assim, estrutura, ao propor o método fenomenológico, as bases para a construção rigorosa do conhecimento em filosofia, bem como um método e um olhar que permitem à psicologia a reconfiguração de seu próprio objeto – consciência e subjetividade – enquanto fenômenos e não mais de um ponto de vista empírico-natural. “A psicologia fenomenológica pretende ser o fundamento metódico sobre o qual se possa por princípio erigir-se uma psicologia empírica cientificamente rigorosa” (Husserl, 1992, p. 35). Cabe à psicologia – segundo Fink (1966) – fazer da consciência tema de suas interpretações ôntico-mundanas por meio de análises demonstrativas, o que a conduz a um subjetivismo ôntico, a uma filosofia imanente. Já à fenomenologia caberia a tarefa de atingir essa via da consciência não mundana enquanto lugar das intenções sobre as quais repousam a validade do mundo, precedendo ao ser do mundo, Fenomenologia e Psicologia 109 C on fir m ar onde o mundo se torna tema, possibilidade de sentido. Ou, nas palavras de Husserl (1992): “a subjetividade e a consciência – aqui estamos ante a ambiguidade paradoxal – às quais recorre a questão transcendental, não podem ser realmente a subjetividade e a consciência das quais se ocupa a psicologia”. Entretanto, esclarece, não são duas subjetividades, mas duas formas de apreensão do subjetivo, determinadas pela sua mirada, pelo limite do seu método. Com a redução eidética, alcançamos o ego psicológico, dado na concretude e na singularidade, entrelaçado em sua vivência com a corporeidade e, com a redução transcendental, alcançamos o ego puro, a essência, a transcendentalidade que escapa à qualquer materialidade. Embora Husserl talvez não imaginasse a repercussão de suas ideias na psicologia, estas alcançaram redutos quiçá inimagináveis. Hoje encontramos uma série de abordagens que reivindicam sua filiação à fenomenologia. O movimento gestaltista foi, sem dúvida, uma das escolas que mais foi influenciada pela fenomenologia. Segundo Penna (2001), “foi [...] a chamada Escola de Berlim, com Wertheimer à frente e com a participação de Kohler e Koffka, que mais expressivamente marcou a assimilação do método fenomenológico implantado por Husserl” (p. 66-67). Em uma tentativa de superar o antagonismo idealismo/realismo, os psicólogos da Gestalt buscaram compreender e explicar os fenômenos tendo por base as totalidades. Em relação à fenomenologia, constituiu-se como uma forma de objetivação da proposta husserliana, entendendo as essências enquanto estruturas. Concordante com essa posição, Dartigues (1992) aponta que foi a Gestalttheorie que melhor testemunhou a tese fenomenológica, agrupando tanto antigos discípulos de Husserl quanto pesquisadores que estiveram em seus cursos. Todavia, a busca por “leis gerais” para o funcionamento do psiquismo faz que a Escola de Berlim caia na armadilha do naturalismo. Isso acontece quando do paralelismo psicofisiológico que encontramos na obra dos gestaltistas. Ocorre que essa identificação da consciência às estruturas naturais está em completo desacordo com a perspectiva husserliana. Em outras palavras, tratar-se-ia de reduzir a signi- ficação aos processos psicofísicos – explicados por eles – o que 110 Adriano Holanda e Joanneliese de Lucas Freitas implica num retorno ao psicologismo que tanto Husserl criticara (Holanda, 2009, p. 64). Mesmo assim, Merleau-Ponty fará da Teoria da Forma uma de suas fontes de inspiração para desenvolver sua concepção de “compor- tamento”. A contribuição da reflexão fenomenológica para a psicopatologia é de grande relevância. Os fenômenos psicopatológicos passaram a ser estudados e compreendidos considerando-se sua própria especificidade fenomenológica, buscando-se compreender as formas específicas e particulares da consciência na patologia. Figuras de destaque nesse contexto não faltam, desde Karl Jaspers – que “funda” uma ciência psicopatológica sob os fundamentos descritivos da fenomenologia – até nomes como Ludwig Binswanger, Erwin Straus, Viktor Von Gebsattel, Eugène Minkowski, dentre outros. Ainda no terreno da psicopatologia e da psiquiatria, a Fenomenologia planta sua semente – de criticismo e de estreita relação com o mundo vivido – em dois dos mais importantes modelos de revisionismo da psiquiatria, a Antipsiquiatria – de Ronald Laing e David Cooper – e o Movimento Anti-Instituicional, de Franco Basaglia (Holanda, 2011). Nem mesmo a Psicanálise escapa a relações estreitas com a Fenomenologia, seja pela influência que Freud recebe dos cursos de Brentano (Madioni, 2008), seja pelo legado tanto de leitores quanto de seguidores da psicanálise, como Daniel Lagache e Antoine Vergote. Mas é no terreno das “abordagens psicoterápicas” que se reivindica maior paralelo com a Fenomenologia. A “psicologia humanista” americana, por exemplo, conhecida como a “terceira força” em psicologia, surge como uma refutação dos modelos vigentes na psicologia, em especial, o comportamentalismo e a psicanálise, bem como outras correntes como a Logoterapia, o Psicodrama, a Gestalt-terapia, dentre outras. Essas perspectivas, tão amplas e variadas, possuem em comum alguns aspectos importantes que devem ser colocados em relevo para serem consideradas dentro de um panorama fenomenológico. Claramente, são teorias que divergem do rigor e das preocupações fundamentais husserlianas, entretanto, são herdeiras da fenomenologia Fenomenologia e Psicologia 111 e do existencialismo. Com o campo aberto pela fenomenologia e com fundamentos nas questões colocadas em pauta pelo existencialismo, as perspectivas humano-existenciais representam uma tentativa de problematizar e recolocar em questão a consciência como elemento essencial do humano, bem como problematizam a questão da relação sujeito-objeto – mesmo que carente de organização e de fundamentação epistemológica. Entretanto, há presente nesses pontos de vista uma interiorização da consciência, tratada muitas vezes, novamente, como atributo do sujeito e não mais como o próprio campo da subjetividade. Em tal contexto, no qual convivem paralelos e indeterminações, as relações entre fenomenologia e psicologia ainda permanecem em aberto, pois ainda há muitoo que se fazer na construção de um projeto – ou projetos – que sejam coerentes com a perspectiva crítica de uma fenomenologia. Como afirmara Nilton Campos (1945) – na primeira apropriação da fenomenologia à psicologia brasileira – a “pesquisa fenomenológica procura descobrir, e não, inventar” (p. 17). Na mesma direção da compreensão diltheyana, Campos (1945) aponta para um dos aspectos mais centrais para a pesquisa e a apropriação da fenomenologia pela psicologia, quando afirma que “[...] a investigação fenomenológica tem que se afastar tanto da interpretação vulgar como da reflexão lógica sobre a natureza da realidade” (p. 44). Somente se a psicologia puder compreender as múltiplas pos- sibilidades advindas do método fenomenológico e proceder à regra básica proposta por Husserl – de abstenção de juízos sobre a realidade natural – e, simplesmente, “voltar às coisas-mesmas”, será possível superar seus vieses ideológico-naturalizantes e construir um projeto psicológico compatível com seu objeto essencial, que é o humano. Referências BELLO, A. A. Introdução à fenomenologia. Bauru: EDUSC, 2006. BONOMI, A. Fenomenologia e estruturalismo. São Paulo: Perspectiva, 1971. CAMPOS, N. O método fenomenológico na psicologia. Rio de Janeiro, Tese para Concurso de Cátedra da Universidade do Brasil, 1945. DARTIGUES, A. O que é fenomenologia? São Paulo: Moraes, 1992. DEPRAZ, N. Compreender Husserl. Petrópolis: Vozes, 2007. 112 Adriano Holanda e Joanneliese de Lucas Freitas DILTHEY, W. Psicologia e compreensão. Idéias para uma psicologia descritiva e analítica. Lisboa: Edições 70, 2002. FINK, E. De la Phénoménologie. 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