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A cultura do estupro

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A cultura do estupro
por Joanna Burigo — publicado 02/06/2016 11h29
Não podemos perder tempo disputando a realidade. Um ato sexual que acontece sem o consentimento de uma das partes envolvidas é um estupro. Sempre
É machismo duvidar das mulheres por partir do pressuposto que uma declaração sobre estupro é falsa
A cultura do estupro é a expressão mais radical da cultura da superioridade
"Uma rosa, por qualquer outro nome, teria o aroma igualmente doce". Este trecho de Romeu e Julieta, a peça famosa de William Shakespeare, é frequentemente referenciado em artigos e debates sobre o peso e a volatilidade da linguagem.
Na cena em que esta fala se dá, Julieta – uma Capuleto – argumenta que não importa que Romeu seja um Montéquio, pois o amor que sente é pelo rapaz, e não por seu nome. A beleza da citação é o que ela implica: os nomes que damos às coisas não necessariamente afetam o que as coisas realmente são. 
“Estupro, por qualquer outro nome, seria uma ação igualmente violenta.” Seria. Mas, ao contrário das rosas – que reconhecemos como rosas, por isso chamamos de rosas –, relutamos em reconhecer quando um estupro é estupro para poder então chamá-lo de estupro.
Estupro é a prática não consensual do sexo, imposta por violência ou ameaça de qualquer natureza. Qualquer forma de prática sexual sem consentimento de uma das partes, envolvendo ou não penetração, configura estupro. 
Se aceitarmos que esta é a definição de estupro, quantas já sofremos um, e quantos já cometeram um? Garanto que muita gente.
Consentimento é um conceito-chave para compreendermos e admitirmos que existe uma diferença entre sexo e estupro. Sexo é consensual, e se for adiante sem consentimento, deixa de ser sexo e passa a ser estupro. 
A pessoa pode estar embriagada, vestida de forma sensual, pode já ter indicado querer sexo, pode estar nua e na cama e até mesmo já ter iniciado o sexo. No momento que ela declara não querer sexo, ou querer interromper o sexo, a ação deve parar. (E vale ressaltar que a ação não deve nem começar se a pessoa não estiver em condições de dizer sim...).
Precisamos levar a sério a asserção de que qualquer ato sexual que ocorre sem o consentimento de uma das partes envolvidas é um estupro. Apenas o sexo praticado com o consentimento das partes envolvidas pode ser chamado de sexo.
O ato sexual praticado sem consentimento não é sexo: é violência. É estupro. Não pode ser tão difícil que concordemos a este respeito. Se quando um não quer dois não brigam, quando um não quer dois não transam. Isso não é complicado de entender.
Ainda que a prática vitime homens e mulheres, historicamente as mulheres são as mais atingidas. A permanência deste padrão é garantida pelo que chamamos de cultura do estupro.
A violência contra a mulher é concreta, sistemática e balizada por números reais e dados científicos que são publicados por organizações competentes e sérias. O feminismo se ocupa, dentre outras coisas, de revelar esta violência com o intuito de reduzi-la – de extingui-la.
Que gastemos tempo disputando quais narrativas que articulam como a luta feminista contra a violência são mais ou menos eficazes é compreensível. Mas é uma perda total de tempo e energia disputar a realidade que fomenta estas narrativas.
Nossa realidade é a inequidade, e tornar visível a ameaça constante da violência que mantém essa desigualdade (violência cujas manifestações mais agudas são o estupro e o feminicídio), é o que faz o feminismo. 
Não deveríamos desperdiçar nenhum segundo evidenciando o que já está provado, mas, infelizmente, ainda precisamos fazer isso. É preciso que a sociedade passe a acreditar no que dizem as mulheres, e é urgente pararmos de disputar se estupro é ou não estupro. É sexo sem consentimento? É estupro. 
A cultura do estupro é a cultura que normaliza a violência sexual. As pessoas não são ensinadas a não estuprar, mas sim ensinadas a não serem estupradas. 
Cultura do estupro é duvidar da vítima quando ela relata uma violência sexual. É relativizar a violência por causa do passado da vítima ou de sua vida sexual. É ser mais fácil acreditarmos em narrativas de uma suposta malícia inerente das mulheres do que lidarmos com o fato de que homens cometem um estupro. 
A cultura do estupro é visível nas imagens publicitárias que objetificam o corpo da mulher. Nos livros, filmes, novelas e seriados que romantizam o perseguidor. No momento que acatamos como normal recomendar às meninas e mulheres que não saiam de casa à noite, ou sozinhas, ou que usem roupas recatadas. 
Todas essas ações revelam o que chamamos de cultura de estupro porque todas normalizam que a responsabilidade pelo estupro é da vítima. Não é. O protagonista do estupro é o estuprador. 
A cultura do estupro é machista, e o machismo cria e mantém a cultura do estupro. É machismo partir do pressuposto de que o que uma mulher revela sobre estupro é invenção. É machismo duvidar das mulheres por partir do pressuposto que uma declaração sobre estupro é falsa. 
Na cultura machista que sustenta a cultura do estupro, a voz das mulheres é tomada como dissimulação. Na cultura machista as mulheres são malignas (olá Eva, bruxas e súcubos do imaginário coletivo), e os homens são eternas vítimas de nossas calúnias. 
Mas os números não mentem, e se a manutenção da lógica machista depende da fantasia, o feminismo aponta para a realidade. 
Você conhece um estuprador? Eu conheço pelo menos três. Moços "de bem", de família, que chegaram a frequentar a minha casa e que, por causa da cultura do estupro, acharam que fazer sexo em (não "com", "em") três amigas minhas enquanto elas dormiam porque estavam embriagadas era aceitável. 
Elas estavam bêbadas. Elas estavam de roupas curtas. Mas elas definitivamente não estavam pedindo. Acreditar que elas estavam pedindo sexo por estarem alcoolizadas ou vestidas de um ou outro jeito é sucumbir à cultura do estupro.
Cultura de estupro é assunto de todos. Estupro é uma violência, e uma violação grave dos direitos humanos que atinge mulheres desproporcionalmente. Precisamos falar sobre cultura de estupro. Precisamos falar sobre machismo. Precisamos falar sobre misoginia. Precisamos falar sobre cultura patriarcal. Estas coisas estão conectadas. E precisamos falar sobre elas.
O feminismo existe bastante porque a voz das mulheres e as nossas falas são tão desvalorizadas socialmente que é preciso um movimento – militante e teórico – para dar conta de articular a realidade de forma convincente para uma sociedade propensa a não acreditar em nós.
Precisar explicar que qualquer ato sexual que acontece sem consentimento é estupro, ad infinitum, é evidência da permanência da cultura do estupro.
É exaustivo disputar a realidade com quem não quer enxergá-la porque não é diretamente afetado por ela. Por isso precisamos revelar que existe, sim, uma cultura que normaliza o estupro e a violência contra as mulheres. Falar é uma ação, denunciar o machismo é uma ação, revelar a misoginia é uma ação.
Pois falemos, então, com a linguagem adequada. A cultura do estupro existe e é visível, e sexo sem consentimento é estupro, ainda que alguns relutem em admitir isso. Mas uma rosa, por qualquer outro nome...
O termo “cultura do estupro” tem sido usado desde os anos 1970, época da chamada segunda onda feminista, para apontar comportamentos tanto sutis, quanto explícitos que silenciam ou relativizam a violência sexual contra a mulher. A palavra “cultura” no termo “cultura do estupro” reforça a ideia de que esses comportamentos não podem ser interpretados como normais ou naturais. Se é cultural, nós criamos. Se nós criamos, nós podemos mudá-los.
O ESTUPRADOR PODE SER UM CONHECIDO
Quando se fala em estupro, há um imaginário comum por trás dessa ação que é quase cinematográfico. É mais fácil imaginar que os praticantes desse crime são monstros, pessoas mentalmente desequilibradas, pessoas que já estão marginalizadas pela sociedade e que nem possuem tanta noção do que estão fazendo.
Infelizmente, a realidade está distante do que aparecenos filmes. Segundo dados levantados numa nota técnica do IPEA em 2014, mais de 50% dos estupros sofridos por crianças e adolescentes foram praticados por pessoas conhecidas, como pais, padrastos, namorados e amigos. Em adultos, os estupros praticados por conhecidos são quase 40% dos casos.
Outro dado importante dessa nota técnica se refere à forma de coerção usada contra a vítima. Independentemente da idade da vítima ou da proximidade que o agressor tinha com ela, o estupro aconteceu por meio do uso da força física ou de ameaça em cerca de 50% dos casos. Ou seja, há um comportamento comum nesse crime de abuso que é entendido e compartilhado entre os agressores.
O estupro configura-se num crime contra a liberdade sexual. Popularmente, as pessoas entendem o estupro como um ato sexual não consensual. Essa interpretação é equivocada porque no próprio Código Penal o conceito de estupro é mais amplo. Ele é classificado como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (Art. 213 da Lei Nº 12.015/2009).
“Ato libidinoso” refere-se a qualquer ação que tem como objetivo a satisfação sexual. Ou seja, não tem a ver somente com o ato sexual em si.
É importante registrar também que os dados do IPEA mostram que em cerca de 90% dos casos os agressores são do sexo masculino e que 88% das vítimas são do sexo feminino. Claramente, esse tipo de violência sexual costuma ser sofrida pelas mulheres e praticada pelos homens.
Esses dados refletem os trabalhos que os mais diversos coletivos de mulheres têm feito cada vez mais: mostrar onde está a violência que elas sofrem. Como já falamos, a cultura do estupro aponta comportamentos que são naturalizados e que atentam contra a liberdade sexual das mulheres.
Como já vimos que as mulheres são a maioria esmagadora das vítimas de violência sexual (88%), é fácil compreender que são elas que percebem mais facilmente onde e como sua liberdade sexual está em jogo.
As mulheres têm se empenhado em apontar os comportamentos que ferem esse seu direito e buscam modificá-los na sociedade, através de uma mudança de consciência. Segue abaixo uma breve lista de atitudes e comportamentos corriqueiros que colaboram com a cultura do estupro:
1. Assédio sexual
A mulher é abordada por homens rotineiramente. Isso ocorre nas ruas, no trabalho, na escola, no transporte público etc. O “fiu-fiu”, o abraço “apertado” do colega de trabalho, o beijo no rosto forçado pelo cliente, a proximidade “acidental” dos corpos masculinos nos transportes públicos são apenas alguns exemplos. Os homens, ao se sentirem à vontade para abordar as mulheres em qualquer espaço e contexto, atentam contra a liberdade sexual delas. Afinal, a liberdade reside no poder de escolha e no controle de quando e onde uma pessoa quer fazer ações de caráter sexual ou afetivo. Atualmente, com o assédio naturalizado, as mulheres não têm essa escolha. Elas são forçadas a aceitar a violência sem reagir, pois nunca se sabe como os homens lidarão com a rejeição.
2. Desrespeito ao “não”
Há um entendimento nocivo em relação à intenção da mulher quando ela fala “não” para algum homem. Do casamento à ficada, é frequente a mulher precisar se justificar em relação ao seu “não”. O “não” é bastante interpretado como jogo de sedução, onde a mulher quer, mas fala que não quer só para que o homem insista. Essa “brecha” fere a liberdade sexual da mulher, uma vez que ela já se posicionou dizendo “não” e ainda assim continua sendo coagida a dizer um “sim”. Os movimentos que pautam discussões contra a cultura do estupro querem que os homens se reposicionem nessas situações. Um único “não” deve ser necessário para que eles desistam de suas investidas.
3. Objetificação da mulher
Já tratamos desse assunto em outro texto. A objetificação ocorre quando a mulher é enquadrada num papel onde ela tem apenas uma função: despertar o desejo sexual do homem. Assim, os olhares direcionados a ela não são olhares para um indivíduo, para um ser humano e sim para um objeto a ser apreciado. Qualquer campanha publicitária onde apareçam mulheres que estão lá, em primeiro lugar, por serem bonitas e terem corpos esculturais, são campanhas que reforçam a objetificação da mulher. Quando homens avaliam o caráter ou a intenção de uma mulher pela sua aparência física ou pela sua roupa, eles não estão considerando-a como um indivíduo e sim como um objeto. Um objeto não tem opinião ou vontade própria. Um objeto é apenas o que ele mostra ser, e é possível fazer o quiser com ele.
4. Relativização da violência contra a mulher
Os dados da nota técnica do IPEA mostram que 88% das vítimas de violência sexual são mulheres, que 90% dos agressores são homens e que apenas 10% dos casos são registrados pela polícia. Ainda assim, como abordado numa matéria da Superinteressante, o estupro é o único crime onde a vítima é julgada junto com o criminoso. A segurança que todo cidadão sente ao procurar a polícia quando é furtado ou assaltado não existe para as vítimas de estupro. Ao contrário da maioria dos crimes, onde a vítima precisa apenas informar às autoridades o que sofreu e essas autoridades entendem o seu relato como algo legítimo, as vítimas de estupro não são legitimadas já de início.
Como os dados também mostram que a maioria dos agressores são pessoas conhecidas das vítimas e que eles usam da força física ou da ameaça como forma de coagir as vítimas, é possível entender por que apenas 10% dos casos são denunciados. As vítimas sofrem inúmeras barreiras para levar esses crimes para as autoridades. Nesses espaços, onde essas vítimas deveriam ser acolhidas, o que encontram é desconfiança e descrença acerca da violência que sofreram. Dividir parte da culpa de um crime de violência sexual com a própria vítima é atenuar a ação do agressor. Os movimentos que pautam discussões sobre a cultura do estupro querem conscientizar as pessoas de que precisamos, primeiro, gerar incentivos para as vítimas de violência sexual reportarem esses crimes para as autoridades. Isso não vai acontecer enquanto elas se sentirem julgadas, questionadas e não amparadas pela sociedade e pelas instituições.
Combater a cultura do estupro implica estarmos atentos a toda e qualquer atitude cotidiana que agride a liberdade sexual da mulher. As duas palavras-chave que auxiliam nesse processo são: consenso e respeito. Precisamos respeitar mais a mulher enquanto indivíduo, enquanto ser humano que ela é. Com seus desejos, medos, ambições e sonhos. Ela não é um objeto a ser apreciado onde quer que esteja, ela não é um enfeite para vender produtos ou mostrar para as pessoas, ela não é obrigada a satisfazer vontades sexuais das quais ela não compartilha. A mulher livre é a mulher que não teme.

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