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Veja 11 Out 2017 - Silêncio dos Inocentes

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GERAL IDÉIAS
NUDEZ CASTIGADA 0 episódio controverso do MAM: o abuso 
é de quem explora a imagem da criança nas redes
0 SILÊNCIO DOS 
INOCENTES
A performance em que uma criança toca o pé e a mão de um homem 
nu causou protestos, mas não se engane: a criança é quem menos 
importa aos novos justiceiros morais m a r c elo m a r th e
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GERAL IDÉIAS
C R IA D A EM 1969, a mostra Pa­
noram a da A rte Brasileira é um 
evento tão trad ic ional quanto 
apagado. A exibição promovida 
pelo Museu de Arte Moderna de 
São Paulo (MAM) só repercute 
no restrito círculo dos artistas e 
entendidos. Até que apareceu um 
homem pelado no meio do cami­
nho. Na abertura da 35- Panora­
ma, no dia 26, o artista fluminen­
se W agner Schw artz usou seu 
meio de expressão habitual — a 
nudez — para protagonizar uma 
homenagem à neoconcretista Ly- 
gia Clark (1920-1988). Na perfor­
mance La Bete, o artista vira uma 
versão humana dos Bichos, série 
famosa da escultora mineira. Dei­
tado no chão, nu, oferece seu cor­
po para o público manipular. Eis 
que uma menina de 5 anos e sua 
mãe (a identidade de ambas é o 
que menos importa nessa histó­
ria) entraram na brincadeira. A 
garotinha tocou a mão e o calca­
nhar do peladão. O contato não
0 caso do MAM é mais uma 
tóxica batalha das brigadas 
digitais em tomo da arte
durou mais que alguns segundos, 
mas foi suficiente para detonar 
mais uma tóxica batalha ideoló­
gica em torno da arte.
O vídeo com o trecho da perfor­
mance viralizou nas redes, desen­
cadeando protestos das milícias di­
gitais à direita no espectro político. 
Assim como a gritaria que levou ao 
lamentável fechamento da exposi­
ção Queermuseu em Porto Alegre, 
há três semanas, os franco-atirado­
res de plantão — com o indefectível 
Movimento Brasil Livre (MBL) à 
frente, naturalmente — não titubea­
ram em denunciar uma suposta 
“apologia à pedofilia”. O ex-ator 
pornô convertido em paladino dos 
bons costumes Alexandre Frota 
gravou um vídeo denunciando a 
“pouca-vergonha”. “Se aquele va­
gabundo estivesse deitado aqui, eu 
ia levantar ele”, ameaçou o astro de 
Filmes como Na Teia do Sexo em 
sua blitz no MAM. Ele não estava 
só. Uma horda de justiceiros morais 
fez protestos ferozes na porta do 
museu. Alerta à repercussão e às 
cobranças de movimentos que o 
apoiam, o prefeito paulistano João 
Doria embarcou na onda e gravou 
um vídeo em que chamou a perfor­
mance de “libidinosa”. No Con­
gresso, o deputado Laerte Bessa
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GERAL IDÉIAS
CERCO AOS 
MUSEUS
Protesto contra a 
performance: 
histeria ideológica
(PR-DF) escancarou o perigoso viés 
de linchamento público que cerca o 
caso: pregou a tortura do artista. 
“Direitos humanos é um porrete de 
pau de guatambu, que nós usamos, 
muitos anos, em delegacia. Se aque­
le vagabundo fosse fazer a exposi­
ção lá no Goiás, ele levaria uma ta­
ca tamanha que nunca mais ia to­
mar banho pelado”, disse.
O M inistério Público paulista 
investiga se houve abuso contra a 
criança. “Não é nosso interesse 
cercear o direito de criação, a li­
berdade e a exposição de obras 
de arte. O que queremos é que o 
Estatuto da Criança e do Adoles­
cente (ECA) seja respeitado”, de­
clarou o promotor Eduardo Dias 
Ferreira. Na opinião do advogado 
Dinovan Oliveira, da Comissão 
de Artes da seção paulista da Or­
dem dos Advogados do Brasil, a 
performance, claramente, não fe­
riu o ECA. “Além de o MAM ter 
informado que a obra continha 
nudez, situação que por si só já 
afasta qualquer responsabilidade 
do museu, a criança estava acom­
panhada da mãe — que entendeu, 
com base nos conceitos que ela 
considera válidos para a criação 
da sua filha, que a interação não 
geraria nenhum problema. Nesse 
caso, o Estado não deve interfe­
rir”, diz Oliveira.
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GERAL IDÉIAS
O inquérito do MP tem como um 
de seus objetivos centrais verificar 
se houve falhas do museu em aler­
tar sobre o teor da performance. 
Não parece o caso: na entrada, havia 
uma placa com uma advertência so­
bre as cenas de nudez. Mas situa­
ções assim poderíam ser evitadas se 
existisse uma regra de classificação 
indicativa para exposições. Isso já 
ocorre no cinema e na TV, mas há 
um vácuo no caso dos museus.
A acusação de pedofilia é ainda 
menos cabível, na visão do repre­
sentante da OAB: “Colocar a nu­
dez da performance no mesmo pa­
cote da pedofilia e da erotização 
infantil é um equívoco. Esse tipo 
de conclusão ultrapassa os limites 
da razoabilidade e acaba dizendo 
muito mais sobre o intérprete do 
que sobre a situação em si”. A tera­
peuta de família Lidia Aratangy 
endossa sua análise. “Aquilo não 
teve nada a ver com pedofilia ou 
pornografia. Se a mãe permitisse 
que um homem nu tocasse a filha, 
aí seria o caso de questioná-la. 
Mas não havia nenhuma conota­
ção sexual”, diz. A bem da verda­
de, é lícito refletir se é apropriado
levar uma criança a uma perfor­
mance com nudez adulta. Mas aí, 
novamente, a questão é da alçada 
da família — não é caso de polícia.
O segundo objetivo do MP vai 
ao xis da questão: é preciso inves­
tigar como foi feita a captação de 
imagens no MAM e sua propaga­
ção. O órgão determinou que as 
reproduções do vídeo, comparti­
lhadas nas redes às vezes sem o 
cuidado de cobrir o rosto da me­
nina, fossem tiradas do ar. “Di­
vulgar o vídeo, sim, é um abuso 
contra a criança”, diz Lidia Ara­
tangy. A histeria que cercou a 
performance tem um tanto de ig­
norância — imagine o que o MBL 
e sua turma fariam diante de uma 
Yoko Ono ou de um a M arina 
Abramovic peladonas nos anos 
60 e 70. Mas não só: há frieza e 
método político nas reações des­
proporcionais ao episódio. As 
gangues da internet manipulam 
temores coletivos sobre explora­
ção sexual para carimbar o rótu­
lo de “pedófilos” nos oponentes. 
Nem que, para isso, tenham de 
expor, sem esc rú p u lo s , um a 
criança inocente. ■
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