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O PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO NO FILME “O ABRAÇO DA SERPENTE” E NO LIVRO “A ERVA DO DIABO”

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
CIÊNCIAS AMBIENTAIS
 
 
 
 
Larissa Cruz Vieira
Larissa Morelli Soffo
 
 
 
ANTROPOLOGIA CULTURAL 
O PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO NO FILME “O ABRAÇO DA SERPENTE” E NO LIVRO “A ERVA DO DIABO”
 
 
 
 
 
Diadema
2017
O Perspectivismo Ameríndio no filme “O Abraço da Serpente” e no livro “A Erva do Diabo”
O perspectivismo conceitua que existem diversas visões de mundo, desta forma, a percepção ocorre de acordo com as perspectivas de cada indivíduo (ou povos). Eduardo Viveiros de Castro aborda as crenças dos povos ameríndios sob a ótica perspectivista, ou seja, buscando observá-las com o ponto de vista dos índios e não com a visão de mundo ocidental. Com isto, busca explicar que para compreender verdadeiramente outras crenças, primeiro o indivíduo deve se inserir na realidade dos povos que as possuem antes de simplesmente julgá-las sob sua própria perspectiva de mundo, o que é uma atitude etnocêntrica.
A metafísica procura explicar a realidade além das ciências tradicionais, buscando explicar questões como a razão da existência e a essência dos seres, aborda a existência de outros mundos paralelos ao nosso, se existem espíritos ou deuses, forças superiores a nós e se é possível separar corpo e alma, e se ela realmente existe. Busca, basicamente, pensamentos acerca da existência. Sob a perspectiva ocidental, há uma dificuldade para percepção de um mundo metafísico, já que temos certa tendência a acreditar somente naquilo que pode ser comprovado ou no que parece exato. Com isto, é muito forte a tendência a desmerecer culturas com crenças metafísicas, que é o caso dos povos ameríndios, sob a perspectiva ocidental. O ponto é que, independentemente da crença ou não em outros mundos, eles existem, e o conhecimento é adquirido quando aceitamos sua existência.
No livro “A Erva do Diabo”, de Carlos Castaneda, observa-se o conceito de perspectivismo quando o antropólogo propõe a si mesmo a inserção na realidade indígena, quando conhece o brujo Dom Juan, muito embora ele tenha dificuldade inicialmente em compreender o significado de conhecimento para os índios, a forma como eles o buscam e a motivação para buscá-lo. Isto o leva a fazer diversos questionamentos a Dom Juan, crente de que suas perguntas poderiam ser respondidas facilmente com palavras e que isto já significaria automaticamente obtenção de conhecimento. O índio então o leva a uma passagem pelos processos da obtenção de conhecimento como os índios os fazem.
Os índios sonoras acreditam em entidades que podem ajudar os homens a adquirir uma grande sabedoria, que resultaria em um maior entendimento de sua existência e de seus objetivos, auxiliando o homem a alcançá-los. Com isto, o homem guiado por estas entidades obteria uma melhoria de consciência. Para entrar em contato com estas entidades, é necessário o intermédio das plantas, preparadas de modos específicos e seguidos à risca, como rituais. O consumo das plantas também segue um mesmo ritual e, através dele, tem-se contato com o mundo metafísico. Os rituais não são meramente simbólicos, eles possuem significados divinos e espirituais e são passados de geração em geração pelos benfeitores.
Cada planta representa uma entidade, e cada entidade possui características particulares. Entretanto, só o preparo e consumo sob o ritual não são suficientes, para obter o conhecimento advindo das entidades das plantas é necessário também que a própria entidade aceite a pessoa que quer contatá-la. O Mescalito, a Erva do Diabo e o Fumo são as plantas mais utilizadas, e o respeito que os índios têm por elas é muito grande, pois para eles elas não são somente plantas, são também aliados ou mestre (no caso do Mescalito) e possuem alma, assim como todos os seres na natureza.
O Mescalito é uma entidade de imenso poder e pela qual se tem imenso respeito, é considerada um mestre pelos índios. Possui personalidade forte, não aceita contato com a maioria das pessoas, mas quando aceita, fornece respostas para qualquer tipo de pergunta. O antropólogo é aceito pela entidade, o que causa estranhamento em Dom Juan por ele não ser índio. O Mescalito até brinca com o autor, o que significa que ele o aceitou. O Fumo e a Erva do Diabo são aliados, proporcionam aos homens poderes como a força bruta (no caso da Erva do Diabo) e sabedoria (no caso do Fumo).
Dom Juan mostra ao antropólogo o processo de escolha das plantas, como elas devem ser tratadas e manipuladas, o processo de preparo e de consumo, o modo com que as entidades devem ser tratadas e também apresenta as conseqüências caso não se obedeça alguma parte do processo ou do tratamento para com a entidade. Tudo isto causa certo estranhamento no autor, mas ele está disposto a ver sob a perspectiva indígena, abdicando por vezes de sua visão ocidental, embora por vezes também pense em desistir do aprendizado.
Os relatos e as experiências de Carlos Castaneda são de extrema importância, já que ele vivenciou um outro mundo e outra cultura com a proposta de se inserir neles, e observar as crenças ameríndias sob a própria perspectiva ameríndia. Ele apresenta também a percepção metafísica dos índios, suas crenças em outros mundos e em seres superiores, a crença de que as plantas e os animais, e outros fatores que compõem a natureza, possuem alma. Seu objetivo não era julgar as crenças indígenas simplesmente com uma visão ocidental, mas sim passar por todo um processo de inserção na cultura dos povos e adquirir a visão de mundo que eles têm, para então conseguir compreendê-los.
A história contada no filme “O abraço da serpente” correlaciona dois tempos, o passado que foi vivido pelo etnologista Theodor Koch-Grunberg, retratando o final da sua expedição ao norte do Brasil e a Amazônia Venezuelana, seus estudos durante essa viagem contribuíram para o conhecimento dos povos indígenas habitantes desses locais e seus motivaram o botânico Richard Evans Schultes a seguir seus passos e começar uma jornada em busca da planta lendária com um poder de cura , chamada Yakruma. Ao final de sua vida Grunberg buscava desesperadamente esta planta para que pudesse ser curado e transmitir todo o seu aprendizado para seu povo, conhecida e existente apenas no povo Cohiuanos que sofreram e foram quase dizimados pela guerra que alastrava pela floresta, durante esta jornada com o companheiro Mandura, um índio que foi capturado e escravizado pelos barões da borracha, sua fidelidade a Grunberg se dá pelo lado do mesmo ter pago sua dívida na plantação e o libertado. Durante a trajetória eles encontram Karamakate, ou, como o chamam, “quem move o mundo”, os três saem em uma jornada à procura da Yakruma. No presente Schulter encontra Karamakate, já mais velho, sentido-se um “chullachaqui”, homem vazio e oco, as árvores e as rochas não falam mais com ele, tudo está em silêncio, restando o iniciar novamente a busca pela planta raríssima, porém desta vez o homem que move o mundo não se lembra de nada, esquecendo os seus motivos para viver, este momento transparece ser dois homens em busca de seus valores de acordo com suas crenças.
Grunberg havia tido contato com alguns povos indígenas sendo bem recebido e ganhando presentes dos mesmos, no caminho ele encontra um povo amigo, que os reconhecem de bom grado, dando abrigo e alimentação, ao final de sua estadia sua bússola é pega pelo Xamã da aldeia por ser um artefato com uma tecnologia que todos ali desconheciam, transmitindo um novo conhecimento a eles, mas Theodor acreditava que ao terem essa aprendizagem poderiam perder suas capacidades de se localizarem pelo vento e estrelas, porém Karamakate diz “o conhecimento pertence a todos”, isso indica que todos podem usufruir das tecnologias existentes e de seus conhecimentos, mas isso não determina o final de um cultura, apenas os ajudariam.
Durante os dois tempos representados é possível observar as diferentes culturas e fés, em um momento o grupo dos três viajantes passa por uma Missão Catequista, representando como os europeusimpuseram a sua fé em uma cultura local, neste lugar só existiam crianças órfãs da guerra pela borracha, neste momento a cultura de Karamakate colide com o Cristianismo enem a sua língua é aceita, considerada “língua do demônio”. É nítida a perda da cultura indígena do povo que vivia naquele local, seus valores e sua fé foram embora e pela “salvação de suas almas” foram convertidos. A dor de Karamakate com aquele fato é transmitida e a sua tentativa de orientar as crianças para que não percam as suas origens é repudiada, causando alvoroço e consequências para os jovens do local.
O encontro de Karamakate e Schultes com outro povo também ocorre, porém já é com um povo controlado pela fé em um Messias, tendo como base o Cristianismo, estão em ruínas física e mental fazendo-os acreditar que os viajantes são dois dos Três Reis Magos. Lá todos servem ao Messias, toda a cultura antes deste Poderoso Rei Branco foi perdida, restando apenas uma devoção cega derivada da colonização cultural trazida pelos brancos.
Ao decorrer da história, além da Yakruma, existem plantas personificadas como mestres e entidades, por exemplo, a Caapi, ditada como Mestre, Karamakate usa esta planta para ter percepções com o mestre e poder adquirir ensinamentos para compreender suas missões, já Grunberg não teve a permissão para encontrar Caapi pelas outras tribos que havia visitado, mas Karamakate o faz um chá para que possa entrar em contato com o mestre para poder entender o verdadeiro motivo de sua jornada. Este momento do filme é retratado como uma espiritualidade sendo o ponto de ligação do homem branco com o povo indígena, porém Grunberg não sofre os efeitos das plantas, o fazendo duvidar de tudo o que tinha buscado até aquele momento, dizendo que sua viagem poderia ser perdida e que seis colegas cientistas estariam certos por desacreditarem e falar que todo este seu trabalho seria em vão.
No passado, os três homens encontram a árvore de Yakruma, encontram um povo devastado e açoitado pelos colombianos, seus prazeres encontram-se no cultivo e uso desta planta para fins não espirituais, isso gera a revolta de Karamakate, impedindo Grunberg de usufruir do encontro da cultura e a eliminando com fogo.
No presente, a partir dos desenhos das rochas que já não falam mais o Karamakate, a “Oficina dos Deuses” é encontrada, e lá a verdadeira motivação de Evans é revelada, ajudar o seu povo a ganhar uma guerra que acontece fora daquelas florestas, e novamente o conflito entre as culturas é atenuado e seus princípios postos em prova, a verdadeira missão de Karamakate é exposta, transmitir seus conhecimentos ao homem branco, mostrando todo o valor de sua cultura. Então o chá da última Yakruma é feito e Medora Caapi abraça o homem que é dois.
No filme, é possível observar o perspectivismo ocidental na passagem que retrata a catequese, no entanto, é possível perceber a visão etnocêntrica dos catequistas, pois eles qualificam as crenças indígenas sob sua própria perspectiva, não buscando maior conhecimento sobre a realidade e visão de mundo dos índios. Dado isto, julgam a língua indígena como “língua do demônio” e tentam catequizá-los para “salvá-los”, ignorando totalmente o significado de salvação para os índios ou se de fato eles acreditavam em salvação e ela teria algum significado para eles, ou seja, houve uma imposição de crenças, na qual um lado desconsiderou totalmente as crenças do outro, levando em conta somente sua própria concepção.
As plantas citadas no livro e no filme são importantes para os povos indígenas, elas iniciam um contato entre eles e os seres espirituais que existem normalmente com a realidade na qual estão inseridos, essas plantas consideradas divindades.  A partir desse ponto pode-se concluir que os ameríndios respeitam a natureza para que exista uma reciprocidade da mesma, pois consideram que todos possuem almas. O perspectivismo é importante para que nos distanciemos de uma visão etnocêntrica, para que possamos ver além de nossas concepções pré-formadas, ou seja, ver além do preconceito, ampliar nossas formas de conhecimento e o próprio conceito de conhecimento.

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