Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Musicalidade e dança do Moleque Cipó, na arte de Mário Gruber Paulo Marcondes Torres Filho1 Daisy Valle Machado Peccinini2 O carnaval foi estudado por Mario Gruber, já a partir de um dos primeiros personagens que criou, o Moleque Cipó, que teve sua origem na memória da meninice do artista, quando na praia do José Menino, em Santos, observava moleques que criativamente elaboravam fantasias carnavalescas. Através destes fantasiados podemos intuir o som do samba onipresente em praticamente toda a sua obra, através dos equipamentos por eles tocados ou por movimentos corporais com muita ginga e balanço no dançar. - Mário Gruber. Moleque Cipó. carnaval. musicalidade. dança. movimento corporal Abstract The Carnaval has been studied by Mario Gruber as from one of his primary personages:, the Moleque Cipó (Liana´s Kid), that originated from his childhood memory when at the beach, in Santos, his hometown, he noticed poor boys that in a creative way developed astonishing carnaval costumes. Through these fantastic kids we can perceive the samba sound thas was present in most of Gruber´s artworks, from the musical equipments they play or through the body movements they perform when dancing. Mário Gruber, Moleque Cipó, carnaval, musicality, dancing, body movements 1 Paulo Marcondes Torres Filho. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP) 2 Daisy Valle Machado Peccinini. Professora livre-docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP) Pintor, desenhista, gravurista e muralista, Mário Gruber Correia (1927- 2011), deixou um legado inestimável através da sua arte sensível e contundente e, também, musical, permitindo- nos intuir o ritmo que acompanha o movimento corporal dos personagens presentes em vários de seus trabalhos. Esses foram, quase sempre, figurativos, focando a figura humana e é neste contexto que emerge a do moleque, um crioulo, com traços sensuais, na pintura, em 1947 como na : . De fato, foi um talento precoce, iniciou-se como autodidata na pintura em 1943; profissionalizando-se em São Paulo em 1946 e, no ano seguinte ganhou o primeiro prêmio de pintura na histórica exposição do Grupo 19 Pintores. Estudou gravura com Poty Lazarotto (1924-1998) e trabalhou com o pintor Di Cavalcanti (1897-1976) em São Paulo, no ano de 1948. Em 1949 recebeu bolsa de estudos do governo da França para desenvolver-se na técnica da gravura. Mudou-se para Paris onde estudou na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, sendo aluno do gravador Édouard Goerg (1893-1969) e, trabalhou com Cândido Portinari (1903-1962) em Paris, no início da década de 1950, auxiliando na execução de murais. Foi nesta época que João Candido Portinari (1939), filho de Portinari, ainda menino, observou a musicalidade de Mário Gruber e amigos. Segundo me relatou, ele tinha muitas saudades do Brasil, e lembrava-se de Gruber, juntamente com Octavio Ferreira de Araujo (1926- 2015) e Luiz Ventura (1930), que eram assistentes de Portinari, batucavam o saudoso ritmo brasileiro, nas paredes do elevador do hotel em Montparnasse, onde Portinari morava, em Paris. Gruber voltou para o Brasil em 1951, quando fundou em Santos, sua cidade natal, o Clube da Gravura, que mais tarde teria o nome de Clube de Arte. Nos anos 1950, em Santos, Gruber foi politicamente ativo e militante do Partido Comunista, ideologia que passara a apreciar ainda mais no período vivido em Paris. Suas atividades como militante eram ligadas, principalmente, ao porto de Santos, fazendo com que se movimentasse na cidade e arredores. Posteriormente, mostrou, através de sua arte: locais de encontro, de moradia, de lazer dos trabalhadores, fazendo-o como que através dos olhos de um menino que flana entre eles. Um dos primeiros personagens criados por Gruber foi o que chamou de Moleque Cipó, tendo sua origem nos garotos de praia que conviveram com o artista na meninice. Eram de origem humilde, embora Gruber fosse de classe média, sendo a praia o espaço comum democrático, abolindo as diferenças sociais. Boa parte destes meninos era de famílias de retirantes do nordeste brasileiro e descendentes de escravos, como Gruber mostrou nos trabalhos: e . Gruber percebia que alguns desses meninos tinham iniciativa e criatividade para buscar na natureza, formas de atender seus objetivos, usando de flexibilidade, resistência e resiliência típicas da fibra do cipó, daí o personagem Moleque Cipó. O carnaval como festa popular, foi bastante estudado por Gruber e utilizado como razão para que a inventividade do Moleque Cipó permitisse alternativas de fantasias. Estas fantasias estarão muito ligadas à relação do moleque com o seu corpo, a iniciar pela cabeça onde usará chapéus: feitos com: papel de jornal, elementos de lata como: panelas, frigideiras e bules, além de fibras de distintos materiais. A musicalidade é uma característica do moleque e isto transparece através de instrumentos musicais e o movimento corporal no seu dançar, como elementos de expressão e liberdade . No trabalho ilustrado pela , o moleque toca um tamborim improvisado, enquanto parece olhar morro abaixo, tendo o mundo como audiência. Gruber, através do personagem Moleque Cipó, procura estudar a psique do brasileiro e suas mutações através da transformação da política e situação econômico-social tanto no Brasil como no mundo. Da mesma forma, desenvolve uma série de trabalhos mostrando o moleque se divertindo e brincando. A grande maioria das brincadeiras, ocorrendo a céu aberto, relacionam-se às manifestações populares típicas da vida brasileira. Com o passar do tempo, já está formado um pequeno conjunto de músicos, onde se percebe o balanço corporal e adequado confronto musical, com os dois moleques se observando, um frente ao outro, conforme ilustrado pela . A vibração musical é evidente no entusiasmado gingado apresentado pelos moleques, que no interessante efeito de luz e sombra, permite perceber que o semblante parece ter algo de confrontador, conforme ilustrado pela . "É um, é dois, é três, é cem, é mil, na batucada O morro não tem vez Quando derem vez ao morro, toda a cidade vai cantar" A bela composição:"O Morro não tem vez", de Antonio Carlos Jobim/Vinícius de Moraes, parece soar, ao fruirmos do trabalho de Gruber ilustrado pela , que tão bem conseguiu narrar com sua paleta de pintura a alma do brasileiro proletário que pretende ser notado. No ano de 1966, o premiado filme ,curta metragem, "Mário Gruber", dirigido por Rubem Biáfora e musicado por Rogério Duprat tem o trabalho ilustrado pela , detalhadamente, mostrado. Curiosamente o som que acompanha os detalhes é mais grave e atemorizante, possivelmente, pela percepção de que os componentes do bloco carnavalesco tem postura mais intensa. Gruber homenageia o Mestre Delegado da Mangueira, "Hélio Laurindo da Silva"(1921-2012), Mestre-sala da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira nome reconhecidamente ligado à Batucada, através da gravura mostrada na : Mangueira (Delegado),1971 Litogravura, 60 x 31 cm. A musicalidade que passa por Gruber, pode ser apreendida pelo movimento das pernas que os passistas das grandes escolas de samba nos permitem apreciar, como vemos nas , apoiado pelo ritmo contagiante, oferecido pela bateria. No inicio da década de 1960, Gruber pesquisa personagens ligados a Commedia dell'arte do periodo entre os séculos XV a XVIII, incorporando- os à sua arte. Já praticando o Realismo Fantástico, os traz para o nosso tempo, para jogar capoeira, onde podemos intuir o som do berimbaumarcando o movimento corporal dos moleques fantasiados como polichinelos mascarados. Vide Figura 12. No Brasil, a década de 1970 foi marcada pela violência resultante de posições ideologicas antagonicas e extremistas, inclusive, na música. Após o exito na conquista do campeonato mundial de futebol, liderado pela imprensa oficial, o povo cantava: Prá frente Brasil, com os Incríveis e composição de Miguel Gustavo: Noventa milhões em ação/Pra frente Brasil, no meu coração Todos juntos, vamos pra frente Brasil Salve a seleção! De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão! Todos ligados na mesma emoção, tudo é um só coração! Todos juntos vamos pra frente Brasil! Salve a seleção! Todos juntos vamos pra frente Brasil! Salve a seleção! Gol! Por outro lado, um grande contingente acompanhava com Milton Nascimento, a canção dos que haviam deixado o país, cantando: Nada Será como Antes, com os versos: Eu já estou com o pé nessa estrada/ Qualquer dia a gente se vê/Sei que nada será como antes, amanhã Que notícias me dão dos amigos?/Que notícias me dão de você? Alvoroço em meu coração/Amanhã ou depois de amanhã/ Resistindo na boca da noite um gosto de sol/Num domingo qualquer, qualquer hora Ventania em qualquer direção/Sei que nada será como antes amanhã. E o Cantador em Azul, de Gruber, com os olhos tristes e perdidos, observa a bandeira do Brasil, desconstruída, com seus pedaços presos por um fio, como um falso estandarte e se movimentando tortuosamente em ritmo com a voz e a dança. Vide O Rei do Maracatu, dança ao ritmo do som que provém do toque da metralhadora batendo no cordão que segura o crucifixo, no sincretismo religioso pernambucano. Na década de 1980, o Moleque, como Anjo da Renascença Brasileira, série que Gruber havia iniciado ao final da década de 1960, com a violência reduzida frente a promessa de uma lenta abertura política, porém com situação econômica deteriorada, luta para pertencer à burguesia, com gravata e sapatos exuberantes. Nas mãos, segura o agogô pertencente ao Orixá Ogum, usado no candomblé, em uma musicalidade de religiões afro- brasileiras e mesmo nas rodas de capoeira. Aqui é o frevo pernambucano que nos faz o sangue ferver com o ritmo acelerado e contagiante. Ainda que o Fantasiado aparente estar vestido para a Veneza da Commedia dell'arte e que o agachar e lançar a perna esquerda à frente possa, também, ser executado por um cossaco russo - no campo dos sentidos, o que se está a escutar, é o frevo! Figura 16 Até o final da vida, Gruber se manteve, artisticamente, ativo e desenvolvendo trabalhos juntando os vários personagens que fez surgir ao longo de sua carreira, como os moleques que com o tempo foram se convertendo em fantasiados, muitas vezes sustentando estandartes, símbolo de comunicação de suas reflexões e preocupações. Ao ver a imagem de , me ocorre, a inspiração de Gruber e, possivelmente, sentir o próprio Carlos Lyra cantar: Marcha da Quarta-Feira de Cinzas, composição que vez com Vinicius de Moraes (Vide ): Acabou nosso carnaval/ Ninguém ouve cantar canções/ Ninguém passa mais/ Brincando feliz/ E nos corações/ Saudades e cinzas/ Foi o que restou / Pelas ruas o que se vê/ É uma gente que nem se vê/ Que nem se sorri/ Se beija e se abraça/E sai caminhando/Dançando e cantando/Cantigas de amor. Juntos: Astolfos astronautas, Anjos da Renascença Brasileira, Engravatados e circenses pilhas humanas formam um bloco que, no cenário da Areia Branca, liberam uma fantasia que o artista foi montando em mais de sessenta anos de história da política brasileira e internacional. São sonhos catados no inconsciente. E com muita música. Vide Gruber aprecia e cita a musicalidade e seu efeito, desde 1949, quando em Paris, estudava gravura em metal em razão de bolsa que lhe foi oferecida pelo governo da França, e visitava boates frequentadas pelos existencialistas "achando bonito ver o pessoal dançar o bebop, uma dança frenética que puxava a mulher por baixo depois passava por cima, uma loucura, uma acrobacia de uma beleza"3 ou quando escutava Juliette Gréco cantar Les Fuilles Mortes. As primeiras manifestações da musicalidade brasileira, nos carnavais de rua, nas praias, nos morros e, principalmente, na região da Areia Branca que é o cenário que eternizará, com a sua arte que tem inicio, com a gravura em preto e branco e pinturas coloridas a óleo e ao final, foram produzidas com tinta acrílica de cor amarelo ouro. 3 Correia, Mario Gruber,depoimento (17/01/1996) Entrevistadores:Dr. David Capistrano Filho - Prefeito de Santos;Gilberto Mendes - Compositor e Roberto Peres - Crítico de Teatro - gravado no Teatro Rosinha Mastrângelo, em Santos, para o Projeto Encontros. Gruber tinha, também, suas contradições questionando seus filhos Gregório e Paulo Fernando por apreciarem a música dos Beatles, mas ele, por sua vez, perenizando o frenético ambiente do jazz americano, quando em visita Nova Iorque, através de SoHo 18-3-79 Discoteca New York, 1979 Aquarela, 39 cm x 52 cm . O carnaval, os fantasiados, os passistas, os estandartes fizeram parte da arte do artista desde a década de 1950 até a primeira do século 21. O estandarte foi, inclusive, utilizado por Gruber para anunciar que o seu fim estava próximo, mostrando uma figura que fechava os olhos fatigados e estava pronta para o descanso. Vide Coleção Privada Figura 1 - Mário Gruber ST (moleque), 1947 Óleo sobre tela, 40 cm x 30 cm Figura 2 - Mário Gruber Menino cipó, c.1952 Técnica mista s/tela, 30 x 20cm Coleção Privada Coleção Privada Figura 3 - Mário Gruber Retirantes, 1949 Gravura em metal 30/50, 13 x 17,5 Coleção Privada Figura 4 - Mário Gruber Navio Negreiro,1989 Óleo sobre tela, 60 x 73 cm Coleção Privada Figura 5 - Mário Gruber Músicos, 1964 Óleo sobre tela, 80 x 100 cm Figura 6 - Mário Gruber Fantasiados, 1960 Óleo sobre tela, 50 X 60 cm Figura 7 - Mário Gruber Carnaval, 1963 Óleo s/tela, 65 x 92 cm Coleção Privada Coleção Privada Coleção Privada Figura 8 - Mário Gruber Carnaval, 1964m Óleo sobre tela, 65 x 74 cm Figura 9 - Mário Gruber Mangueira (Delegado), 1971 Litogravura, 60 x 31 Figuras 10 e 11 - Mário Gruber Fantasiado (Camisa verde), 1981 - Óleo sobre tela colado em madeira, 140 x 120 cm (cid) Coleção Privada Coleção Privada Coleção Privada Figura 12 - Mário Gruber Fantasiados (Polichinelos), 1965 Óleo sobre tela, 92 x 80 cm Figura 13 - Mário Gruber Cantador em Azul, 1973 Óleo sobre tela, 115 x 90 Figura 14 - Mário Gruber Rei do Maracatu, 1973 Óleo sobre tela, 115 x 90 cm Figura 15 - Mário Gruber Anjo da Renascença Brasileira, 1980 Óleo sobre tela, 60 x 50 cm Coleção Privada Coleção Privada Coleção Privada Coleção Privada Figura 16 - Mário Gruber Fantasiado, 1991 - Óleo sobre tela, 50 x 46 cm Figura 17 - Mário Gruber Fantasiados (em preto e branco), 2008 Óleo sobre tela, 120 x 120 Figura 16 - Mário Gruber Carnaval, 1994 Óleo sobre tela, 78 x 112 cm Coleção Privada Coleção Privada Coleção Privada Figura 18 - Mário Gruber SoHo 18-3-79 Discoteca New York, 1979 Aquarela, 39 cm x 52 c Figura 19 - Mário Gruber Estandarte em amarelo, 2009 Acrílica sobre tela, 80 x 60 cm Coleção Privada Coleção Privada ALMEIDA, Paulo Mendes de. DE ANITA AO MUSEU. EDITORA PERSPECTIVA, Coleção DEBATES AMARAL, ARACY A. Arte para que? A preocupação social na arte brasileira 1930-1970 . 2003 BIAFORA, Rubem. Documentário curta metragem: Mário Gruber.1965 CORREIA, Mario Gruber. Depoimento gravado em vídeo no Teatro Rosinha Mastrângelo, em Santos, para o Projeto Encontros em 17/01/1996. Entrevistadores: Dr. David Capistrano Filho (Prefeito de Santos), Gilberto Mendes (Compositor) e Roberto Peres (Crítico de Teatro). https://www.youtube.com/watch?v=_nuL9q-19xU CORREIA, Mario Gruber. Entrevistas com Mário Gruber realizadas em 2008. São Paulo CORREIA, Paulo Fernando. Entrevista sobre Mário Gruber.2017 São Paulo. GRUBER, Gregório. Entrevista sobre Mário Gruber.2017 São Paulo. GUSTAVO, Miguel. Pra Frente Brasil (Copa de 1970) - Hinos de Futebol. internet Sitio Letras.MUS.BR.26/09/2017 JOBIM, Tom. A Arte de Tom Jobim. Internet.sitio letras.mus.br. em 21/08/2017 MORAES, Vinicius de . Marcha da Quarta Feira de Cinzas.Sitio Letras.MUS.BR.26/09/2017 NASCIMENTO, Milton. Nada será como antes. Internet sitio m.vagalume.com.br .26/09/2017 PORTINARI, João Candido. Entrevista sobre Mário Gruber para Paulo M. Torres Filho. São Paulo. setembro 2012. Seminário Colecionismo no Brasil no Século XXI no Auditório Ibirapuera.
Compartilhar