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MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa Departamento de Apoio à Gestão Participativa IDEIAS E DICAS PARA O DESENVOLVIMENTO DE PROCESSOS PARTICIPATIVOS EM SAÚDE Brasília − DF 2016 Elaboração, distribuição e informações: MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa Departamento de Apoio à Gestão Participativa SAF Sul, Quadra 2, lotes 5/6, torre II, térreo, sala 17, Edifício Premium CEP: 70070-600 – Brasília/DF Tel.: (61) 3315-8854 Fax: (61) 3315-8859 Site: www.saude.gov.br/sgep E-mail: sgep.dagep@saude.gov.br | dgp@saude.gov.br Facebook: www.facebook.com/SGEP_MS Twitter: @SGEP_MS Organização: Osvaldo Peralta Bonetti Vanderléia Laodete Pulga Daron Elaboração de Texto: Etel Matielo José Ivo dos Santos Pedrosa Osvaldo Peralta Bonetti Rafael Gonçalves de Santana e Silva Vanderléia Laodete Pulga Daron Vera Lúcia de Azevedo Dantas Projeto Gráfico, Ilustração e Diagramação: Id Artes e Eventos Impresso no Brasil / Printed in Brazil Fotografias: Etel Matielo Normalização: Daniela Ferreira Barros da Silva – Editora MS/CGDI Colaboração: Abigail Batista de Lucena Reis Elisa Prieto Kappel Julimar de Fátima Barros Katia Maria Barreto Souto Theresa Cristina de Albuquerque Siqueira Tulio Correia de Souza e Souza Título para indexação: Ideas and tips for the development of participatory processes in Health Catalogação na fonte – Coordenação-Geral de Documentação e Informação – Editora MS – OS 2016/0284 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Ideias e dicas para o desenvolvimento de processos participativos em Saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. – Brasília : Ministério da Saúde, 2016. 240 p. : il. ISBN ???-??-???-????-? 1. Educação popular em Saúde. 2. Promoção da Saúde. 3. Atenção à Saúde. I. Título. CDU 614.39 Ficha Catalográfica 2016 Ministério da Saúde. Esta obra é disponibilizada nos termos da Licença Creative Commons – Atribuição – Não Comercial – Compartilhamento pela mesma licença 4.0 Internacional. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. A coleção institucional do Ministério da Saúde pode ser acessada, na íntegra, na Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde: <www.saude.gov.br/bvs>. Tiragem: 1ª edição – 2016 – 1.213 exemplares SU MÁ RIO APRESENTAÇÃO 1 INTRODUÇÃO 2 EDUCAÇÃO POPULAR COMO REFERENCIAL PARA AS PRÁTICAS DE SAÚDE 2.1 Refletindo sobre as bases da educação popular em Saúde 2.2 As dimensões da educação popular em saúde 3 A ARTE E A CULTURA POPULARES NA PROMOÇÃO DA VIDA E DA SAÚDE 3.1 Os círculos de Cultura na promoção da cidadania e saúde 3.2 As Rodas de Conversa na democratização dos saberes 3.3 As Cirandas como espaços de promoção da saúde 3.4 As Oficinas como método participativo 3.5 O Corredor do Cuidado como prática de cuidado 4 METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS PARA O TRABALHO EM SAÚDE: SINGULARIDADES E DIFERENÇAS 4.1 Orientações pedagógicas 7 13 19 33 61 38 44 47 50 54 68 20 26 73 76 78 83 113 92 92 95 99 99 99 100 100 102 103 104 114 209 5 METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS 5.1 Algumas características das metodologias participativas 5.2 Dicas na construção de processos participativos 6 AS TÉCNICAS DE GRUPO COMO PROMOTORAS DA PARTICIPAÇÃO 6.1 Técnicas de grupo – para que servem 6.2 Elementos de uma técnica 6.3 Tipos de técnicas 6.4 Algumas referências significativas 6.4.1 Sociodrama 6.4.2 O Teatro do Oprimido 6.4.3 Mística 6.4.4 Cenopoesia 6.4.5 Filmes 6.4.6 Fotografia 6.4.7 Grafite 7 ALGUMAS DICAS 7.1 Técnicas 7.2 Histórias, músicas e poemas 235 238 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA APRESENTAÇÃO 7 O setor Saúde tem construído uma caminhada significativa no campo das políticas públicas, principalmente no que diz respeito aos processos de democratização do Estado. A Saúde é o primeiro setor a instituir uma política garantidora de acesso universal à população brasileira, sendo que, com a conquista do art. 198 da Constituição Federal de 1988, a saúde passou a ser “direito de todos e dever do Estado”, posteriormente instituindo o Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 1988). Além da universalidade, o SUS apresenta como princípios, também, a integralidade, a equidade e a participação popular. Assim, o SUS inaugurou um novo contexto nas políticas públicas ao instituir o controle social por meio dos Conselhos e das Conferências de Saúde. Nas três décadas de implementação do SUS, a perspectiva da democratização da gestão do Sistema, bem como o jeito de formular, implementar e monitorar as políticas de saúde, vem avançando consideravelmente. Nesse contexto, merecem destaque os processos que, a partir de 2003, por meio do Ministério da Saúde, têm ampliado a participação social na gestão federal. Entre essas, destacam-se a Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa (ParticipaSUS), que orienta as ações da gestão na promoção, na qualificação e no aperfeiçoamento da gestão estratégica e democrática das políticas públicas no âmbito do SUS; e as Políticas de Promoção da Equidade, que instituem estratégias e ações de garantia do acesso aos serviços de saúde para a diversidade da população brasileira, fortalecendo a concepção de que são necessários jeitos diferentes para cuidar e assistir em saúde; assim como a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde (Pneps-SUS), que traz, como objetivo principal, implementar a Educação Popular em Saúde no âmbito do SUS, estimulando a participação popular, a gestão participativa, o controle social, o cuidado, a formação e as práticas educativas em saúde. Contudo, a democratização das relações em saúde, seja no espaço da gestão nacional, estadual e municipal, em relação à efetivação da gestão participativa das políticas de saúde, seja no território e/ou nos serviços de saúde, no que diz respeito à horizontalidade no cuidado, aos vínculos e às relações estabelecidas entre profissionais de saúde e usuários, ainda se apresenta como um desafio, que é perpassado por um conjunto de 8 Coordenação de Apoio à Educação Popular e à Mobilização Social Departamento de Apoio à Gestão Participativa Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa Ministério da Saúde intencionalidades que vão desde a mudança de modelo de atenção à saúde, incorporando o cuidado centrado no usuário como paradigma e a cultura de participação, ampliando os espaços e os canais de diálogo com a população. Nessa perspectiva, o desenvolvimento de ações no campo da educação popular em saúde, voltadas a processos formativos de diferentes atores sociais como conselheiros de saúde para o fortalecimento do controle social e da gestão participativa, assim como as práticas de educação em saúde desenvolvidas no âmbito dos serviços de saúde, protagonizadas por profissionais de saúde, desenvolvidas por educadores populares ou movimentos sociais, têm se apresentado não só como desafios significativos, mas também como experiências estratégicas para a gestão pública. A Educação Popular em Saúde (EPS) tem se mostrado como campo de uma práxis que mobiliza os espaços da gestão, da formação, do cuidado, do controle social e da participação popular na defesa do Sistema Único de Saúde cada vez mais democrático, universal, humanizado, identificado com a cultura e a realidade de cada povo e território que compõem e constituem nosso país. Um dos elementos que reforçam o desafio da democratização das relações em saúde é a carência de um referencialpolítico metodológico na maioria das ações, em especial nos processos de formação, mobilização e das práticas educativas. Motivada por este cenário, a Coordenação-Geral de Apoio à Educação Popular e Mobilização Social, do Departamento de Apoio à Gestão Participativa da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, apresenta o Ideias e Dicas como uma singela e comprometida tentativa de apoiar movimentos populares, trabalhadores da saúde, estudantes, gestores, educadores e todos aqueles comprometidos com o fortalecimento da gestão participativa, do controle social e a participação popular na saúde. Desejamos uma boa leitura e que este material contribua para o encantamento pelo fazer e promover saúde, instigando a capacidade crítica e a criatividade nas ações e nas práticas comprometidas com o SUS. 11 INTRODUÇÃO 1 13 A participação social é uma das diretrizes constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS), conquistada pela luta daqueles que atuam em defesa do direito à saúde. Esta se expressa na atualidade por uma rede de controle social, formada por Conselhos e Conferências de Saúde, os chamados espaços instituídos de participação, como também por um conjunto de novos espaços que conformam o que convencionamos chamar de espaços instituintes de gestão participativa no SUS. A construção da gestão participativa e o fortalecimento da participação popular requerem que a gestão do SUS e os serviços de saúde sejam permeáveis às necessidades sanitárias, às potencialidades, aos saberes que compõem cada território na formulação de políticas e no processo de trabalho cotidiano desenvolvido nas práticas de cuidado e nos espaços do controle social. Para que isso aconteça, os territórios onde se inscrevem precisam ser constituídos por uma nova cultura de participação, que reconheça o espaço comunitário como lócus potencial da promoção do protagonismo popular, da construção compartilhada das estratégias do que Freire (1996) denominou de inédito viável na busca da superação das situações limites enfrentadas no SUS por cada pessoa que o acessa e o constrói. Esse processo implica no compromisso dos trabalhadores da saúde, como educadores, conselheiros, todos aqueles que desenvolvem as ações em saúde, com a promoção da autonomia dos sujeitos, com a construção da alteridade que ocorre no encontro entre si, nos serviços, nos processos educativos, de promoção e comunicação em saúde. Assim, apresenta-se como fundamental o investimento em processos dialógicos de conhecimento compartilhado sobre a saúde, considerando a subjetividade e a singularidade presentes nas relações entre cada indivíduo e coletividades com a dinâmica da vida na perspectiva da integralidade do cuidado à saúde e da humanização no SUS. 14 O fortalecimento do controle social e da participação popular é um desafio permanente e para o avanço do próprio Sistema de Saúde. A participação nos espaços de controle social contribui na construção e na consolidação da saúde enquanto direito universal, pois favorece que as pessoas percebam-se como sujeitos de direitos. Os sujeitos sociais vão construindo novos significados, conceitos e sentidos, à medida que participam ativamente do processo de consolidação da saúde enquanto direito universal. Sendo assim, assegurar o controle social, a participação popular e a gestão participativa na política pública de saúde demonstra o compromisso de identificar, desencadear e qualificar espaços que promovam a participação da população e, ao mesmo tempo, construir instrumentos político-pedagógicos para apoiar processos educativos e formativos nesta direção. Ideias e Dicas para o Desenvolvimento de Processos Participativos em Saúde constitui-se em um instrumento didático à disposição de educadores(as), profissionais de saúde, conselheiros(as), estudantes, gestores(as) e todos aqueles interessados em desenvolver processos educativos voltados para a consolidação da cidadania e da democracia participativa no campo da saúde. Na sua composição estruturada em quatro eixos, você encontrará um conjunto de ideias, reflexões e problematizações que se dispõem a servir de subsídio, entre as múltiplas possibilidades, ao desenvolvimento das suas práticas e trabalho educativo, como também um apanhado de dicas e exemplos de técnicas participativas, estórias, poemas, cantigas, entre outros dispositivos, que poderão servir de insumo na busca da transformação das práticas no cuidado, na formação, na educação, no controle social e na participação em saúde. 15 Rosanne Realce 18 A EDUCAÇÃO POPULAR COMO REFERENCIAL PARA AS PRÁTICAS DE SAÚDE 2 19 2.1 Refletindo sobre as bases da educação popular em saúde Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento e gente de fogo louco que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam: mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar e quem chegar perto pega fogo (GALEANO, 2005). Galeano (2005) nos desafia à compreensão integral do ser humano, o respeito e a valorização da singularidade de cada ser, pois, por sermos sujeitos em relação, todas nossas ações tem uma dimensão educativa e pedagógica, compreensão esta fundamental nas áreas de saúde e educação, em que se almeja a construção da cidadania e do protagonismo popular. Nesse sentido, é importante a reflexão sobre os fundamentos que orientam estas relações que se estabelecem no universo da atenção, do cuidado, da gestão, do controle social e da participação, das práticas educativas e da formação no SUS. No universo cotidiano de muitas práticas profissionais e populares de formação, de cuidado e de promoção à saúde presentes no mundo comunitário, das famílias e das políticas, a educação popular vem se revelando como referencial. A incorporação da integralidade no cuidado, compreendendo as várias dimensões do ser humano, a perspectiva de protagonismo dos diversos sujeitos, o diálogo e a construção compartilhada de saberes, a valorização das culturas locais nas suas organizações, suas expressões artísticas e as possibilidades de envolvimento de outros setores na perspectiva de enfrentamento dos problemas cotidianos, são premissas da Educação Popular em Saúde (BRASIL, 2013). 20 Rosanne Realce Rosanne Realce A educação popular busca promover a participação dos sujeitos sociais, incentivando-os à reflexão, ao diálogo e à expressão da afetividade, potencializando a criatividade e a autonomia. Nessa perspectiva, a educação popular em saúde assume a dimensão da promoção da participação social no processo de formulação e gestão das políticas de saúde, direcionando- as para o cumprimento efetivo dos princípios ético-políticos do SUS: universalidade, integralidade, equidade, descentralização e controle social. Assim, o agir educativo se constitui como ação que se alimenta no processo de construção de um fundamento teórico-metodológico de sustentação de projetos que promovam a participação ativa da sociedade e de ações capazes de produzir novos sentidos nas relações entre necessidades de saúde e organização do cuidado à saúde. Logo, busca a qualificação das ações e a humanização das relações no SUS, promovendo tensão permanente entre a expressão das necessidades de saúde da população e a organização da atenção a estas necessidades, o que significa a contínua construção da universalidade, da integralidade e da equidade do cuidado em saúde. Outro aspecto importanteé a busca do acolhimento e o suporte às ações em defesa da vida que os movimentos sociais e populares realizam, reconhecendo a legitimidade destas ações, valorizando o conhecimento acumulado e construindo referências para produção e organização dos saberes e práticas de saúde. O incentivo permanente à participação popular na formulação e gestão das políticas públicas de saúde, na perspectiva de que a ação social orientada pela satisfação das necessidades de saúde implica um caminho que se traduz concretamente nas formas de gestão participativa e na atuação do controle social. Nesse contexto, a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (Pneps-SUS) apresenta, como princípios, pressupostos teórico- metodológicos construídos coletivamente no âmbito do Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde, que dão sentido e coerência à práxis da educação popular em saúde e se ofertam como orientadores às práticas educativas construídas no campo da saúde1. 1 A Política Nacional de Educação Popular em Saúde foi instituída pela Portaria do Ministério da Saúde n° 2.761, de 19 de novembro de 2013, disponível no endereço: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2761_19_11_2013. html>. 21 Rosanne Realce Rosanne Realce São eles: a) Diálogo: Expressa e intenciona colaboração, troca, interação e se faz em relação horizontal, com confiança de um no outro e respeito mútuo. Ele acontece quando cada um, de forma respeitosa, coloca o que sabe à disposição para ampliar o conhecimento crítico de ambos acerca da realidade, contribuindo com processos de transformação e de humanização. Por isso, implica escuta interessada, humildade para aprender, amorosidade para o encontro, esperança na mudança de si, do outro. É preciso recuperar a educação e o cuidado em saúde como diálogo de e entre sujeitos, síntese do processo educativo e dimensão fundamental de reconhecimento destes, uma vez que todo ser humano é um sujeito em construção, ou seja, agente que tem sua história, trajetória, cultura e valores (ARROYO, 2001). b) Amorosidade: Acolhê-la nas ações e nas práticas de saúde e educação significa ampliar o respeito à autonomia de pessoas e de grupos sociais, especialmente àqueles em situação de iniquidade, por criar laços de ternura, acolhimento e compromisso que antecedem as explicações e argumentações, fortalecendo o compromisso com a superação de situações de sofrimento e injustiça. Valorizar a amorosidade significa ampliar o diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação do afeto e da sensibilidade, fortalecendo processos já em construção no SUS, como a humanização, o acolhimento, a participação social e o enfrentamento das iniquidades em saúde. c) Problematização: A problematização implica a existência de relações dialógicas e propõe a construção de práticas em saúde alicerçadas na leitura e na análise crítica da realidade. Problematizar significa reconhecer a experiência prévia dos sujeitos e usá-la para a identificação das situações limite (situações de opressão, negação de direitos) presentes no cotidiano e as potencialidades para transformá- las por meio de ações para sua superação. Os problemas surgidos nas vivências são discutidos com todas as suas contradições. E os sujeitos, ao problematizarem, também transformam-se nesta ação e passam a detectar novos problemas na sua realidade e analisar as intervenções necessárias para sua superação. Assim, emerge como momento pedagógico, como práxis social, como manifestação de um mundo refletido com o conjunto dos atores, possibilitando a formulação de conhecimentos com base na vivência de experiências significativas, resgatando potencialidades e capacidades para intervir. 22 Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce Essa forma nova de olhar a realidade, baseada na ação- reflexão-ação e no desenvolvimento de uma consciência crítica que surge da problematização, permite que homens e mulheres percebam- se sujeitos históricos; e as ações educativas orientadas por este princípio configuram-se processos humanizadores, conscientizadores, e de protagonismo na “busca do ser mais”. d) Construção compartilhada do conhecimento: Pressupõe que o conhecimento só torna-se mais potente se construído a partir da ação coletiva de pessoas e grupos com saberes, culturas e inserções sociais diferentes, na perspectiva de compreender e transformar, de modo coletivo, as ações de saúde desde suas dimensões teóricas, políticas e práticas. O compartilhamento de um grupo ou coletivo na produção de ideias, intenções, planos e projetos na esfera da teoria, da técnica ou da experiência prática tem como base a prática do diálogo que acontece no encontro com formas diferentes de compreender os diversos modos de andar a vida, nas rodas de conversa com os coletivos sociais, na complementaridade entre as tecnologias científicas e populares e nos amplos sentidos que a saúde apresenta. e) Emancipação: É um processo coletivo e compartilhado de conquista das pessoas e dos grupos da superação e da libertação de todas as formas de opressão, exploração, discriminação e violência ainda vigentes na sociedade e que produzem a desumanização e a determinação social do adoecimento. Fortalece o sentido da coletividade na perspectiva de uma sociedade justa e democrática, na qual as pessoas e os grupos sejam protagonistas por meio da reflexão, do diálogo, da expressão da amorosidade, da criatividade e da autonomia, afirmando que a libertação somente acontece na relação com outro. Ter a emancipação como referencial no fazer cotidiano da saúde pressupõe a construção de processos de trabalho em que os diversos atores possam se constituir sujeitos do processo de saúde e doença, contrapondo-se às atitudes autoritárias e prescritivas e radicalizando o conceito da participação nos espaços de construção das políticas da saúde em busca do inédito viável. f) Compromisso com a construção do Projeto Democrático e Popular: A construção de um projeto democrático e popular em saúde pressupõe a superação da distância entre o país que temos e o que queremos construir, superando as diversas formas de exploração, alienação, opressão, discriminação e violência, ainda presentes na sociedade, que desumanizam as relações, produzem adoecimento e injustiças, visando à transformação da realidade, com vistas à emancipação. No campo da saúde, este projeto já conta com uma conquista significativa, que é o próprio Sistema Único de Saúde, o qual, para tornar-se efetivo em sua integralidade, demanda um conjunto de iniciativas e transformações sociais que fortaleçam sua concepção contra-hegemônica, embasada nos princípios já referidos. 23 Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce Entende-se que um projeto democrático e popular, promotor de vida e saúde, caracteriza-se por princípios como a valorização do ser humano em sua integralidade, a soberania e a autodeterminação dos povos, o respeito à diversidade étnico-cultural, de gênero, sexual, religiosa e geracional; a preservação da biodiversidade no contexto do desenvolvimento sustentável; o protagonismo, a organização e o poder popular; a democracia participativa; organização solidária da economia e da sociedade; acesso e garantia universal aos direitos, reafirmando o SUS como parte constitutiva deste projeto. 24 2.2 As dimensões da educação popular em saúde A educação popular difere do treinamento ou da simples transmissão de informações (PELOSO, 2005), pois estimula a criação de um senso crítico que provoque o entendimento, o comprometimento e a capacidade de reivindicar, de formular propostas e transformar,por meio de um processo, que a partir da ação gera-se reflexão e desta uma nova ação. Não é um discurso acadêmico sobre um método, nem um produto acabado ou uma receita simples e mágica, tampouco confunde- se com técnicas de grupo usadas como instrumento tático para atrair pessoas. As técnicas são recursos para estimular a participação e a cooperação, porém, não são os únicos determinantes para que se tenha um processo educativo democrático, um elemento fundamental de uma ação educativa permeada pela educação popular que independe das técnicas, é o compromisso ético-político com os educandos. Sendo um processo coletivo de produção e socialização do conhecimento que incentiva educadores e educandos a ler criticamente a realidade sócio- econômico-político-cultural com a finalidade de transformá-la, a educação popular intenciona um novo projeto de sociedade para o País. O caminho político-pedagógico proposto pela educação popular requer o envolvimento corresponsável de todos participantes na construção, na apropriação e na multiplicação do conhecimento. Para Freire, educar é tornar os sujeitos mais humanos, e humanizar seria situar os processos e as práticas educativas no âmago, nos anseios e nas lutas dos setores populares, incorporando os princípios da dignidade, da emancipação e da justiça (ARROYO, 2001). Miguel Arroyo (2001) refere que a educação popular é a prática com base no diálogo, na convivência, na interação entre profissionais e população, por meio dos corpos, das falas, das culturas: matrizes fundamentais da nossa identidade. 26 Rosanne Realce A educação popular tem relação direta com a cultura e com a vinculação às fontes da vida e da morte das comunidades: criação de laços solidários e comprometidos com a libertação, elo que articula saberes diferenciados, sensibiliza os diferentes atores envolvidos e exprime as representações que o ser humano constrói a partir da sua leitura do mundo na perspectiva de conhecer e intervir sobre a realidade. Segundo Vasconcelos (2001), a educação popular oferece um instrumental fundamental para o desenvolvimento de novas relações, “por meio da ênfase ao diálogo, a valorização do saber popular e a busca de inserção na dinâmica local”, tendo a identidade cultural como base do processo educativo e compreendendo que o respeito ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto cultural. As experiências de educação popular desenvolvidas por meio da arte-cultura proporcionam uma maior aproximação à humanização e à integralidade. Nesse sentido, as linguagens da arte nos permite tocar dimensões mais totalizadoras do sujeito que, em geral, são esquecidas no cotidiano da saúde, como as do corpo, da estética, da ética, da espiritualidade, da afetividade, vinculando desejo e cognição, intuição e sensibilidade. A arte dos possíveis sabores e cores da culinária popular, que possam favorecer o prazer de reconstruir novas formas de alimentar-se frente à descoberta de estar diabético ou hipertenso; a arte de reconstituir movimentos de superação dos limites físicos produzidos pela hanseníase ou pelo inevitável processo do envelhecer; de tornar mais belos e acolhedores os espaços das unidades de saúde, mesmo quando a infraestrutura é precária e os recursos didáticos e audiovisuais são poucos; da escuta sensível, do toque carinhoso, do olhar que acolhe, da palavra que apoia, mas que também explicita e aclara os conflitos, são exemplos de como a arte-cultura pode contribuir com o processo educativo. Partindo da busca da memória das lutas populares, os percursos de experiências de educação popular em saúde têm apresentado a possibilidade de intervenção e produção da vida coletiva; de conexão entre cotidiano e história, vinculando a experiência local sentida no singular dos grupos com a inserção na história vivida no exercício sociopolítico em rede e articulações em nível nacional. Nesse contexto, a reflexão, a partilha e a leitura coletiva das possibilidades são feitas também mediante o exercício das linguagens como as dos mestres da arte popular, da viola e do repente, dos grupos de maneiro-pau, de coco, teatro de rua, dos cordelistas, radialistas, palhaços, pajés e xamãs. 27 O processo educativo tem de ser sensível às linguagens que emergem na simplicidade das experiências locais que, em uma vivência de protagonismo ousada, tomaram a frente no processo de articulação e imprimiram sua feição particular. Experiências estas que buscam, aos poucos, incluir-se nos espaços dos serviços de saúde e das instituições formadoras, e ensaiar uma ação que interfira nas políticas públicas, mas que, ao mesmo tempo, possa alimentar-se continuamente de suas práticas concretas. Entretanto, Paulo Freire (1995) alerta que, enquanto as pessoas não se dão conta de que estão coletivamente produzindo temas geradores, que envolvem situações-limite, os atos não podem acontecer de modo crítico e com intencionalidade social e política efetiva. No caso da saúde, os temas geradores são entendidos como o universo temático explicativo e de enfrentamento das questões relacionadas ao processo saúde-doença- cuidado, aos determinantes sociais da saúde presentes nas comunidades. Esses temas geradores remetem às situações concretas vividas e permeadas pela contradição entre reprodução e transformação (situações- limites), em relação às quais se buscam alternativas concretas (atos-limites) – e isto ocorre o tempo todo no cotidiano da atividade humana. A educação popular tem o compromisso com aqueles em situação de opressão, “os oprimidos”, e seu ponto de partida é a convicção de que o povo já tem um saber, parcial e fragmentado, mas que carrega em si o dom de ser capaz; entretanto, precisa refletir sobre o que sabe (e não sabe que sabe) e incorporar o acúmulo teórico da prática social. Nesse sentido, torna-se um instrumento que desperta, qualifica e reforça o potencial popular em sua luta para romper a lógica do capital e construir uma alternativa solidária, um compromisso de amorosidade com o ser humano. Uma das especificidades da educação popular é a de relacionar o fazer (saber empírico ou saber de experiência feito) das pessoas com uma reflexão teórica (saber científico) e integrar a dimensão imediata (micro) com a dimensão estratégica (macro). Eu preferia dizer que não tenho método. O que eu tinha, quando muito jovem, há 30 anos ou 40 anos, não importa o tempo, era a curiosidade de um lado e o compromisso político do outro, em face dos renegados, dos negados, dos proibidos de ler a palavra, relendo o mundo. O que eu tentei fazer e continuo hoje, foi ter uma compreensão que eu chamaria de crítica ou de dialética da prática educativa, dentro da qual, necessariamente, há uma certa metodologia, um certo método, que eu prefiro dizer que é método de conhecer e não um método de ensinar (PELANDRÉ, 1998, p. 298). 28 ANOTAÇÕES ANOTAÇÕES ANOTAÇÕES 3 A ARTE E A CULTURA POPULARES NA PROMOÇÃO DA VIDA E DA SAÚDE 33 A Educação Popular em Saúde referencia a arte e a cultura como processo no qual as pessoas, os grupos e as classes populares expressam e simbolizam sua representação, recriação e reelaboração da realidade, inserindo-as em uma prática social libertadora, cujas expressões não se separam da vida cotidiana. Portanto, considera- se que trabalhar com a arte é a possibilidade de se vivenciar o fazer, em que o processo criativo que se instaura agrega outras dimensões que não só a racional, reconhecendo a estética popular capaz de produzir sentidos e sentimentos (BRASIL, 2013). Nessa perspectiva, a Política Nacional de Educação Popular em Saúde(Pneps-SUS) nos provoca a identificar os serviços de saúde e espaços, os territórios onde se inscrevem, assim como os espaços de organização social, movimentos sociais, entre outros, como potenciais para a promoção da saúde, nos quais a arte, a cultura, em especial, o diálogo multicultural podem ser facilitadores dos processos educativos, mobilizatórios e participativos, contagiando os territórios com leveza e alegria, sem perder de vista a politicidade e a problematização. A arte e a cultura são muito potentes para despertar o que Toro (2001) evidencia como imaginário convocante, pois mobiliza sensações e sentidos que atravessam o mundo simbólico das pessoas, despertam emoções que geralmente não são consideradas nos espaços oficiais do fazer saúde. Desta forma, adotar essa perspectiva nas ações de saúde reveste-se de desafio; por isso, os princípios políticos metodológicos precisam estar bastante evidentes para o educador, a fim de não perder de vista o compromisso com a democratização, com a emancipação, respeitando tempos, habilidades e protagonismo individual e coletivo nas atividades e espaços. 34 Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Nota Se bem construídas, as relações desenvolvidas no processo educativo permeado pela arte e a cultura popular demonstram-se efetivas no sentido de construir uma nova cultura da participação, cultura mais respeitosa e comprometida com o jeito de andar a vida das pessoas, promotora de relações mais horizontais entre profissionais e usuários, entre as pessoas de modo geral. Evidentemente, cada contexto e cada território têm próprias e diferentes culturas, abriga uma diversidade de saberes e expressões que, muitas vezes, não estão evidenciadas, sendo que muitas culturas são sonegadas ou invisibilizadas pela cultura hegemônica, ditadora de comportamentos da moda, bastante difundida pelos instrumentos da grande mídia. Quando buscamos identificar essa diversidade, percebemos múltiplos jeitos que se evidenciam em modos diferentes de se organizar, de participar e de cuidar-se, os quais influenciam e são influenciados pela concepção de mundo e referência de cuidado dos serviços de saúde, da política de saúde local, dos trabalhadores facilitadores das atividades, como da própria população que constitui os territórios. O desejo e a necessidade de intervir em um território envolvem um arte-educador ou um grupo, e quem mais esteja ao redor e queira se envolver e participar. É impossível sentir-se do mesmo jeito após uma intervenção artística, seja plástica, poética, musical ou cênica. Mesmo que a vivência cause repulsa aos sujeitos participantes, provoca reflexões e até transformações, ou seja, agradável ou não, as pessoas não são as mesmas. Nas experiências de Educação Popular em Saúde, País a fora, esse tipo de ação já faz parte da maioria dos encontros, dos espaços de formação e mobilização, inclusive constituindo-se como eixo estratégico do Plano Operativo da Pneps-SUS. Assim, muitos são os exemplos que podemos encontrar na atualidade de práticas inovadoras fomentados pelas redes, pelos movimentos, pelas articulações de educação popular. Entre estes, destaca-se a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (Aneps), que tem construído novos jeitos de fazer os processos formativos e mobilizatórios, a exemplo das Tendas Paulo Freire, suas rodas de conversa e círculos de cultura. No contexto da Aneps, destaca-se o grupo cearense Cirandas da Vida, que realizou, 35 nos dois últimos anos, caravanas populares em 19 municípios no estado, além da experiência no Município de Fortaleza, intervindo e trazendo trabalhadores, gestores e a comunidade para a rua. Nessas ações, foi provocado o debate e a vivência na saúde, destacando o saber popular, por meio da cenopoesia, problematizando a participação na gestão do SUS. Como explicita Vera Dantas referindo-se à experiência cearense: Busca capturar como as comunidades exprimem sua história de luta, mediante as linguagens da arte como fertilizadora do princípio de comunidade; analisar como os atores populares se inserem na formulação e implementação dessas políticas; compreender como os diferentes grupos geracionais expressam suas leituras da realidade, no dialogismo vivido na gestão em saúde e analisar como as linguagens da arte contribuem para a construção de atos limite como estratégias de superação das situações-limite (DANTAS, 2012, p. 46). A arte e a cultura têm sido fertilizantes naturais do processo de mobilização e luta política pelos direitos de cidadania protagonizados pelos movimentos e segmentos populares que devem ser considerados no fazer saúde. A arte transborda a rua, flui integrando a comunidade, com expressão corporal e o exercício cênico transformando vidas, construindo engajamentos em novas ações artísticas, políticas e sociais. Historicamente, os coletivos e movimentos de Educação Popular em Saúde construíram espaços potencializadores da luta pelo direito à saúde, que, fortalecidos pelos grupos de arte e cultura, acrescentam novas ferramentas na construção de políticas públicas em saúde. As propostas freirianas, como as rodas de conversa e os círculos de cultura, facilitam o acolhimento aos fazeres e aos saberes populares, que dão uma nova dinâmica na mobilização dos trabalhadores, dos gestores e dos usuários na defesa do SUS. 36 3.1 Os Círculos de Cultura na promoção da cidadania e saúde Os debates têm início na primeira hora que o homem participa do círculo de cultura. Em vinte minutos, uma turma de analfabetos é capaz de fazer a distinção fundamental para o método: natureza diferente de cultura. Para chegar a esse resultado, se utiliza através de slides ou quadros, uma cena cotidiana do meio onde vive o grupo. Como exemplo, citaremos uma cena do campo: um homem, sua palhoça, uma cacimba, um pássaro voando e uma árvore. O mestre exige de todos a descrição daquela cena, e em seguida, indaga o que o homem fez e o que ele não fez naquele quadro. Ao obter as respostas deixa logo indicada a diferença: o que o homem faz é Cultura e o que ele não faz é Natureza (FEITOSA, 1999, p. 4). Sistematizados por Paulo Freire (1992), os Círculos de Cultura estão fundamentados em uma proposta pedagógica, cujo caráter radicalmente democrático e libertador propõe uma aprendizagem integral, que rompe com a fragmentação e requer uma tomada de posição perante os problemas vivenciados em determinado contexto. Para Freire, essa concepção promove a horizontalidade na relação educador-educando e a valorização das culturas locais, da oralidade, contrapondo-se, em seu caráter humanístico, à visão elitista de educação. Foram concebidos na década de 1960 como grupos compostos por trabalhadores populares que se reuniam sob a coordenação de um educador, com o objetivo de debater assuntos temáticos, do interesse dos próprios trabalhadores, cabendo ao educador-coordenador tratar a temática trazida pelo grupo. Surgem no âmbito das experiências de alfabetização de adultos no Rio Grande do Norte e em Pernambuco e do movimento de Cultura Popular. Não tinham a alfabetização como objetivo central, mas sim a perspectiva de contribuir para que as pessoas assumissem sua dignidade como seres humanos e se percebessem detentores de sua história e de sua cultura, promovendo a ampliação do olhar sobre a realidade. Nesse contexto, propõem uma práxis pedagógica que se compromete com a emancipação de homens e mulheres ressaltando a importância do aspecto metodológico no fazer pedagógico, 38 Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Nota sem desvalorizar, no entanto, o conteúdo específico que mediatiza esta ação, possibilitando a tomada de consciência do educando, medianteo diálogo e o desvelamento da realidade com suas interligações culturais, sociais e político- econômicas. Caracterizam-se como lócus privilegiado de comunicação-discussão embasada no diálogo, nas experiências dos atores-sujeito, na produção teórica da educação e na escuta, a qual se orienta pelo desejo de cada um e cada uma de aprenderem as falas do outro e da outra, problematizando-a e problematizando-se. Caminho metodológico: Tendo como princípios metodológicos o respeito pelo educando, a conquista da autonomia e a dialogicidade, os círculos de cultura, tais como foram sistematizados por Freire, podem ser didaticamente estruturados em movimentos. No momento inicial, trabalha-se a investigação do universo vocabular, do qual são extraídas palavras geradoras. Nada mais é que a identificação das palavras de uso corrente, entendidas como representativas dos modos de vida dos grupos ou do território onde se trabalhará (estudo da realidade). Esse mergulho permite ao educador interagir no processo, ajudando-o a definir seu ponto de partida que se traduzirá no tema gerador geral, vinculado a ideia de interdisciplinaridade e subjacente à noção holística de promover a integração do conhecimento e a transformação social, os quais se colocam como a unidade básica de orientação dos debates. No segundo momento, dá-se a tematização, ou seja, processo no qual os temas e palavras geradoras são selecionadas e decodificadas buscando a consciência do vivido, o seu significado social, possibilitando a ampliação do conhecimento e a compreensão dos educandos sobre a própria realidade, na perspectiva de intervir criticamente sobre ela. O importante não é transmitir conteúdos específicos, mas despertar uma nova forma de relação com a experiência vivida. Do tema gerador geral surgem as palavras geradoras. Cada palavra geradora poderá ter uma imagem expressa de várias formas: desenho, fotografia, imagem viva, que, por sua vez, deverá suscitar novos debates. 39 Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce No terceiro momento, acontece a problematização que representa um momento decisivo da proposta que é buscar superar a visão ingênua por uma perspectiva crítica, capaz de transformar o contexto vivido. A ação de problematizar em Paulo Freire impõe ênfase no sujeito práxico, que discute os problemas surgidos da observação da realidade com todas as suas contradições, buscando explicações que o ajudem a transformá-la. O sujeito, por sua vez, também se transforma na ação de problematizar e passa a detectar novos problemas na sua realidade e, assim, sucessivamente. Nesse sentido, a problematização emerge como momento pedagógico, como práxis social, como manifestação de um mundo refletido com o conjunto dos atores, possibilitando a formulação de conhecimentos com base na vivência de experiências significativas. Assim, o diálogo constitui-se como elemento-chave, no qual educadores e educandos sejam sujeitos atuantes. Diálogo, nessa perspectiva, tem a amorosidade como dimensão fundante, contrapondo-se à ideia de opressão e dominação. Situa a humildade como princípio no qual o educador e o educando percebem-se sujeitos “aprendentes”, inacabados; porém, jamais ignorantes. A ampliação do olhar sobre a realidade, com amparo na ação-reflexão-ação, e o desenvolvimento de uma consciência crítica que surge da problematização permitem que homens e mulheres percebam-se sujeitos históricos, o que implica a esperança de que, nesse encontro pedagógico, sejam vislumbradas formas de pensar um mundo melhor para todos. Esse processo supõe a paciência histórica de amadurecer com o grupo, de modo que a reflexão e a ação sejam realmente sínteses elaboradas com ele. Dessa forma, Paulo Freire fala de educação como conscientização, reflexão rigorosa sobre a realidade em que se vive, com o entrelaçamento das linguagens e suas respectivas lógicas epistêmicas, evidenciando os focos a serem problematizados pelo grupo, instigando o debate e constituindo uma rede de significados (DANTAS, 2012). 40 Rosanne Realce Rosanne Realce O educador, contrariando a visão tradicionalista que atribui a ele o papel privilegiado de detentor do saber, é denominado animador de debates e tem o papel de coordenar o debate, problematizar as discussões para que opiniões e relatos surjam. Cabe também ao educador conhecer o universo vocabular dos educandos, o seu saber traduzido por meio de sua oralidade, partindo de sua bagagem cultural repleta de conhecimentos vividos que se manifestam por meio de suas histórias, de seus “causos”, no diálogo constante, e em parceria com o educando, reinterpretá-los, recriá-los. 42 3.2 As Rodas de Conversa na democratização dos saberes O espaço do educador democrático, que aprende a falar escutando, é cortado pelo silêncio intermitente de quem falando, cala para escutar o outro a quem, silencioso, e não silenciado, fala (FREIRE, 2010, p. 44). A Roda de Conversa é um método de discussão que possibilita aprofundar o diálogo por meio da participação democrática, a partir da riqueza que cada um dos sujeitos participantes traz sobre determinado assunto, sempre ancorando as reflexões no “saber de experiência feito”, nas vivências dos que dela participam, no aprendizado no mundo da vida. Mais do que espaço de fala, configuram-se, sobretudo, em espaços de escutar os outros e a si mesmos. Proporcionam a vivência de conflitos de ideais, interesses e visões de mundo, pois, se bem estruturadas, possibilitam a troca de impressões e opiniões, assim como a contraposição de falas e compreensões. Tendo como princípios básicos o diálogo, a troca de saberes e a construção compartilhada, a Roda deve permitir a expressão de todos participantes, cada integrante deve ter oportunidade de falar ou expressar o que pensa ou sabe. Podendo contar com um facilitador ou animador, traz o diferencial simbólico da disposição horizontal entre seus atores participantes, proporcionando a quebra da relação hierárquica entre quem fala e quem escuta, colocando as pessoas em contato direto umas com as outras, sendo que cada integrante tem acesso ao olhar e à escuta de todos os outros, pois estão dispostos em círculo e partem de um tema gerador comum ou de uma situação vivenciada. 44 Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce Um espaço de partilha e confronto de ideias, onde a liberdade da fala e da expressão proporcionam ao grupo como um todo, e a cada indivíduo em particular, o “crescimento na compreensão dos seus próprios conflitos” (FREIRE, 2000, p. 21). Estar em roda pode proporcionar um crescimento individual ou coletivo, pois é um exercício significativo de construção democrática do saber. As rodas podem contribuir com o planejamento de grupos e o fortalecimento do protagonismo popular na intervenção da realidade, caso a forma de condução propicie a reflexão, a sistematização de ações e estratégias de superação das situações limites apontadas ou vivenciadas por seus participantes. As estratégias nela delineadas apresentam-se potentes por partirem da leitura da realidade concreta, assim como por trazerem dimensões que nem sempre são consideradas nas construções pragmáticas ou tecnificadas, pois consideram o mundo das representações sociais apresentas pelos participantes, envolvendo a amorosidade, o afeto, o respeito ao outro que está cara a cara, como também a disputa entre as visões de mundo que circulam na sua composição. 45 Rosanne Realce 3.3 As Cirandas como espaços de promoção da saúde As Cirandas são uma das expressões da cultura popular existentes nas mais diversas regiões do País. Denotam elementos da identidade, de expressãosimbólica, cultural e religiosa das diversas etnias e culturas; da forma lúdica e do jeito brincante de cada ser. As experiências de educação popular em saúde vêm trazendo as Cirandas como expressão de várias dimensões do processo educativo e participativo em saúde, como: a) Cirandas como Espaço Popular: caracterizam- se em espaços de articulação e participação de diversos atores (movimentos sociais, técnicos, gestores, conselhos, estudantes, educadores, grupos emergentes, comunidade) para definição de situações- limite e constituição de propostas de ação coletiva, possibilitando o compartilhamento de saberes e incorporando a visão da integralidade. b) Cirandas como Promoção à Vida: podem contribuir para que o saber gestado em seus espaços possam alimentar as práticas em saúde locais, de modo a incorporar abordagens populares, como farmácias vivas, massoterapia, terapia comunitária, espaços de brincar, círculos de cultura, grupos de autoconhecimento, entre outros, no contexto dos serviços públicos de saúde. 47 Rosanne Realce c) Cirandas na Educação Permanente: contribuindo para potencializar as práticas culturais da comunidade como estratégia de promoção e cuidado à saúde; viabilizar um processo formador que possa partir da leitura coletiva de situações-limite, vistas como situações que exigem transformação, nas práticas de saúde locais, formação capaz de articular e incluir os grupos emergentes nos processos formativos; alargar a visão de formação que considere o saber de experiência feito, construído nos movimentos populares, como elemento fundamental na produção e socialização dos saberes em saúde; considerar, nas ações a serem implantadas, a história dos saberes acumulados no lugar, como base para a potencialização dos projetos de futuro coletivos a serem construídos nesse espaço dialógico. d) Cirandas no Campo da Participação Popular: trazem um caráter potencializador do poder de intervenção dos movimentos populares e o desvelamento da lógica do saber popular na exequibilidade do direito à saúde, bem como para promover um processo permanente de interação entre os diversos setores no campo da saúde e de todas as políticas sociais em cada loco-região, para a construção de processos integrados e interdisciplinares de trabalho. Podem contribuir para o fortalecimento do controle social, por meio de um processo permanente de diálogo com movimentos, conselhos populares, conselhos locais, regionais e municipais de saúde e o com as experiências de Orçamento Participativo. Possibilitam a organização de processos interdisciplinares de trabalho que apontam para o protagonismo popular, potencializando o poder de intervenção dos movimentos e o desvelamento da ótica do saber popular na conquista da saúde como direito. 48 3.4 As Oficinas como método participativo Oficina é um lugar de consertos, reparos, criatividade, descobertas, lugar de vida, trabalho, transformação, processo de montagem e de construção. A Oficina constitui-se num espaço privilegiado de criação e de descobertas. Em uma oficina, processo e produto integram-se em um processo reflexivo. A oficina não pretende alcançar um objetivo “a qualquer custo”; preocupa-se, pelo contrário, com a adequação e a sequência dos passos a serem dados para que se chegue àquele mesmo objetivo. O processo de construção que se realiza por meio de oficinas tem várias características: é pluridimensional, criativo, coletivo, planejado e coordenado coletivamente. Prioriza o aprendizado usando o corpo todo e não só a razão. É por isso que, nesse processo, são trabalhadas as distintas dimensões do ser humano: o sentir, o pensar, o agir, a intuição e a razão, o gesto e a palavra intervêm e encontram uma nova síntese. A criatividade é uma característica constitutiva da oficina. Ela implica a capacidade de inventar o novo, tanto no que diz respeito ao modo de trabalhar, como ao produto construído. É imprescindível o uso das mais variadas formas de linguagem, que possam corresponder às diversas e inseparáveis dimensões da pessoa. Por isso é comum, numa oficina, a introdução da dança, da poesia, da pintura, da modelagem, de brincadeiras e das dinâmicas de grupo. 50 Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce Uma oficina, além de ser um processo pluridimensional e criativo, é algo coletivo, que passa pela construção de várias pessoas. Por isso, o compromisso e a responsabilidade dos participantes do grupo são essenciais: cada um assume uma tarefa na montagem ou na produção do que se quer obter. O desafio é a criação coletiva a partir dos recursos do próprio grupo, a partir da prática de cada um em seu cotidiano. A organização do trabalho coletivo busca valorizar e potencializar a adversidade e a potencialidade da cada um. A oficina é um processo coordenado que precisa ser planejado previamente, de modo a favorecer uma construção coletiva de conhecimentos, que cheguem a se expressar num produto concreto. Para isso, será necessário buscar fontes (bibliografia, assessoria, entre outros) que contribuam para uma apropriação do saber historicamente acumulado e um aprofundamento teórico acerca da temática em questão; consequentemente, não se descarta que métodos expositivos ou intervenções de especialistas possam ser necessários em algum momento da oficina. É necessário cuidado para não fazer passar ao grupo a ilusão de estar construindo algo pretensamente novo, fortalecendo a consciência histórica e o reconhecimento dos limites do saber construído no aqui e agora. O(a) educador(a) que facilita ou coordena a oficina, além de planejar e buscar as fontes anteriormente, durante a oficina, assume a postura de coparticipante, que acredita na originalidade da contribuição de cada participante e que, por isso mesmo, não pode prever qual será o resultado final do processo que é chamado a conduzir. 51 2 Entre os textos que propõem uma sistematização de caráter popular, ressaltamos: FALKEMBACH, E. M. F. Sistematização. Ijuí, RS: Livraria Unijuí Editora, 1991. (Série Educação Popular, 1). HOLLIDAY, O. J. Para sistematizar experiências. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1996. p. 213. Disponível em: <http://www. mma.gov.br/estruturas/168/_publicacao/168_publicacao30012009115508.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2015. CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES (Brasil). O que é sistematização? Uma pergunta: diversas respostas. São Paulo: CUT; FAT; Ministério do Trabalho e Emprego, 2000. Disponível em: <http://cirandas.net/articles/0008/6059/ sistematizacao_cut1.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2015. Caso sejam várias pessoas a coordenar ou assessorar a oficina, será necessário que haja a maior sintonia possível entre elas. Como cada experiência tem sua particularidade, requer ingredientes adequados e combinados, de forma a corresponder a cada especificidade local e conjuntural, a cada público e objetivo. O prazer de fazer oficina fundamenta-se exatamente na consciência de estar experimentando algo singular e de estar aprendendo a experimentar. O produto que nasce das oficinas terá uma marca criativa e pluridimensional. Será sempre algo palpável e/ou visível: um desenho, uma expressão musical ou plástica, uma colagem, uma expressão corporal, um cartaz, um texto. Para isso, será necessário um trabalho contínuo de sistematização que, no campo popular, pode ser apoiada com as leituras de Oscar Jara e das diferentes experiências de sistematização dos movimentos sociais populares2. 52 3.5 O Corredor do Cuidado como prática de cuidado O Corredor do Cuidado é uma vivência desenvolvida pelos grupos de educação popular em saúde e movimentos populares no contexto da problematização do cuidadoem saúde. Embora ainda haja uma carência de sistematização e teorização sobre esta experiência, alguns princípios e “jeitos de fazê-lo” podem ser elencados. Conforme relato de Melo e Dantas (2012), no Ceará, inicialmente ele foi trabalhado nas formações em massoterapia que ocorriam no contexto dos movimentos populares. Sem maiores preocupações em definir suas referências conceituais, os atores e as atrizes que protagonizavam esses processos partiam da possibilidade de que esses cuidadores pudessem perceber que, além de realizar uma técnica de massagem, era possível, em grupo, acolher e cuidar das pessoas do modo como desejariam ser cuidadas. A fim de desenvolver uma experiência identificada com aqueles que a vivenciavam, partiam de uma prática cultural da comunidade – o túnel da quadrilha junina – para que, ao entrar naquele corredor humano, cada pessoa pudesse perceber a importância do carinho, da amorosidade e do respeito com o outro e com a outra, no sentido de compreender os limites de cada um na aceitação desse cuidado. Desde então, o Corredor do Cuidado vem se popularizando por meio das Tendas de Educação Popular em Saúde, costumeiramente chamadas de Tendas Paulo Freire, realizadas em eventos nacionais e locais da área da Saúde, assim como tem sido intensificado em processos formativos protagonizados pelos movimentos populares. O jeito como acontece é simples: os cuidadores fazem uma pequena explanação sobre os sentidos do corredor e o papel de cada pessoa nele. Geralmente, dois ou mais facilitadores promovem o convite aos participantes, como, também, ofertam ao grupo elementos que comporão o cuidado a ser realizado, como músicas instrumentais ou cantigas identificadas com a temática, promovendo o acolhimento, o relaxamento e a concentração durante a vivencia. 54 Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Nota A participação é livre e todos(as) que dele participam são convidados(as) a se permitirem cuidar e serem cuidados(as), fortalecendo a percepção sobre a necessária horizontalidade nas relações de cuidado; A confiança, a entrega, o sentido de pertencimento são exercitados o tempo todo, ao fechar os olhos e se permitir ser cuidado ou cuidada por um coletivo de pessoas, companheiros e companheiras de luta e de comunidade. Forma-se um corredor humano e alguns cuidadores ficam fora dele para fazer um cuidado individual em cada pessoa. Após esse cuidado individual, a pessoa adentra no corredor enquanto o cuidador diz ao seu ouvido, palavras de força, valorização, estímulo e confiança. A pessoa, de olhos fechados, segue vagarosamente pelo corredor permitindo-se ser cuidada por todos e todas. Ao final é acolhida com um abraço pela pessoa que está no final e logo a seguir esta assume o seu lugar para acolher o próximo participante3 (DANTAS; FLORÊNCIO, 2015). Hoje, as vivências do corredor têm agregado, além dos toques de massagem, cuidados com tambor, maracás, ervas medicinais aromáticas, reiki, pedras, músicas, poesias que se incorporam de acordo com o contexto no qual ele ocorre. A prática do corredor tem anunciado que o cuidar nem sempre necessita de técnicas apuradas, resgatando a naturalidade e a humanidade do ato de cuidar e fomentando novas relações no âmbito da saúde, referenciadas no respeito, no compromisso e na solidariedade mútuos. 3 O texto “Cuidar do outro é cuidar de mim, cuidar de mim é cuidar do mundo – O Corredor do cuidado” foi publicado no site da Rede HumanizaSUS. Disponível em: <http://www.redehumanizasus.net/92756-cuidar-do-outro-e-cuidar-de-mim- cuidar-de-mim-e-cuidar-do-mundo-o-corredor-do-cuidado>. Acesso em: 17 nov. 2015. 55 Rosanne Realce Rosanne Realce ANOTAÇÕES ANOTAÇÕES ANOTAÇÕES ANOTAÇÕES METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS PARA O TRABALHO EM SAÚDE: SINGULARIDADES E DIFERENÇAS 4 61 Desde os primeiros passos deste material, tentamos expressar que a educação popular em saúde é muito mais que uma metodologia, sendo que o próprio Paulo Freire referia sua sistematização muito mais como uma Teoria do Conhecimento do que uma metodologia de ensino, muito mais um método de aprender que um método de ensinar; assim como temos de reconhecer a existência de várias metodologias que se dizem participativas. Contudo, a critério de exposição, podemos comparar alguns tipos, entre as várias correntes da educação que fundamentam determinadas metodologias, a fim de mostrarmos os diferenciais básicos da educação popular. Sendo assim, ao se examinar os tipos de metodologias utilizadas em processos educativos, são encontradas algumas classificações importantes de serem analisadas: Concepção Tradicional de Educação: “Metodologia autoritária ou elitista” – A metodologia autoritária e dominadora visa à domesticação das pessoas para que elas se prestem a obedecer e a reproduzir um padrão de comportamento que serve a uma ordem e aos interesses de uma classe dominante. Embasada em uma concepção tradicional de educação, em síntese, consiste em um conjunto padronizado de procedimentos destinados a transmissão de conhecimento. Um artifício que permite ensinar tudo a todos, de forma lógica. Lógica esta que seria própria das inteligências adultas, plenamente amadurecidas e desenvolvidas, e que possuem certa posição de classe (cientistas, filósofos, pesquisadores, entre outros). 62 Concepção Freiriana de Educação: “Metodologia Dialógica ou Libertadora” – Reconhece que o próprio conceito de metodologia e/ou didática é histórico- social; portanto, está relacionado com o momento e o contexto histórico dos quais é produto, bem como dos projetos, das concepções e das ideologias que lhe deram origem. Logo, nega a neutralidade do ato educativo, sustentando como princípio deste a politicidade. Afirma a concepção de educação e metodologia, além de trazer implícita uma concepção epistemológica e uma visão de mundo, pois são aspectos de uma totalidade maior: a prática social (práxis social). Partindo desse pressuposto, a proposta de Freire parte do Estudo da Realidade. Nesse processo, surgem os Temas Geradores, extraídos da problematização da prática de vida dos educandos. Logo, os conteúdos de ensino são resultados de uma metodologia dialógica. Cada pessoa, cada grupo envolvido na ação pedagógica, dispõe em si próprio, ainda que de forma rudimentar, dos conteúdos necessários dos quais se parte. O importante não é transmitir conteúdos específicos, mas despertar uma nova forma de relação com a experiência vivida, instigando no educando sua capacidade de transformar esta realidade apresentada. A transmissão de conteúdos estruturados fora do contexto social do educando é considerada “invasão cultural” ou “depósito de informações”, porque não emerge do saber popular. Portanto, antes de qualquer coisa, é preciso conhecer o aluno. Conhecê- lo como indivíduo inserido num contexto social do qual deverá sair o “conteúdo” a ser trabalhado. 63 Rosanne Realce Assim, é uma metodologia participativa (nem para, nem sobre, mas com as diferentes partes envolvidas) e afirma que o modo de fazer já é, de certa forma, o que se quer fazer e o para que se faz. Visa despertar o senso crítico, a leitura da realidade e promover o diálogo entre as partes a fim de juntá-las num processo de construção coletiva. Para Freire, uma metodologia que promova o debate entre o homem, a natureza e a cultura, entre o homem e o trabalho, enfim, entre o homem e o mundo em que vive, é uma metodologia dialógica e, como tal, prepara o homem para viver o seu tempo, com as contradições e os conflitos existentes, e conscientiza-o da necessidade de intervir nesse tempo presente para a construção e a efetivaçãode um futuro melhor. “A atitude dialógica é, antes de tudo, uma atitude de amor, humildade e fé nos homens, no seu poder de fazer e de refazer, de criar e de recriar” (FREIRE, 1986). Partindo da convicção de que quem faz é quem sabe, mas quem pensa sobre o que faz faz melhor, e quem faz faz também o sentido do que faz, a metodologia dialógica significa, ao mesmo tempo, um caminho em que educadores assumem uma postura respeitosa e constroem com os educandos, promove formas de participação e de colaboração, cujo ponto de partida é a convicção de que todos são capazes e desenvolvem diferentes habilidades. Além disso, tem como ponto de chegada o autoconhecimento, o protagonismo, a necessidade de unir esforços, de organizar-se para a conquista de direitos e para assumir-se como sujeito do seu destino e o do coletivo. 64 Rosanne Realce Rosanne Realce A educação popular concretiza-se no trabalho que se faz a partir das necessidades sentidas e num processo de contínuo comprometimento das pessoas envolvidas. Porém, acreditar que as respostas espontâneas do povo já sejam alternativas transformadoras pode apenas significar uma posição tão autoritária quanto a própria imposição. Com o reconhecimento e o respeito às iniciativas populares, será necessário potencializar essas ações a partir da reflexão crítica, potencializando o diálogo entre as questões locais e as globais. Assim, alguns sinais indicam a metodologia da educação popular, aplicada a um processo político-pedagógico, quando: • Mobiliza porque rompe com a situação de dormência e a sensação de impotência, geradas pela dominação e expressas no individualismo, no consumismo e no fatalismo. • Qualifica, política e tecnicamente, os sujeitos por meio da experimentação e da apropriação do conteúdo e do método, contribuindo com a conscientização. • Incentiva a construção de espaços de participação popular, gestão democrática e participativa, afirmação da cidadania, ampliação dos direitos e processos de controle social e de democratização do Estado. 65 A metodologia dialógica é aquela que permite a atuação efetiva dos participantes no processo educativo, valorizando os conhecimentos e as experiências, envolvendo- os na discussão, na identificação e na busca de soluções para problemas que emergem de suas vidas. É uma prática pedagógica baseada no prazer, na vivência e na participação ativa em situações reais ou imaginárias; provoca a reflexão e propicia aos participantes a possibilidade de reconstruírem situações concretas da vida. Existem diversas formas de construir processos via técnicas no campo das metodologias participativas, como o psicodrama, a dinâmica de grupo, a aprendizagem vivencial, a oficina, as rodas de conversas, os círculos de cultura, entre outras. 67 Rosanne Realce 4.1 Orientações pedagógicas Com base na intencionalidade de fortalecer a participação popular, o controle social e a gestão participativa na saúde, as atividades educativas podem ser orientadas a partir de alguns pressupostos pedagógicos: • Aproximação e conhecimento da realidade social em que se vai desenvolver o trabalho, na perspectiva da educação popular, com as metodologias participativas como observação do participante, pesquisa-ação, numa atitude de abertura e de escuta para a construção de diagnósticos das realidades locais, fomentando a solidariedade e o espírito de compromisso dos grupos em contato. • Mobilização social que una os esforços de articulação e formação (encontros, seminários, oficinas, reuniões formativas, grupos de estudos, círculos interativos, intercâmbios de experiências, mutirões de formação popular e caravanas) em torno de programas concretos, ligado à defesa da vida e da saúde. • Desenvolvimento de processos educativos que articulem a teoria com as práticas sociais, entidades e agentes envolvidos com diferentes modalidades formativas, instrumentos didático-pedagógicos e comunicação de massa, cultura popular de resistência e reinvenção das relações econômicas, sociais, culturais, ambientais, entre outros. • Construção coletiva do conhecimento fundamentada no processo dialético prática-teoria-prática, associando o conhecimento da realidade com sistematização das experiências e conhecimentos dos processos de articulação, formação e mobilização, concretizando o “aprender com a prática”. • Articulação das forças sociais com a estruturação de redes de educadores populares, entidades e movimentos sensíveis à necessidade de mobilização social para um amplo mutirão nacional em defesa da saúde e da vida, retomando os fundamentos da Reforma Sanitária. 68 Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce Rosanne Realce ANOTAÇÕES ANOTAÇÕES ANOTAÇÕES METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS 5 73 Trabalhar de forma participativa contribui para o aprendizado sobre o assunto em questão e sobre a prática do trabalho coletivo, aumenta a visão sobre a realidade e a responsabilidade com as decisões tomadas. As metodologias participativas geram um processo de aprendizagem libertador, visto que permitem desenvolver um processo coletivo de discussão e reflexão, ampliam o conhecimento individual e coletivo e possibilitam a criação, a formação e a transformação do conhecimento, em que os participantes são sujeitos de sua elaboração e execução. Muitas vezes, as pessoas falam em metodologia pensando nas dicas de como fazer as coisas, nos procedimentos e nas técnicas de grupo ou ainda na sequência de como deve seguir uma atividade. Porém, como qualquer método, não é um instrumento técnico neutro, mas sempre ligado a uma visão de mundo e a um objetivo histórico concreto. Os processos pedagógicos também são marcados por distintas concepções de mundo, sociedade e educação. 74 5.1 Algumas características das metodologias participativas A construção de processos dialógicos, permeados de sentidos e orientados pela metodologia da educação popular pode ser percebida quando: • Anima e apaixona seus participantes porque resgata neles o elemento da identidade, da esperança e da dignidade (autoestima). • Mobiliza porque rompe com a situação de dormência e a sensação de impotência, geradas pela dominação e expressas no individualismo, no consumismo e no fatalismo. • Compromete as pessoas, numa dimensão integral da vida, em processos legítimos de luta pela vida para a emancipação das pessoas e na sua afirmação como sujeitos sociais. • Habilita, política e tecnicamente, os sujeitos, por meio da experimentação e apropriação do conteúdo e do método, construindo a ampliação dos níveis de consciência. • Produz fermentação social e mobilização política ao fortalecer ações coletivas no enfrentamento dos seus problemas e na construção de soluções que expressem o poder da população. • Incentiva a construção de espaços de participação popular, gestão democrática e participativa, afirmação da cidadania ativa, ampliação dos direitos e dos processos de controle social e de democratização do Estado. • Incentiva e contribui para a construção de processos legítimos de luta pela emancipação e pela vida. • Facilita a articulação de práticas populares no rumo de um Projeto Democrático e Popular de transformação social. A metodologia participativa é aquela que permite a atuação efetiva dos participantes no processo educativo, valorizando os conhecimentos e as experiências dos participantes, envolvendo-os na discussão, na identificação e na busca de soluções para problemas que emergem de suas vidas. É uma prática pedagógica baseada no prazer, na vivência e na participação ativa em situações reais ou imaginárias; provocaa reflexão e facilita aos participantes na construção das situações concretas da vida. 76 5.2 Dicas na construção de processos participativos A construção de processos participativos envolve o planejamento da atividade de acordo com o tema que será trabalhado, os objetivos da atividade e as características dos participantes. Para isso, antes da escolha da técnica ou dinâmica, é imprescindível que o responsável pela coordenação, condução ou facilitação do processo educativo:reflita sobre as seguintes perguntas: – Que tema vamos trabalhar? – Qual o objetivo que queremos alcançar? – Com quem vamos trabalhar? (Características dos participantes). Respondidas essas questões, deve-se escolher qual técnica é mais adequada para tratar do tema definido, alcançar os objetivos propostos com o público específico. Posteriormente deve-se definir como vai implementar a técnica, detalhando os passos no tempo previsto para desenvolver a atividade. E, por fim, é necessário conhecer e ter domínio do conteúdo sobre o tema que será tratado, a fim de conduzir o processo com habilidade para a articulação entre os elementos que o grupo produzir com os elementos de conteúdo já sistematizados. Além desse roteiro, a criatividade e a flexibilidade são fundamentais para que o processo educativo seja participativo, democrático, profundo e sistemático, como, também, para superar as adversidades, como a falta de recursos materiais, entre outras questões. 78 ANOTAÇÕES ANOTAÇÕES ANOTAÇÕES AS TÉCNICAS DE GRUPO COMO PROMOTORAS DA PARTICIPAÇÃO 6 83 As técnicas de grupo constituem um valioso instrumento educacional que pode ser utilizado para trabalhar a dinâmica relação entre ensino- aprendizagem em uma perspectiva educacional que valoriza tanto a teoria como a prática, e considera todos os envolvidos no processo como sujeitos em potencial para construção de práxis coletivas. Quando se opta por técnicas participativas referenciadas na educação popular, permite-se que as pessoas envolvidas passem por um processo de ensino-aprendizagem no qual o trabalho coletivo é colocado como um caminho para se interferir na realidade, modificando-a e transformando-a. Isso porque técnicas participativas comprometidas com a perspectiva da libertação, inspiradas na busca de “ser mais”, na dimensão ontológica dos seres humanos, referenciando a pedagogia do oprimido de Paulo Freire, permitem que os participantes sejam sujeitos da ação, provocando- se mutuamente, possibilitando a articulação entre os múltiplos saberes e construindo novos saberes. Isso propicia processos e exercícios da formação de uma consciência coletiva, comprometida com a emancipação e a construção de uma sociedade mais humanizada. Forma vínculos, nos processos organizativos, nas pautas relacionadas aos direitos da cidadania, desvelando-os e apropriando-se, a luta pelo direito à saúde, a defesa do SUS, na realização de práticas de cuidado em saúde mais integralizadas e integralizadoras. Como Freire (1970) afirmava, somos seres relacionais que se constroem em relação. 84 Rosanne Realce Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser determinado e o ser condicionado (FREIRE, 2010, p. 53). Ao optarmos metodologicamente pela educação popular, estamos afirmando que as técnicas por si só, se implementadas sem um referencial teórico, metodológico e político, perdem sua potencialidade. Logo, toda a construção reflexiva que introduzimos lá no início da publicação, em diálogo com nossas realidades pessoais e coletivas, são fundamentais para construirmos segurança, dinâmica e efetividade no emprego das técnicas participativas em nossos espaços de produção coletiva. Cabe referir que, em relação às técnicas participativas, tivemos, no Brasil, há algumas décadas, a ampliação da produção de livros, pesquisas e dissertações científicas mais próximas ao campo do conhecimento da psicologia organizacional e da administração, com o nome de “dinâmica de grupo”, que, inclusive, fazem parte de nossas referências neste livro. Muitas dessas produções reúnem técnicas importantes para integração e organização de grupo; porém, direcionadas a empresas, com o objetivo de melhorar a produtividade, a eficiência e a eficácia no trabalho. 85 É nesse contexto que as técnicas participativas e tantos outros dispositivos de promoção da participação entram em cena e os sujeitos facilitadores e participantes potencializam a ação. Porém, mesmo a natureza humana sendo programada para “ser mais”, isso não garante, por si só, que essa potencialidade se concretize na sua existência. Para darmos vazão a esse processo de conscientização das potencialidades e capacidades de si e do coletivo, é fundamental a criação de espaços de ação-reflexão-ação que propiciem que o “ser mais” se emancipe. Este sujeito “inscrito na natureza dos seres humanos” vive realidades desumanizantes, que o fragmenta e o individualiza e faz com que precise buscar nessa natureza humana o “ser mais”, que pode se concretizar em espaços de participação, de encontro e de fortalecimento do sentido de pertença (FREIRE, 2010, p. 75). O ser humano é essencialmente um ser relacional e por sê-lo carece de outro para a construção de sua identidade. Como meio de suprimir esta carência, relações de convivência são estabelecidas e na doação de si mesmo, sentimentos de humanização podem ser construídos. A atitude de ir ao encontro de outra pessoa não acontece por acaso. (GARCIA, 2011, p. 1). Assim, o conhecimento, a prática, ou seja, a práxis, deixa de ser individualizada e tem a oportunidade de ser coletiva. Além de qualificada pela possibilidade de construção de vínculos, considerando as diversas dimensões humanas: intelectuais, afetivas, temporais e espirituais. Em uma permanente e inesgotável busca pela integralidade, na qual, identificando esses fatores, o grupo e as pessoas problematizam determinada situação e concebem coletivamente um saber, que não nega as contradições, mas que se ressignifica e desenvolve-se mais potente na aplicabilidade prática. 86 Rosanne Realce O uso de técnicas participativas no processo coletivo do ensino-aprendizagem não pode ser absolutizado nem subestimado. Sua utilização serve para responder a objetivos específicos de uma determinada estratégia educativa dentro de um contexto histórico, no sentido de estimular a produção do conhecimento e de sua recriação, tanto no grupo/coletivo quanto no indivíduo/singular, uma vez que a técnica não é um fim, mas um meio, ou seja, uma ferramenta a ser utilizada. Nesta interação de saberes, marcados definitivamente por aproximações e doações multifacetadas, a convivência é moldada por diversas mãos, toma formas, cores e as conotações mais variadas. Dessa maneira de viver e conviver, emerge um jeito peculiar de encarar o mundo, de interpretar e decidir a vida, de deixar a marca no tempo. Nasce a cultura. Ao optar pelo uso da técnica de grupo, pode-se, por meio de jogos, brincadeiras, dramatizações, técnicas participativas, oficinas vivenciais e círculos de cultura, elaborar um ambiente descontraído, discutir temas complexos, polêmicos e até estimular que sejam externados conflitos (do indivíduo e do grupo), buscando estimular os participantes a alcançarem uma melhoria qualitativa na percepção de si mesmo e do mundo e, consequentemente, nas relações estabelecidas consigo mesmo e com o outro. As técnicas de grupo, em uma perspectiva libertadora e freiriana, são caminhos para educar e educar-se junto! 87 Rosanne Realce Em todo
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