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Texto do livro SAÚDE E EDUCAÇÃO

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WERNER, Jairo. Saúde & educação: desenvolvimento e aprendizagem do aluno; Rio de Janeiro: Gryphus, 2005. 
SAÚDE COMO QUALIDADE DE VIDA
Na situação relatada sobre o Menino do Borel, fica claro que o corpo de Vinicius; mesmo sendo uma criança, está sobrecarregado, mal utilizado e maltratado. Certamente, ele dorme pouco, come mal e habita barraco na parte menos nobre do morro, ou seja, não tem acesso às condições adequadas de vida. Que agravos esse tipo de vida pode trazer à saúde de Vinícius? Será que esses agravos justificariam sua dificuldades escolares?
Para compreender melhor essa questão torna-se fundamental discutir, ainda que de forma breve, as diferentes concepções de Saúde e Doença presentes entre os profissionais de Saúde e Educação.
Concepção Mecânica de Saúde-Doença
Na maioria das vezes, a Saúde é vista como ausência de.doença. Essa concepção aparece articulada com a idéia de doença como uma entidade; um ser sólido localizado no corpo do indivíduo - com uma causa específica. Por essa concepção, quando o aluno não aprende, o problema estaria relacionado a um defeito no corpo, provavelmente, no cérebro, seja por desnutrição, retardo. mental congênito, lesão neurológica ocorrida durante o parto, etc.
Nessa, perspectivas aponta-se para uma percepção mecânica e estática do processo Saúde-Doença - que pouco nos ajuda a compreender o seu real significado. 
Na aula de ciências também essa parece ser a idéia de Saúde-Doença que predomina. É comum a comparação entre o corpo e a máquina, fazendo-se analogias entre cérebro e computador, entre o funcionamento do corpo humano e o funcionamento de u'a.máquina. 
Muitas vezes o professor diz aos nossos filhos que o corpo humano é como... um automóvel, que cada parte tem sua função e, como no caso do automóvel se as instruções forem seguidas corretamente, o corpo vai funcionar bem. Então, óleo, gasolina, revisão mecânica e lavagem são iguais à boa comida, limpeza e a visita regular ao médico (Valia e Melo, 1986).
 
Ao estabelecer uma relação linear entre causa e efeito, sem levar em conta a multiplicidade de fatores envolvidos no binômio Saúde-Doença, o homem é reduzido a uma simples máquina, constituído por peças, como um robô. De mais a mais, a idéia de doença limitada ao defeito em uma ou várias "peças" do corpo é uma ficção, pois além de não considerar os aspectos interfuncionais do organismo, isola a doença do sujeito social que a sofre e das condições concretas de vida que a produzem.
A própria Organização Mundial de Saúde (OMS, 1948), com a sua definição de Saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social mantém a percepção de Saúde como um estado absoluto e estático, apesar de enfatizar que Saúde não é apenas ausência de afecção ou doença. 
No diálogo da Saúde com a Educação, o importante é questionar que o processo Saúde-Doença não se esgota em analogias (mecânicas) ou definições idealístico-estáticas (de bem-estar/estar bem), mas que decorre de um processo muito mais dinâmico e complexo.
A questão é como incorporar essa importante discussão no currículo escolar, envolvendo não só as aulas de ciências, mas todos os professores (geografia, história, matemática) e profissionais da Educação. Além disso, é preciso evitar que os profissionais de Saúde, que, em geral, compartilham a visão mecanicista de Saúde-Doença, continuem a diagnosticar doenças para justificar/explicar o Fracasso 'Escolar que atinge milhões de alunos.
Concepção Organicista de Saúde/Doença
Ao lado da concepção mecanicista de Saúde-Doença, é bastante comum, entre profissionais de Saúde e Educação, uma outra concepção que considera a Saúde como resultante das dificuldades de adaptação do organismo ao ambientes. Assim, a doença ocorreria em função da maior fragilidade do organismo individual ou de sua incompetência/imaturidade frente às exigências do meio. O indivíduo, no caso, não teria uma "peça" defeituosa, ele teria um organismo como um todo mais imaturo, incompetente ou fraco.
Nessa concepção, o processo saúde-doença é mais dinâmico, pois se considera que muitos fatores causais estão envolvidos. Assim, na competência/incompetência de adaptação do organismo individual frente às situações ambientais, entraria em jogo a hereditariedade, a constituição do indivíduo, os fatores nutricionais, hormonais, emocionais e até sociais.
Apesar de ser mais abrangente do que a primeira, a concepção.organicista acaba por localizar a doença no indivíduo, remetendo-a a uma causa individual. Nessa perspectiva, não é apenas um pedaço do indivíduo que está defeituoso, mas o indivíduo como um todo é que é frágil e incompetente. Por exemplo, explicar-se-iam os problemas escolares de um aluno que não aprende, como Vinicius, não por um defeito no cérebro (visão mecanicista), mas em função de uma imaturidade emocional ou intelectual e/ou por falta de estímulos do meio social.
Para Rezende (1986), é na área da Saúde Mental que, os critérios de adaptabilidade são mais freqüentemente empregados, ressaltando que termos como adaptação psíquica e maturidade psíquica são sempre apresentados de forma ambígua, fluida e subjetiva. A contribuição de Linder (in Ferrara) é importante para a destruição desse conceito maturacionista e neo-organicista de doença. 
Tudo o que encontramos a respeito de imaturidade supõe que o ajustamento e a conformidade são os modos desejáveis de vida, e quanto mais próximo alguém está de um estado de domesticação, mais sadio está mentalmente, Com monótona regularidade, estas definições pregam sobre - e defendem - uma sociedade que a cada dia e em todas as partes está se tornando cada vez mais opressiva. Portanto, as normas que se recomendam para a conduta madura são normas que se devem aplicar a um rebanho maduro (...) mas não ao homem maduro... (Ferrara et alii, 1976:4) 
No meio escolar, a visão maturacionista também está muito presente. Por exemplo, é comum rotular-se de imaturo o aluno que apresenta dificuldade para aprender a ler e escrever durante o processo de alfabetização.
Culpabilizando a vítima
Como se pode constatar, tanto a concepção mecanicista como a concepção organicista de Saúde/Doença explicam as dificuldades escolares pelo viés do indivíduo e acabam por culpabilizar o aluno (seu meio, seu cérebro, sua fragilidade constitucional, sua maturidade cognitiva ou emocional) pelo fracasso escolar Dessa forma, ambas concepções isentam o sistema escolar de sua participação no processo de seletividade escolar - que determina em última instância o fracasso escolar e representam uma forma concreta de negação da cidadania para milhares de alunos do ensino fundamental
Quantas crianças como o Vinícius do Borel acabam abandonando a escola precocemente e passam o resto de suas vidas culpando-se por isso: eu não tinha cabeça prá estudar, eu sou burro mesmo.... Essa culpa passa de geração a geração.
Visão dominante de saúde-doença
Minayo e colaboradores (1989) ajudam a sintetizar/ complementar o que já foi apresentado até aqui, contribuindo para revelar a visão dominante de saúde-doença presente nos serviços de saúde (públicos ou privados) que acabam por contaminar a Educação.
Segundo Minayo, os modelos dominantes de saúde-doença podem ser resumidos da seguinte forma:
a) atêm-se ao contorno biológico e individual do corpo;
b) separam o sujeito do seu meio, de sua experiência existencial, de sua classe, de sua inserção na produção e dos condicionamentos de sua situação. Consideram-no um ser a-histórico, isto é, sem passado e sem projeto de vida;
c) transformam o discurso sobre saúde-doença numa especialidade sobre determinado órgão, considerando o corpo doente como objeto de saber e espaço da doença;
d) concebem a doença e a morte como eventos apenas da ordem da natureza, mas dentro da lógica de mercado, de responsabilidade individual e sujeitos às negociações lucrativas;
e) e para completar, aqui os três subsistemas se tornam específicos: (1) na medicina privada a individualidade do cliente é mais preservada pela relação de trocacomercial; (2) na medicina do trabalho, o homem é uma máquina viva a ser mantida; (3) e no serviço públicos o usuário é o último elo de uma relação burocrática, uma ficha a mais ou a menos, na qual só excepcionalmente será reconhecido pelo nome e terá história.
Concepção dialética de saúde e doença: uma perspectiva histórico-cultural
Na concepção dialética e histórico-cultural, ultrapassa-se a visão de Saúde tanto como ausência de doença quanto como adaptabilidade, para considerar-se que o processo saúde-doença está intimamente relacionado à qualidade de vida. O corpo de cada indivíduo é concebido na primeira pessoa, como uma obra, como um texto que vai sendo escrito através da história, Assim, a constituição do corpo e da Saúde do sujeito deve ser considerada como um processo de transformação social e cultural do ser biológico. Nessa perspectiva, o processo saúde-doença é visto como a permanente interação/tensão entre o biológico e o social. Conforme cita Rezende (1986):
(...) enquanto enfrenta o conflito e luta por esse ótimo vital, não está nem são nem doente: está lutando. Nesse instante é quando se mostra de forma mais eloqüente o processo dialético que condiciona o normal e o patológico, e ambos os termos jamais devem ser considerados estranhos um ao outro. (Ferrara et alli, 1976:3) 
O caso real de Emília, a ser apresentado a seguir, nos ajuda a compreender mais concretamente a concepção dialética de Saúde e Doença, a transformação do biológico pelo social e, mais especificamente, o papel da interação social nesse processo. 
A história de Emília
Emília nasceu de parto normal, com o peso um pouco abaixo do adequado para a idade gestacional. Nos primeiros meses de vida; ela teve várias e curtas hospitalizações, por desidratação.
Aos seis meses de vida, foi hospitalizada mais uma vez - por desidratação e desnutrição. Em função das precárias condições sociais e econômicas da família, a equipe de saúde do hospital achou melhor ela ficar internada por um tempo mais prolongado. Esse tempo foi se estendendo e Emília acabou ficando internada até complementar quatro anos e meios de idade.
Durante esses quatros anos de internação hospitalar, Emília teve acesso à alimentação e a cuidados de saúde e higiene. Faltaram, entretanto, oportunidades adequadas de convivência social e afetiva.
Aos quatros anos e meio, Emília teve alta e foi entregue à mãe como deficiente. A equipe de saúde disse à mãe de Emília que ela jamais falaria ou andaria. 
A mãe de Emília acreditou, então, que não havia mais nada a fazer com a menina. Tinha que se conformar que a filha era uma incapaz um fardo. Emília, assim, passava a maior parte de sua vida em casa, numa esteira, recebendo apenas comida e cuidados.
Aos dezessete anos, Emília media apenas 97 centímetros, não se comunicava nem por palavras nem por gestos, não andava.
Nessa época, a mãe de Emília voltou a procurar um Hospital dessa vez o Hospital Universitário Antônio Pedro, por causa de uma ferida na perna da filha (erisipela bolhosa - tipo de infecção causada pela bactéria estreptococcus). 
Nesse hospital, após ter sido feito tratamento para a infecção na perna, Emília permaneceu internada por um ano para que fossem feitos estudos a respeito de seu nanismo (pequeno tamanho) e atraso global no desenvolvimento (motor, intelectual, lingüístico etc.).
Enquanto se estudava o problema, foi desenvolvido um programa com o objetivo de proporcionar-lhe maiores oportunidade de interação social.
Em menos de um ano, ocorreu uma grande transformação em Emília: andava e já se expressava através da fala. Cresceu de 97 para 120 centímetros, sem o uso de qualquer tipo de medicação para o crescimento.
Chegou-se à conclusão que os fatores hormonais relacionados ao crescimento haviam ficado bloqueados todos aqueles anos, possivelmente devido a inadequadas relações sócio-afetivas mantidas com Emília, desde a época de sua internação aos seis meses de idade. Foi constatado que ela podia produzir os hormônios, mas para tanto, faltara a interação social.
Discussão sobre o caso Emília
Como dissemos, o caso Emília é ilustrativo da relação dialética entre o biológico e o social. Emília, por um problema de desidratação e desnutrição, foi internada num hospital. Provavelmente, sem a mãe e sem forças para exigira presença de um adulto com ela, foi ficando apática, seu corpo e sua mente pararam de crescer e de se desenvolver.
Os hormônios do crescimento, apesar de não haver impedimento de ordem biológica (tumor, por exemplo), também não tinham motivo social para serem produzidos e. utilizados.
O corpo biológico, para funcionar e se transformar, precisa da mediação do social. Entretanto, inicialmente, a mediação do serviço de saúde foi insuficiente e até negativa, pois além de não propiciar o contato afetivo e comunicativo necessário - durante os quatro anos de internação - ainda, na alta, plantou no espírito da mãe, numa visão extremamente determinista e mecanicista de saúde-doença, a idéia de que Emília jamais andaria, falaria e, além disso, seria sempre um deficiente, um vegetal. Esse fato acabou, provavelmente, inibindo qualquer possibilidade de investimento afetivo e social por parte da família, acarretando, como se pode depreender do exposto, conseqüências trágicas para a vida de Emília. 
Por outro lado, quando Emília teve acesso à mediação social adequada de um serviço de saúde, a história começou a se reverter rapidamente. O poder da mediação social estabelecida com Emília, demostrou mais uma vez o caráter dialético da relação entre o biológico e o cultural.
O programa de tratamento de Emília baseou se, em primeiro lugar, na ressignificação da crença que ela jamais seria capaz de se desenvolver. Cada mínimo indício em Emília significava comunicação, fosse um esboço de sorriso ou um movimento qualquer em direção a um objeto. Gradativamente, Emília começou a se apropriar da relação social com a estagiária, responsável por lhe dar atenção integral. Sua linguagem caminhou do social para o individual. Com a compreensão da linguagem e a expressão de algumas palavras significativas, as funções psíquicas de Emília começaram a se construir. As suas novas formas de movimentação ajudavam Emília a absorver melhor os alimentos. O desenvolvimento motor, físico e cognitivo se transformavam simultaneamente.
Assim, Emília nos ajuda a compreender a dinâmica do processo saúde-doença, onde entram em jogo, concretamente, não só fatores causais isolados ou justaposto, mas a interação dialética (não mecânica) entre o biológico, o interpessoal, as condições de vida e trabalho, o tipo de organização dos serviços de saúde, a visão de Mundo e de Homem dos profissionais de Saúde, os mecanismos de resistência e conformismo da classe menos favorecida, entre outros. Só dessa forma será possível compreender porque Emília apresentou esse quadro grave de Nanismo Psicossocial e como pôde, aos dezessete anos, ainda crescer fisicamente e construir novas habilidades como andar, falar e pensar. 
Como vimos, uma adequada concepção pode contribuir não só para compreender melhor o processo saúde-doença, como indicar a melhor maneira de enfrentá-lo. 
Em capítulos próximos, abordaremos as principais concepções de desenvolvimento e aprendizagem, partindo dos mesmos mirantes (mecanicista, organicista e histórico-cultural) que nos ajudaram a compreender o processo saúde-doença.

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