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10 A coragem da verdade E vocês estão vendo que, na medida em que se trata de analisar as re- lações entre modos de veridicção, técnicas de governamentalidade e for- mas de prática de si, a apresentação de pesquisas assim como uma tenta- tiva para reduzir o saber ao poder, para fazer do saber a máscara do poder, em estruturas onde o sujeito não tem lugar, não pode ser mais que pura e simples caricatura. Trata-se, ao contrário, da análise das relações comple- xas entre três elementos distintos, que não se reduzem uns aos outros, que não se absorvem uns aos outros, mas cujas relações são constitutivas umas das outras. Esses três elementos são: os saberes, estudados na especifici- dade da sua veridicção; as relações de poder, estudadas não como uma emanação de um poder substancial e invasivo, mas nos procedimentos pelos quais a conduta dos homens é governada; e enfim os modos de constituição do sujeito através das práticas de si. É realizando esse tríplice deslocamento teórico – do tema do conhecimento para o tema da veridic- ção, do tema da dominação para o tema da governamentalidade, do tema do indivíduo para o tema das práticas de si – que se pode, assim me parece, estudar as relações entre verdade, poder e sujeito, sem nunca reduzi-las umas às outras26. Agora, depois de ter rememorado essa trajetória geral, gostaria [de evocar] brevemente alguns elementos essenciais que caracterizam a par- resía e o papel parresiástico. Muito brevemente, e mais uma vez [para] os que não estavam aqui, vou voltar a coisas que já foram ditas por alguns minutos (peço desculpa aos que vão ouvir isso de novo) e gostaria em seguida, o mais rapidamente possível, de passar a uma outra maneira de focalizar essa mesma noção de parresía. A parresía, vocês se lembram, é etimologicamente a atividade que consiste em dizer tudo: pân rêma, Parresiázesthai é “dizer tudo”. O par- resiastés é aquele que diz tudo27. Assim, a título de exemplo, no discurso de Demóstenes, Sobre a embaixada, Demóstenes diz: é preciso falar com parresía, sem recuar diante de nada, sem esconder nada28. Do mesmo modo, na Primeira filípica, ele retoma exatamente o mesmo termo e diz: vou expor meu pensamento sem nada dissimular29. O parresiasta é aquele que diz tudo. Mas é preciso esclarecer imediatamente que a palavra parresía pode ser empregada com dois valores. Encontramos o valor pejorativo pela pri- meira vez, creio, em Aristófanes e, depois, muito correntemente até na literatura cristã. Empregada com valor pejorativo, a parresía consiste em dizer tudo, no sentido de que se diz qualquer coisa (qualquer coisa que passe pela cabeça, qualquer coisa que possa ser útil à causa que se defen- de, qualquer coisa que possa servir à paixão ou ao interesse que anima quem fala). O parresiasta se torna e aparece então como o tagarela impe- Coragem da verdade_01.indd 10 05/10/11 11:50 Aula de 1o de fevereiro de 1984 11 nitente, como aquele que não sabe se conter ou, em todo caso, como aquele que não é capaz de indexar seu discurso a um princípio de racionalidade e a um princípio de verdade. Vocês têm, desse uso pejorativo da parresía (dizer tudo, qualquer coisa, dizer o que lhe passa pelo espírito, sem se referir a nenhum princípio de razão ou de verdade), um exemplo em Isó- crates, no discurso chamado Busiris, em que Isócrates diz que não se deve dizer tudo acerca dos deuses, ao contrário dos poetas que prestaram a eles absolutamente qualquer coisa, quaisquer qualidades ou defeitos30. Do mesmo modo, no livro VIII da República (dou a referência exata daqui a pouco, porque vou tornar [a] esse texto) vocês [encontram] a descrição da má cidade democrática, aquela que é totalmente diversificada, deslocada, dispersa entre interesses diferentes, paixões diferentes, indivíduos que não se entendem. Essa má cidade democrática pratica a parresía: todos podem dizer qualquer coisa31. Mas a palavra parresía é empregada também com um valor positivo, e nesse momento a parresía consiste em dizer a verdade, sem dissimulação nem reserva nem cláusula de estilo nem ornamento retórico que possa ci- frá-la ou mascará-la. O “dizer tudo” é nesse momento dizer a verdade sem dela nada esconder, sem escondê-la com o que quer que seja. Na Segunda filípica, Demóstenes diz que, ao contrário dos maus parresiastas que dizem qualquer coisa e não indexam seu discurso à razão, não quer falar sem ra- zão, não quer “ir às injúrias” e “responder a um golpe com outro”32 (vocês sabem, aquelas disputas em que se diz qualquer coisa, contanto que possa prejudicar o adversário e ser útil à sua própria causa). Ele não quer fazer isso, ele quer, ao contrário, com a parresía (metà parresías) dizer a verdade (tà alethê: as coisas verdadeiras). Aliás, acrescenta: não dissimularei nada (oukh apokrýpsomai)33. Não ocultar nada, dizer as coisas verdadeiras é praticar a parresía. A parresía é, portanto, o “dizer tudo”, mas indexado à verdade: dizer tudo da verdade, não ocultar nada da verdade, dizer a ver- dade sem mascará-la com o que quer que seja. Mas creio que isso não basta para caracterizar e definir essa noção de parresía. De fato, para que se possa falar de parresía no sentido positivo do termo – deixemos de lado agora os valores negativos –, são necessá- rias, além da regra do dizer tudo e da regra da verdade, duas condições su- plementares. É preciso não apenas que essa verdade constitua efetiva- mente a opinião pessoal daquele que fala, mas também que ele a diga como sendo o que ele pensa, [e não] da boca para fora* – e é nisso que será um parresiasta. O parresiasta dá sua opinião, diz o que pensa, ele próprio de * Restabelecimento do sentido. M.F. diz: ... não apenas que ele por acaso diga a verdade ou a diga da boca para fora, mas é preciso que ele a diga como sendo o que ele pensa. Coragem da verdade_01.indd 11 05/10/11 11:50 12 A coragem da verdade certo modo assina embaixo da verdade que enuncia, liga-se a essa verda- de, e se obriga, por conseguinte, a ela e por ela. Mas não basta. Porque, afinal de contas, um professor, um gramático, um geômetra podem dizer, sobre o que ensinam, sobre a gramática ou a geometria, uma verdade, uma verdade na qual creem, uma verdade que eles pensam. E no entanto, não se dirá que isso é parresía. Não se dirá que o geômetra ou o gramáti- co, ao ensinar essas verdades em que creem, são parresiastas. Para que haja parresía, vocês se lembram – insisti tanto sobre isso ano passado –, o sujeito, [ao dizer] essa verdade que marca como sendo sua opinião, seu pensamento, sua crença, tem de assumir certo risco, risco que diz respeito à própria relação que ele tem com a pessoa a quem se dirige. Para que haja parresía é preciso que, dizendo a verdade, se abra, se instaure e se enfren- te o risco de ferir o outro, de irritá-lo, de deixá-lo com raiva e de suscitar de sua parte algumas condutas que podem ir até a mais extrema violência. É portanto a verdade, no risco da violência. Por exemplo, Demóstenes, na Primeira filípica, depois de dizer que fala metà parresías (com franqueza), [acrescenta]: eu sei que, usando dessa franqueza, ignoro o que resultará para mim dessas coisas que acabo de dizer34. Em suma, para que haja parresía, é preciso que, no ato de verdade, haja: primeiro, manifestação de um vínculo fundamental entre a verdade dita e o pensamento de quem a disse; [segundo], questionamento do vínculo entre os dois interlocutores (o que diz a verdade e aquele a quem essa verdade é endereçada). De onde essa nova característica da parresía: ela implica uma certa forma de coragem, coragem cuja forma mínima consiste em que o parresiasta se arrisque a desfazer, a deslindar essa relação com o outro que tornou possível precisamente seu discurso. De certo modo, o parresiasta sempre corre o risco de minar essa relação que é a condição de possibi- lidade doseu discurso. Isso pode ser visto claramente, por exemplo, na parresía-condução de consciência, em que só pode haver condução de cons- ciência se há amizade, e em que o uso da verdade, nessa condução de consciên- cia, corre precisamente o risco de questionar e romper a relação de amizade que, no entanto, tornou possível esse discurso de verdade. Mas essa coragem também pode adquirir, em certo número de casos, uma forma máxima quando, para dizer a verdade, não apenas será neces- sário aceitar questionar a relação pessoal, amistosa, que se pode ter com aquele [com que] se fala, mas pode acontecer até que seja necessário arris- car a própria vida. Platão, quando vai falar com Dionísio, o Velho – é Plutarco que conta isso –, lhe diz certo número de coisas verdadeiras que ferem a tal ponto o tirano que este concebe o plano, que aliás não porá em execução, de matar Platão. Mas Platão no fundo sabia disso, e aceitou esse risco35. A parresía portanto põe em risco não apenas a relação estabelecida Coragem da verdade_01.indd 12 05/10/11 11:50 Aula de 1o de fevereiro de 1984 13 entre quem fala e aquele a quem é dirigida a verdade, mas, no limite, põe em risco a própria existência daquele que fala, se em todo caso seu inter- locutor tem um poder sobre aquele que fala e se não pode suportar a ver- dade que este lhe diz. Esse vínculo entre a parresía e a coragem é muito bem indicado por Aristóteles quando, na Ética nicomaqueia, ele vincula o que chama de megalopsykhía (grandeza de alma) à prática da parresía36. Só que – e é a última característica que gostaria de lembrar breve- mente – a parresía pode se organizar, se desenvolver e se estabilizar no que poderíamos chamar de um jogo parresiástico. Porque se o parresiasta é de fato aquele que assume o risco de questionar sua relação com o outro e até sua própria existência dizendo a verdade, toda a verdade, contra todos e contra tudo, por outro lado, aquele a quem essa verdade é dita – quer se trate do povo reunido e que delibera sobre as melhores decisões a tomar, quer se trate do Príncipe, do tirano ou do rei a que é preciso dar conse- lhos, quer se trate do amigo que você guia –, este (povo, rei, amigo), se quiser desempenhar o papel que lhe propõe o parresiasta dizendo-lhe a verdade, [deve] aceitá-la, por mais desagradáveis que sejam para as opi- niões estabelecidas na Assembleia, para as paixões ou os interesses do Príncipe, para a ignorância ou a cegueira do indivíduo. O povo, o Príncipe, o indivíduo devem aceitar o jogo da parresía. Devem eles próprios jogá-lo e reconhecer que aquele que assume o risco de lhes dizer a verdade deve ser escutado. E é assim que se estabelecerá o verdadeiro jogo da parresía, a partir dessa espécie de pacto que faz que, se o parresiasta mostra sua coragem dizendo a verdade contra tudo e contra todos, aquele a que essa parresía é endereçada deverá mostrar sua grandeza de alma aceitando que lhe digam a verdade. Essa espécie de pacto, entre aquele que assume o risco de dizer a verdade e aquele que aceita ouvi-la, está no cerne do que se poderia chamar de jogo parresiástico. A parresía é, portanto, em duas palavras, a coragem da verdade na- quele que fala e assume o risco de dizer, a despeito de tudo, toda a verda- de que pensa, mas é também a coragem do interlocutor que aceita receber como verdadeira a verdade ferina que ouve. Vocês estão vendo então como a prática da parresía se opõe termo a termo ao que é, em suma, a arte da retórica. Muito esquematicamente po- demos dizer que a retórica, tal como era definida e praticada na Antigui- dade, é no fundo uma técnica que concerne à maneira de dizer as coisas mas não determina em absoluto as relações entre aquele que fala e aquilo que ele diz. A retórica é uma arte, uma técnica, um conjunto de procedi- mentos que permitem a quem fala dizer alguma coisa que talvez não seja Coragem da verdade_01.indd 13 05/10/11 11:50 14 A coragem da verdade em absoluto o que ele pensa, mas que vai ter por efeito produzir na pessoa [a] quem [ele se dirige* certo número de convicções, que vai induzir cer- to número de condutas, que vai estabelecer certo número de crenças. Em outras palavras, a retórica não implica nenhum vínculo da ordem da crença entre quem fala e aquilo que [enuncia]. O bom retórico, o bom rétor é o homem que pode perfeitamente e é capaz de dizer algo totalmente dife- rente do que sabe, totalmente diferente do que crê, totalmente diferente do que pensa, mas dizer de tal maneira que, no fim das contas, o que dirá, e que não é o que ele crê nem o que ele pensa nem o que ele sabe, será, se tornará o que pensam, o que creem e o que creem saber aqueles a quem ele se endereçou. Na retórica, não há vínculo entre aquele que fala e o que ele diz, mas a retórica tem por efeito estabelecer um vínculo obriga- tório entre a coisa dita e aquele ou aqueles a quem ela é endereçada. Vocês estão vendo que, desse ponto de vista, a retórica está no exato oposto da parresía, [que implica ao contrário uma] instauração forte, manifesta, evidente entre aquele que fala e o que ele diz, pois ele deve manifestar seu pensamento e não se trata, na parresía, de dizer algo di- ferente do que se pensa. A parresía estabelece portanto entre aquele que fala e o que ele diz um vínculo forte, necessário, constitutivo, mas abre sob a forma do risco o vínculo entre aquele que fala e aquele a quem ele se endereça. Porque, afinal de contas, aquele a quem ele se endereça sem- pre pode não acolher o que lhe é dito. Ele pode [sentir-]se ofendido, pode rejeitar o que lhe dizem e pode, finalmente, punir ou se vingar daquele que lhe disse a verdade. Logo, a retórica não implica o vínculo entre aquele que fala e o que é dito, mas visa instaurar um vínculo obrigatório, um vínculo de poder entre o que é dito e aquele a quem isto se endereça; a parresía, ao contrário, implica um vínculo forte e constituinte entre aquele que fala e o que ele diz, e abre, pelo próprio efeito da verdade, pelo efeito de ofensas da verdade, a possibilidade de uma ruptura de vínculo entre aquele que fala e aquele a quem este se dirige. Digamos, muito esquematicamente, que o retórico é, ou pode perfeitamente ser, um mentor eficaz que constrange os outros. O parresiasta, ao contrário, será o dizedor corajoso de uma verdade em que ele arrisca a si mesmo e sua relação com o outro. Tudo isso eram coisas que eu tinha dito ano passado. Gostaria agora de avançar um pouco e observar logo que não se deve crer que a parresía seja uma espécie de técnica bem definida, que equilibra a retórica e é si- métrica em relação a esta. Não se deveria acreditar que houve, na Antigui- dade, em face do retórico que era um profissional, um técnico, em face da * M.F. diz: aquele que fala. Coragem da verdade_01.indd 14 05/10/11 11:50 Aula de 1o de fevereiro de 1984 15 retórica que era uma técnica e requeria um aprendizado, um parresiasta e uma parresía que também seriam [...*] O parresiasta não é um profissional. E a parresía é, afinal, outra coisa que não uma técnica ou uma profissão, muito embora haja aspectos técni- cos nela. A parresía não é uma profissão, é algo mais difícil de apreender. É uma atitude, uma maneira de ser que se aparenta à virtude, uma maneira de fazer. São procedimentos, meios reunidos tendo em vista um fim e, com isso, claro, se aproxima da técnica, mas também é um papel, um papel útil, precioso, indispensável para a cidade e para os indivíduos. A parresía, em vez de [uma] técnica [à maneira da] retórica, deve ser caracterizada como uma modalidade do dizer-a-verdade. Para defini-la melhor, podemos opô- -la a outras modalidades fundamentais do dizer-a-verdade que encontra- mos na Antiguidade, mas que encontraríamos, sem dúvida, mais ou menos deslocadas, vestidas, postas em forma de maneiras diversas, em outras sociedades,na nossa também. Podemos definir, a partir da Antiguidade, considerando as coisas justamente na clareza em que ela nos deixou, qua- tro modalidades fundamentais do dizer-a-verdade. Primeiro, o dizer-a-verdade da profecia. E aí vou tentar fazer uma análise não do que os profetas diziam (de certo modo, estruturas do que é dito pelos profetas), mas da maneira como o profeta se constitui e é reco- nhecido pelos outros como sujeito que diz a verdade. O profeta é, eviden- temente, como o parresiasta, é claro, alguém que diz a verdade. Mas creio que o que caracteriza fundamentalmente o dizer-a-verdade do profeta, sua veridicção, é que o profeta se situa em postura de meditação. O pro- feta, por definição, não fala em seu nome. Fala por uma outra voz, sua boca serve de intermediária para uma voz que fala de outro lugar. O profeta transmite uma palavra que é, em geral, a palavra de Deus. E articula e profere um discurso que não é o dele. Endereça aos homens uma verda- de que vem de outro lugar. O profeta se situa numa posição de intermedi- ário neste outro sentido de que se situa entre o presente e o futuro. É aquele que desvela o que o tempo esconde dos homens e que nenhum olhar hu- mano poderia ver, nenhum ouvido humano poderia ouvir sem ele; é essa a segunda característica intermediária do profeta. O dizer-a-verdade profé- tico também é intermediário na medida em que, de certo modo, claro, o profeta desvela, mostra, esclarece o que está escondido dos homens, mas por outro lado, ou antes, ao mesmo tempo, ele não desvela sem ser obscuro e não revela sem envolver o que diz em certa forma, que é a do enigma. * Michel Foucault é interrompido aqui por uma música pop proveniente de um gravador. Ouve-se um dos presentes correr para o aparelho. M.F.: “Acho que você se enganou. Ao menos é Michael Jackson? Azar.” Coragem da verdade_01.indd 15 05/10/11 11:50 16 A coragem da verdade O que tem por consequência que a profecia, no fundo, nunca dá uma prescrição unívoca e clara. Ela não diz a verdade nua e crua, e em sua pura e simples transparência. Mesmo quando o profeta diz o que se deve fazer, resta ainda se interrogar, resta saber se quem o ouviu compreendeu bem, resta saber se quem o ouviu não permanece cego, resta questionar, hesitar, resta interpretar. Ora, precisamente, a parresía se opõe, termo a termo, a essas diferen- tes características do dizer-a-verdade profético. O parresiasta, como vocês estão vendo, se opõe ao profeta na medida em que o profeta não fala por si, mas em nome de outro, e articula uma voz que não é a dele. Ao contrá- rio, o parresiasta, por definição, fala em seu próprio nome. É essencial que seja sua opinião, é essencial que seja o seu pensamento e a sua convicção que ele formula. Ele deve assinar sua fala, sua franqueza tem esse preço. O profeta não tem de ser franco, ainda que diga a verdade. Em segundo lugar, o parresiasta não diz o futuro. Claro, ele revela e desvela o que a cegueira dos homens não pode perceber, mas não levanta o véu que cobre o futuro. Ele levanta o véu que cobre o que existe. O parresiasta não ajuda os homens a vencer, de certo modo, o que os separa do seu futuro, em função da estrutura ontológica do ser humano e do tempo. Ele os ajuda em sua cegueira, mas em sua cegueira sobre o que são, sobre si mesmos, e não em consequência de uma estrutura ontológica, mas de algum erro, distra- ção ou dissipação moral, consequência de uma desatenção, de uma com- placência, de uma covardia. E é aí, nesse jogo entre o ser humano e sua cegueira arraigada numa desatenção, numa complacência, numa covardia, numa distração moral que o parresiasta representa seu papel, papel de des- velador bem diferente por conseguinte, vocês estão vendo, [daquele] do profeta que se situa no ponto em que se articula a finitude humana e a es- trutura do tempo. Em terceiro lugar, o parresiasta, também por definição, não fala por enigmas, diferentemente do profeta. Ele diz ao contrário as coisas do modo mais claro, mais direto possível, sem nenhum disfarce, sem nenhum ornamento retórico, de sorte que suas palavras podem rece- ber imediatamente um valor prescritivo. O parresiasta não deixa nada para interpretar. Claro, ele deixa algo para fazer: deixa àquele a quem ele se dirige a rude tarefa de ter a coragem de aceitar essa verdade, de reconhecê- -la e dela fazer um princípio de conduta. Deixa essa tarefa moral, mas, diferentemente do profeta, não deixa o difícil dever de interpretar. Em segundo lugar, creio que podemos opor também o dizer-a-verda- de parresiástico a outro modo de dizer-a-verdade que foi importantíssi- mo na Antiguidade, mais importante até, sem dúvida, para a filosofia an- tiga do que o dizer-a-verdade profético: é o modo da sabedoria. Vocês sabem que o sábio, e nisso aliás ele se opõe ao profeta de que acabamos Coragem da verdade_01.indd 16 05/10/11 11:50 Aula de 1o de fevereiro de 1984 17 de falar, fala em seu nome, em seu próprio nome. E, se é verdade que essa sabedoria pôde lhe ser inspirada por um deus ou lhe ser transmitida por uma tradição, um ensino mais ou menos esotérico, não é menos verdade que o sábio está presente no que diz, presente em seu dizer-a-verdade. A sabedoria que ele formula é sua própria sabedoria. O sábio, no que diz, manifesta seu modo de ser e, nessa medida, embora ele tenha de fato uma função de intermediário entre a sabedoria atemporal e tradicional e aque- le a quem ele se dirige, não é simplesmente um porta-voz, como pode ser o profeta. Ele é um sábio per se, e é seu modo de ser sábio como modo de ser pessoal que o qualifica como sábio, e o qualifica para falar o dis- curso da sabedoria. Nessa medida, presente que está em seu discurso sá- bio, e manifestando seu modo de ser sábio em seu discurso sábio, ele está muito mais próximo do parresiasta do que do profeta. Mas o sábio – é o que o caracteriza, pelo menos através de certo número de traços que po- demos levantar na literatura antiga – mantém sua sabedoria num retiro, ou pelo menos numa reserva que é essencial. No fundo, o sábio é sábio em e para si mesmo, e não precisa falar. Ele não é obrigado a falar, nada o obri- ga a distribuir sua sabedoria, a ensiná-la ou a manifestá-la. É o que ex- plica que, por assim dizer, o sábio seja estruturalmente silencioso. E se ele fala, o faz solicitado pelas questões de alguém ou por uma situação de urgência para a cidade. É o que explica também que suas respostas – e nisso, então, ele pode perfeitamente se aparentar ao profeta, e muitas ve- zes imitá-lo e falar como ele – podem muito bem ser enigmáticas e deixar aqueles a quem são endereçadas na ignorância ou na incerteza do que, efetivamente, ele disse. Outra característica do dizer-a-verdade da sabe- doria é que a sabedoria diz o que é, ao contrário da profecia em que o que é dito é o que será. O sábio diz o que é, ou seja, o ser do mundo e das coisas. E se esse dizer-a-verdade do ser do mundo e das coisas pode adquirir o valor de prescrição, não é na forma de um conselho ligado a uma conjun- tura, mas na de um princípio geral de conduta. Essas características do sábio podem ser perfeitamente lidas e desco- bertas no texto – embora tardio, porém um dos mais ricos em informações diversas – de Diógenes Laércio, quando ele pinta o retrato de Heráclito. Primeiro, Heráclito vive num retiro essencial. Ele se mantém em silêncio. E Diógenes Laércio lembra a partir de que momento e por que se fez a ruptura entre Heráclito e os efésios. Os efésios haviam exilado Hermodoro, um amigo de Heráclito, precisamente porque Hermodoro era mais sábio e melhor do que eles. E teriam dito: queremos “que não haja ninguém, entre nós, que seja melhor do que nós”37. E, se houver entre nós alguém melhor do que nós, que vá viver em outro lugar. Os efésios não suportam precisamente a superioridade daquele que diz a verdade.Eles perseguem Coragem da verdade_01.indd 17 05/10/11 11:50 18 A coragem da verdade o parresiasta. Perseguiram Hermodoro, que foi obrigado a partir, coagido e forçado a esse exílio com que puniam aquele que é capaz de dizer a verdade. Heráclito, de seu lado, respondeu por um retiro voluntário. Como os efésios puniram com o exílio o melhor deles, pois bem, diz Heráclito, todos os outros que valem menos que ele deveriam ser mortos. E como não são mortos, eu é que vou embora. E a partir de então ele se recusa, quando assim lhe pediram, a dar leis à cidade. Porque, diz ele, a cidade já é dominada por um ponerà politeía (um modo de vida político ruim). Então ele se retira e vai jogar – imagem famosa – ossinhos com as crian- ças. E aos que se indignam ao ver aquele homem jogando ossinhos com as crianças, ele responde: “De que vos espantais, mandriões, não é isso melhor do que administrar a república convosco [met’hymôn politeúes- thai: participar da vida política convosco; M.F.]?”38 Ele se retira nas mon- tanhas praticando o desprezo pelos homens (misanthrópon)39. E quando lhe perguntavam por que se calava, ele respondia: “Se me calo é porque falais.”40 E Diógenes Laércio relata que é nesse retiro que escreve seu Poema, em termos voluntariamente obscuros para que somente as pessoas capazes possam lê-lo, e que não se possa desprezá-lo, a ele, Heráclito, por ser lido por todo o mundo e qualquer um41. A esse papel, a essa caracterização do sábio, que fundamentalmente se cala, só fala quando quer e [somente] por enigmas, se opõem o perso- nagem e as características do parresiasta. O parresiasta, por sua vez, não é alguém que se mantém fundamentalmente reservado. Ao contrário, seu dever, sua obrigação, seu encargo, sua tarefa é falar, e ele não tem o direi- to de se furtar a essa tarefa. Veremos precisamente com Sócrates, que lembra isso com frequência na Apologia: ele recebeu do deus essa função de interpelar os homens, de pegá-los pela manga, de lhes fazer perguntas. E essa tarefa, ele não abandonará. Mesmo ameaçado de morte, ele levará sua tarefa até o fim, até seu último suspiro42. Enquanto o sábio se mantém em silêncio e responde parcimoniosamente, o menos possível, às ques- tões que lhe podem ser formuladas, o parresiasta é o indefinido, o perma- nente, o insuportável interpelador. Em segundo lugar, enquanto o sábio é aquele que, precisamente sobre o fundo do seu silêncio essencial, fala por enigmas, o parresiasta deve falar, falar tão claro quanto possível. E, en- fim, enquanto o sábio diz o que é, mas na forma do próprio ser das coisas e do mundo, o parresiasta intervém, diz o que é, mas na singularidade dos indivíduos, das situações e das conjunturas. Seu papel específico não é dizer o ser da natureza e das coisas. Na análise da parresía, vamos encon- trar perpetuamente essa oposição entre o saber inútil que diz o ser das coisas e do mundo, e o dizer-a-verdade do parresiasta que sempre se apli- ca, questiona, aponta para indivíduos e situações a fim de dizer o que es- Coragem da verdade_01.indd 18 05/10/11 11:50 Aula de 1o de fevereiro de 1984 19 tes são na realidade, dizer aos indivíduos a verdade deles mesmos que se esconde a seus próprios olhos, revelar sua situação atual, seu caráter, seus defeitos, o valor da sua conduta e as consequências eventuais da decisão que eles viessem a tomar. O parresiasta não revela a seu interlocutor o que é. Ele desvela ou o ajuda a reconhecer o que ele, interlocutor, é. Enfim, terceira modalidade do dizer-a-verdade que podemos opor ao dizer-a-verdade do parresiasta é o dizer-a-verdade do professor, do técni- co, do [instrutor]. O profeta, o sábio e o que ensina.* * NOTAS 1. Desde janeiro de 1981 (“Subjetivité et Vérité”, cf. resumo in Dits et Écrits, 1954-1988, ed. por D. Defert & F. Ewald, colab. J. Lagrange, Paris, Gallimard, 1994, 4 vols.: cf. IV, pp. 213-8) Foucault consagra seus cursos no Collège de France ao pensamento antigo. 2. No ano anterior, confrontado com as mesmas dificuldades, Foucault já havia sugerido a constituição, paralelamente ao curso principal, de um pequeno grupo de trabalho que seria forma- do exclusivamente de pesquisadores cujos temas de trabalho fossem próximos: cf. Le gouverne- ment de soi et des autres. Cours au Collège de France, 1982-1983, ed. F. Gros, Paris, Gallimard- -Le Seuil (col. “Hautes Études”), 2008, p. 3 (aula de 5 de janeiro de 1983) e p. 68 (aula de 12 de janeiro) [Trad. bras.: O governo de si e dos outros, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010.] 3. Sobre o conceito de aleturgia, cf. as aulas no Collège de France de 23 e 30 de janeiro de 1980 (“forjando a partir de alethourgés a palavra fictícia de alethourgía, poderíamos chamar de ‘aleturgia’ (manifestação de verdade) o conjunto dos procedimentos possíveis, verbais ou não, pelos quais se traz à luz o que é posto como verdadeiro, em oposição ao falso, ao oculto, ao indizí- vel, ao imprevisível, ao esquecimento. Poderíamos chamar de ‘aleturgia’ esse conjunto de procedi- mentos e dizer que não há exercício de poder sem algo como uma aleturgia”, aula de 23 de janeiro). 4. M. Foucault, Histoire de la folie à l’âge classique, Paris, Plon, 1961 (1972 na editora Gallimard); Surveiller et Punir, Paris, Gallimard, 1975. [Trad. bras.: História da loucura, 9a ed., São Paulo, Perspectiva, 2010.] 5. M. Foucault, Les Mots et les Choses, Paris, Gallimard, 1966. Cf. para uma apresentação similar da análise do “sujeito falante, trabalhante, vivente”, a nota “Foucault” em Dits et Écrits, ed. citada, t. IV, p. 633. [Trad. bras.: As palavras e as coisas, 2a ed., São Paulo, Martins Fontes, 2007.] 6. A mesma apresentação sistemática sob a forma de um tríptico se encontra na primeira aula de 1983 (Le Gouvernement de soi..., ed. citada, pp. 4-7). 7. Sobre o exame de consciência como exercício espiritual, cf. aula de 24 de março de 1982, in M. Foucault, L’Herméneutique du sujet. Cours au Collège de France, 1981-1982, ed. F. Gros, Paris, Gallimard-Le Seuil (col. “Hautes Études”), 2001, pp. 460-4 (bem como a aula de 27 de janeiro, id., pp. 157-8). [Trad. bras.: A hermenêutica do sujeito, 3a ed., São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010.] * M.F.: Bem, se vocês quiserem, porque talvez estejam um pouco cansados, uns de ouvir, outros de não ouvir, uns de estar sentados, outros de estar de pé, eu, em todo caso, de falar, vamos parar uns cinco ou dez minutos. E voltamos a nos encontrar daqui a pouco, está bem? Vou tentar terminar por volta das onze e quinze. Obrigado. Coragem da verdade_01.indd 19 05/10/11 11:50
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