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442160_freud-as três humilhações do narcisismo

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Texto 11 – Sigmund Freud: as três humilhações do narcisismo humano
	O narcisismo geral, o amor próprio da Humanidade, sofreu até agora três graves ofensas por parte da investigação científica:
	a) O homem acreditava no princípio, na época inicial de sua investigação, que a Terra, sua sede, encontrava-se em repouso no centro do Universo, enquanto que o Sol, a Lua e os planetas giravam circularmente em torno dela. Seguia assim, ingenuamente, a impressão de suas percepções sensoriais, pois não observava nem observa movimento algum da Terra; em qualquer parte que sua vista possa estender-se livremente, encontra-se sempre no centro de um círculo, que encerra o mundo exterior. A situação central da Terra era para ele garantia de sua função predominante no Universo, e lhe parecia muito de acordo com sua tendência em sentir-se dono e senhor do Mundo.
	A destruição desta ilusão narcisista se liga, para nós, ao nome e aos trabalhos de Nicolau Copérnico no século XVI. Muito antes dele, já os pitagóricos haviam posto em dúvida a situação vantajosa da Terra, e Aristarco de Samos havia afirmado, no século III a. C., que a Terra era muito menor que o Sol, e se movia em torno dele. Assim, pois, também a grande descoberta de Copérnico havia sido feita antes dele. Mas quando foi geralmente reconhecida, o amor próprio humano sofreu sua primeira ofensa: a ofensa cosmológica.
b) No curso de sua evolução cultural, o homem considerou-se superior a todos os seres que povoavam a Terra. E não satisfeito com tal superioridade, começou a abrir um abismo entre ele (o homem) e eles (os outros seres). Negou-lhes a razão, e atribuiu a si uma alma imortal e uma origem divina, que lhe permitiu romper qualquer laço de comunidade com o mundo animal. É singular que esta exaltação permaneça ainda alheia à criança, como ao primitivo e ao homem em seus primórdios. É o resultado de uma presunçosa evolução posterior. No estágio do totemismo, o primitivo não achava depreciativo fazer descender sua estirpe de uma estirpe animal. O mito, que integra os resíduos daquela antiga maneira de pensar, atribui aos deuses figuras de animais, e a arte primitiva cria deuses com cabeça de animal; aceita sem assombro que os animais das fábulas pensem e falem [...]
Todos sabemos que as investigações de Darwin e as de seus precursores e colaboradores puseram fim, faz pouco mais de meio século, a esta exaltação do homem. O homem não é nada distinto do animal nem algo melhor que ele; procede da escala zoológica e está proximamente aparentado com umas espécies, e de forma mais afastada, com outras. Suas aquisições posteriores não conseguiram apagar as provas de sua semelhança, dadas tanto em sua constituição física como em suas disposições anímicas. Esta é a segunda ofensa – a ofensa biológica – feita ao narcisismo humano.
c) Mas a ofensa mais dolorosa é a terceira, de natureza psicológica.
O homem, embora exteriormente humilhado, sente-se soberano em sua própria alma. Em algum lugar no interior do seu eu criou-se um órgão inspetor, que vigia seus impulsos e seus atos, inibindo-os ou retraindo-os implacavelmente quando não coincidem com suas aspirações. Sua percepção interna, sua consciência, dá conta ao eu de todos os acontecimentos de importância que se desenvolvem no mecanismo anímico, e a vontade dirigida por estas informações executa o que o eu ordena, e modifica o que quisesse se realizar de forma independente. Pois esta alma não é algo simples, mas uma hierarquia de instâncias, uma confusão de impulsos, que tendem, independentes uns dos outros, a seu cumprimento relativo à multiplicidade dos instintos e às relações com o mundo exterior. Para exercer sua função, é preciso que a instância superior receba notícia de tudo o que se prepara, e que sua vontade possa chegar a todas as partes e exercer em qualquer uma delas sua influência. Mas o eu se sente seguro, tanto da quantidade e fidelidade das notícias, como da transmissão de suas ordens.
Em certas doenças, e sem dúvida nas neuroses por nós estudadas, acontece outra coisa. O eu se sente contrariado, pois esbarra com limitações de seu poder dentro de sua própria casa, dentro da própria alma. Surgem imediatamente pensamentos que não sabe de onde vêem, sem que seja também possível afastá-los. Tais hóspedes indesejáveis parecem inclusive ser mais poderosos que os submetidos ao eu; resistem a todos os meios coercitivos da vontade, e permanecem intrépidos ante a contradição lógica e ante o testemunho contrário da realidade. Ou surgem impulsos, que são como os de um estranho, de sorte que o eu os nega, mas entretanto é necessário temê-los e tomar precauções contra eles. [...]
A psicanálise procura esclarecer estes inquietantes casos [...] e pode por fim dizer ao eu: “Não se introduziu em ti nada estranho; uma parte de tua própria vida anímica se subtraiu ao teu conhecimento e à soberania de tua vontade. Por isso é tão fraca tua defesa; lutas com uma parte de tua força contra a outra parte, e não podes reunir, como o farias contra um inimigo exterior, toda tua energia [...]. Todo este processo só se faz possível pelo fato de que também em outro ponto importantíssimo estás também errado. Confias em que tudo o que acontece em tua alma chega a teu conhecimento, [...] chegas inclusive a identificar o “anímico” com o “consciente”; isto é, com o que é conhecido por ti, apesar da evidência de que a tua vida psíquica tem que realizar continuamente muito mais do que chega a ser conhecido por tua consciência. Deixa-te instruir sobre este ponto. O anímico em ti não coincide com o que te é consciente; uma coisa é que algo ocorra em tua alma, e outra que tu chegues a ter conhecimento disso. [...] Não deves acalentar a ilusão de que obténs notícias de tudo o que é importante. [...] Quem pode calcular, ainda que não estejas enfermo, tudo o que acontece em tua alma sem que recebas notícia, ou só notícias incompletas e falsas? Conduzes-te como um rei absoluto que se contenta com a informação que lhe trazem seus altos dignatários e não desce nunca até o povo para ouvir sua voz. Penetra em ti mesmo, desce a teus estratos mais profundos e aprende a conhecer-te a ti mesmo; só então poderás chegar a compreender por que podes adoecer e, talvez, também a evitar a enfermidade”.
Assim quis a psicanálise ensinar ao eu. Mas suas duas teses, a de que a vida instintiva da sexualidade não pode totalmente domada em nós e a de que os processos anímicos são em si inconscientes, e apenas mediante uma percepção incompleta e pouco fidedigna chegam a ser acessíveis ao eu e submetidos a ele, equivalem à afirmação de que o eu não é dono e senhor em sua própria casa. E representam o terceiro agravo feito a nosso amor próprio; um agravo psicológico. Não é, portanto, de estranhar que o eu não acolha favoravelmente as teses psicanalíticas e se negue tenazmente a dar-lhes crédito.
Una dificultad del psicoanálisis, en Obras completas, Editorial Biblioteca Nueva, Madrid 1968, vol. II, p. 1110-1112

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