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Pampa e cultura - O hibridismo cultural no Rio Grande do Sul - Aline Strelow

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Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. 
 
Pampa e cultura: O hibridismo cultural no Rio Grande do Sul 
Aline Strelow 
 
 
Resumo 
O  presente  trabalho  tem  como  objetivo  refletir  sobre  os  processos  de  hibridização  cultural  no  Rio 
Grande  do  Sul.  Através  do  diálogo  de  alguns  autores  que  se  dedicaram  a  estudar  o  conceito  de 
hibridismo  e  sua  prática,  como  Canclini  (1997)  e  Burke  (2003),  partimos  para  a  compreensão  do 
contexto  cultural  do  Rio  Grande  do  Sul,  em  uma  análise  que  coloca  em  contato  aspectos  culturais, 
históricos e  literários. Trata‐se de um estado cuja  identidade,  já arraigada, é  fortalecida pela  indústria 
cultural, com a índole guerreira, o ideal de bravura e a pretensa unicidade cultural como elementos que 
a constituem e a fazem reconhecível (JACKS, 1999). Ao final do trabalho, percebemos que o cidadão sul‐
rio‐grandense  da  atualidade,  com  vivência  majoritariamente  urbana,  transita  entre  realidades  e 
temporalidades  distintas,  caracterizando  a  cultura  gaúcha,  assim  como  todas  as  outras,  como  uma 
cultura de fronteira. 
 
Palavras‐chave 
hibridismo cultural; cultura gaúcha; comunicação e cultura. 
 
 
Abstract 
This work aims to ponder about the processes of cultural hybridization in Rio Grande do Sul. Through the 
interchange between some authors who decided to study the concept of hybridism and its practice, such 
as Canclini (1997) and Burke (2003), we move onto understanding Rio Grande do Sul’s cultural context in 
an  analysis  that  brings  together  cultural,  historical,  and  literary  aspects.  This  is  a  State  whose  deep‐
rooted  identity becomes stronger with the cultural  industry, taking the warrior disposition, the  ideal of 
bravery  and  the  so‐called  cultural  oneness  as  elements  that  build  it  and make  it  recognizable  (JACKS, 
1999). At  the end of  the  study we  realize  the contemporary  citizen  from Rio Grande do Sul  (known as 
gaucho), who lives majorly in urban centers, travels between different realities and times, typifying the 
gaucho culture, as well as all others, as a border culture. 
 
Key‐words 
cultural hybridism; Gaucho culture; communication and culture. 
 
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. 
 
O conceito de hibridismo cultural, bastante discutido na atualidade, remete ao contexto cultural no qual 
estamos  inseridos.  Embora  façamos  parte  de  uma  rede  que  nos  liga,  de  um  ponto  a  outro,  por 
interesses comuns, é difícil encontrar grupos ou tribos isolados por fronteiras rígidas. O que detectamos, 
conforme Burke  (2003),  é  a  existência  de  um  continuum  cultural,  de  espaços  de  transição  e  contato, 
onde  são mixadas diferentes  realidades.  “A preocupação  com esse  assunto  é natural  em um período 
como  o  nosso, marcado  por  encontros  culturais  cada  vez mais  freqüentes  e  intensos.  A  globalização 
cultural envolve hibridização” (BURKE, 2003, p.14). 
 
1. História cultural – Uma teia de intersecções  
 
A história cultural, de acordo com Warnier (2000), começa sob o signo da mais extrema fragmentação. A 
humanidade se construiu dispersando‐se sobre quase toda a superfície de terras emersas. A diversidade 
lingüística, social e cultural é levada ao extremo, através das comunicações constantes, embora lentas, 
em escala planetária. 
 
A  revolução  neolítica  foi  acompanhada  de  dois  movimentos  em  sentidos 
contrários: a multiplicação de pequenas comunidades de agricultores cada vez 
mais  fragmentados  e,  em  certos  locais,  a  constituição  de  grandes  conjuntos 
sóciopolíticos. Ela colocou as bases sociais, políticas, religiosas de sistemas de 
transportes  e  de  comunicações  que  reduziram  lentamente  o  isolamento  dos 
grupos  locais  e  seu  fechamento  sobre  si  mesmos.  O  desenvolvimento  das 
trocas  mercantis  e  da  moeda  atingiu  cada  vez  mais  um  número  maior  de 
setores da atividade humana, inclusive a cultura (WARNIER, 2000, p.66‐67). 
 
As economias tradicionais foram transformadas, radicalmente, pela revolução industrial, dando origem 
às  indústrias  da  cultura.  O  autor  pontua  a  globalização  dos  fluxos midiáticos,  financeiros,  mercantis, 
migratórios  e  tecnológicos,  intensificada  na  década  de  1970.  “Ela  chega  a  seu  mais  completo 
acabamento, com o desmoronamento da economia dirigista de tipo soviético para dar à “globalização 
da  cultura”  sua  configuração  atual  e  certamente  provisória”,  afirma  (2000,  p.67).  Essa  configuração 
caracteriza‐se pelo encontro entre os homens inscritos em culturas fragmentadas, locais, enraizadas na 
longa duração da história, por um  lado, e pelos bens e serviços,  colocados no mercado por  indústrias 
recentes e globalizadas por sistemas de trocas e de comunicação de grande capacidade, por outro. 
 
2. Cultura: A hibridização de um conceito e de sua prática 
 
A  cultura,  conforme  Canclini  (2003,  p.35),  abarca  o  conjunto  de  processos  sociais  de  significação,  ou 
melhor,  o  conjunto  de  processos  sociais  de  produção,  circulação  e  consumo  da  significação  na  vida 
social.  Não  constitui,  deste  modo,  nenhum  tipo  de  erudição,  educação,  informação  vasta  ou 
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. 
 
refinamento. Não se restringe a grupos de maior ou menor  influência social. É característica plural, da 
comunidade humana, seja ela vista como um todo planetário ou fragmentada em pequenos blocos.  
 
A sociedade está estruturada com base em dois tipos de relações: a de forças correspondentes ao valor 
de  uso  e  troca  e,  junto  a  elas,  dentro  delas,  há  relações  de  sentido  que  organizam  a  vida  social,  as 
relações de significação. O mundo das significações, do sentido, é próprio da cultura. É dos significados 
atribuídos, arbitrariamente ou não, às coisas, valores e idéias, que se constitui a cultura. São os signos e 
os  símbolos  que  possibilitam  a  interação  entre  os  homens  e,  em  sua  organização,  ou  não,  residem a 
sociedade, a comunicação e a cultura. 
 
O  autor  busca,  no  cruzamento  da  antropologia,  da  sociologia,  da  história  da  arte  e  dos  estudos  de 
comunicação,  a  evidência  de  que  a  cultura  humana  é  híbrida.  Ou  seja,  “assim  como  não  funciona  a 
oposição  abrupta  entre  o  tradicional  e  o  moderno,  o  culto,  o  popular  e  o  massivo  não  estão  onde 
estamos habituados a encontrá‐los” (IBIDEM, p.19). Ao colocar os meios de comunicação social em pé 
de  igualdade com as demais manifestações, Canclini  legitima seu papel,  como resultado, entre outros 
fatores, da  internacionalização da economia,  transnacionalização dos próprios meios de comunicação, 
aumento  do  fluxo  turístico  e  das migrações  internas  e  externas,  como  pontua  Jacks,  em  seu  estudo 
sobre a mediação simbólica das culturas regionais (1999, p.30). Conforme a autora, esta perspectiva de 
pesquisa  desponta  com propostas  que  avançam na  compreensão  dos  processos  comunicacionais  nos 
países  latino‐americanos,  nos  quais  tanto  a  modernidade  como  a  modernização  andam  a  passos 
desconexos (1999, p.31). 
 
É  necessário  demolir  essa  divisão  em  três  pavimentos,  essa  concepção  em 
camadas do mundo da cultura, e averiguar se sua hibridação pode ser lida com 
as  ferramentas  das  disciplinas  que  os  estudam  separadamente:  a  história  da 
arte  e  a  literatura  se  ocupam  do  “culto”;  o  folclore  e  a  antropologia, 
consagrados  ao  popular;  os  trabalhos  sobre  comunicação,  especializados  na 
cultura massiva.  Precisamosde  ciências  sociais  nômades,  capazes  de  circular 
pelas escadas que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses 
planos e comuniquem os níveis horizontalmente (CANCLINI, 2003, p.19). 
 
Sobressaem‐se, então, os cruzamentos socioculturais em que o tradicional e o moderno se misturam. Os 
movimentos sociais e as mudanças da vida em sociedade acarretam a adaptação de saberes.  Isso  fica 
claro quando se observa as modificações no artesanato dos migrantes do campo para atrair o interesse 
dos  consumidores  urbanos,  por  exemplo. Ou,  ainda,  quando  os  operários  reformulam  sua  cultura  de 
trabalho frente às novas tecnologias de produção, sem abandonar crenças antigas.  
 
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. 
 
Exemplos de hibridismo cultural, como lembra Burke (2003), podem ser encontrados em toda parte, não 
apenas  em  todo  o  globo,  mas  na  maioria  dos  domínios  da  cultura  –  religiões  sincréticas,  filosofias 
ecléticas,  línguas  e  culinárias  mistas  e  estilos  híbridos  na  arquitetura,  na  literatura  ou  na  música.  O 
termo hibridismo não tem exatamente o mesmo significado em todos esses momentos. 
 
É  necessário,  para  estudar  a  cultura  latino‐americana,  ou  as  culturas  nela  inseridas,  como  é  o  nosso 
caso, lançar um olhar conjunto que se encarregue desta heterogeneidade temporal. Conforme Canclini 
(2003, p.21),  tanto os tradicionalistas quanto os modernizadores quiseram construir objetos puros. Os 
primeiros  imaginaram  culturas  nacionais  e  populares  autênticas;  procuraram  preservá‐las  da 
industrialização, da massificação urbana e das  influências estrangeiras. Os  segundos conceberam uma 
arte pela arte, um saber pelo saber, sem fronteiras territoriais. As próprias ideologias modernizadoras, 
do  liberalismo  ao  desenvolvimentismo,  acentuaram  essa  compartimentação,  caracterizando  a 
modernização como uma etapa além, como uma evolução. As formas de produção, as crenças e os bens 
tradicionais  seriam  substituídos. O  conhecimento  científico  tomaria  o  lugar  dos mitos,  a  expansão da 
indústria  acabaria  com  o  artesanato,  os  livros  cederiam  seu  espaço  para  os  meios  audiovisuais  de 
comunicação. 
 
Hoje, existe uma perspectiva mais  complexa  sobre as  relações entre  tradição e modernidade. O culto 
tradicional  não  é  apagado  pela  industrialização  dos  bens  simbólicos.  Ao  invés  de  se  extinguir,  esta 
produção se transforma pelo contato. Diz o autor: 
 
Nunca  houve  tantos  artesãos,  nem  músicos  populares,  nem  semelhante 
difusão  do  folclore,  porque  seus  produtos mantêm  funções  tradicionais  (dar 
trabalho  aos  indígenas  e  camponeses)  e  desenvolvem  outras  modernas: 
atraem  turistas  e  consumidores  urbanos  que  encontram nos  bens  folclóricos 
signos de distinção (CANCLINI, 2003, p.22). 
 
Ou  seja,  a modernização diminui  o papel  do  culto  e do popular  tradicionais  no  conjunto do mercado 
simbólico,  mas  não  os  suprime.  Redimensiona  a  arte  e  o  folclore,  o  saber  acadêmico  e  a  cultura 
industrializada, sob condições relativamente semelhantes. 
 
A definição de arte, por exemplo, não se circunscreve a uma questão estética. É preciso levar em conta 
como  essa  questão  será  respondida  na  intersecção  que  fazem  os  jornalistas  e  os  críticos,  os 
historiadores e os museógrafos, os marchands, os colecionadores e os especuladores. Da mesma forma, 
o  popular  não  se  define  por  uma  essência  a  priori,  como  lembra  Canclini  (ibidem,  p.23),  mas  pelas 
estratégias  instáveis,  diversas,  com  que  os  próprios  setores  subalternos  constroem  suas  posições,  e 
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. 
 
também pelo modo como o folclorista e o antropólogo levam à cena a cultura popular para o museu ou 
para a academia, os sociólogos e os políticos para os partidos, os comunicólogos para a mídia. 
 
Esta hibridez cultural é conseqüência, também, dos diferentes estágios em que se encontra a sociedade 
latino‐americana. Em todo momento, há pessoas entrando e saindo da modernidade, entrando e saindo 
da  pós‐modernidade.  Ao  mesmo  tempo  em  que  estão  disponíveis  as  mais  altas  tecnologias  a  um 
número  restrito  de  cidadãos,  grande  parte  dos  latino‐americanos  não  tem  acesso  ou  não  está 
alfabetizada  para  o  uso  destas  tecnologias. Mesmo  os mais  favorecidos  economicamente  continuam 
alternando conhecimentos ditos modernos com formas arcaicas de poder.  
 
Os  processos  de  hibridização  apresentam  variedades  de  objetos,  terminologias,  situações,  reações  e 
resultados, como fica claro no ensaio de Burke (2003) sobre o tema. 
 
Variedades de objetos 
Artefatos  Ex: arquitetura, mobília, imagens, textos 
Práticas  Ex: religião, música, linguagem, esporte, festividades 
Povos  Ex: latino‐americanos, anglo‐indianos, afro‐americanos 
Variedades de terminologias 
Imitação  e 
apropriação 
A  apropriação  é  uma  alternativa  à  imitação.  Trata‐se  de  digerir, 
domesticar  as  coisas  estrangeiras,  a  exemplo  do  que  pretendia  a 
“antropofagia” do início do século XX, no Brasil. 
Acomodação  e 
negociação 
A  acomodação  remete  à  adaptação,  dos  oradores  a  suas  platéias,  por 
exemplo.  Diálogo  e  negociação  aparecem  como  termos  alternativos.  Na 
negociação, ambos os envolvidos revisam suas crenças/valores originais. 
Mistura, 
sincretismo, 
hibridização 
Coexistência  de  elementos  de  diferentes  culturas,  nem  sempre  de  uma 
forma tranqüila. 
Tradução cultural  Apreensão  de  uma  cultura  estrangeira  e  recolocação  da mesma em  sua 
cultural original. Domesticação do que é estrangeiro. 
Crioulização  Terceira  cultura,  mista,  resultado  do  encontro  entre  duas  culturas 
originais. 
Quadro 1: Hibridismo cultural – Peter Burke 
 
 
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. 
 
 
Variedades de situações 
Iguais e desiguais  No Brasil, as experiências das missões  jesuíticas e dos escravos africanos 
são exemplos explícitos de hibridismo cultural entre iguais e desiguais. 
Tradições  de 
apropriação 
O  hibridismo  varia  quando  ocorre  em  culturas  com  tradições  fracas  ou 
fortes  de  apropriação  e  adaptação.  A  cultura  hindu,  por  exemplo,  tem 
uma  propensão  maior  para  incorporar  elementos  estrangeiros  do  que, 
digamos, o islã. 
Metrópole e fronteira  A  presença  de  diferentes  grupos  de  imigrantes  torna  a  metrópole  um 
importante  local de troca cultural. As zonas de  fronteira não são apenas 
locais de encontro, mas de sobreposições e intersecções entre culturas. 
Classes como culturas  As  interações  entre  classes  sociais,  com  vivências  diferentes,  também 
constituem espaços de contato cultural. 
Variedades de reações 
O  estrangeiro  vira 
moda 
Aceitação  e  acolhida  do  que  é  estrangeiro.  Ex:  ocidentalização, 
americanização, londonização, anglomania.  
Resistência  Defesa das fronteiras culturais contra a invasão. Ex: rejeição muçulmana à 
tipografia, que durou até cerca de 1800. 
Purificação cultural  Reações contra a estrangeirice muitas vezes assumiram a forma extrema 
de movimentos pela purificação, uma espécie de  limpeza étnica.  Ex: um 
movimento  para  o  retorno  do  grego  ático  puro  se  iniciou  na  época 
helenística em resposta à invasão da língua por palavras estrangeiras. 
Segregação cultural  Não se trata de defender o território cultural como um todo, mas manter 
parte  dele  livre  de  contaminação  por  influências  estrangeiras.  Ex:  Nos 
séculos  XIX  e  XX,  osturcos  e  chineses  queriam  adotar  a  tecnologia 
ocidental sem aceitar os valores ocidentais. 
Adaptação  Movimento  de  descontextualização  e  recontextualização,  retirando  um 
item de seu local original e modificando‐o de forma a que se encaixe em 
seu novo ambiente. 
Circularidade  Adaptações de  itens culturais estrangeiros de  forma tão completa que o 
resultado pode ser “re‐exportado” para o lugar de origem do item. 
Quadro 1: Continuação 
 
 
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. 
 
Tradutores  São os sujeitos da adaptação. Fazem a ligação entre as diferentes culturas. 
As relações entre o Império Otomano e a Europa Ocidental, por exemplo, 
por muito  tempo  dependeram  dos  préstimos  de  judeus  e  gregos  como 
intermediários lingüísticos. 
Variedades de resultados 
Contraglobalização  Resistência à intromissão ou invasão de formas globais de cultura. 
Diglossia cultural  Biculturalismo. Alternância entre culturas, escolhendo o que se considera 
ser mais apropriado à  determinada situação. 
Homogeneização 
cultural 
Surgimento  de  uma  cultura  global,  quase  global  ou,  pelo  menos, 
crescentemente global. 
Hibridização cultural  Encontros culturais que levam a algum tipo de mistura cultural. 
Crioulização do mundo  Surgimento de uma nova cultura, através de contatos interculturais. 
Quadro 1: Continuação 
 
Esses  conceitos,  amplamente  discutidos  na  contemporaneidade,  desenham  o  cenário  do  hibridismo 
cultural e  revelam suas peculiaridades. Cada um se desdobra em vários, e as áreas do conhecimento, 
chamadas para entendê‐los, acabam fazendo de nossa ciência, também, uma ciência híbrida. 
 
Em  estudo  recente,  Canclini  debruçou‐se,  por  exemplo,  sobre  as  diferenças,  desigualdades  e 
desconexões na América Latina (2004). O conceito chave, nessa obra, é interculturalidade. Diferente da 
multiculturalidade,  que  supõe  a  aceitação  do  heterogêneo,  a  interculturalidade  implica  que  os 
diferentes são o que são em relações de negociação, empréstimos e conflitos  recíprocos. Como  já  fez 
em  Culturas  híbridas,  o  autor  levanta  a  importância  de  se  estudar  o  tema  com  a  concorrência  da 
antropologia, da sociologia e da comunicação.  
 
Estudar as diferenças e preocupar‐se pelo que nos homogeneíza tem sido uma 
tendência  dos  antropólogos.  Os  sociólogos  se  acostumaram  a  observar  os 
movimentos  que  nos  igualam  e  os  que  aumentam  a  disparidade.  Os 
especialistas  em  comunicação  só  pensam  as  diferenças  e  desigualdades  em 
termos de inclusão e exclusão. De acordo com a ênfase de cada disciplina, os 
processos  culturais  são  lidos  com  chaves  distintas.  Para  as  antropologias  da 
diferença,  cultura  é  pertencimento  comunitário  e  contraste  com  os  outros. 
Para  algumas  teorias  sociológicas  da  desigualdade,  a  cultura  é  algo  que  se 
adquire  formando  parte  das  elites  ou  aderindo  a  seus  pensamentos  e  seus 
gostos;  as  diferenças  culturais  procederiam  da  apropriação  desigual  dos 
recursos  econômicos  e  educativos.  Os  estudos  comunicacionais  consideram, 
quase  sempre,  que  ter  cultura  é  estar  conectado.  Não  há  um  processo 
evolucionista  de  substituição  de  umas  teorias  por  outras:  o  problema  é 
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. 
 
averiguar  como  existem,  chocam  ou  se  ignoram  a  cultura  comunitária,  a 
cultura como distinção e a cultura.com (2004, p.13‐14) [1]. 
 
No campo político, o  reconhecimento da diversidade cultural  como  fundamental para a democracia é 
um fenômeno novo, como afirma Mattelart (2005). Da cultura à comunicação, do povo ao público, do 
cidadão ao consumidor. Sob essas permutas, não deixaram  de se jogar, durante os dois últimos séculos, 
as  tensões  entre  o  projeto  da  república  mercantil  universal,  sob  o  signo  do  livre  comércio,  e  o 
universalismo dos valores exaltados pelos  iluministas; entre o etnocentrismo da colonização cultural e 
as  lutas  pela  salvaguarda  das  identidades;  entre  o  espaço  fechado  do  nacional  e  os  vetores 
transfronteiras; entre a filosofia do serviço público e o pragmatismo do livre jogo da concorrência; entre 
a cultura legítima e as culturas populares; entre a alta cultura e a cultura do cotidiano. 
 
3. Hibridez cultural no Rio Grande do Sul 
 
É  a  partir  destes  olhares múltiplos  e  desta  compreensão  de  cultura  que  se  pretende  refletir  sobre  o 
processo de hibridização cultural no Rio Grande do Sul, estado cuja identidade, já arraigada, é também 
fortalecida  constantemente  pela  indústria  cultural.  Jacks  (1999,  p.85)  entende  a  identidade  cultural 
gaúcha como uma relação multimediada. Entre os elementos que a constituem e a fazem reconhecível, 
ela aponta: valores ligados à ideologia, ideal de bravura, coragem, índole guerreira, regras de vestir, de 
pensar e de comportamento, unicidade da cultura gaúcha que diferenciaria o Rio Grande do Sul do resto 
do país. Além disso, a autora destaca os indicadores da identificação com a cultura regional como, por 
exemplo, o hábito do chimarrão, o churrasco, a pilcha e a música gaudéria. 
 
Conforme Oliven (1992), o modelo construído, quando se fala nas coisas gaúchas, está baseado em um 
passado  que  teria  existido  na  região  pastoril  da  Campanha,  no  sudoeste  do  Rio  Grande  do  Sul,  e  na 
figura real ou idealizada do gaúcho. 
 
É  em  torno  desse  eixo  que  giram  os  debates  sobre  a  identidade  gaúcha. 
Atualmente,  a  construção  dessa  representação  recoloca  a  questão  em  um 
novo  patamar  já  que  estamos  numa  época  em  que  tanto  o  Brasil  apresenta 
uma  maior  integração  política,  econômica,  de  transportes,  de  meios  de 
comunicação,  etc.,  articulando  suas  regiões  de  uma  forma  efetiva  (1992, 
p.100). 
 
O  cidadão  sul‐rio‐grandense  que,  na  maior  parte,  reside  na  zona  urbana,  dispõe  das  facilidades 
oferecidas pelas novas tecnologias, dificilmente locomove‐se a cavalo e muito menos se aquece ao fogo 
de chão. A divulgação e o fortalecimento do mito do povo gaúcho como campesino, com vestimentas 
típicas e comportamento grosseiro, é muito mais uma tentativa de resgate do passado gaudério, tenha 
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ele existido na realidade ou na  imaginação dos promotores culturais  regionais. Meyer, em sua análise 
das manifestações  folclóricas do estado,  criticou a visão  romântica de que o  folclore  se originaria nas 
camadas populares.  “É  relativamente modesta a  contribuição do  ‘povo’ em contraste com a  iniciativa 
criadora das minorias cultas”, afirmou (1952, p.23). 
 
A  literatura regionalista contribui muito para a divulgação desse mito. De acordo com Luiz Antônio de 
Assis Brasil, o gaúcho [2] é uma criação literária [3]. O surgimento das letras no estado se deu em meio à 
efervescência  das  idéias  românticas  no  Brasil.  O  romantismo,  embebido  em  um  nacionalismo 
exacerbado, e aliado à busca de uma identidade nacional, teve reflexos, também, no Rio Grande do Sul. 
No afã de eleger um símbolo genuíno e singular, que eleva o índio a representante nacional, o gaúcho 
torna‐se o  ícone dos pampas. O  regionalismo nasce, portanto,  sob o  signo da  idealização. Para Maria 
Eunice Moreira, os escritores sul‐rio‐grandenses transferem a discussão que se fazia em âmbito nacional 
para o estado, com muita propriedade. “Quando o espaço e seu representante natural, que é o gaúcho, 
começam  a  ser  tematizados,  eles  são  idealizados.  Os  escritores  idealizam  o  homem,  a  paisagem,  o 
tempo, tudo. É própria do mitoesta pureza”, explica [4]. 
 
Coragem, energia, apego aos animais, espírito guerreiro, nobreza de sentimentos e desejo de liberdade. 
A  literatura  regional  sul‐rio‐grandense  tem,  na  maneira  de  ser  do  gaúcho  tradicional,  seu  ponto  de 
apoio,  revelando suas características,  seus padrões e seu código de valores. “A  ficção cria um modelo 
exemplar, um gaúcho sem defeitos, só com qualidades. Do ponto de vista físico, ele é forte, come carnes 
fortes e  toma uma bebida  forte. Do ponto de vista moral, ele é rijo,  tem o caráter  firme, é honesto e 
muito sincero”, define Maria Eunice [5], para quem as atividades designadas a este personagem ajudam 
a consolidar sua fortaleza, pois requerem agilidade e destreza. “Vai se criando um delinear, uma pintura, 
uma  figura que não é  real, mas  serve àquela necessidade primeira que é a de construir um modelo”, 
afirma. A literatura deu ênfase à face mais importante na formação de um mito, que é o reforço de seus 
aspectos intrínsecos.  
Se  pegarmos  a  obra  de  Simões  Lopes  Neto,  teremos  o  gaúcho  padrão.  Blau 
Nunes é o tipo honesto, leal, cavalheiro, guerreiro. Os outros são exceção. Em 
Simões  Lopes  há muitos  bandidos. Mas  eles  são  a  escória  social,  são  os  que 
acabam  perdendo  e  não  podem  ser  considerados  gaúchos,  são  anomalias 
dentro do sistema [6]. 
 
O conceito do mito é o conjunto de  todos esses  fatores que constituem o modo de ser do gaúcho. A 
forma desse mito  são  suas  características  visíveis,  que  transparecem em  seu  traje  típico:  bombachas, 
botas, laço; nos seus hábitos: churrasco, chimarrão, cigarro de palha; e na linguagem: expressões típicas 
da região. É sobre esses dois aspectos, internos e externos, que se pode embasar a imagem do gaúcho 
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mítico. Da soma de ambos resulta a gauchidade, o homem todo‐poderoso, cujas vestimentas refletem 
seu espírito dominador.  
 
A  representação do  gaúcho  emerge,  segundo  Jacks,  em  várias manifestações  partindo de  instituições 
como  o  CTG,  o  Estado  e  os  meios  de  comunicação  de  massa.  “Dentre  essas,  sem  dúvida  os  MCM 
alcançam  o  maior  grau  de  penetração,  por  tudo  que  é  sabido  sobre  seu  poder  de  massificar  e, 
sobretudo,  porque  as  outras  instituições  se  utilizam  deles  para  sua  política  de  comunicação”,  afirma 
(1999, p.94).  
 
Sua  identidade  remete,  com especial  relevância,  a  dois  conflitos da  segunda metade do  século XIX,  a 
Revolução Federalista  (1893) e  a Revolução Farroupilha  (1895).  “A Revolução Federalista, ocorrida no 
Rio  Grande  do  Sul  entre  os  anos  de  1893  e  1895,  foi  com  certeza  a  mais  séria  das  contestações 
enfrentadas  pela  recém‐proclamada  República  brasileira”,  ressalta  Pesavento  (1993),  lembrando  que, 
embora tivesse seu epicentro no estado, o episódio extrapolou os limites do regional, uma vez que, ao 
articular‐se com a Revolta da Armada, ameaçou a própria estabilidade do regime.  
 
A  disputa,  que  tinha,  de  um  lado,  republicanos,  apoiadores  de  Júlio  de  Castilhos,  e,  de  outro, 
federalistas, liderados por Gaspar Silveira Martins, inicia a radicalização da política no Rio Grande do Sul. 
Em 1893, com o recrudescimento do governo, na mão do Partido Republicano Rio‐Grandense (PRR), os 
federalistas passaram a ver, na guerra civil, a única forma de inverter a situação política do estado. A 2 
de  fevereiro  desse  ano,  deu‐se  a  primeira  invasão,  quando  os  revoltosos,  vindos  do  Uruguai, 
estabeleceram o cerco de Bagé.  
 
Trata‐se,  sem dúvida,  de  uma  herança  pesada  para  os  gaúchos,  como  sublinha  Pesavento,  devido  ao 
grau  de  violência  dessa  guerra,  que  ficou  conhecida  como  Revolta  da  Degola.  A  historiadora  faz  a 
ressalva,  no  entanto,  que  o  autoritarismo  do  conflito  reverte‐se,  no  imaginário  social,  em  bravura  e 
coragem, que não deixaram de existir, mas não foram os únicos componentes da revolta. 
 
De certo ponto de vista, a história realiza uma ordenação e uma interpretação 
do passado segundo os critérios do presente. Neste sentido, o historiador lida 
com a memória ou, mais ainda, faz da memória um objeto de saber.  
[...] 
Falamos,  contudo,  de  outra  memória,  controlada,  que  implica  em 
manipulação,  em  reconstrução  do  passado  visando  determinados  fins.  Esta 
memória social, assim construída, implica em um processo seletivo, de textos e 
imagens, que ressalta certos dados e elimina ou desconsidera outros, como se 
não tivessem importância ou jamais tivessem existido. 
[...] 
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Resgatando a memória, inventando o passado e atribuindo‐lhe um significado, 
historiadores  podem  se  constituir  em  artífices  da  construção  de  uma 
identidade, nacional ou regional (1993, p.15‐16). 
 
O saldo da guerra, para a autora, foi a banalização do valor da vida e a brutalização das camadas mais 
baixas  da  campanha,  de  onde  eram  recrutados  os  degoladores.  Relacionando  com  a  história 
contemporânea  do  estado,  a  autora  diz  que  ali  se  concretizava,  de  forma  radicalizada  e  violenta,  a 
bipolarização política que caracterizaria o estado através de sua história. Embora esse fenômeno possa 
ser estendido, em curta medida, para o Brasil, é no Rio Grande do Sul que ele mais se acentua. 
 
Nesse período, a violência nas relações pessoais, a arbitrariedade e o despotismo do mando não eram 
estranhos ao cotidiano de uma sociedade pastoril e militarizada. “É interessante, contudo, verificar que 
a  identidade  regional  do  Rio  Grande  e  do  gaúcho,  em  construção  alguns  anos  depois  pelo  Instituto 
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul,  iria verter o componente autoritário para uma dimensão 
briosa  e  edificante,  traduzindo‐o  em  conceitos  do  tipo  altivez  inata,  caráter  indômito,  coragem 
intrépida,  etc.”,  analisa  Pesavento  (1993,  p.18).  Ela  destaca  que,  por  uma  curiosa,  mas,  sem  dúvida, 
pedagógica  inversão,  o  que  se  resgata  para  compor o  imaginário  social  é  a  vertente  liberalizante. No 
sistema  de  representação  das  idéias‐imagens  sobre  a  realidade  regional,  é  o  caráter  libertário  e 
democrata  do  gaúcho  o  mais  salientado,  embora  ele  não  reflita  os  acontecimentos  da  história.  “A 
construção  de  uma  identidade  regional  procura  recuperar  do  passado  elementos  nobilizantes  que 
configurem  um  quadro  de  tradições  gloriosas,  das  quais  todos  se  orgulham  de  partilhar  e  deter  a 
herança...”,  completa  (1993,  p.18).  Para  ela,  não  é  à  toa  que  a  Revolução  Farroupilha  tenha  se 
estabelecido como carro‐chefe de uma historiografia dita tradicional, que não se baseia na pluralidade 
de vozes, mas na afirmação de valores estabelecidos por um grupo privilegiado e que se socializam para 
o conjunto da sociedade.  
 
A Revolução  Farroupilha  teve  incidentes  de bravura, muitas  batalhas,  heróis, 
incidentes  rocambolescos  (a  fuga de Bento...), gestos  românticos  (Garibaldi e 
Anita), inusitados (o barco Seival arrastado por terra até a Barra do Tramandaí) 
ou  pitorescos  (a  lenda  da  velhinha,  do  cavalo  e  do  muito  falado  Bento 
Gonçalves).  De  quebra,  o  Rio  Grande  lutava  por  uma  causa  justa  –  contra  a 
opressão  do  Império  –,  e  não  foi  derrotado  na  guerra,  o  que  ressaltava  seu 
valor militar. Mas – o que é mais  importante – o  incidente configura um dos 
principais  ingredientes  para  o  estabelecimento  de  uma  identidade:  a  coesão 
social (1993, p.19). 
 
Os  ideais  farroupilhas  irmanavam  os  gaúchos,  tornando‐oscúmplices  e  solidários  no  enfrentamento 
com  a  Corte.  A  contraposição  identidade‐alteridade  estabelecia  a  diferença  entre  nós  e  os  outros. 
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“Naturalmente, não se quer dizer que só houvesse  farroupilhas no Rio Grande, mas o conflito com os 
legalistas internos é suplantado pelo confronto mais amplo com o Império”, explica (1993, p.18) [7]. 
 
Freitas lembra do tempo em que os gaúchos olhavam as outras regiões brasileiras por cima dos ombros. 
A ufania, é claro, era legitimada pela história.  
 
O território gaúcho não fora uma mercê d’El Rei a exigir apenas a expulsão de 
índios indefesos. Os próprios moradores o haviam conquistado em meio século 
de  guerras  contra  uma  potência  mundial  européia.  Impondo  o  recuo  do 
meridiano  de  Tordesilhas,  haviam  aumentado  enormemente  o  tamanho  do 
Brasil. O sentimento de orgulho e independência ainda mais se entranhou com 
a Revolução Farroupilha. As regiões geograficamente periféricas sempre são as 
mais  afetadas  pelo  centralismo  e  por  isso,  quando  o  Império  confiscou  a 
autonomia  regional,  os  gaúchos  levantaram  o  pendão  da  revolta.  Admitiram 
reintegrar‐se  no  Brasil  mediante  a  garantia  de  um  status  virtualmente 
federativo. Tornaram‐se brasileiros por opção (1998, p.36). 
 
No final da década de 1970, como ressalta Ruben George Oliven (1998), tornou‐se lugar‐comum afirmar 
que as tradições gaúchas estavam morrendo. A profecia, no entanto, não se concretizou, e toda década 
de 1980 foi fortemente marcada pelo renascimento do gauchismo. “Este é responsável pela existência 
de  aproximadamente  mil  centros  de  tradições,  mais  de  quarenta  festivais  de  música  nativista,  e  de 
vários  rodeios”,  diz  (1998,  p.77),  lembrando,  também,  do  crescente  consumo  de  produtos  culturais 
voltados a  temáticas do Rio Grande do Sul, como programas de rádio e  televisão, conjuntos musicais, 
cantores, livros, restaurantes típicos, lojas de roupas gauchescas, etc. 
 
...  As  tradições  mesmas  foram  transformadas  à  medida  que  seu  conteúdo 
simbólico  foi  sendo  assumido  pelos  novos  meios  de  comunicação.  A 
mediatização da  tradição dotou‐lhe de uma nova  vida:  a  tradição  se  libertou 
das limitações da interação face a face e se revestiu de novas características. A 
tradição  se  desritualizou;  perdeu  sua  ancoragem  nos  contextos  práticos  da 
vida cotidiana. Mas o desenraizamento das tradições não as privou dos meios 
de  subsistência.  Pelo  contrário,  preparou‐lhes  o  caminho  para  que  se 
expandissem,  se  renovassem,  se  enxertassem  em  novos  contextos  e  se 
ancorassem em unidades espaciais muito além dos limites das interações face 
a face (THOMPSON, 2005, p.160). 
 
Embora o consumo de produtos culturais gaúchos já existisse, ele era bem menor e concentrava‐se no 
campo ou nas  camadas populares  suburbanas e urbanas de origem  rural. A novidade é  a  adesão dos 
jovens da cidade, de classe média, que tomam chimarrão, vestem bombacha e ouvem música gaúcha, 
hábitos que perderam o estigma de grossura. “Considerando que aproximadamente 75% da população 
do Rio Grande do Sul vive em situação urbana, esse mercado está concentrado em cidades e é formado, 
em boa parte, por pessoas sem vivências rurais”, explica Oliven (1998, p. 77). 
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A  identidade  gaúcha  é,  também,  objeto  de  intensas  polêmicas,  como  a  que  teve  início  na  década de 
1980,  tendo,  de  um  lado,  tradicionalistas  e,  de  outro,  nativistas.  Os  tradicionalistas,  organizados  no 
Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), estão atentos a tudo que diz respeito aos bens simbólicos do 
Rio Grande do Sul e tentam exercer, sobre eles, seu controle e orientação. Têm como objetivo demarcar 
os verdadeiros valores gaúchos e manter a distinção entre o Rio Grande do Sul e o resto do Brasil, como 
forma  de  preservar  a  identidade  cultural  do  estado.  Por  isso,  um  elemento  recorrente  no  discurso 
tradicionalista é a ameaça que estaria pairando sobre a integridade gaúcha, sob a forma de massificação 
e  introdução  de  costumes alienígenas  ou  da  deturpação  de maus  tradicionalistas.  Há  poucos  anos,  o 
professor  Ademir  de Mello  de  Camargo  foi  expulso  do  CTG  Lalau Miranda,  em  Passo  Fundo,  porque 
usava brincos. A atitude do patrão do centro, Ari Ferrão, recebeu o apoio dos tradicionalistas do estado. 
Fica evidente, em casos como esse, a tentativa de resistência cultural ou, no mínimo, de segregação. Por 
outro  lado, fica clara a adaptação e a própria hibridização cultural, embora, mesmo não tratado como 
parte  da  indumentária  tradicional,  o  brinco  estivesse  presente  entre  os  acessórios  utilizados  pelos 
gaúchos  no  final  do  século  XVIII  e  início  do  XIX  (GOLIN,  1998).  Entre  os  nativistas,  estão  músicos  e 
jornalistas que não aceitam o controle do MTG, a cujos membros apelidaram de aiatolás da tradição e a 
quem  acusam  de  patronagem  cultural  e  de  patrulhamento  folclórico.  Essas  divergências  aparecem, 
nitidamente, nos festivais de música regional (OLIVEN, 1998). 
 
E a identidade cultural gaúcha não fica de fora dos cruzamentos culturais da contemporaneidade, onde 
o  culto,  o  popular  e  o massivo  se  encontram.  Como destaca Golin  (1998),  o  gauchismo  conquistou  a 
mídia  através  dos  festivais,  dos  programas  produzidos  eletronicamente,  atingindo  uma  cobertura 
integral e sistemática do território, onde o tipo inventado se impôs absolutamente.  
 
O campo  inculto assistia a  tudo. O homem campeiro que até então, de certa 
forma, era o fluxo real condutor ao passado e exemplo do indivíduo concreto, 
entrou  em  crise.  Uma  tragédia  silenciosa.  Frente  à  universalização  daquela 
gauchada  fulgorosa  e  pavoneante  de  roupagem  colorida  da  televisão  e  das 
festas  citadinas,  porque  se  mantinha  através  do  trabalho  campeiro  e  da 
introjeção  de  trajes  criollos,  especialmente  da  bombacha  –  resto  de 
fardamento militar difundido pelos pobres ex‐combatentes, que a  trouxeram 
da  Guerra  do  Paraguai  –,  desmoronava  diante  do  fenômeno  avassalador  da 
mídia e do êxtase cetegista. Assim, o campeiro, que era o último resquício do 
homem tradicional criado pelo latifúndio pastoril, deixou de ser o fio condutor 
da história para uma compreensão aproximada do passado real da gauchada, 
que  se  diferenciava  como  grupo  social  não  proprietário  em  relação  à  classe 
latifundiária.  A  população  rural  da  campanha  (e,  agora,  também  da  roça), 
sempre  constrangida  pela  sua  marginalidade  camponesa,  triste  e 
ironicamente,  foi encontrar a sua  identidade na adoção do gaúcho  inventado 
nos centros urbanos. A forma mais evidente dessa integração se confirmou no 
abandono  das  roupas  tradicionais,  relativamente  simples  e  discretas,  pelas 
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indumentárias  tradicionalistas.  Esses  figurinos  foram  produzidos  por  mentes 
impulsionados por pretensa pesquisa histórica. Não raro, parecem manequins 
de museu, adornados pela quantidade de peças capazes de suportar  (GOLIN, 
1998, p.92).  
 
O autor vê essa cultura como exemplo eficiente do homem como criação histórica. Afinal, a identidade 
cultural gaúcha, em seu ponto de vista, alicerça‐se sobre uma imagem inventada, que não se relaciona 
com o gaúcho original. Esse processo é próprio da contemporaneidade. À figura do gaúcho original, de 
roupas simples e vida campesina, é somada a imagem guerreira e corajosa, resultado de um passado de 
guerras relatado gloriosamente,e a  imagem midiática, veiculada pelos meios de comunicação  locais e 
reforçada a cada 20 de setembro com coberturas que retomam todas as características que compõem 
essa identidade cultural híbrida. 
 
A hibridização cultural no estado apresenta diversos matizes. Na música, por exemplo, o Rio Grande do 
Sul  conta  fortemente  com  a  influência  européia,  através  dos  imigrantes  italianos  e  alemães, 
principalmente.  O  folclore  afro‐gaúcho,  que  ficou  circunscrito  e  praticamente  não  teve  difusão  com 
personalidade própria, em sua origem, começou a ser decodificado na segunda metade do século XX. 
Movimentos  que  se  alastraram  pelo  país,  como  a  bossa  nova  e,  principalmente,  o  rock  ‘n’  roll 
internacional, tiveram muita influência no cenário gaúcho. 
 
Uma nova geração, que impulsionaria a música feita no Rio Grande do Sul para 
as  proximidades  do  que  ela  é  hoje,  começou  a  se  mostrar  no  meio  dos  60 
tendo como eixo a agitação universitária. E dentro de um caldo de cultura que 
incluía  as  questões  nacionalistas  propostas  pela  União  Nacional  das 
Estudantes, a segunda geração do rock (Beatles, Rolling Stones), os festivais de 
MPB, promovidos pela TV Record de São Paulo, e a repulsa à ditadura instalada 
em 64. Na verdade essa era uma mobilização no País inteiro, coincidindo com 
um movimento maior de renovação e massificação da música no século. E os 
festivais chegaram a Porto Alegre, fixando três marcos, dois deles em 1968: o II 
Festival Sul‐Brasileiro da Canção Popular, promovido pela Rádio e TV Gaúcha, 
premiou  o  samba  tradicional  através  de  Túlio  Piva  com  Pandeiro  de  prata 
(Túlio  já  era  nome  nacional,  autor  do  sucesso  Tem  que  ter  mulata);  e  o  I 
Festival  Universitário  da  MPB,  promovido  pelo  Diretório  Acadêmico  da 
Faculdade  de  Arquitetura  da  UFRGS,  que  refletiu  a  nova música  brasileira  e 
reuniu compositores e intérpretes daqui e do centro do País. O terceiro marco 
foi  o  segundo  festival  da  Arquitetura,  em  69,  já  sob  o  signo  tropicalista, 
anárquico, contraditório, radical e estimulante (FONSECA, 1998, p.183‐184). 
 
Essas apropriações, que tem lugar nos mais diversos campos da cultura, desenham a identidade cultural 
gaúcha na atualidade. À história de guerras e ao personagem, real ou idealizado, do gaúcho tradicional, 
agrega‐se  o  contato  com  costumes  de  outras  regiões  do  país,  do  continente  latino‐americano  e  do 
mundo,  em  um movimento  característico  da  globalização.  A  apropriação  dos  produtos  globais  se  dá 
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localmente, alterando o sentido dos mesmos de acordo com os contextos em que se dá esse processo, 
como lembra Johnson (1999).  
 
O  cidadão  sul‐rio‐grandense  da  atualidade,  com  vivência  majoritariamente  urbana,  transita  entre 
realidades e temporalidades distintas. Ao mesmo tempo em que, nos pequenos municípios do interior, 
resistem  os  costumes  campesinos,  a  capital  e  a  região  metropolitana  buscam  alinhar‐se  ao 
cosmopolitismo  das  grandes  cidades.  Costumes  tradicionalistas  e  nativistas  entrelaçam‐se  às  culturas 
ítalo,  teuto,  afro,  judaico‐gaúchas,  entre  tantas  outras  que  formam  a  teia  cultural  do  estado.  Na 
contemporaneidade,  essas  vivências  originais  cruzam‐se,  ainda,  com  as  diferentes  tendências  e 
movimentos  que  se  disseminam  pelo  globo.  A  cultura  gaúcha,  assim  como  todas  as  outras,  é  uma 
cultura de fronteira. 
 
 
Notas 
[1] Tradução da autora. 
[2] Meyer  (1957) desenha a  trajetória do  termo gaúcho, precedido, entre  tantos outros, por guasca e 
gaudério,  com  sentidos  que mudam  ao  longo  da  história.  “Mais  interessante,  no  caso,  seria mostrar 
como adquiriu lentamente novos matizes de sentido, conforme as reações de meio e momento; como 
afinal chegou a enfeixar todo um conjunto de sentidos, que poderiam discriminar‐se, a traço grosseiro, 
do seguinte modo: logo de início, para os capitães‐generais ou autoridades e primeiros proprietários de 
terras  –  ladrão,  vagabundo,  contrabandista;  para  os  capitães  de  milícias  e  comandantes  de  tropas 
empenhadas em guerras de  fronteiras – bombeiro, chasque, vedete,  isca para o  inimigo, bom auxiliar 
para  o  município  e  remonta;  nas  guerras  de  independência  do  Prata,  ou  nas  campanhas  do  Sul  – 
lanceiro, miliciano; a contar de certo momento histórico, no Rio Grande do Sul, para o homem da cidade 
–  o  trabalhador  rural,  o  homem  afeito  aos  serviços  do  pastoreio,  o  peão  de  estância,  o  agregado,  o 
campeiro, o habitante da campanha; na poesia popular, um sinônimo de bom ginete, campeiro destro, 
com  tendência  para  identificar‐se  com  os  termos  guasca, monarca;  e  finalmente  para  todos  nós,  um 
nome gentílico, a exemplo de carioca, barriga‐verde, capixaba, fluminense”, explica o autor (1957, p.35). 
[3] Entrevista realizada em 12 de setembro de 2000. 
[4] Entrevista realizada em 15 de setembro de 2000. 
[5] IBID. 
[6] Entrevista realizada em 12 de setembro de 2000. 
[7] Essa contraposição entre o estado e o país repete‐se em diferentes momentos da história e continua 
viva mesmo na contemporaneidade. Em 1992, por exemplo, foi lançado o movimento O Sul é meu país, 
que  sugere  a  separação  dos  estados  da  região  sul  do  resto  do  Brasil.  A  justificativa  do  movimento 
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ancora‐se em fatores econômicos, culturais, sociais, morais, geográficos e históricos, entre outros. Com 
pouca visibilidade na mídia e, menor ainda, força política, nos últimos anos, seus adeptos têm ocupado 
espaços na Internet, em sites, blogs, comunidades no Orkut, etc. 
 
 
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Aline Strelow 
Jornalista. Doutora em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 
Professora do  curso de graduação em Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do 
Sul. 
alinestrelow@terra.com.br

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