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Nos Meandros das Trevas William Pimentel 1 CONRAD, Joseph. Coração das Trevas Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013 (Saraiva de Bolso) Coração das Trevas de Joseph Conrad é um livro que inspira reflexão sobre o avanço do imperialismo europeu lançado sobre o mundo, com relevância no processo de exploração do continente africano em meados do século XIX. A Europa, a pretexto de civilizar regiões ditas atrasadas do mundo, não apenas escravizou e saqueou, mas deixou um rastro de guerras e sangues quando bateu em retirada no processo de descolonização posterior a Segunda Grande Guerra Mundial. O Racismo era a ordem do dia e seu imperativo recebeu ares até mesmo de ciência, tudo para justificar a fabulosa riqueza da superioridade europeia – conferindo para si o status quo de “Primeiro Mundo” e se empenhar no Progresso da humanidade em todas as suas frentes. Notável é o desprezo que lançavam para as novas culturas e etnias que paulatinamente encontravam , principalmente, no continente africano. Não podemos deixar de lembrar que surgiram inúmeros tratados antropológicos para justificar a tal superioridade da raça europeia e sua missão civilizatória,encontrando nos escritos de Cesare Lombroso a fonte doutrinária do estudo depreciativo das etnias, acreditando que a criminalidade é um fenômeno físico e hereditário (LOMBROSO , 1879:45) e, como tal, um elemento objetivamente detectável nas diferentes sociedades. Precisamos dizer, ainda nessa breve introdução, sobre a hipótese da poligenia. Partiam seus defensores que o homem não fora criado a partir de apenas um ramo, mas sim de vários centros de criação , que corresponderiam principalmente pelas diferenças observadas nas etnias. Sem duvidas, que essa corrente ganhou a mesma dimensão do próprio Império Britânico quando saqueou o mundo - os cientistas da época observavam as características físicas para definir a própria genética do homem e seu grau evolutivo, podemos observar isso quando o velho médico de - O Coração das trevas – pede para medir o crânio do capitão Marlow no intuito de observar as mudanças que poderiam ocorrer fenotipicamente quando esse estivesse na África: “Sempre peço permissão, no interesse da ciência, para medir crânios do que vão lá para fora (...) Interessante para a ciência observar as mudanças mentais dos indivíduos in loco, mas (...) Eu tenho uma teoriazinha que os Meussieurs que vão para lá devem me ajudar a provar (...) Nos trópicos, deve-se ante de tudo manter a calma.”2 1 Aluno da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie 2 Pág. 27/28 Podemos então perceber que a ideia de que o ambiente influencia diretamente no comportamento humano e por consequência em suas características físicas, era algo recorrente naquele tempo – dando ensejo até mesmo nas letras, como observa-se no advento do Realismo Naturalista . Eram bárbaros, selvagens – precisavam ser resgatados pela superior civilização europeia que havia atingido sua plenitude e recebeu a missão eclesiástica de compartilhar com os povos atrasados a Suma Ciência. O Sol ; Os trópicos ; A Paisagem a ser desbravada – é vista pelo europeu como obstáculos para a também intitulada “Cruzada Civilizatória” e travestidos assim de que levariam o progresso aos povos selvagens, investiram nos territórios colonizados grandes obras de infraestruturas que podem ser observadas até mesmo nos dias de hoje, todas, é evidente , se circunscreviam a Costa Africana para escoar a mercadoria para o mar e atingir o mercado europeu. Os trens ligavam o porto principal a outros adjacentes e com canais de ligação para os rios de grande porte – grifamos o instante que o Capitão Marlow observa a Companhia abrir uma estrada de ferro no território: “Uma detonação pesada e abafada abalou o chão, uma bola de fumaça saiu do penhasco , e foi só. Nenhuma mudança se operou na face do rochedo. Estavam construindo uma estrada de ferro. O Penhasco não estava no caminho de nada ; mas aquela explosão sem objetivo era todo o trabalho que se fazia.”3 A necessidade de encontrar novos mercados que absorvessem os excedentes industriais, controlar as fontes de matérias-primas e de aplicar o capital excedente levam as potências da época a partilhar a África, que passa a integrar efetivamente, de forma forçada e antiética, no mercado internacional. Na divisão, não fora respeitado as fronteiras tribais e étnicas – é clara a marcante distinção do modo como os negros eram tratados em detrimento dos povos indo-europeu , não eram vistos como humanos , mas literalmente como bestas-feras: “Já vi o demônio da violência, e o demônio da ambição, e o demônio do desejo ardente; mas, por todos os astros! Esses eram demônios fortes, sequiosos, de olhos sanguinolentos, que dominavam e arrebanhavam homens – homens, digo a vocês.”4 A Bárbarie consistia, como dirá os civilizadores europeus, em hábitos que eram condenáveis na sociedade judaico-cristã , tronco da cultura ocidental. É importante salientar que tal conceito estava inserido no momento em que o etnocentrismo ganhou sua expressão máxima. Mais tarde, observando os horrores do imperialismo e os estragos para com as culturas diferentes, o antropólogo Fraz Villas Boas, dirá que não existe somente uma cultura certa e definida e é necessário observar o “Outro” com os olhos do “Outro” e não com o “Nosso” – é o principio do relativismo cultural: “ O principio do Relativismo Cultural decorre de um vasto conjunto de fatos, obtidos ao se aplicar nos estudos etnológicos as técnicas que nos permitiram penetrar no sistema de valores subjacentes às diferentes sociedades civilização não é algo absoluto, mas (...) é relativa e nossas ideias e concepções são verdadeiras apenas na medida de nossa civilização.”5 3 Pág. 33 4 Pág. 34 5 BOAS, Franz. 1887. Musseums of Ethnology and Their classification. Science 9:589 Apesar de ainda prematura, a ideia coincide com o que se passa no decorrer da trajetória trágica do personagem perdido nas profundezas do misterioso continente negro, o Sr. Kurtz. Que conheceu a fundo os costumes, jeitos e trejeitos dos brutos africanos, lhe ocasionando crescente choque cultural, pois experimentou o status que o elevaram como um ser divino. “ (...) O Adoradores do Sr. Kurtz 6 (...) A Visão apareceu entrar na casa comigo – a padiola, os padioleiros fantasmas, a bárbara multidão de adoradores obedientes, a escuridão das florestas, o brilho do remanso (...) Foi um triunfo para a selva, um avanço invasor e vingativo que, pareceu-me, eu teria de repelir sozinho pela salvação da alma.7” Tal passagem, nos faz rememorar a verídica história do Capitão Kook8 que experimentou também o caráter divino que lhe foi conferido pelos indígenas no Havaí. A barbárie, a selva, porém, têm seus próprios poderes que vão além dos navios mercantes ingleses e suas ferroviárias, esses poderes obscuros e mágicos, com os quais o missionário do progresso, Kurtz, em vez de combater e civilizar, acaba derrotado e barbarizado. Não era tão superior, afinal, quanto se jactava em ser. E , de apóstolo da civilização, no fundo da inexplorada selva africana, Kurtz, enlouquecido pelo poder, torna-se um mero predador, fazendo-se adorar pelos selvagens, em rituais que não se excluem sequer o canibalismo, e levando os indígenas a praticar verdadeiros genocídios para obtenção de marfim. Kurtz, por fim, enlouquecera. Até mesmo quem conhecia o grande visionário da civilização europeia, não reconheceria naquela espécime de Pátaki Ori Orisàá, o que fora outrora o mais lidimo desbravador do continente africano – verificamos pelo trecho : “ A Sombra do Kurtz original guardava a beira do leitoda vazia impostura, cujo destino ia ser acabar enterrada no molde da terra primeva. Mas tanto o amor diabólica quanto o ódio exótico dos mistérios que ela penetrara lutavam pela posse daquela alma saciada de emoções primitivas, ávida de fama mentirosa, de falsa distinção, de todas as aparência de sucesso e poder. Ás vezes era desprezivelmente infantil. 6 Pág. 106 7 Pág. 120/121 8 James Cook (1728 – 1779 ) foi o primeiro ocidental a pisar no Havaí e mapeou toda a costa oeste dos Estados Unidos e Canadá. Dimensionou corretamente o Alasca, passou pelas ilhas Aleutas e chegou ao estreito de Bering. Entretanto, desta feita, Cook parecia nervoso –talvez por não ter encontrado a tal ligação entre os oceanos. Ainda assim, decidiu retornar para o Havaí, para mapear o arquipélago. Por duas semanas, deu a volta à ilha principal, rodeando-a em sentido horário – o que, segundo alguns historiadores, fez com que nativos acreditassem que ele era uma encarnação de Lono, Deus da paz e da prosperidade cujo festival se realizava naquela época (outros vêem nisso apenas uma visão imperialista dos fatos). Cook permaneceu um mês na ilha, sendo recebido em glória. Ao partir, o mastro principal do Resolution se rompeu, e ele retornou à ilha para reparos. O que aconteceu então é objeto de investigação até hoje. Segundo anotações de seu diário, em 14 de fevereiro os nativos roubaram um de seus botes. Enraivecido, Cook exigiu a devolução. Não demorou para estourar uma briga entre a tripulação e um grande grupo de nativos. “Cook foi atingido na cabeça enquanto ajudava a colocar um bote na água. Ele e mais quatro marinheiros morreram na escaramuça. Seu corpo jamais foi encontrado. Provavelmente, a discussão só ocorreu porque Cook estava nervoso, já que roubos eram freqüentes nas viagens, mas eram resolvidos de outras formas”. Desejava que reis fossem recebe-lo nas estações ferroviárias, quando de sua volta de algum terrível Nada, onde ele pretendia realizar coisas.” 9 Podemos concluir então que as diferenças culturais não estão umbilicalmente ligadas a traços fenotípicos – como acreditava Lombroso – ou em razões tipicamente étnicas – como os teóricos do racismo cientificio – mas fundamenta-se unicamente no pensamento do individual em face suas experiências auferidas ao longo da vida que constroem sua subjetividade . Logo, o que diferencia o homem de outro é a sua cultura. Conrad, nos deixa pistas sobre a proposta exposta: “ (...) Seria interessante para a ciência observar as transformações mentais mentais dos indivíduos, in loco.”10 O Poder de realizar abstrações é dito por cultura – e aqui chegamos no ponto determinante da obra Coração das Trevas. Kurtz não de despiu totalmente da ganancia desenfreada ( tipificada pelo europeu) e viu na realidade que estava inserido ( Africa Subsaariana) com seus costumes diversos, um meio de alcançar aquilo que sempre julgou ser ideal (glória e poder) sem, no entanto, medir esforços ( abrindo mão de seu status divino fomentando guerras tribais) para conseguir aquilo que desejará. Acabou por confundir-se com sua própria ideia de bárbarie, quando passou a pratica-la. Já estava emerso em outra cultura diferente da europeia – e quando se deu conta disso, enlouqueceu – perdeu sua própria identidade. Existe um elemento que nos diferencia dos demais existentes: nossa capacidade de interferir, criar e recriar o mundo. Somos seres culturais. E isso porque as relações sociais e políticas, a espiritualidade e o trabalho resultam de intencionalidades que desenvolvemos a partir dos valores que aprendemos no ambiente em que vivemos. E o tudo que aprendemos e as ações que realizamos formam o conjunto de elementos que caracterizam a cultura, fazendo de nós seres culturais. Pois é nossa capacidade de criar, desenvolver e transformar a cultura que nos distingue dos demais viventes e existentes. Esse é um elemento essencialmente humano. A cultura é nossa marca distintiva. Kurtz distanciara-se da cultura europeia, e quando tarde, já na sua fase de expiração que se deu conta das atrocidades que havia feito: “ Suas trevas eram impenetráveis. Eu o olhava como se espia lá embaixo alguém que está caído no fundo de um precipício onde o sol nunca bate (...) Certa noite, entrando com uma vela, espantei-me ao ouvi-lo dizer um tanto tremulante: - Aqui estou eu deitado no escuro, à espera da morte. (...) Vi naquele rosto de marfim a expressão do negro orgulho, do poder impiedoso , do terro pusilânime – de um intenso e desvalido desespero. Reviveu ele sua vida em todos os detalhes de desejo, tentação e entrega, durante aquele momento surpreso de completo conhecimento ? Gritou num sussurro, para alguma imagem, alguma visão – gritou duas vezes, um grito que não era mais que um arquejo: - Que Horror! Que Horror! (...) De repente , o garoto do gerente pôs a insolente cabeça negra na porta e disse num tom de desprezo mordaz: - O Sinhô Kurtz ... Tá morto.”11 9 Pág. 113 10 Pág. 40 11 Pág. 114 / 115 Antes de morrer, Kurtz reconhecera os erros que havia cometido ao apoiar aquela ignóbil conquista. Nos parece correto sem margem de erro, dizer que ele personificava a própria Inglaterra, que anos posteriormente reconheceria com muita vergonha as atrocidades cometidas na época do imperialismo . É factível que depois da Primeira Guerra Mundial, o poderio econômico e militar do Império Britânico entrou em franca decadência com a perda de inúmeras colônias africanas e possessões asiáticas, dando ensejo posteriormente ao processo da descolonização. Sobre o tema, é explicitamente de cunho filosófico. Por Trevas , podemos verificar três possíveis sentidos: 1) Obscuridade do pensamento ; 2) Terras Inexploradas ; 3) Contato com o Desconhecido. Podemos ser flexível nesse sentido, pois todos os significados, munido da completude do título (Coração das Trevas) encontra exemplificação no decorrer do livro. 1. Por Obscuridade do Pensamento: O não reconhecimento de novos mundos inteiros e a distinção entre culturas mais ou menos superiores: “ (...) Mas o que mais nos emocionava era simplesmente a ideia da humanidade deles – como a nossa - , a ideia de nosso remoto parentesco com aquele bárbaro e apaixonado furor. Feio. Sim, era bastante feio.”12 Civilização e progresso , eram entendidos não como conceitos específicos de uma determinada sociedade, mas como modelos universais. O progresso como obrigatório, para restituir a unicidade da humanidade. 2. Terras Inexploradas: Europeus estavam desbravando terras desconhecidas em busca de recursos naturais. Não havia uma geografia exata do continente Africano, e o pouco que se sabia eram pelo leito dos rios: “ O pardo rio corria rápido, brotando do coração das trevas, levando-nos para o mar a uma velocidade duas vezes maior que a de nossa subida.”13 Pela descrição, podemos cuidadosamente afirmar que se trata do Rio Congo. Tendo sua nasce no interior do território africano ( norte da Zâmbia), por se pardo, característico de rios caudalosos como o Rio Amazonas e ter sua desembocadura no atlântico. 3. Contato com o Desconhecido: O trabalho da antropologia era muito elementar e não havia tanta precisão cientifica nos estudos como podemos verificar nos dias de hoje, por isso é possível afirmar que o choque com o desconhecido naquele instante provocou conflito de consciência e levou o personagem, Kurtz, a loucura seguida de morte (não afirmaremos que seja esta a causa do óbito). As “trevas”, nesse sentido, seria o do embate cultural. Nesse 12 Pág. 64 13 Pág. 112 trecho, nota-se claramente a insanidade do personagem: “- Salvar-me! Salvaro marfim, você quer dizer. Não me diga. Salvar a mim! Ora, eu tive de salvar você. Está interrompendo meus planos agora. Doente! Doente! Não tão doente quanto você gostaria de acreditar. Deixe pra lá. Ainda vou disseminar minhas ideias ... vou voltar.”14 Kurtz, por conviver com os ditos bárbaros, passar a compactuar com sua cultura e costumes, praticando o que outrora combatia. Isso fere completamente a politica da “Companhia” que seria ultrajante ter em seu alto escalão alguém que tivesse entrado em contato mais profundo com os bárbaros. É notável como Kurtz se faz respeitado e admirado perante a tribo que o conferiu como divindade – a mudança de pensamento, ou sua breve alteração é o que faz com que outros concluam a enfermidade mental que poderia ter acometido Kurtz – por se mostrar tão diferente do homem que antes bravejava exterminar os bárbaros. A novela de Joseph Conrad é escrita no apogeu e coração do Império Britânico. É notável sua contribuição e visão de mudo para a crítica do imperialismo europeu e sua prática no mundo. As trevas, dirá mais tarde, e a do próprio conhecimento que não se tem do outro-não reconhecendo nele seu semelhante. Foi considerado revolucionário por seus escritos de cunho altamente corrosivo relatando as práticas abusivas dos povo europeu em face o mundo, através da exploração e racismo – mas era declaradamente reacionário em suas ideias – coerentemente anti-imperialista e recusou até mesmo as honrarias da Coroa Britânica. O que se passa em Coração das trevas, podemos observar claramente também em sua obra posterior Lord Jim. 14 Pág. 103
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