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38º Encontro Anual da ANPOCS GT39: Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro - Normatividade e História OS “NOTÁVEIS” E O POVO: PARTICIPAÇÃO POPULAR NA ELABORAÇÃO DO ANTEPROJETO DE CONSTITUIÇÃO DA COMISSÃO AFONSO ARINOS (1985-1986) Mônica de Moraes Lopes Gonçalves OS “NOTÁVEIS” E O POVO: PARTICIPAÇÃO POPULAR NA ELABORAÇÃO DO ANTEPROJETO DE CONSTITUIÇÃO DA COMISSÃO AFONSO ARINOS (1985-1986) Mônica de Moraes Lopes Gonçalves No ano de 1985 a abertura do regime político estava na sua fase final. A realização de uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC) já era tida como certa, porém o formato que deveria adotar era objeto de disputa entre os diferentes atores. Inicia-se então o processo constituinte. Do ponto de vista da iniciativa do governo, um importante fenômeno neste processo foi a formação de uma Comissão Provisória de Estudos Constitucionais com vistas a elaborar um anteprojeto de constituição para servir de subsídio à elaboração da Constituição Federal, finalizando a última etapa da transição. Tendo funcionado entre os anos de 1985 e 1986, a Comissão presidida por Afonso Arinos ficou conhecida nos meios de comunicação, bem como na bibliografia produzida na época, como a “Comissão dos Notáveis”. Este nome era uma referência a sua composição que tinha um elevado número de juristas e figuras importantes no cenário político e intelectual. A própria existência da comissão, assim como sua função e formato, foram motivos de muitas controvérsias. Mas ao mesmo tempo possibilitou uma aproximação entre os espaços institucionalizados da política e as mobilizações populares, uma vez que abriu espaço para o envio de sugestões da população por meio de cartas a fim de permitir alguma participação da população nos processos decisórios do país. Ao final dos trabalhos desta comissão foram arquivados, a fim de servir de material para consulta aos futuros constituintes, um total de 10.096 (dez mil e noventa e seis) documentos, entre cartas e sugestões enviadas por pessoas comuns e entidades da sociedade civil. Estudos já realizados sobre o período constituinte identificam o caráter inédito na história brasileira da participação popular no espaço político institucionalizado. Eles analisam os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 (MICHILES, 1983; BRANDÃO, 2011). O contato ainda inicial com o material produzido pela comissão dos “Notáveis” permite identificar a existência desta inovação, qual seja a entrada direta das demandas populares no meio legislativo através das cartas com propostas de tema para constituição ainda neste primeiro momento do processo constituinte. A efetividade e a intensidade desta participação ainda não foram investigadas. A pesquisa que iniciei recentemente busca analisar se foi esta uma experiência inédita de participação popular num espaço político institucionalizado, situação até então atribuída à constituinte de 1987-1988. O objetivo desta minha pesquisa é, portanto, verificar se de fato foi esta uma experiência embrionária de participação popular num espaço político institucionalizado. Sendo este um trabalho provisório, em face do caráter ainda inicial da pesquisa, apresentarei aqui os primeiros indícios que apontam para esta conclusão. Antes de iniciar a incursão sobre a especificidade da Comissão Afonso Arinos no processo constituinte, esboçarei o cenário geral das forças atuantes no processo constituinte e como elas foram fundamentais para a inovação na construção da constituição. Logo em seguida, considerando o importante papel da Comissão Afonso Arinos no processo constituinte, centrarei o olhar sobre os “notáveis” e as críticas dirigidas à comissão. Para uma compreensão do surgimento de um novo ator no processo político - o povo – me dedicarei em sua atuação no processo de transição, que se deu num processo progressivo. Concluirei este trabalho, que é um esboço inicial da minha pesquisa, apresentando, com base no material produzido nas reuniões e enviado pela população, as possibilidades de analisar em que medida o surgimento dessa nova experiência democrática realmente se localiza nesta Comissão. 1. Cenário geral do processo constituinte O tema do poder constituinte só apareceu efetivamente no processo de transição quando a sociedade civil passou a se manifestar. Ainda que a intensidade desta manifestação tenha sido progressiva, tendo seus primeiros passos lentos e cuidadosos, assumiu posteriormente uma postura mais ativa chegando até as mobilizações em massa com um grande número de cidadãos indo às ruas para protestar. O teor tímido e pouco ousado das propostas de mudança constitucional no final dos anos 70 em nada se assemelha ao tom fervescente e até militante que assumem muitos autores dos anos 80. Após tantos anos de repressão e cerceamento da liberdade, pedia-se simplesmente o retorno ao governo da lei. Mas um fato inesperado modificou completamente as expectativas dos atores políticos introduzindo um ator há muito excluído da vida política do país: o povo. O auge deste movimento se localiza no Movimento das “Diretas Já”. A presença da população nas ruas, manifestando seu anseio por participação introduz novos elementos, conferindo legitimidade ao discurso ensaiado por alguns autores antes mesmo do início da manifestação popular (FAORO, 1981). Para estes autores a sociedade brasileira rejeitava o sistema em vigor, e assim como a sociedade passara por mudanças, a lei máxima do país também deveria mudar. A participação da sociedade foi um combustível que elevou as expectativas permitindo novas possibilidades. O significado que este movimento assumiu ultrapassou seu próprio objetivo. Conferiu força ao movimento em favor da constituinte e ampliou as propostas, apresentando um caráter mais ousado e otimista. Dentre as propostas, a mais importante e recorrente era a da realização de uma assembleia constituinte livre, soberana e exclusiva. Mas todo este movimento encontrava-se ainda no plano da opinião pública e na produção acadêmica. Em termos de decisões políticas, o saldo do movimento foi um compromisso assumido pelo governo, eleito ainda indiretamente, de realização da assembleia constituinte, sem uma definição do seu formato, mas que possibilitou o surgimento de uma acirrada disputa no campo das ideias, com uma fortíssima participação das mídias e intensa movimentação nos meios acadêmicos, sobre os rumos que se deveria tomar neste processo de mudança constitucional. Esta disputa polarizou-se em dois grupos, os pró-reforma constitucional e os pró-constituintes. Os primeiros buscavam uma reorganização constitucional para ajustar a legislação à nova realidade social, política e econômica do país, ao modo como aconteceu anos antes do período da transição política. Os que defendiam a realização de uma assembleia nacional constituinte, ou seja, aqueles que organizaram movimentos de base popular em prol da realização da constituinte defendiam um formato que valorizaria as propostas de cunho popular, ou que, sendo elaboradas pelas lideranças consideradas representantes legítimos da população, responderiam às necessidades da massa popular. De acordo com Antônio Sérgio Rocha o país estava em uma “situação constituinte” na qual A definição e a escolha de tais parâmetros se arrastariam por cerca de dois anos, consumidos pelo fragor dos debates e das manobras pelas distintas alternativas institucionais para a nova ordem: Constituinte derivada ou originária? Exclusiva ou congressual? Provida de anteprojeto ou não? No mais das vezes, as disjuntivas implicavam polarização entre as forças políticas. Personagens dascorrentes progressistas e conservadoras multiplicavam seus argumentos, escritos e pressões em incontáveis reuniões, mesas-redondas e conferências nas universidades, nos jornais, nas televisões, em centros de pesquisa (como no próprio Cedec), nas comunidades de base e nos partidos políticos, numa campanha aberta e incisiva para obter a prevalência de suas visões e de seus interesses. (ROCHA,2013, p.54) A crescente força que a oposição assume nos espaços institucionalizados da política coloca o governo na obrigação de discutir o tema. Os governadores eleitos em 1982, que possuem uma maior autonomia em relação ao governo federal e legitimidade popular pela vitória nas urnas, lideram a Campanha pelas Diretas Já, exigindo eleição direta para o cargo de presidente da república. A oposição no Congresso Nacional faz sua parte e retorna ao debate sobre o reordenamento jurídico do país, mas desta vez com uma oposição menos intimidada a ponto de propor a separação da eleição para a constituinte dos demais cargos e a realização de um referendo para consultar a população sobre o formato da Constituinte (BIERRENBACH, 1986). No entanto, suas propostas foram rejeitadas, sendo elaborado um projeto substitutivo que contemplava as demandas do governo que pretendia manter o controle da mudança constitucional. O novo texto apresentado pelos partidos governistas instituía a eleição única para todos os cargos a nível estadual e para os cargos legislativos a nível federal, onde deputados e senadores reunir-se-iam no Congresso para elaborar uma nova constituição federal. Os deputados e senadores foram eleitos para a função constituinte, mas não exclusivamente, visto que ao concluírem a elaboração da Constituição continuariam seus mandatos na função legislativa ordinária. Apesar de receber o nome de Assembleia Nacional Constituinte, o formato adotado em muito se assemelhou ao de um Congresso Constituinte, como havia sido sugerido ainda no final dos anos 70. Este período de disputa se encerrou com a realização da Assembleia Nacional Constituinte, composta por 559 constituintes, eleitos em 1986, com início dos mandatos em janeiro de 1987. O resultado final foi completamente diferente das expectativas de todos os atores. Se por um lado era possível ver no discurso dos progressistas um excesso de realismo, reflexo das constantes frustrações na tentativa de implementar suas propostas, por outro lado esta condição forneceu uma grande artilharia e a conjugação de muitas forças. Contribuiu com isso o excesso de confiança dos segmentos mais conservadores, baseados na vantagem quantitativa que possuíam na constituinte. Ambos os lados precisaram abrir mão de alguns pontos reivindicados. Aqueles que foram identificados como progressistas não conseguiram uma assembleia completamente independente do poder executivo como exigiam, mas os atores de orientação conservadora tiveram que fazer várias concessões temendo que a pressão popular ameaçasse ainda mais seus projetos. Podemos perceber assim, uma alteração profunda no projeto constituinte, combinando o projeto da reforma com o da assembleia constituinte, mas já não da maneira que fora pensada pelos atores que iniciaram as campanhas pela constituinte. O florescente debate promovido no período constituinte revestiu a assembleia de uma aura de soberania imprescindível nos momentos de maior tensão na disputa entre os progressistas e conservadores, deixando que a decisão final seguisse os procedimentos democráticos, mas não com uma completa desvinculação da ordem vigente como advogavam como pretendia o grupo pró-constituinte. Isso pode ser avaliado como um avanço das forças em defesa das principais demandas da sociedade. José Afonso da Silva (apud PILATTI, 2008, p.xvi) identifica a Carta proclamada em 1988 como um ...fenômeno, raro no constitucionalismo brasileiro, qual seja, o de uma minoria ter sido capaz de produzir uma constituição razoavelmente progressista contra uma maioria conservadora; de o procedimento constituinte, embora defeituoso, não ter conseguido escamotear totalmente o interesse popular. 2 - Por que uma Comissão de “Notáveis”? . A ideia de uma comissão formada para elaborar um anteprojeto de Constituição foi apresentada por Tancredo Neves logo após a vitória nas eleições indiretas de 1984, como foi publicado no Jornal do Brasil em 16/01/1985: Em seu primeiro discurso como Presidente eleito, Tancredo Neves convocou o povo a participar nos próximos meses da “primeira tarefa” de seu Governo: a reorganização do Estado no Brasil, preparando a Constituinte através de debates “em todos os auditórios, na imprensa e nas ruas, nos partidos e nos parlamentos, nas universidades e nos sindicatos. A Constituição não é assunto restrito aos juristas, aos sábios e aos políticos”, afirmou Tancredo. Com a morte de Tancredo, antes mesmo da sua posse na presidência da República, seu sucessor José Sarney assume a presidência executando algumas medidas já anunciadas ainda na campanha, como a formação da comissão, através do decreto nº 91450 de 18 de julho de 1985: O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, (...) CONSIDERANDO que todos os brasileiros, todas as instituições representativas da sociedade, públicas ou privadas, devem colaborar com os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, para que se obtenha ampla representatividade nacional; CONSIDERANDO que o Poder Executivo tem o dever de participar desse trabalho coletivo, inclusive convidando alguns dos muitos brasileiros ilustres e capazes para essa colaboração, DECRETA: Art. 1º. Fica instituída, junto à Presidência da República, uma Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, composta de 50 (cinqüenta) membros de livre escolha do Chefe do Executivo. Art. 2º. A Comissão, que se auto-regulamentará, será presidida por um de seus membros, designado pelo Presidente da República, e desenvolverá pesquisas e estudos fundamentais, no interesse da Nação Brasileira, para futura colaboração aos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte. Parágrafo único. O presidente da Comissão designará seu Secretário Executivo. Art. 3º. O Ministério da Justiça proverá os meios necessários ao funcionamento da Comissão, que se instalará no dia 20 de agosto de 1985 e concluirá, no prazo de dez meses, seus trabalhos, reputados relevantes para a Nação. O acirramento da disputa no espaço político no período constituinte gerou críticas nos lados extremos sobre a convocação desta comissão. Estas críticas aparecem em diversos textos publicados naquele período. Desde o anúncio da formação até a sua atuação, a comissão teve grande repercussão, dividindo opiniões, tornando-se tema obrigatório em diversos espaços como nos meios de comunicação em massa, nos congressos dos mais variados tipos, nos encontros acadêmicos e na produção bibliográfica deste período. Aqueles que se posicionavam de maneira mais conservadora criticavam o elevado número de membros na comissão e o fato de não serem as pessoas indicadas para tal função, uma vez que tradicionalmente esta era uma tarefa reservada aos juristas. Do outro lado, denunciava-se uma tentativa de controle do poder executivo sobre o processo constituinte, visto que a comissão foi formada por decreto presidencial tendo seus membros nomeados pelo presidente, e por isso atuariam de maneira a imprimir na constituição um formato que atendesse aos interesses do governo negando a liberdade e soberania da futura Assembleia Constituinte. Bolivar Lamounier (Apud FORTES, 1987) identificou as duas visões que formulavam estas críticas. Ambas foram elaboradasainda na discussão sobre a reforma constitucional ou assembleia constituinte exclusiva. A primeira corrente, identificada perfeitamente nos juristas mais conservadores, considera inexistente a ruptura de poder necessária para a liberação do poder constituinte, sem a qual uma assembleia constituinte fica impossibilitada de existir. Para estes críticos a única possibilidade era uma reordenação constitucional, mas não para derrubar a lei existente, apenas rever o “detalhamento técnico- jurídico”. Desta forma via-se a Comissão como “... excessivamente grande, excessivamente leiga, excessivamente diversificada.” (Fortes, 1987 p.86). A tarefa de elaboração do anteprojeto deveria ser entregue a um pequeno grupo de juristas, como sempre aconteceu nas constituintes anteriores. A outra corrente de críticos identificada por Lamounier visava a realização de uma Constituinte livre, exclusiva e soberana, considerando qualquer interferência – como no caso, um anteprojeto – uma usurpação da autonomia do poder constituinte. A defesa que faziam era de uma constituinte ...como uma reunião originária, onde qualquer influência prévia, qualquer discussão prévia, uma comissão, um documento (...) tudo isso tenderia a ser visto com suspeita, uma vez que os membros da Constituinte partiriam de sua autonomia desnuda, para encontrar ali, no âmbito da Constituinte, o futuro pacto do país. (Fortes, 1987 p.86). A formação da comissão era composta majoritariamente por juristas ou advogados. Isso causava insegurança aos de inclinação progressista, pois grande era o risco de produzir-se um anteprojeto com alto teor conservador, dado o histórico de impedimentos ou controle sobre as mudanças políticas e sociais no país. Em defesa da comissão, da qual ele próprio fazia parte, Lamounier, tendo em vista o caráter plural da comissão, aponta para sua principal característica: garantir o espaço para o debate de temas preciosos aos diversos segmentos da sociedade. Ressaltando o aspecto essencialmente político do processo constituinte, o autor trata com naturalidade a incerteza sob o resultado final, uma vez que na política está presente o jogo entre os atores e os segmentos sociais. É no exercício deste debate que se poderia alcançar o “entendimento possível”, a “área de convergência” imprescindível nessa visão de processo. 3 – A atuação dos movimentos populares no processo constituinte. Os últimos anos da década de 70 e os primeiros anos da década seguinte foram tempos de grande movimentação social. Este espaço de disputa política foi possível devido à crise institucional do regime ditatorial, que fez escapar do controle total dos militares a condução da abertura do regime. Apesar de momentos de maior endurecimento do governo, a força crescente dos partidos de oposição era inquestionável. A perda da exclusividade da ação dos militares na condução do processo de abertura política permitiu que a oposição tomasse iniciativas políticas que a fortalecia a cada dia. Até assumir a direção do processo de abertura e conduzir uma transição pactuada: Não era mais a abertura de Geisel e Golbery, mas a abertura dirigida por um colegiado de cardeais, com anos de política, de vários partidos: Sarney, Tancredo, Aureliano, Franco Montoro, Brizola, Marco Maciel, Miguel Arraes, Antônio Carlos Magalhães, entre ouros, que se uniram para evitar retrocessos ou rupturas. (TEIXEIRA, 2003, p.275) Na perda do controle dos militares no processo de transição um novo ator entra em cena: o povo, manifestando-se através das “... pressões populares, o clamor das ruas, contagiam e imprimem, também seus interesses ao movimento” (TEIXEIRA, 2003, p.275). O que tornou possível a emergência deste ator foi a movimentação social preconizada principalmente por duas importantes organizações da sociedade que ganham relevo neste movimento de contestação ao regime militar. Pode-se destacar o papel da igreja católica e dos sindicatos pelo protagonismo nestes movimentos, os quais possibilitaram a criação dos movimentos em prol da constituinte. O silêncio rompido pelas greves dos trabalhadores metalúrgicos do ABC, iniciado na campanha salarial de 1978, revela a ausência de poder dos trabalhadores organizados, ressalta a característica autoritária do regime e, portanto, a ausência de liberdade. A reação violenta do governo contra as manifestações grevistas fortalece ainda mais os sindicatos, mobilizando não só os metalúrgicos, mas também outras categorias profissionais. Os sindicatos se unem e a bandeira principal passa a ser política, uma vez que a estrutura autoritária impede a vocalização dos trabalhadores organizados. Neste sentido, o sindicalismo brasileiro assumirá extrema importância na introdução da sociedade civil no cenário político do país. Qualquer balanço de sua trajetória naqueles anos [início dos anos 1980] deve apontar para duas de suas características: a rápida consolidação no plano organizacional, conseguida por este movimento que ressurgia, e a pujança mobilizatória aferida por este. (SANTANA p. 292 apud FERREIRA, 2003.) Este movimento, também chamado de “novo sindicalismo” (VIANNA, 2000), tem como característica uma radicalidade em suas ações que buscam a superação do regime político pela emancipação dos atores sociais, no caso, os trabalhadores. Vianna relaciona o surgimento deste sindicalismo com um movimento da esquerda que, em oposição à via da transição, defende a ruptura como possibilidade de estabelecimento de uma democracia social. Em outra frente, responsável também pelo crescimento do associativismo nas camadas médias e populares, os líderes de comunidades católicas protegiam e incentivavam a organização popular na defesa de seus direitos, numa perspectiva de direitos humanos, se posicionando contra os abusos dos militares em suas ações repressivas. A ação da igreja católica aparece antes mesmo do golpe de 1964 com a sindicalização dos lavradores, por orientação da própria Convenção Nacional de Bispos do Brasil para conter os avanços dos sindicatos comunistas (DELGADO, 2003, p.119). As lutas no campo, mesmo que desmobilizadas pela ditadura, produziram mudanças irreversíveis nas relações sociais. Tendo por base uma nova interpretação da missão do evangelho, os líderes religiosos alinhados com a Teologia da Libertação acentuavam, de acordo com Grynszpan, a “... necessidade de que a Igreja tomasse uma posição claramente em favor dos pobres e oprimidos, libertando-os da violência e das injustiças, orientando-os nas lutas contra seus opressores” (apud FERREIRA, 2003, p.333). Neste sentido cresceram, em número e relevância social, as Comunidades Eclesiais de Base (CEB). A luta contra as injustiças vão perdendo um aspecto individual e passando a ser ação orgânica naquelas comunidades, mas não somente entre os seus pares, elas se expandiram e agregavam outros grupos, pessoas e movimentos. A metodologia de ação destas comunidades integrava as pessoas e incentivava o engajamento social. As pastorais eram focos de resistência ao regime militar, apoiando os movimentos estudantis, abrigando militantes clandestinos perseguidos pela ditadura. Nas CEBs se fazia oposição ao modelo político do regime militar e mobilizavam-se contra as injustiças, gerando tensão entre a Igreja e o Estado. Delgado e Passos (apud FERREIRA e DELGADO, 2003, p. 125) analisando a atuação desta instituição afirmam que Naquela conjuntura política, a Igreja dialoga mais profundamente com a sociedade civil sobre os importantes desafios da realidade brasileira. Dessa forma, afirma sua aliança com o interlocutor popular, redescobrindo a dimensão social e a carência que atingia as populações menos favorecidas. Tornava-se, ainda, fundamental lutarpelo restabelecimento da ordem democrática, diante do quadro político do regime de exceção. A ação da igreja ganha mais notoriedade quando passa a exercer uma maior influência nas assembleias da Convenção Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A partir daí são feitos diversos pronunciamentos sobre a necessidade da abertura política evocando os valores cristãos de justiça, reclamando o retorno ao Estado de Direito. Durante os mandatos de seus bispos mais engajados politicamente a CNBB teve uma importante atuação política na mobilização em prol da Constituinte. A ação repressiva do governo que perseguia e torturava lideranças católicas aumentaram a mobilização da comunidade católica contra o regime ditatorial. Vários atores sociais uniram-se em prol da campanha pela Constituinte. Esta bandeira já havia sido levantada no ano de 1977 quando diversas organizações da sociedade se manifestaram em favor de uma Assembleia Constituinte através de Convenções e Congressos de entidades profissionais e de pesquisa acadêmica, pronunciamentos de líderes da oposição nas Assembleias Legislativas, em artigos em jornais e outras declarações públicas que pediam especificamente por uma Assembleia Nacional Constituinte para a realização de uma nova constituição, em contraste com os movimentos no Congresso pela transição através da reforma constitucional. Mas a constituinte ainda não era uma bandeira exclusiva, era apenas uma possibilidade de mudança do regime. Desta forma, estando presente nos diferentes espaços, o tema da constituinte começa a ganhar cada vez mais espaço e a se configurar em uma possibilidade cada vez mais real. A luta pelos direitos humanos permitiu uma aproximação dos diferentes atores nas manifestações de descontentamento com o regime. Em 1983 duas campanhas caminhariam juntas configurando uma ampla “campanha pela cidadania” onde as lideranças das várias entidades da sociedade civil se uniam a fim de desenvolver a organização popular contra o regime. Essas campanhas seriam a campanha pelas eleições diretas em todos os níveis e a convocação de uma constituinte. A primeira, apesar de abalar definitivamente as estruturas do que restava do regime militar, não alcançou êxito. Mas deixou para a segunda o inquestionável reconhecimento social da necessidade da realização da convocação. A adesão popular à campanha “Diretas Já” foi resultado da intensificação das insatisfações e a insustentabilidade do regime ditatorial que colocou a sociedade nas ruas, agregando diferentes camadas sociais, e abrindo espaço para a busca por mudanças políticas concretas. Em sua dimensão cultural, a campanha inseriu-se num ciclo de protestos, iniciado no final da década de 70, no qual se constitui uma oposição ao regime militar que reivindicava maior participação política e redução das desigualdades sociais. As greves foram, inicialmente, a principal forma de ação coletiva, sendo, por vezes, acompanhadas por passeatas. (BERTONCELO, 2007, p.178) Esta força popular manifestada pelo movimento foi compartilhada, ainda durante sua realização, pelos movimentos pró-convocação da constituinte. A partir de então uma nova ação coletiva se formava, mesmo não tendo alcançado o objetivo de eleições diretas, alcança autonomia e experiência de luta coletiva. Assume um caráter simbólico, contribuindo certamente para os movimentos em prol da Assembleia Constituinte, iniciados paralelamente ao movimento das Diretas Já. Com a derrota da emenda Dante de Oliveira - projeto de emenda constitucional que instituía eleições diretas para a presidência da república - todas as atenções, tanto políticas quanto acadêmicas, voltam-se para a realização da Assembleia Constituinte. Este resultado depois da intensa mobilização gerada pela campanha provocou um grande decepção popular. Numa tentativa de dar uma resposta à população brasileira, o importante líder político e candidato à Presidência, Tancredo Neves declara a urgência da convocação da Assembleia Constituinte devendo ser esta a primeira decisão a ser tomada na ordem institucional de mudança para o regime democrático. Neste contexto, amplia-se o numero de publicações sobre esta temática, com várias origens e destinadas a diversos públicos. Passa-se a reconhecer o processo constituinte já em curso. E estas movimentações sociais revelariam a transformação social que fez brotar a necessidade de mudança do regime vigente. Mais do que isso, a sociedade pretende assumir uma posição ativa neste processo exigindo uma democracia de fato. Grupos de luta do Rio de Janeiro reuniram-se desde 1983 num único movimento em prol da Constituinte, integrando importantes instituições sociais, como a OAB, a CNBB, os sindicatos, associações de moradores, universidades. O Movimento Nacional pela Constituinte, lançado em janeiro de 1985 na cidade de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, objetivava “discutir as propostas de uma nova ordem sócio-econômica e política que desejamos expressar na nova Constituição” (Dossiê Constituinte, 1986) Este movimento se desdobrou em muitos outros como o “Projeto Educação Popular na Constituinte” que atuava no sentido de dar subsídios às organizações de movimentos da sociedade civil. Paralelamente em São Paulo era formado o Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte congregando mais de 500 entidades da sociedade civil, era um esforço de incluir a participação popular nos espaços decisórios do país. Para Michiles (1989), estes movimentos se completavam. O movimento organizado no Rio de Janeiro incentivava o engajamento e a formação de grupos e em São Paulo atuava na disseminação da informação através de seus boletins de notícias. Estes movimentos possuem extrema importância por introduzirem o tema da constituinte na luta contra a ditadura, ou seja, da via constitucional como possibilidade de mudança real para o país. Esta efervescência popular produz algo totalmente inédito na história do país que está estampado em muitas das cartas enviadas à Comissão Afonso Arinos, da esperança de contribuir na elaboração do novo ordenamento do país, incluindo as demandas populares e permitindo que no Brasil a justiça social fosse uma realidade. 4 – A sociedade civil finalmente chega aos espaços da política Esta pesquisa encontra-se no primeiro estágio, que é de levantamento e seleção dos documentos a serem analisados mais detidamente. A observação inicial permite identificar a existência de um elemento aparentemente inovador na política brasileira, qual seja a entrada direta das demandas populares no meio legislativo através das cartas com propostas de tema para constituição. A intensidade e efetividade desta participação ainda não foram investigadas. A pesquisa se propõe analisar se de fato a abertura dada pela Comissão Arinos foi uma experiência inédita de participação popular num espaço político institucionalizado, situação até então atribuída à constituinte de 1987-1988. Todo o material da pesquisa pertence à coleção Memórias da Constituinte, do acervo do Arquivo Histórico do Museu da República, onde se encontra um grande número de documentos produzidos pela comissão ou por ela utilizados como subsídios. Como, por exemplo, as constituições de outros países, os relatórios dos trabalhos da comissão, as transcrições e os resumos de algumas sessões. Neles se podem vislumbrar os embates surgidos no interior da comissão e o quanto ela era heterogênea, inserindo no debate as necessidades e interesses de diferentes setores da sociedade brasileira. Há também todo o material recebido da população brasileira em resultado da convocação do envio de cartas contendo sugestões para a nova constituição. Estas cartas imprimem o esforço das organizações civis em mobilizar-se em torno dos grandes temasrelevantes para a nação. Elas possibilitavam o exercício da participação política um papel para o qual a população era chamada a assumir os deveres da cidadania. Estes documentos revelam o esforço da sociedade em incluir direitos e garantias considerados essenciais para cada grupo organizado da sociedade civil. Enquanto a Comissão Arinos se organizava e iniciava seus trabalhos, o relacionamento entre os diversos atores políticos na sociedade alteravam a expectativa em torno da atuação da comissão. Somam-se também os desdobramentos destes trabalhos contrariando as esperanças de diversos segmentos da sociedade. O período extremamente alongado de quinze meses de existência da comissão num contexto de imenso embate político no país contribuiu grandemente para as mudanças das expectativas de sua atuação. Da espera de um seleto grupo de juristas decidindo quais seriam as linhas gerais que a nova constituição assumiria, deixando para os constituintes os detalhes, a comissão Arinos, composta por um grande e diversificado número de representantes da sociedade, adota um procedimento que permite a entrada de diferentes demandas. Este formato impôs um amplo processo de apresentação de propostas e votação, antecipadas por um período de audiências com diferentes especialistas nos temas tratados. A primeira etapa do trabalho desta comissão consistiu em elaborar um regimento para o seu funcionamento, que seguia as regras de funcionamento dos espaços legislativos institucionalizados. O regimento tratava da divisão em comitês temáticos, comitê de sistematização, regras para as votações e realização das sessões e das plenárias. Esta primeira etapa demorou cerca de três meses, contando mais os três meses desde a instituição da comissão por decreto presidencial até a primeira sessão oficial, já haviam passados seis meses de existência da comissão. A segunda etapa foi de divisão por subcomissões seccionais a fim de permitir que os membros participassem de reuniões em suas regiões evitando grandes deslocamentos. Neste momento recebia-se especialistas em temas considerados relevantes para a sociedade. Depois os membros da comissão voltariam a se reunir em plenário para distribuição em dez comitês temáticos. Os trabalhos nos comitês visavam elaborar um texto com participação de todos os membros daquele comitê para ser enviado à Comissão de Sistematização, presidido por Afonso Arinos, dando forma então ao anteprojeto que ainda passaria pela apreciação e modificação dos demais membros reunidos novamente em plenária. Para se conseguir um consenso sobre os artigos que seriam mantidos no texto final optou-se por um anteprojeto extenso para garantir-se a manutenção de artigos que foram considerados necessários, mesmo que sob acusação de prolixidade. Esta opção era uma forma de garantir que determinados temas pudessem chegar à discussão dos constituintes. O texto final do anteprojeto foi publicado em 18 de julho de 1985. O resultado final, depois de muitos confrontos no interior da comissão, desaponta aos setores mais conservadores da sociedade, que contavam com sua maioria quantitativa para se ter um anteprojeto que atendesse aos seus interesses, apesar de não se ter verificado uma qualidade na atuação deste segmento. Depois de muita pressão dos mais variados segmentos, o presidente Sarney anuncia o arquivamento do anteprojeto, ao invés de enviá-lo ao congresso constituinte sob a justificativa de não interferir na soberania da futura constituinte, argumento quase cômico uma vez que a própria constituinte contava com um representante do governo. Apesar disto, pela falta de um anteprojeto que balizasse os trabalhos na Assembleia Nacional Constituinte, o anteprojeto Arinos circulava entre os constituintes. Alguns artigos apareciam quase que compilados em algumas propostas na várias etapas dos trabalhos da ANC. Muitos pontos de questionamento surgem deste primeiro contato com o material. O principal deles é: em que medida as cartas enviadas pela população não seria apenas uma forma de permitir a vocalização dos anseios sociais, canalizado e consequentemente contendo as mobilizações da sociedade? Apesar de numerosa, a participação popular por meio de sugestão não permite generalizar uma proposta do povo para o direcionamento político e social que o país deveria adotar. A enorme diversidade presente nesta documentação mesmo já impediria. Araújo (2009, p.15) aponta uma diferença importante nos conceitos de Povo e Sociedade Civil. O Povo teria seu poder político “... concentrado no voto; o da Sociedade Civil, na militância associativa (voluntária ou profissional), por um lado, e nos meios de informação e expressão da opinião (os meios de comunicação), por outro.” Esta definição indica a força dos grupos organizados durante a transição política. Araújo identifica a prevalência da sociedade civil na atuação política, uma vez que os espaços institucionalizados da política eram ainda controlados pelo regime militar justamente como bloqueio ao surgimento de novos poderes na sociedade. Desta forma a sociedade civil torna mais forte na oposição ao regime, apresentando-se inclusive, enquanto em curso uma transição política, como “porta-voz” da nação. À medida que a abertura avança, esta autoridade retorna aos poucos para o povo. A definição dada por Araújo me permite compreender a ação dos diversos grupos de lutas levando as bandeiras da participação na constituinte e das propostas para constituição em nome da sociedade brasileira. É como se a sociedade civil se constituísse, num cenário de ausência de legitimidade das formas institucionais da política, como representante legítimo da população brasileira. O esforço de mobilização de diversos grupos de lutas da sociedade civil pela participação popular na constituinte, bem como em outros movimentos naquele fecundo período de mobilização social, se manifesta nos documentos elaborados e enviados à Comissão Arinos. Esse rico material, que traduz os projetos de sociedade de diversos grupos sociais para o novo país que emergia, merece uma atenção mais detida por conta da sua relevância na construção da história política do país Referências Bibliográficas ARAUJO, C. "O processo constituinte: sociedade civil e povo na transição". In: GOULART, J. O. (org.). As múltiplas faces da Constituição cidadã. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. pp. 13-25 _________ .“O processo constituinte brasileiro, a transição e o Poder Constituinte”. Lua Nova, v. 88, p. 327-380. 2013. BRANDÃO, L. C. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988: entre a política institucional e a participação popular. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade de São Paulo, 2011 COSTA, S. “Esfera Pública, Redescoberta da Sociedade Civil e Movimentos Sociais no Brasil: Uma abordagem tentativa”, Novos Estudos, 38, p.p. 38-52. 1994. GOULART, J. O., “Processo constituinte e arranjo federativo.” Lua Nova, v. 88, p. 185-215, 2013 FERREIRA, J.; DELGADO, Lucília de A. N. (orgs.). O Brasil Republicano.Livro 4. O tempo da Ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. MICHILES, Carlos, et. al. Cidadão Constituinte: a saga das emendas populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. NORONHA, E.G. "Ciclo de greves, transição política e estabilização: Brasil, 1978-2007". Lua Nova, n. 76. São Paulo: Cedec. pp. 119-68. 2009. PEREIRA, O. D. Constituinte (anteprojeto da Comissão Arinos). Brasília: UnB, 1987 SALLUM Jr., B. Labirintos - Dos generais à Nova República. São Paulo: Hucitec, 1996. VIANNA, L. J. W. ; CARVALHO, M. A. R. de . “Experiência brasileira e democracia”. In: CARDOSO. S.(Org.). Retorno ao republicanismo. 1ºedição. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 197 . 223
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