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Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. Pampa e cultura: O hibridismo cultural no Rio Grande do Sul Aline Strelow Resumo O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre os processos de hibridização cultural no Rio Grande do Sul. Através do diálogo de alguns autores que se dedicaram a estudar o conceito de hibridismo e sua prática, como Canclini (1997) e Burke (2003), partimos para a compreensão do contexto cultural do Rio Grande do Sul, em uma análise que coloca em contato aspectos culturais, históricos e literários. Trata‐se de um estado cuja identidade, já arraigada, é fortalecida pela indústria cultural, com a índole guerreira, o ideal de bravura e a pretensa unicidade cultural como elementos que a constituem e a fazem reconhecível (JACKS, 1999). Ao final do trabalho, percebemos que o cidadão sul‐ rio‐grandense da atualidade, com vivência majoritariamente urbana, transita entre realidades e temporalidades distintas, caracterizando a cultura gaúcha, assim como todas as outras, como uma cultura de fronteira. Palavras‐chave hibridismo cultural; cultura gaúcha; comunicação e cultura. Abstract This work aims to ponder about the processes of cultural hybridization in Rio Grande do Sul. Through the interchange between some authors who decided to study the concept of hybridism and its practice, such as Canclini (1997) and Burke (2003), we move onto understanding Rio Grande do Sul’s cultural context in an analysis that brings together cultural, historical, and literary aspects. This is a State whose deep‐ rooted identity becomes stronger with the cultural industry, taking the warrior disposition, the ideal of bravery and the so‐called cultural oneness as elements that build it and make it recognizable (JACKS, 1999). At the end of the study we realize the contemporary citizen from Rio Grande do Sul (known as gaucho), who lives majorly in urban centers, travels between different realities and times, typifying the gaucho culture, as well as all others, as a border culture. Key‐words cultural hybridism; Gaucho culture; communication and culture. Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. O conceito de hibridismo cultural, bastante discutido na atualidade, remete ao contexto cultural no qual estamos inseridos. Embora façamos parte de uma rede que nos liga, de um ponto a outro, por interesses comuns, é difícil encontrar grupos ou tribos isolados por fronteiras rígidas. O que detectamos, conforme Burke (2003), é a existência de um continuum cultural, de espaços de transição e contato, onde são mixadas diferentes realidades. “A preocupação com esse assunto é natural em um período como o nosso, marcado por encontros culturais cada vez mais freqüentes e intensos. A globalização cultural envolve hibridização” (BURKE, 2003, p.14). 1. História cultural – Uma teia de intersecções A história cultural, de acordo com Warnier (2000), começa sob o signo da mais extrema fragmentação. A humanidade se construiu dispersando‐se sobre quase toda a superfície de terras emersas. A diversidade lingüística, social e cultural é levada ao extremo, através das comunicações constantes, embora lentas, em escala planetária. A revolução neolítica foi acompanhada de dois movimentos em sentidos contrários: a multiplicação de pequenas comunidades de agricultores cada vez mais fragmentados e, em certos locais, a constituição de grandes conjuntos sóciopolíticos. Ela colocou as bases sociais, políticas, religiosas de sistemas de transportes e de comunicações que reduziram lentamente o isolamento dos grupos locais e seu fechamento sobre si mesmos. O desenvolvimento das trocas mercantis e da moeda atingiu cada vez mais um número maior de setores da atividade humana, inclusive a cultura (WARNIER, 2000, p.66‐67). As economias tradicionais foram transformadas, radicalmente, pela revolução industrial, dando origem às indústrias da cultura. O autor pontua a globalização dos fluxos midiáticos, financeiros, mercantis, migratórios e tecnológicos, intensificada na década de 1970. “Ela chega a seu mais completo acabamento, com o desmoronamento da economia dirigista de tipo soviético para dar à “globalização da cultura” sua configuração atual e certamente provisória”, afirma (2000, p.67). Essa configuração caracteriza‐se pelo encontro entre os homens inscritos em culturas fragmentadas, locais, enraizadas na longa duração da história, por um lado, e pelos bens e serviços, colocados no mercado por indústrias recentes e globalizadas por sistemas de trocas e de comunicação de grande capacidade, por outro. 2. Cultura: A hibridização de um conceito e de sua prática A cultura, conforme Canclini (2003, p.35), abarca o conjunto de processos sociais de significação, ou melhor, o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social. Não constitui, deste modo, nenhum tipo de erudição, educação, informação vasta ou Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. refinamento. Não se restringe a grupos de maior ou menor influência social. É característica plural, da comunidade humana, seja ela vista como um todo planetário ou fragmentada em pequenos blocos. A sociedade está estruturada com base em dois tipos de relações: a de forças correspondentes ao valor de uso e troca e, junto a elas, dentro delas, há relações de sentido que organizam a vida social, as relações de significação. O mundo das significações, do sentido, é próprio da cultura. É dos significados atribuídos, arbitrariamente ou não, às coisas, valores e idéias, que se constitui a cultura. São os signos e os símbolos que possibilitam a interação entre os homens e, em sua organização, ou não, residem a sociedade, a comunicação e a cultura. O autor busca, no cruzamento da antropologia, da sociologia, da história da arte e dos estudos de comunicação, a evidência de que a cultura humana é híbrida. Ou seja, “assim como não funciona a oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo não estão onde estamos habituados a encontrá‐los” (IBIDEM, p.19). Ao colocar os meios de comunicação social em pé de igualdade com as demais manifestações, Canclini legitima seu papel, como resultado, entre outros fatores, da internacionalização da economia, transnacionalização dos próprios meios de comunicação, aumento do fluxo turístico e das migrações internas e externas, como pontua Jacks, em seu estudo sobre a mediação simbólica das culturas regionais (1999, p.30). Conforme a autora, esta perspectiva de pesquisa desponta com propostas que avançam na compreensão dos processos comunicacionais nos países latino‐americanos, nos quais tanto a modernidade como a modernização andam a passos desconexos (1999, p.31). É necessário demolir essa divisão em três pavimentos, essa concepção em camadas do mundo da cultura, e averiguar se sua hibridação pode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os estudam separadamente: a história da arte e a literatura se ocupam do “culto”; o folclore e a antropologia, consagrados ao popular; os trabalhos sobre comunicação, especializados na cultura massiva. Precisamosde ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e comuniquem os níveis horizontalmente (CANCLINI, 2003, p.19). Sobressaem‐se, então, os cruzamentos socioculturais em que o tradicional e o moderno se misturam. Os movimentos sociais e as mudanças da vida em sociedade acarretam a adaptação de saberes. Isso fica claro quando se observa as modificações no artesanato dos migrantes do campo para atrair o interesse dos consumidores urbanos, por exemplo. Ou, ainda, quando os operários reformulam sua cultura de trabalho frente às novas tecnologias de produção, sem abandonar crenças antigas. Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. Exemplos de hibridismo cultural, como lembra Burke (2003), podem ser encontrados em toda parte, não apenas em todo o globo, mas na maioria dos domínios da cultura – religiões sincréticas, filosofias ecléticas, línguas e culinárias mistas e estilos híbridos na arquitetura, na literatura ou na música. O termo hibridismo não tem exatamente o mesmo significado em todos esses momentos. É necessário, para estudar a cultura latino‐americana, ou as culturas nela inseridas, como é o nosso caso, lançar um olhar conjunto que se encarregue desta heterogeneidade temporal. Conforme Canclini (2003, p.21), tanto os tradicionalistas quanto os modernizadores quiseram construir objetos puros. Os primeiros imaginaram culturas nacionais e populares autênticas; procuraram preservá‐las da industrialização, da massificação urbana e das influências estrangeiras. Os segundos conceberam uma arte pela arte, um saber pelo saber, sem fronteiras territoriais. As próprias ideologias modernizadoras, do liberalismo ao desenvolvimentismo, acentuaram essa compartimentação, caracterizando a modernização como uma etapa além, como uma evolução. As formas de produção, as crenças e os bens tradicionais seriam substituídos. O conhecimento científico tomaria o lugar dos mitos, a expansão da indústria acabaria com o artesanato, os livros cederiam seu espaço para os meios audiovisuais de comunicação. Hoje, existe uma perspectiva mais complexa sobre as relações entre tradição e modernidade. O culto tradicional não é apagado pela industrialização dos bens simbólicos. Ao invés de se extinguir, esta produção se transforma pelo contato. Diz o autor: Nunca houve tantos artesãos, nem músicos populares, nem semelhante difusão do folclore, porque seus produtos mantêm funções tradicionais (dar trabalho aos indígenas e camponeses) e desenvolvem outras modernas: atraem turistas e consumidores urbanos que encontram nos bens folclóricos signos de distinção (CANCLINI, 2003, p.22). Ou seja, a modernização diminui o papel do culto e do popular tradicionais no conjunto do mercado simbólico, mas não os suprime. Redimensiona a arte e o folclore, o saber acadêmico e a cultura industrializada, sob condições relativamente semelhantes. A definição de arte, por exemplo, não se circunscreve a uma questão estética. É preciso levar em conta como essa questão será respondida na intersecção que fazem os jornalistas e os críticos, os historiadores e os museógrafos, os marchands, os colecionadores e os especuladores. Da mesma forma, o popular não se define por uma essência a priori, como lembra Canclini (ibidem, p.23), mas pelas estratégias instáveis, diversas, com que os próprios setores subalternos constroem suas posições, e Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. também pelo modo como o folclorista e o antropólogo levam à cena a cultura popular para o museu ou para a academia, os sociólogos e os políticos para os partidos, os comunicólogos para a mídia. Esta hibridez cultural é conseqüência, também, dos diferentes estágios em que se encontra a sociedade latino‐americana. Em todo momento, há pessoas entrando e saindo da modernidade, entrando e saindo da pós‐modernidade. Ao mesmo tempo em que estão disponíveis as mais altas tecnologias a um número restrito de cidadãos, grande parte dos latino‐americanos não tem acesso ou não está alfabetizada para o uso destas tecnologias. Mesmo os mais favorecidos economicamente continuam alternando conhecimentos ditos modernos com formas arcaicas de poder. Os processos de hibridização apresentam variedades de objetos, terminologias, situações, reações e resultados, como fica claro no ensaio de Burke (2003) sobre o tema. Variedades de objetos Artefatos Ex: arquitetura, mobília, imagens, textos Práticas Ex: religião, música, linguagem, esporte, festividades Povos Ex: latino‐americanos, anglo‐indianos, afro‐americanos Variedades de terminologias Imitação e apropriação A apropriação é uma alternativa à imitação. Trata‐se de digerir, domesticar as coisas estrangeiras, a exemplo do que pretendia a “antropofagia” do início do século XX, no Brasil. Acomodação e negociação A acomodação remete à adaptação, dos oradores a suas platéias, por exemplo. Diálogo e negociação aparecem como termos alternativos. Na negociação, ambos os envolvidos revisam suas crenças/valores originais. Mistura, sincretismo, hibridização Coexistência de elementos de diferentes culturas, nem sempre de uma forma tranqüila. Tradução cultural Apreensão de uma cultura estrangeira e recolocação da mesma em sua cultural original. Domesticação do que é estrangeiro. Crioulização Terceira cultura, mista, resultado do encontro entre duas culturas originais. Quadro 1: Hibridismo cultural – Peter Burke Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. Variedades de situações Iguais e desiguais No Brasil, as experiências das missões jesuíticas e dos escravos africanos são exemplos explícitos de hibridismo cultural entre iguais e desiguais. Tradições de apropriação O hibridismo varia quando ocorre em culturas com tradições fracas ou fortes de apropriação e adaptação. A cultura hindu, por exemplo, tem uma propensão maior para incorporar elementos estrangeiros do que, digamos, o islã. Metrópole e fronteira A presença de diferentes grupos de imigrantes torna a metrópole um importante local de troca cultural. As zonas de fronteira não são apenas locais de encontro, mas de sobreposições e intersecções entre culturas. Classes como culturas As interações entre classes sociais, com vivências diferentes, também constituem espaços de contato cultural. Variedades de reações O estrangeiro vira moda Aceitação e acolhida do que é estrangeiro. Ex: ocidentalização, americanização, londonização, anglomania. Resistência Defesa das fronteiras culturais contra a invasão. Ex: rejeição muçulmana à tipografia, que durou até cerca de 1800. Purificação cultural Reações contra a estrangeirice muitas vezes assumiram a forma extrema de movimentos pela purificação, uma espécie de limpeza étnica. Ex: um movimento para o retorno do grego ático puro se iniciou na época helenística em resposta à invasão da língua por palavras estrangeiras. Segregação cultural Não se trata de defender o território cultural como um todo, mas manter parte dele livre de contaminação por influências estrangeiras. Ex: Nos séculos XIX e XX, osturcos e chineses queriam adotar a tecnologia ocidental sem aceitar os valores ocidentais. Adaptação Movimento de descontextualização e recontextualização, retirando um item de seu local original e modificando‐o de forma a que se encaixe em seu novo ambiente. Circularidade Adaptações de itens culturais estrangeiros de forma tão completa que o resultado pode ser “re‐exportado” para o lugar de origem do item. Quadro 1: Continuação Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. Tradutores São os sujeitos da adaptação. Fazem a ligação entre as diferentes culturas. As relações entre o Império Otomano e a Europa Ocidental, por exemplo, por muito tempo dependeram dos préstimos de judeus e gregos como intermediários lingüísticos. Variedades de resultados Contraglobalização Resistência à intromissão ou invasão de formas globais de cultura. Diglossia cultural Biculturalismo. Alternância entre culturas, escolhendo o que se considera ser mais apropriado à determinada situação. Homogeneização cultural Surgimento de uma cultura global, quase global ou, pelo menos, crescentemente global. Hibridização cultural Encontros culturais que levam a algum tipo de mistura cultural. Crioulização do mundo Surgimento de uma nova cultura, através de contatos interculturais. Quadro 1: Continuação Esses conceitos, amplamente discutidos na contemporaneidade, desenham o cenário do hibridismo cultural e revelam suas peculiaridades. Cada um se desdobra em vários, e as áreas do conhecimento, chamadas para entendê‐los, acabam fazendo de nossa ciência, também, uma ciência híbrida. Em estudo recente, Canclini debruçou‐se, por exemplo, sobre as diferenças, desigualdades e desconexões na América Latina (2004). O conceito chave, nessa obra, é interculturalidade. Diferente da multiculturalidade, que supõe a aceitação do heterogêneo, a interculturalidade implica que os diferentes são o que são em relações de negociação, empréstimos e conflitos recíprocos. Como já fez em Culturas híbridas, o autor levanta a importância de se estudar o tema com a concorrência da antropologia, da sociologia e da comunicação. Estudar as diferenças e preocupar‐se pelo que nos homogeneíza tem sido uma tendência dos antropólogos. Os sociólogos se acostumaram a observar os movimentos que nos igualam e os que aumentam a disparidade. Os especialistas em comunicação só pensam as diferenças e desigualdades em termos de inclusão e exclusão. De acordo com a ênfase de cada disciplina, os processos culturais são lidos com chaves distintas. Para as antropologias da diferença, cultura é pertencimento comunitário e contraste com os outros. Para algumas teorias sociológicas da desigualdade, a cultura é algo que se adquire formando parte das elites ou aderindo a seus pensamentos e seus gostos; as diferenças culturais procederiam da apropriação desigual dos recursos econômicos e educativos. Os estudos comunicacionais consideram, quase sempre, que ter cultura é estar conectado. Não há um processo evolucionista de substituição de umas teorias por outras: o problema é Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. averiguar como existem, chocam ou se ignoram a cultura comunitária, a cultura como distinção e a cultura.com (2004, p.13‐14) [1]. No campo político, o reconhecimento da diversidade cultural como fundamental para a democracia é um fenômeno novo, como afirma Mattelart (2005). Da cultura à comunicação, do povo ao público, do cidadão ao consumidor. Sob essas permutas, não deixaram de se jogar, durante os dois últimos séculos, as tensões entre o projeto da república mercantil universal, sob o signo do livre comércio, e o universalismo dos valores exaltados pelos iluministas; entre o etnocentrismo da colonização cultural e as lutas pela salvaguarda das identidades; entre o espaço fechado do nacional e os vetores transfronteiras; entre a filosofia do serviço público e o pragmatismo do livre jogo da concorrência; entre a cultura legítima e as culturas populares; entre a alta cultura e a cultura do cotidiano. 3. Hibridez cultural no Rio Grande do Sul É a partir destes olhares múltiplos e desta compreensão de cultura que se pretende refletir sobre o processo de hibridização cultural no Rio Grande do Sul, estado cuja identidade, já arraigada, é também fortalecida constantemente pela indústria cultural. Jacks (1999, p.85) entende a identidade cultural gaúcha como uma relação multimediada. Entre os elementos que a constituem e a fazem reconhecível, ela aponta: valores ligados à ideologia, ideal de bravura, coragem, índole guerreira, regras de vestir, de pensar e de comportamento, unicidade da cultura gaúcha que diferenciaria o Rio Grande do Sul do resto do país. Além disso, a autora destaca os indicadores da identificação com a cultura regional como, por exemplo, o hábito do chimarrão, o churrasco, a pilcha e a música gaudéria. Conforme Oliven (1992), o modelo construído, quando se fala nas coisas gaúchas, está baseado em um passado que teria existido na região pastoril da Campanha, no sudoeste do Rio Grande do Sul, e na figura real ou idealizada do gaúcho. É em torno desse eixo que giram os debates sobre a identidade gaúcha. Atualmente, a construção dessa representação recoloca a questão em um novo patamar já que estamos numa época em que tanto o Brasil apresenta uma maior integração política, econômica, de transportes, de meios de comunicação, etc., articulando suas regiões de uma forma efetiva (1992, p.100). O cidadão sul‐rio‐grandense que, na maior parte, reside na zona urbana, dispõe das facilidades oferecidas pelas novas tecnologias, dificilmente locomove‐se a cavalo e muito menos se aquece ao fogo de chão. A divulgação e o fortalecimento do mito do povo gaúcho como campesino, com vestimentas típicas e comportamento grosseiro, é muito mais uma tentativa de resgate do passado gaudério, tenha Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. ele existido na realidade ou na imaginação dos promotores culturais regionais. Meyer, em sua análise das manifestações folclóricas do estado, criticou a visão romântica de que o folclore se originaria nas camadas populares. “É relativamente modesta a contribuição do ‘povo’ em contraste com a iniciativa criadora das minorias cultas”, afirmou (1952, p.23). A literatura regionalista contribui muito para a divulgação desse mito. De acordo com Luiz Antônio de Assis Brasil, o gaúcho [2] é uma criação literária [3]. O surgimento das letras no estado se deu em meio à efervescência das idéias românticas no Brasil. O romantismo, embebido em um nacionalismo exacerbado, e aliado à busca de uma identidade nacional, teve reflexos, também, no Rio Grande do Sul. No afã de eleger um símbolo genuíno e singular, que eleva o índio a representante nacional, o gaúcho torna‐se o ícone dos pampas. O regionalismo nasce, portanto, sob o signo da idealização. Para Maria Eunice Moreira, os escritores sul‐rio‐grandenses transferem a discussão que se fazia em âmbito nacional para o estado, com muita propriedade. “Quando o espaço e seu representante natural, que é o gaúcho, começam a ser tematizados, eles são idealizados. Os escritores idealizam o homem, a paisagem, o tempo, tudo. É própria do mitoesta pureza”, explica [4]. Coragem, energia, apego aos animais, espírito guerreiro, nobreza de sentimentos e desejo de liberdade. A literatura regional sul‐rio‐grandense tem, na maneira de ser do gaúcho tradicional, seu ponto de apoio, revelando suas características, seus padrões e seu código de valores. “A ficção cria um modelo exemplar, um gaúcho sem defeitos, só com qualidades. Do ponto de vista físico, ele é forte, come carnes fortes e toma uma bebida forte. Do ponto de vista moral, ele é rijo, tem o caráter firme, é honesto e muito sincero”, define Maria Eunice [5], para quem as atividades designadas a este personagem ajudam a consolidar sua fortaleza, pois requerem agilidade e destreza. “Vai se criando um delinear, uma pintura, uma figura que não é real, mas serve àquela necessidade primeira que é a de construir um modelo”, afirma. A literatura deu ênfase à face mais importante na formação de um mito, que é o reforço de seus aspectos intrínsecos. Se pegarmos a obra de Simões Lopes Neto, teremos o gaúcho padrão. Blau Nunes é o tipo honesto, leal, cavalheiro, guerreiro. Os outros são exceção. Em Simões Lopes há muitos bandidos. Mas eles são a escória social, são os que acabam perdendo e não podem ser considerados gaúchos, são anomalias dentro do sistema [6]. O conceito do mito é o conjunto de todos esses fatores que constituem o modo de ser do gaúcho. A forma desse mito são suas características visíveis, que transparecem em seu traje típico: bombachas, botas, laço; nos seus hábitos: churrasco, chimarrão, cigarro de palha; e na linguagem: expressões típicas da região. É sobre esses dois aspectos, internos e externos, que se pode embasar a imagem do gaúcho Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. mítico. Da soma de ambos resulta a gauchidade, o homem todo‐poderoso, cujas vestimentas refletem seu espírito dominador. A representação do gaúcho emerge, segundo Jacks, em várias manifestações partindo de instituições como o CTG, o Estado e os meios de comunicação de massa. “Dentre essas, sem dúvida os MCM alcançam o maior grau de penetração, por tudo que é sabido sobre seu poder de massificar e, sobretudo, porque as outras instituições se utilizam deles para sua política de comunicação”, afirma (1999, p.94). Sua identidade remete, com especial relevância, a dois conflitos da segunda metade do século XIX, a Revolução Federalista (1893) e a Revolução Farroupilha (1895). “A Revolução Federalista, ocorrida no Rio Grande do Sul entre os anos de 1893 e 1895, foi com certeza a mais séria das contestações enfrentadas pela recém‐proclamada República brasileira”, ressalta Pesavento (1993), lembrando que, embora tivesse seu epicentro no estado, o episódio extrapolou os limites do regional, uma vez que, ao articular‐se com a Revolta da Armada, ameaçou a própria estabilidade do regime. A disputa, que tinha, de um lado, republicanos, apoiadores de Júlio de Castilhos, e, de outro, federalistas, liderados por Gaspar Silveira Martins, inicia a radicalização da política no Rio Grande do Sul. Em 1893, com o recrudescimento do governo, na mão do Partido Republicano Rio‐Grandense (PRR), os federalistas passaram a ver, na guerra civil, a única forma de inverter a situação política do estado. A 2 de fevereiro desse ano, deu‐se a primeira invasão, quando os revoltosos, vindos do Uruguai, estabeleceram o cerco de Bagé. Trata‐se, sem dúvida, de uma herança pesada para os gaúchos, como sublinha Pesavento, devido ao grau de violência dessa guerra, que ficou conhecida como Revolta da Degola. A historiadora faz a ressalva, no entanto, que o autoritarismo do conflito reverte‐se, no imaginário social, em bravura e coragem, que não deixaram de existir, mas não foram os únicos componentes da revolta. De certo ponto de vista, a história realiza uma ordenação e uma interpretação do passado segundo os critérios do presente. Neste sentido, o historiador lida com a memória ou, mais ainda, faz da memória um objeto de saber. [...] Falamos, contudo, de outra memória, controlada, que implica em manipulação, em reconstrução do passado visando determinados fins. Esta memória social, assim construída, implica em um processo seletivo, de textos e imagens, que ressalta certos dados e elimina ou desconsidera outros, como se não tivessem importância ou jamais tivessem existido. [...] Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. Resgatando a memória, inventando o passado e atribuindo‐lhe um significado, historiadores podem se constituir em artífices da construção de uma identidade, nacional ou regional (1993, p.15‐16). O saldo da guerra, para a autora, foi a banalização do valor da vida e a brutalização das camadas mais baixas da campanha, de onde eram recrutados os degoladores. Relacionando com a história contemporânea do estado, a autora diz que ali se concretizava, de forma radicalizada e violenta, a bipolarização política que caracterizaria o estado através de sua história. Embora esse fenômeno possa ser estendido, em curta medida, para o Brasil, é no Rio Grande do Sul que ele mais se acentua. Nesse período, a violência nas relações pessoais, a arbitrariedade e o despotismo do mando não eram estranhos ao cotidiano de uma sociedade pastoril e militarizada. “É interessante, contudo, verificar que a identidade regional do Rio Grande e do gaúcho, em construção alguns anos depois pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, iria verter o componente autoritário para uma dimensão briosa e edificante, traduzindo‐o em conceitos do tipo altivez inata, caráter indômito, coragem intrépida, etc.”, analisa Pesavento (1993, p.18). Ela destaca que, por uma curiosa, mas, sem dúvida, pedagógica inversão, o que se resgata para compor o imaginário social é a vertente liberalizante. No sistema de representação das idéias‐imagens sobre a realidade regional, é o caráter libertário e democrata do gaúcho o mais salientado, embora ele não reflita os acontecimentos da história. “A construção de uma identidade regional procura recuperar do passado elementos nobilizantes que configurem um quadro de tradições gloriosas, das quais todos se orgulham de partilhar e deter a herança...”, completa (1993, p.18). Para ela, não é à toa que a Revolução Farroupilha tenha se estabelecido como carro‐chefe de uma historiografia dita tradicional, que não se baseia na pluralidade de vozes, mas na afirmação de valores estabelecidos por um grupo privilegiado e que se socializam para o conjunto da sociedade. A Revolução Farroupilha teve incidentes de bravura, muitas batalhas, heróis, incidentes rocambolescos (a fuga de Bento...), gestos românticos (Garibaldi e Anita), inusitados (o barco Seival arrastado por terra até a Barra do Tramandaí) ou pitorescos (a lenda da velhinha, do cavalo e do muito falado Bento Gonçalves). De quebra, o Rio Grande lutava por uma causa justa – contra a opressão do Império –, e não foi derrotado na guerra, o que ressaltava seu valor militar. Mas – o que é mais importante – o incidente configura um dos principais ingredientes para o estabelecimento de uma identidade: a coesão social (1993, p.19). Os ideais farroupilhas irmanavam os gaúchos, tornando‐oscúmplices e solidários no enfrentamento com a Corte. A contraposição identidade‐alteridade estabelecia a diferença entre nós e os outros. Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. “Naturalmente, não se quer dizer que só houvesse farroupilhas no Rio Grande, mas o conflito com os legalistas internos é suplantado pelo confronto mais amplo com o Império”, explica (1993, p.18) [7]. Freitas lembra do tempo em que os gaúchos olhavam as outras regiões brasileiras por cima dos ombros. A ufania, é claro, era legitimada pela história. O território gaúcho não fora uma mercê d’El Rei a exigir apenas a expulsão de índios indefesos. Os próprios moradores o haviam conquistado em meio século de guerras contra uma potência mundial européia. Impondo o recuo do meridiano de Tordesilhas, haviam aumentado enormemente o tamanho do Brasil. O sentimento de orgulho e independência ainda mais se entranhou com a Revolução Farroupilha. As regiões geograficamente periféricas sempre são as mais afetadas pelo centralismo e por isso, quando o Império confiscou a autonomia regional, os gaúchos levantaram o pendão da revolta. Admitiram reintegrar‐se no Brasil mediante a garantia de um status virtualmente federativo. Tornaram‐se brasileiros por opção (1998, p.36). No final da década de 1970, como ressalta Ruben George Oliven (1998), tornou‐se lugar‐comum afirmar que as tradições gaúchas estavam morrendo. A profecia, no entanto, não se concretizou, e toda década de 1980 foi fortemente marcada pelo renascimento do gauchismo. “Este é responsável pela existência de aproximadamente mil centros de tradições, mais de quarenta festivais de música nativista, e de vários rodeios”, diz (1998, p.77), lembrando, também, do crescente consumo de produtos culturais voltados a temáticas do Rio Grande do Sul, como programas de rádio e televisão, conjuntos musicais, cantores, livros, restaurantes típicos, lojas de roupas gauchescas, etc. ... As tradições mesmas foram transformadas à medida que seu conteúdo simbólico foi sendo assumido pelos novos meios de comunicação. A mediatização da tradição dotou‐lhe de uma nova vida: a tradição se libertou das limitações da interação face a face e se revestiu de novas características. A tradição se desritualizou; perdeu sua ancoragem nos contextos práticos da vida cotidiana. Mas o desenraizamento das tradições não as privou dos meios de subsistência. Pelo contrário, preparou‐lhes o caminho para que se expandissem, se renovassem, se enxertassem em novos contextos e se ancorassem em unidades espaciais muito além dos limites das interações face a face (THOMPSON, 2005, p.160). Embora o consumo de produtos culturais gaúchos já existisse, ele era bem menor e concentrava‐se no campo ou nas camadas populares suburbanas e urbanas de origem rural. A novidade é a adesão dos jovens da cidade, de classe média, que tomam chimarrão, vestem bombacha e ouvem música gaúcha, hábitos que perderam o estigma de grossura. “Considerando que aproximadamente 75% da população do Rio Grande do Sul vive em situação urbana, esse mercado está concentrado em cidades e é formado, em boa parte, por pessoas sem vivências rurais”, explica Oliven (1998, p. 77). Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. A identidade gaúcha é, também, objeto de intensas polêmicas, como a que teve início na década de 1980, tendo, de um lado, tradicionalistas e, de outro, nativistas. Os tradicionalistas, organizados no Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), estão atentos a tudo que diz respeito aos bens simbólicos do Rio Grande do Sul e tentam exercer, sobre eles, seu controle e orientação. Têm como objetivo demarcar os verdadeiros valores gaúchos e manter a distinção entre o Rio Grande do Sul e o resto do Brasil, como forma de preservar a identidade cultural do estado. Por isso, um elemento recorrente no discurso tradicionalista é a ameaça que estaria pairando sobre a integridade gaúcha, sob a forma de massificação e introdução de costumes alienígenas ou da deturpação de maus tradicionalistas. Há poucos anos, o professor Ademir de Mello de Camargo foi expulso do CTG Lalau Miranda, em Passo Fundo, porque usava brincos. A atitude do patrão do centro, Ari Ferrão, recebeu o apoio dos tradicionalistas do estado. Fica evidente, em casos como esse, a tentativa de resistência cultural ou, no mínimo, de segregação. Por outro lado, fica clara a adaptação e a própria hibridização cultural, embora, mesmo não tratado como parte da indumentária tradicional, o brinco estivesse presente entre os acessórios utilizados pelos gaúchos no final do século XVIII e início do XIX (GOLIN, 1998). Entre os nativistas, estão músicos e jornalistas que não aceitam o controle do MTG, a cujos membros apelidaram de aiatolás da tradição e a quem acusam de patronagem cultural e de patrulhamento folclórico. Essas divergências aparecem, nitidamente, nos festivais de música regional (OLIVEN, 1998). E a identidade cultural gaúcha não fica de fora dos cruzamentos culturais da contemporaneidade, onde o culto, o popular e o massivo se encontram. Como destaca Golin (1998), o gauchismo conquistou a mídia através dos festivais, dos programas produzidos eletronicamente, atingindo uma cobertura integral e sistemática do território, onde o tipo inventado se impôs absolutamente. O campo inculto assistia a tudo. O homem campeiro que até então, de certa forma, era o fluxo real condutor ao passado e exemplo do indivíduo concreto, entrou em crise. Uma tragédia silenciosa. Frente à universalização daquela gauchada fulgorosa e pavoneante de roupagem colorida da televisão e das festas citadinas, porque se mantinha através do trabalho campeiro e da introjeção de trajes criollos, especialmente da bombacha – resto de fardamento militar difundido pelos pobres ex‐combatentes, que a trouxeram da Guerra do Paraguai –, desmoronava diante do fenômeno avassalador da mídia e do êxtase cetegista. Assim, o campeiro, que era o último resquício do homem tradicional criado pelo latifúndio pastoril, deixou de ser o fio condutor da história para uma compreensão aproximada do passado real da gauchada, que se diferenciava como grupo social não proprietário em relação à classe latifundiária. A população rural da campanha (e, agora, também da roça), sempre constrangida pela sua marginalidade camponesa, triste e ironicamente, foi encontrar a sua identidade na adoção do gaúcho inventado nos centros urbanos. A forma mais evidente dessa integração se confirmou no abandono das roupas tradicionais, relativamente simples e discretas, pelas Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. indumentárias tradicionalistas. Esses figurinos foram produzidos por mentes impulsionados por pretensa pesquisa histórica. Não raro, parecem manequins de museu, adornados pela quantidade de peças capazes de suportar (GOLIN, 1998, p.92). O autor vê essa cultura como exemplo eficiente do homem como criação histórica. Afinal, a identidade cultural gaúcha, em seu ponto de vista, alicerça‐se sobre uma imagem inventada, que não se relaciona com o gaúcho original. Esse processo é próprio da contemporaneidade. À figura do gaúcho original, de roupas simples e vida campesina, é somada a imagem guerreira e corajosa, resultado de um passado de guerras relatado gloriosamente,e a imagem midiática, veiculada pelos meios de comunicação locais e reforçada a cada 20 de setembro com coberturas que retomam todas as características que compõem essa identidade cultural híbrida. A hibridização cultural no estado apresenta diversos matizes. Na música, por exemplo, o Rio Grande do Sul conta fortemente com a influência européia, através dos imigrantes italianos e alemães, principalmente. O folclore afro‐gaúcho, que ficou circunscrito e praticamente não teve difusão com personalidade própria, em sua origem, começou a ser decodificado na segunda metade do século XX. Movimentos que se alastraram pelo país, como a bossa nova e, principalmente, o rock ‘n’ roll internacional, tiveram muita influência no cenário gaúcho. Uma nova geração, que impulsionaria a música feita no Rio Grande do Sul para as proximidades do que ela é hoje, começou a se mostrar no meio dos 60 tendo como eixo a agitação universitária. E dentro de um caldo de cultura que incluía as questões nacionalistas propostas pela União Nacional das Estudantes, a segunda geração do rock (Beatles, Rolling Stones), os festivais de MPB, promovidos pela TV Record de São Paulo, e a repulsa à ditadura instalada em 64. Na verdade essa era uma mobilização no País inteiro, coincidindo com um movimento maior de renovação e massificação da música no século. E os festivais chegaram a Porto Alegre, fixando três marcos, dois deles em 1968: o II Festival Sul‐Brasileiro da Canção Popular, promovido pela Rádio e TV Gaúcha, premiou o samba tradicional através de Túlio Piva com Pandeiro de prata (Túlio já era nome nacional, autor do sucesso Tem que ter mulata); e o I Festival Universitário da MPB, promovido pelo Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, que refletiu a nova música brasileira e reuniu compositores e intérpretes daqui e do centro do País. O terceiro marco foi o segundo festival da Arquitetura, em 69, já sob o signo tropicalista, anárquico, contraditório, radical e estimulante (FONSECA, 1998, p.183‐184). Essas apropriações, que tem lugar nos mais diversos campos da cultura, desenham a identidade cultural gaúcha na atualidade. À história de guerras e ao personagem, real ou idealizado, do gaúcho tradicional, agrega‐se o contato com costumes de outras regiões do país, do continente latino‐americano e do mundo, em um movimento característico da globalização. A apropriação dos produtos globais se dá Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. localmente, alterando o sentido dos mesmos de acordo com os contextos em que se dá esse processo, como lembra Johnson (1999). O cidadão sul‐rio‐grandense da atualidade, com vivência majoritariamente urbana, transita entre realidades e temporalidades distintas. Ao mesmo tempo em que, nos pequenos municípios do interior, resistem os costumes campesinos, a capital e a região metropolitana buscam alinhar‐se ao cosmopolitismo das grandes cidades. Costumes tradicionalistas e nativistas entrelaçam‐se às culturas ítalo, teuto, afro, judaico‐gaúchas, entre tantas outras que formam a teia cultural do estado. Na contemporaneidade, essas vivências originais cruzam‐se, ainda, com as diferentes tendências e movimentos que se disseminam pelo globo. A cultura gaúcha, assim como todas as outras, é uma cultura de fronteira. Notas [1] Tradução da autora. [2] Meyer (1957) desenha a trajetória do termo gaúcho, precedido, entre tantos outros, por guasca e gaudério, com sentidos que mudam ao longo da história. “Mais interessante, no caso, seria mostrar como adquiriu lentamente novos matizes de sentido, conforme as reações de meio e momento; como afinal chegou a enfeixar todo um conjunto de sentidos, que poderiam discriminar‐se, a traço grosseiro, do seguinte modo: logo de início, para os capitães‐generais ou autoridades e primeiros proprietários de terras – ladrão, vagabundo, contrabandista; para os capitães de milícias e comandantes de tropas empenhadas em guerras de fronteiras – bombeiro, chasque, vedete, isca para o inimigo, bom auxiliar para o município e remonta; nas guerras de independência do Prata, ou nas campanhas do Sul – lanceiro, miliciano; a contar de certo momento histórico, no Rio Grande do Sul, para o homem da cidade – o trabalhador rural, o homem afeito aos serviços do pastoreio, o peão de estância, o agregado, o campeiro, o habitante da campanha; na poesia popular, um sinônimo de bom ginete, campeiro destro, com tendência para identificar‐se com os termos guasca, monarca; e finalmente para todos nós, um nome gentílico, a exemplo de carioca, barriga‐verde, capixaba, fluminense”, explica o autor (1957, p.35). [3] Entrevista realizada em 12 de setembro de 2000. [4] Entrevista realizada em 15 de setembro de 2000. [5] IBID. [6] Entrevista realizada em 12 de setembro de 2000. [7] Essa contraposição entre o estado e o país repete‐se em diferentes momentos da história e continua viva mesmo na contemporaneidade. Em 1992, por exemplo, foi lançado o movimento O Sul é meu país, que sugere a separação dos estados da região sul do resto do Brasil. A justificativa do movimento Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. ancora‐se em fatores econômicos, culturais, sociais, morais, geográficos e históricos, entre outros. Com pouca visibilidade na mídia e, menor ainda, força política, nos últimos anos, seus adeptos têm ocupado espaços na Internet, em sites, blogs, comunidades no Orkut, etc. Referências BORDINI, Maria da Glória; SCHÜLHER, Luís Fernando (Orgs.). Cultura e identidade regional. Porto Alegre: Edipucrs, 2004. BURKE, Peter. Hibridismo cultural. 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