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EA D 3 A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem 1. OBJETIVOS • Compreender e identificar os conceitos de fala, língua e linguagem. • Compreender e demonstar o processo normal de aquisição da linguagem. • Entender e caracterizar o processo de aquisição da língua de sinais pelas crianças surdas. • Entender e reconhecer a dinâmica familiar do surdo. • Compreender e relacionar as implicações que a surdez acarreta no sistema familiar e a importância deste no pro- cesso educacional da criança surda. • Conhecer e identificar modelos de intervenção com a criança surda. 2. CONTEÚDOS • Fala, língua e linguagem. • Aquisição normal da linguagem. © Língua Brasileira de Sinais72 • Aquisição da língua de sinais. • Dinâmica familiar. • As implicações da surdez no sistema familiar. • Modelos de intervenção na surdez. 3. ORIENTAÇÃO PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Releia os trechos que considerar mais importantes ou com os quais tiver alguma dificuldade. 2) Para que você tenha um bom desenvolvimento no estu- do deste Caderno de Referência de Conteúdo e uma boa compreensão dos conceitos abordados, é fundamental interagir com seu tutor e colegas na Sala de Aula Virtu- al, sanando suas dúvidas e levantando novos questiona- mentos acerca desta temática. 3) Não deixe de realizar a leitura do texto complementar apresentado ao final desta unidade. Esta leitura irá aju- dá-lo a compreender as relações entre a surdez e o sis- tema familiar. 4) Ao final desta unidade, você encontrará algumas ques- tões autoavaliativas. Responda todas as questões e, em caso de dúvidas, entre em contato com o seu tutor e com os seus colegas na Sala de Aula Virtual para solu- cioná-las. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na unidade anterior, você estudou os aspectos relacionados à audição normal e aos problemas do aparelho auditivo, enfocan- do as implicações que a perda de audição pode acarretar para ao processo educacional da criança surda. Agora, estudaremos as consequências que a surdez pode proporcionar ao desenvolvimento cognitivo, linguístico e afetivo Claretiano - Centro Universitário 73© U3 - A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem do surdo, bem como suas consequências para todo o sistema fami- liar. Discutiremos, também, a importância da língua de sinais para um desenvolvimento adequado da criança surda e a necessidade do envolvimento da família no processo educacional dessa crian- ça. Finalizando, abordaremos as questões relacionadas à língua de sinais e à educação das crianças surdas. Temos certeza de que os conteúdos que iremos estudar de agora em diante o ajudarão a compreender as especificidades lin- guísticas e educacionais dos surdos. 5. FALA, LÍNGUA E LINGUAGEM A audição é o principal canal pelo qual a linguagem e a fala são adquiridas. Assim, a perda da audição, principalmente, no pe- ríodo pré-verbal, ou seja, antes da aquisição e do desenvolvimen- to da linguagem e da fala, pode trazer consequências desastrosas para a criança. A manifestação mais evidente da surdez é a ausência da fala, pois a deficiência auditiva dificulta ou impede o acesso da crian- ça à linguagem oral. A maioria dos surdos apresenta um atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem, e, muitas vezes, não consegue adquirir uma língua. No entanto, a ausência do domínio de uma língua pode causar um prejuízo em todo o processo de aprendizagem. Antes de falarmos sobre o desenvolvimento da criança sur- da, é fundamental apresentarmos alguns esclarecimentos sobre os conceitos de "fala", de "língua" e de "linguagem". A fala, segundo Goldfeld (1997), é a materialização da lín- gua na variante fônica, sendo realizada através de um processo de articulação de sons. Refere-se à linguagem em ação, à produção linguística do falante no discurso. Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce © Língua Brasileira de Sinais74 Já a língua, conforme Fernandes (2003), é definida como sis- tema abstrato de regras gramaticais. Refere-se a um tipo dentre os diversos meios de comunicação e, por isso, é considerado um con- ceito mais restrito quando comparado ao conceito de linguagem. A linguagem, por sua vez, caracteriza-se por qualquer e todo sistema de signos, que podem ser gestos, sinais, sons, símbolos ou palavras, que são utilizadas na comunicação, para representar ideias, significados e pensamento. Além da comunicação, a linguagem pos- sibilita ao ser humano, por exemplo, estruturar seu pensamento, traduzir seus sentimentos e registrar seu conhecimento adquirido. Para Piaget (1971), a linguagem é uma forma de represen- tação e consiste em um sistema de significações no qual a pala- vra funciona como significante, porque permite ao sujeito evocar verbalmente objetos e acontecimentos ausentes. Sendo assim, a linguagem é consequência do desenvolvimento do pensamento. Na concepção de Vygotsky, entretanto, a linguagem é um instrumento de vital importância no desenvolvimento social do sujeito. É um fio condutor capaz de transformar decisivamente os rumos de nossa atividade. Quando aprendemos a linguagem espe- cífica do nosso meio sociocultural, transformamos radicalmente os rumos do nosso próprio desenvolvimento. Segundo esse autor, a função da linguagem é a de comuni- cação, expressão e compreensão, e está estreitamente combinada com o pensamento. Vygotsky afirma, ainda, que a comunicação é uma espécie de função básica, porque permite a interação social e, ao mesmo tempo, organiza o pensamento. Para Vygotsky (1991), a construção da linguagem e da apren- dizagem acontece mediante a vivência da criança com seu meio, as quais, por sua vez, ocorrem pelas interações que a criança faz com adultos e outras crianças. Trataremos, agora, de como se processa o desenvolvimento normal da linguagem na criança. Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Claretiano - Centro Universitário 75© U3 - A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem 6. DESENVOLVIMENTO NORMAL DA LINGUAGEM NA CRIANÇA O processo de aprendizagem do bebê inicia-se logo após seu nascimento, quando começa a explorar o ambiente utilizando os sentidos (DEVINE, 1993). O início da comunicação humana nada mais é do que o pró- prio choro do bebê, pois, para a satisfação de suas necessidades básicas, ele chora e esse choro é interpretado pela mãe, atribuin- do a este uma função comunicativa. Conforme vai crescendo, a criança aprenderá a conversar por meio do murmúrio, do balbucio e da imitação das vozes que ouve. Nesse sentido, o papel tanto da família quanto da escola é fundamental, pois se a criança aprende pelas suas vivências, é ou- vindo a conversa dos adultos e de crianças mais velhas que ela poderá, com o tempo, desenvolver sua linguagem. Em todas as crianças ouvintes, a linguagem aparece em mar- cos cronológicos muito semelhantes. A aquisição da linguagem e a comunicação desenvolvem-se segundo etapas de ordem constan- te, ainda que o ritmo de progressão possa variar de uma criança para outra. Essa variação pode ser, segundo o processo normal de desenvolvimento, de seis meses aproximadamente. Por conseguinte, a criança que convive em ambientes onde está exposta à fala terá um vocabulário mais rico e seu desenvolvi- mento poderá ser mais rápido. O uso de palavras para a comunicação, geralmente, tem início entre os 12 e os 24 meses de idade, sendo que 18 meses correspondem à idademédia de tal aquisição. Entretanto, antes do aparecimento das primeiras palavras, observa-se o desenvolvi- mento de um complexo sistema de comunicação denominado não verbal, com intencionalidade cada vez mais bem definida, e que Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce © Língua Brasileira de Sinais76 envolve, por exemplo, a expressividade corporal, os movimentos, os gestos, os olhares, as vocalizações e o choro. Portanto, mesmo antes de adquirir linguagem verbal, o bebê já pode possuir uma experiência muito grande em comunicação. Com dois meses de idade, o bebê distingue a voz humana de outros sons, sendo capaz de distinguir a voz materna. Durante os três primeiros meses de vida, o bebê já produz murmúrios e, após um melhor controle dos órgãos fonoarticulatórios, inicia o balbu- cio, o qual nada mais é do que a repetição de sílabas sem significa- do, funcionando como um treino articulatório (DEVINE, 1993). Dos sete aos nove meses, o balbuciar transforma-se e apre- senta uma variedade maior de sons e inflexões; o bebê começa a adaptar suas vocalizações, que antes aconteciam aleatoriamente; descobre que sons diferentes significam coisas diferentes, e o bal- buciar o ajuda a se preparar para falar palavras reais. A primeira palavra ocorre entre os dez e 14 meses de idade. Aos 18 meses, sua fala expressiva possui entre dez e 20 palavras concretas e, aos dois anos de idade, poderá estar usando cerca de 200 palavras. Por volta dos quatros anos, é capaz de pronunciar adequada- mente praticamente todos os fonemas de sua língua. Sua lingua- gem está completa, devendo ser apenas aprimorada. No entanto, para que a criança se desenvolva de maneira adequada, vários fatores devem ser considerados, como suas con- dições físicas ou orgânicas e a integridade do sistema nervoso e de audição. Para adquirir a linguagem dentro dos padrões de normali- dade, é fundamental que a criança possa ouvir sons e vozes. Para isso, é necessário que as funções auditivas estejam íntegras. Quan- do a criança possui uma deficiência auditiva, esse processo acaba não se realizando e a aquisição da língua oral, consequentemente, não acontece ou fica seriamente prejudicada. Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Claretiano - Centro Universitário 77© U3 - A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem Considerando tais pré-requisitos para o adequado desen- volvimento da linguagem da criança, como se processa, então, o desenvolvimento da linguagem de uma criança surda que não tem acesso à língua oral? Nesse caso, o acesso da criança surda à linguagem acontece por meio de outra modalidade linguística: a língua de sinais. É jus- tamente a exposição precoce da criança surda a uma modalidade linguística que utiliza um canal de comunicação diferente do oral auditivo que possibilita a ela a aquisição da linguagem em período semelhante ao que acontece com as crianças ouvintes. Segundo Souza (1998), a exposição da criança surda à Lín- gua Brasileira de Sinais (Libras) desde o início da vida garantiria a aquisição de uma língua verdadeira e, consequentemente, um funcionamento simbólico-cognitivo adequado. 7. AQUISIÇÃO DA LÍNGUA DE SINAIS POR CRIANÇAS SURDAS Praticamente, não existem diferenças entre o desenvolvimento linguístico da criança ouvinte e da criança surda durante os seis primei- ros meses de vida. Essa semelhança no desenvolvimento de surdos e ou- vintes prejudica, inclusive, o próprio processo de diagnóstico da surdez. Na fase do balbucio, como a criança surda não capta os estí- mulos auditivos do ambiente, ela prestará maior atenção ao meio visual do que a criança ouvinte e começará, desde pequena, a cap- tar indícios sutis no rosto humano que servirão de pistas para in- terpretar o léxico de sua língua, a língua de sinais. Se forem oferecidas às crianças surdas condições adequadas para adquirir a Libras, elas começarão a prestar atenção a esses detalhes, pois eles terão significado e sentido na comunicação. Antes de começarem a produzir sinais ou a sinalizarem como atividade comunicativa, algumas crianças surdas, quando expostas Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce © Língua Brasileira de Sinais78 à língua de sinais, atravessam uma fase de aquisição conhecida como balbucio na língua falada e como balbucio manual, mabbling ou balbucio em sinais na Libras. Nesta fase, as crianças surdas fi- lhas de pais surdos, ou expostas desde muito cedo à língua de si- nais, parecem refinar formatos de mãos próprios, movimentos e traços de localização que serão relembrados, um pouco mais tar- de, em seus primeiros sinais verdadeiros (CHEEK et al., 2001 apud MORGAN, 2008). O balbucio manual ocorre aproximadamente na mesma ida- de do balbucio da fala, entre 6 e 12 meses, e foi documentado em crianças adquirindo a língua de sinais de vários países, inclusive a do Brasil. Em um estudo recente sobre balbucio de sinais em uma criança exposta à Libras, Karnopp (2002) mostrou que o nível de balbucio de sinais diminuiu quando a criança começou a produ- zir sinais mais lexicalizados. O balbucio, inicialmente, apresentou uma alta porcentagem de produção manual (54%), mas diminuiu com a idade, até desaparecer com 2,1 anos (CHEEK et al., 2001 apud MORGAN, 2008). Em crianças surdas filhas de pais ouvintes essa situação, ge- ralmente, é bem diferente, pois elas normalmente não recebem os estímulos necessários ao seu desenvolvimento linguístico, uma vez que não encontram interlocutores de língua de sinais. Daí a importância do contato entre o bebê surdo e uma pes- soa surda usuária de Libras. Estudos comprovaram que o bebê surdo presta mais atenção na mensagem em Libras emitida por pessoas surdas do que por pessoas ouvintes, pois a língua de sinais produzida por ouvintes possui menos detalhes, principalmente em relação às expressões não manuais ou às expressões faciais e cor- porais. A ausência de um input linguístico para as crianças surdas filhas de surdos acaba acarretando alterações no desenvolvimento cognitivo, social e linguístico. Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Claretiano - Centro Universitário 79© U3 - A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem Aos dois anos de idade, o surdo filho de pais surdos (SFPS) elabora as primeiras combinações de sinais, ou seja, começa a ela- borar sentenças com um mínimo de complexidade. 8. SFPS (SURDO FILHO DE PAIS SURDOS) Dos dois anos e meio aos três anos, a criança surda filha de pais também surdos demonstra múltiplas combinações de sinais e expansão do vocabulário. Paralelamente, aos dois anos, essa crian- ça pode realizar as configurações de mãos com 25% da complexi- dade total do sistema. Em idade semelhante, as crianças ouvintes pronunciam 25% dos fonemas. Aos três anos, ela pode realizar configurações com 75% de complexidade enquanto os ouvintes pronunciam 75% dos fonemas (LUJÁN, 1993). Fonema: menor unidade sonora de uma língua que estabelece contraste de significado para diferenciar palavras. Por exemplo, a diferença entre as palavras pato e mato, quando faladas, está apenas no primeiro fonema: P na primeira e M na segunda. A partir dos três anos e meio, a criança SFPS realiza concor- dância verbal durante a realização da língua de sinais, o que sig- nifica dizer que os sinais se tornam mais flexionados, mesmo que ainda de maneira inconsistente. Aos cinco ou seis anos, a criançaapresenta consistência na flexão verbal e representa, em sinais, os pronomes referenciais não presentes. Aos sete anos, a criança surda que foi estimulada em língua de sinais tem domínio completo da concordância verbal, bem como dos pronomes referenciais. Aproximadamente aos oito anos, essa criança utiliza os classificadores em língua de sinais (plural e gêne- ro) e verbos espaciais com certo domínio, embora ainda apresente erros na forma complexa. Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce © Língua Brasileira de Sinais80 Na Libras, classificadores são configurações de mãos que, rela- cionadas a objeto, pessoa ou animal, funcionam como marcadores de concordância. A criança surda que encontrou um ambiente linguístico ade- quado ao seu desenvolvimento, aos nove ou dez anos demonstra domínio da sintaxe da língua de sinais ao fazer uso correto de clas- sificadores e de verbos. Após essas observações sobre o processo de aquisição da lín- gua de sinais por crianças surdas, fica evidente a importância de ex- por as crianças surdas desde o nascimento à língua de sinais para que elas possam adquirir uma língua e desenvolver a linguagem de modo compatível ao das crianças ouvintes expostas à língua falada. Mas como será que uma família ouvinte reage à chegada de uma criança surda? Quais podem ser os sentimentos dos familia- res após o diagnóstico da surdez? E como a família lida com essa nova realidade? Trataremos, agora, dessas questões. 9. FAMÍLIA A família representa o primeiro núcleo social do qual o ser humano participa. Os valores implícitos e explícitos da família são bases para as experiências sociais de seus filhos (DORZIAT, 1999). Nesse sentido, a família é, antes de tudo, o espaço em que ocor- rem os primeiros aprendizados da criança. Para Minuchin (1988), a família é um sistema em constante transformação ou um sistema que se adapta às diferentes exigên- cias das diversas fases do seu desenvolvimento. Vista como um todo coeso, a família é inseparável e interdependente, estando todas as suas partes relacionadas. Portanto, cada comportamento ou mudan- ça de comportamento em um dos membros afeta todos os outros. Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Claretiano - Centro Universitário 81© U3 - A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem Amiralian (1986) descreve a família como um todo orgânico que se desenvolve pelo processo dinâmico de suas vivências e se estrutura a partir de influências externas e internas. Por influências externas a autora entende, por exemplo, o status social, a condi- ção econômica e as crises financeiras. Como influências familiares internas, que podem afetar a estruturação da família, a autora cita, por exemplo, a doenças de um dos membros e o nascimento de um filho. A chegada de uma criança, para os pais ou responsáveis, gera expectativa, normalmente, acompanhada de fantasias, emoções e projeções futuras, pois a família transfere para essa criança to- dos os seus sonhos, ideais, faltas e vivências passadas (MARQUES, 1995). No entanto, quando os pais ou responsáveis descobrem que a criança real não corresponde à idealizada, veem todas as suas expectativas se desfazerem. Terrasi (1993) afirma que a chegada de uma criança com al- gum tipo de deficiência é um acontecimento muito significativo para a família, pois destrói as fantasias familiares, substituindo os sonhos por dúvidas e incertezas. 10. CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA: O SENTIMENTO DOS FAMILIARES A comprovação da deficiência de uma criança provoca uma situação de crise na família (NUNES, 1991). Os pais ou responsáveis relutam em aceitar a criança que têm nos braços como diferente e, por isso, seus sentimentos hesitam en- tre a esperança de que a situação não seja o que realmente aparen- ta ser e o discernimento assustador de que alguma coisa realmente esteja errada (AMIRALIAN, 1986; TERRASI, 1993). Esse conflito pa- rece ter fim com a confirmação do diagnóstico, que, geralmente, desencadeia uma crise, alterando toda a dinâmica familiar. Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce © Língua Brasileira de Sinais82 A família, até chegar à aceitação da criança com deficiência, pas- sa por um longo período de superação. Nesse processo, os familiares convivem com sentimentos de, por exemplo, choque, negação, raiva, revolta e rejeição, até a construção de um ambiente familiar mais pre- parado para incluir essa criança como um membro da família. Para Buscaglia (1997) a descoberta da deficiência da criança costuma vir seguida de sentimentos naturais de medo, dor, de- sapontamento, culpa, confusão mental e uma sensação geral de incapacidade e impotência. Encontramos na literatura a descrição de inúmeras atitudes familiares diante do fato de se ter uma criança com deficiência no seu grupo familiar, havendo muitos sentimentos envolvidos, como frustração, conflitos internos, culpa, negação, vergonha, rejeição e depressão, frequentemente vividos pelos pais ou responsáveis e demais integrantes mais próximos do sistema familiar, como os ir- mãos. As atitudes de cada membro da família, frente ao problema, dependem da maturidade com que vem resolvendo outras ques- tões e conflitos. Segundo Luterman (1985), o tempo que cada família leva para viver cada uma dessas fases e o restabelecimento do equilíbrio fami- liar acontece de maneira bastante variada, e irá depender dos recur- sos psicológicos que a família tem disponível para superar os fatos. O tipo de deficiência parece não interferir nas crises e nas dificuldades familiares ocasionadas pela chegada de uma criança com necessidades especiais (ARAÚJO, 2001), sendo os conflitos emocionais vivenciados por essas famílias muito semelhantes, (TERRASI, 1993). Omote (1980) afirma que quanto mais cedo os pais tomarem conhecimento da deficiência do filho, mais rapidamente a família, ao encontrar orientação adequada, poderá se ajustar à sua nova si- tuação. Entretanto, a confirmação do diagnóstico desencadeia nos familiares sentimentos de tristeza e de luto pela perda da criança idealizada (TERRASI, 1993). Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Claretiano - Centro Universitário 83© U3 - A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem No caso de pais biológicos, esses buscam respostas para seus questionamentos, e, por desconhecerem as verdadeiras causas do problema que aflige a criança, passam a acreditar que estão re- lacionadas a condutas omitidas ou praticadas durante a gravidez ou durante o nascimento da criança (BUSCAGLIA, 1997). Durante todo esse conflito, podem chegar a atribuir a causa do problema a parentes mais próximos, culpando-os de serem responsáveis por heranças genéticas imperfeitas (TERRASI, 1993). As etapas iniciais de descoberta da surdez, assim como as de qualquer outra deficiência, são para os pais ou responsáveis perí- odos crescentes de dúvidas e ansiedade (LUTERMAN, 1985). Uma vez confirmado o diagnóstico, as reações parecem seguir, segundo o autor, um padrão universal de crise, caracterizado por choque emocional, aflição ativa, negação, aceitação e ação construtiva. Os sentimentos de negação, vulnerabilidade, ódio, confusão e inadequação são os mais observados nos pais biológicos de crianças surdas após a confirmação do diagnóstico de surdez (BEVILACQUA; FORMIGONI, 2000). As autoras destacam, ainda, que tais sentimentos passam por estágios de negação, resistência, afirmação e aceitação. 11. O PAPEL DA FAMÍLIA NO DESENVOLVIMENTO LINGUÍSTICO DA CRIANÇA SURDA Com relação ao contato precoce da criança surda com a lín- gua de sinais, Souza (1998) afirma que osprimeiros anos de vida de uma criança é uma fase crucial para a aquisição da linguagem. Nesse sentido, sua exposição à língua de sinais durante esse perí- odo, tida como essencial ao seu desenvolvimento, possibilitaria a aquisição da linguagem e ativaria sua competência linguística. No entanto, o que normalmente acontece é as crianças surdas entrarem em contato muito tardiamente com a língua de sinais, pois cerca de 95% dessas crianças estão inseridas em famílias ouvintes que desconhecem ou rejeitam a língua de sinais e a cultura surda. Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce © Língua Brasileira de Sinais84 Para que haja contato precoce entre a criança surda e a lín- gua de sinais deve-se criar condições para que a família possa se co- municar com seu membro surdo, impedindo que este, por sua vez, sinta-se um estrangeiro dentro do seu próprio lar (DORZIAT, 1999). Por vezes, a aceitação da surdez e do uso da língua de sinais na comunicação com a criança surda está relacionada à aceitação deste filho em sua diferença. Pais ou responsáveis ouvintes, ge- ralmente, desejam que a criança desenvolva a fala, mascarando a surdez. Assim, as respostas dos familiares ao nascimento de uma criança surda, geralmente, dependem da condição de serem sur- dos ou ouvintes (HOFFMEISTER, 1996). Dados da literatura apontam que crianças surdas criadas por pais ou responsáveis ouvintes não têm acesso à língua de sinais no ambiente familiar e acabam mergulhadas em uma língua que não é natural para elas. Contudo, crianças surdas criadas por pais ou responsáveis surdos são expostas precocemente à língua de sinais, dominando-a de forma natural e confortável. Posteriormente, usam a língua de sinais como sua primeira língua e se identificam como membros da comunidade surda (BEHARES, 1996; STELLING, 1999). Para Skliar (1997), a comunicação entre familiares e crianças sur- das assemelha-se à comunicação entre familiares e crianças ouvintes, no sentido de que possibilita a imersão cultural da criança na comu- nidade em que está inserida. Todavia, a comunicação entre familiares ouvintes e crianças surdas torna-se falha dependendo do tipo de in- formação dada aos pais ou responsáveis por ocasião do diagnóstico e das alterações no relacionamento entre os membros da família. Sendo assim, Skliar (1997) sugere a necessidade dos pais ou responsáveis ouvintes manterem contato com a comunidade sur- da e de os serviços especiais se organizarem de forma a incluir crianças e adultos surdos, pois somente o acesso à língua de sinais, por meio de interações sociais com pessoas surdas, pode garantir uma comunicação mais apropriada ao desenvolvimento cognitivo e linguístico das crianças surdas (DIAS et al., 2001). Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Claretiano - Centro Universitário 85© U3 - A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem A criança surda apresenta grande dificuldade para perceber os sons e adquirir fala e linguagem; os quais, de acordo com algu- mas teorias, se desenvolvem a partir da interação com o adulto. No caso de crianças surdas criadas por pais ou responsáveis ouvin- tes, contudo, o acesso "natural" à fala, por meio de diálogos, não é uma realidade (BEHARES, 1996). Sacks (1998, p. 78) lembra o quanto é importante o aprendi- zado da língua, porém a família deve participar desse processo de aprendizagem, principalmente se os pais ou responsáveis forem ouvintes: Não é só a língua que deve ser introduzida, mas também o pen- samento. Caso contrário, a criança permanecerá inapelavelmente presa a um mundo concreto e perceptivo [...] Esse perigo é muito maior quando a criança é surda porque os pais (ouvintes) talvez não saibam como se dirigir à criança e, se chegarem a se comunicar, podem usar formas rudimentares de diálogos e linguagens que não favoreçam o progresso da mente da criança e, de fato, impeçam seu avanço. Segundo Goldfeld (1997), a aquisição natural da língua de sinais, isto é, aquisição decorrente do processo de interação con- textualizada com o usuário fluente dessa língua, pela criança sur- da em idade semelhante à qual as crianças ouvintes adquirem a língua na modalidade oral evita o atraso de linguagem e todas as suas consequências quanto à percepção, à generalização, à forma- ção de conceitos, à atenção, à memória, à evolução das brincadei- ras e à educação escolar. Para evitar a instalação de um atraso de linguagem, comum entre os surdos, ou para se minimizar as suas consequências, quando ele já estiver instalado, é necessário que a criança surda seja exposta à língua de sinais o mais cedo possível. Dorziat (1999) relaciona a língua de sinais com o desenvolvi- mento global do surdo, salientando que muitos de seus problemas emocionais (nervosismo, insegurança, autorrejeição, entre outros) podem ser decorrentes do bloqueio na comunicação ou de uma comunicação truncada. Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce © Língua Brasileira de Sinais86 É nesse sentido que Lima, Maia e Distler (1999) têm atua- do no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), buscando compreender as dificuldades e os problemas enfrentados pelas fa- mílias de alunos surdos e procurando orientá-las, sensibilizá-las, estimulá-las e instrumentalizá-las a fim de viabilizar relações mais satisfatórias entre os pais ou responsáveis e as crianças. Essas autoras observaram que durante os atendimentos, os adolescentes encaminhados à Divisão Sócio-psicopedagógica (DI- SOP) com a queixa de distúrbios de comportamento apresentavam, na grande maioria das vezes, um afastamento afetivo em relação à família. Segundo elas, esse afastamento ocorria principalmente devido à falta de comunicação pelo uso de línguas diferentes e aos pais ou responsáveis não aceitarem a surdez desses adolescentes e manterem resistência em aprender a língua de sinais. Lima, Maia e Distler (1999) afirmam que esses adolescentes, na maioria das vezes, sentiam-se inseguros do amor de seus pais ou responsáveis, desvalorizados e isolados no núcleo familiar. Essa dinâmica familiar conflitante proporcionava aos adolescentes sur- dos o envolvimento com drogas, o abandono de casa, a gravidez indesejada e o envolvimento em atos antissociais. Quando compa- rados com a população em geral, essas dificuldades se apresenta- vam com maior frequência e intensidade. Entretanto, os SFPS apresentam-se muito mais estruturados afetiva e emocionalmente, pois a comunicação na família aconte- ce naturalmente, não parecendo existir conflitos emocionais pro- venientes da aceitação da surdez. Por razões como as descritas até aqui é que o trabalho edu- cacional não deve se limitar ao ambiente escolar, mas também se desenvolver junto às famílias, fornecendo condições para elas se comunicarem, efetivamente, com seu integrante surdo. Ronny Realce Claretiano - Centro Universitário 87© U3 - A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem 12. MODELO EDUCACIONAL Nesse sentido, Hoffmeister (1999) descreve um modelo inicial de intervenção com base no lar, realizado com famílias de crianças surdas, focando três pontos: os pais ou responsáveis pelas crianças surdas; as próprias crianças; e o grupo de apoio aos pais ou responsáveis. O trabalho com pais ou responsáveis surdos em uma pers- pectiva bilíngue, segundo o autor, deve ser instituído para que pos- sam se conhecer e analisar questões a respeito da educação das crianças com outros pais ou responsáveis que possuem as mesmas vivências, além de, também, aprenderem a língua de sinais. O ob- jetivo desse trabalho deve ser o de promover interaçõesentre os responsáveis por crianças surdas com adultos surdos capacitados a lhes ensinar e a ensinar as crianças surdas. No Brasil, trabalhos como o desenvolvido pelo Instituto Na- cional de Educação de Surdos (INES), no Rio de Janeiro, e relatado por Lima, Maia e Distler (1999) são fundamentais, uma vez que se propõem a compreender as dificuldades e as problemáticas que en- volvem as famílias de crianças surdas com o objetivo de orientá-las, estimulá-las e instrumentalizá-las para que alcancem relações mais satisfatórias com seus integrantes surdos. 13. LEITURA COMPLEMENTAR Apresentamos a seguir fragmentos do artigo Mães ouvintes com fi- lhos surdos: concepção de surdez e escolha da modalidade de linguagem, das pesquisadoras Angélica Bronzatto de Paiva e Silva; Maria Cristina da Cunha Pereira e Maria de Lurdes Zanolli (ver Tópico E-Referências). O texto descreve uma pesquisa realizada no Centro de Estu- dos e Pesquisas em Reabilitação (CEPRE/FCM/Unicamp) que teve por objetivo analisar a concepção que mães ouvintes com filhos surdos tinham sobre surdez e relacioná-la com a modalidade de linguagem utilizada pela mãe e pela criança. Ronny Realce Ronny Realce Ronny Realce © Língua Brasileira de Sinais88 Para a concretização da pesquisa, as autoras entrevistaram 10 mães de crianças surdas, sendo cinco pré-escolares e cinco es- colares. Analisaram os dados referentes às categorias "concepção de surdez" e "escolha da modalidade de linguagem" e, dessa aná- lise, perceberam que uma das mães parecia ver a surdez como do- ença, outra como uma diferença e as outras mães encontravam-se entre as duas posições. Quanto à escolha da modalidade de linguagem, cinco entre- vistadas relataram que seus filhos usavam predominantemente os sinais; quatro relataram que as crianças utilizavam a fala e os si- nais; e uma relatou que a criança usava somente a linguagem oral para se comunicar. De acordo com a pesquisa, a criança cuja mãe concebia a surdez como doença procurava se comunicar oralmen- te, enquanto aquela cuja mãe via a surdez como diferença fazia uso de sinais e de fala para se comunicar. A fim de complementar nossos estudos sobre as questões que relacionam surdez e família, vejamos a descrição dos dados encontra- dos pelas autoras sobre a concepção de surdez e da pessoa surda: Mães ouvintes com filhos surdos: concepção de surdez e escolha da modalidade de linguagem –––––––––––––––––––– Com o objetivo de possibilitar ao leitor articular a concepção que cada mãe en- trevistada tem a respeito da surdez e da pessoa surda, optou-se por juntar os dados relativos aos dois temas para cada mãe e organizá-los de acordo com as semelhanças ou as diferenças que os depoimentos apresentam. Em relação à concepção de surdez, embora não se possa afirmar que as mães tenham conhecimento sobre as diferentes concepções geralmente atribuídas à surdez, é possível depreender, em suas entrevistas, ideias que as identificam com as concepções clínico-terapêutica ou socioantropológica. Na análise sobre o que as 10 mães pensam a respeito da surdez, a maioria delas (M2, M3, M4, M5, M8, M9) revela considerar a surdez uma deficiência, embora nem todas utilizem esse termo. A mãe 2, por exemplo, diz que a surdez é uma deficiência, no entanto procura atenuar a sua afirmativa, defendendo que a criança surda pode se tornar normal se for bem trabalhada, como se pode observar em suas palavras: "Eu acho que é uma deficiência, é, mas ela tem tudo se a criança for trabalhada, como a gente está buscando atendimento, ela está sendo atendida, ela pode vir a ser uma pessoa normal." (M2). Claretiano - Centro Universitário 89© U3 - A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem A concepção clínico-terapêutica percebe a surdez como doença/déficit e o surdo como deficiente auditivo. Sendo assim, a pessoa surda necessita de um trabalho para suprir ou sanar essa falta e assim ser "curada". A "cura" está relacionada ao aprendizado da linguagem oral, ficando implícito que, quanto melhor a sua fala, melhor terá sido o processo de reabilitação da criança surda (Skliar, 1997), o que pressupõe o uso de aparelho de amplificação sonora e estimulação auditiva, por meio de treinamento auditivo e de fala. A concepção socioantropológica entende que o termo "surdo" se refere a qual- quer pessoa que, por não escutar, interage com o mundo por meio de experiên- cias visuais. A surdez é concebida como diferença e os surdos como "diferentes" dos ouvintes, sendo esta diferença decorrente, principalmente, da forma como os surdos têm acesso ao mundo, por meio da visão (Skliar, 1997). Considerar a surdez uma diferença implica, entre outras coisas, respeitar a língua de sinais como a preferencial para o acesso ao conhecimento, sendo esta o elemento identificatório dos surdos. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Quanto à segunda categoria de análise estudada, as pesquisado- ras afirmaram que a escolha da modalidade de linguagem privilegiada na interação entre mãe ouvinte e criança surda iria depender do conhe- cimento que a família tinha da surdez e da expectativa que construiu em relação ao filho surdo. Vejamos o que as autoras observaram: –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Pelo fato de ser ouvinte, é esperado que, inicialmente, a família, em particular a mãe, privilegie a fala, forma habitual de interação na sociedade ouvinte. No entanto, à medida que a interação vai acontecendo, a representação que a mãe vai fazendo das potencialidades linguísticas do seu filho vai determinar a modali- dade que será usada na interação com o filho, se oral ou gestual. [...] Tendo em vista o objetivo deste estudo, foram retirados das entrevistas dados que permitissem relacionar as concepções de surdez e de pessoa surda que as mães demonstram ter, com a modalidade de linguagem que elas pensam ser a melhor para seu filho e para os surdos em geral. Vale lembrar que a instituição onde foi realizado este estudo expõe as crianças surdas à Língua de Sinais e à Língua Portuguesa, nas modalidades oral e escri- ta, e oferece curso de Língua de Sinais para os pais e familiares. A maioria das mães (M1, M2, M4, M5, M6, M7, M8, M9, M10) diz que o melhor para o surdo seria usar os sinais e a fala: "Para início sem sombra de dúvida que é a linguagem de sinais, para o início é fundamental porque eu lembro que quan- do K era pequena, eu não falava nada para ela, [...] eu pegava dava banho, eu trocava, sem falar para onde vai, o que vai fazer, o que vai acontecer. Então, se não fosse os sinais, como eu ia explicar para ela, agora já quando eles já estão maiores, aí sim, a linguagem oral também é importante." (M1). [...] Diferentemente de todas as mães, M3 refere que a melhor forma para o surdo se comunicar é por meio da fala e explica: "[...] é porque é mais fácil, o sinal é muito difícil" (M3). A mãe deixa claro que tem muita dificuldade em aprender os sinais, apesar de estar no CEPRE há mais de três anos. Como seu filho apre- © Língua Brasileira de Sinais90 senta comunicação através da oralidade, ela não sente necessidade de aprender a usar a Língua de Sinais. A mãe afirma que usa só a linguagem oral em casa: "aumenta, ele manda para eu aumentar, o que eu falo ele não entende, ele fala aumenta, para eu falar mais alto". Quando é a mãe que não entende o que o filho fala, ela diz: "às vezes quando ele fala alguma coisa que eu não entendo, daí ele faz o sinal", e explica "se caso ele falar comigo eu sei, mas me comunicar mesmo usando em sinais com ele, não" (M3). Nas observações realizadas nos atendimentos, pode-se observar que a criança 3 fala com o colega surdo quando este está de costas ou fala com o adulto surdo, mas sabe alguns sinais quando o instrutor surdo pede para ele fazer, embora não os use constantemente. Parece que a criançaconstruiu um modelo de comuni- cação de ouvinte, isto é, para falar não precisa olhar, falando com os colegas surdos mesmo eles estando de costas, mas precisa olhar para o interlocutor quando este usa sinais. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– No trecho a seguir, as autoras apresentam um paralelo entre a concepção de surdez que as mães entrevistadas demonstram ter e a modalidade de linguagem privilegiada na interação delas com seus filhos. Vejamos o que elas relatam a esse respeito: –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Após analisar as concepções de surdez e de surdos que cada mãe revela nas entrevistas e da modalidade que elas parecem privilegiar na interação, procedeu-se ao estabelecimento de um paralelo, buscando relacionar as duas categorias. Observou-se que, entre as mães (M2, M3, M4, M5, M8, M9) que revelam ter uma representação da surdez como deficiência, somente para uma delas (M3) a me- lhor forma do surdo se comunicar é por meio da modalidade oral. Ao referirem que a surdez é uma deficiência e que as crianças surdas precisam de um trabalho para poder se tornar "normais", é de se esperar que as mães valorizem a comunicação por meio da fala. No entanto, para todas os surdos precisam utilizar os sinais e a fala, embora, em seus depoimentos, se perceba que algumas privilegiam a fala, como a mãe 5, e outras privilegiam os sinais, como a mãe 2. A mãe 5, apesar de ter uma representação da surdez como deficiência, afirma que os surdos são inteligentes, mas têm dificuldades no aprendizado. Como tem essa visão reparadora da surdez, justifica o predomínio do uso da modalidade oral da Língua Portuguesa com o filho, pois, aprendendo a falar, torna-se me- nos deficiente. Ao referir que são inteligentes, parece atribuir a esta qualidade o aprendizado da fala. No entanto, nota-se uma contradição, quando diz que os surdos são inteligentes, mas têm dificuldades. Esta forma de se referir aos surdos pode ser tomada como decorrência da representação que a mãe tem de surdez, uma vez que a visão de deficiência traz embutida a visão de incapacida- de e, assim, os surdos, apesar de serem inteligentes e conseguirem falar, terão mais dificuldades em aprender. A mãe 2 também demonstra ter uma concepção de surdez como deficiência, na medida em que afirma que o trabalho de reabilitação pode melhorar a vida do Claretiano - Centro Universitário 91© U3 - A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem surdo e ele pode vir a tornar-se uma pessoa normal. Seria de se esperar que ela privilegiasse a fala, já que é assim que o surdo poderia deixar de ser deficiente. No entanto, a mãe refere que seria melhor para o surdo usar os sinais e a fala, e, por enquanto, a filha usa predominantemente os sinais. Parece que a mãe usa sinais porque sua filha é pequena e não conta ainda com recursos orais para se comunicar e, assim, o uso dos sinais parece ser transitório, apenas para facilitar a comunicação entre elas. As outras mães (M1, M6, M7, M10), que revelaram não conceber a surdez como deficiência, também mencionaram a importância das duas línguas (de Sinais e Língua Portuguesa). Contudo, uma delas, a de número 7, prioriza os sinais. Faz-se importante considerar que a criança da mãe 7 é pequena e, portanto, não dispõe de muitos recursos orais para se comunicar, por isso parece priorizar os sinais. Na relação entre concepção de surdez e modalidade de linguagem, percebe-se que tanto as mães que têm uma concepção mais clínica da surdez como as que não a encaram como deficiência mencionam a importância do surdo adquirir as duas línguas. Como os pais são ouvintes, parece ser natural que tenham a expectativa de que seus filhos sejam bilíngues para poder conviver tanto com o grupo de surdos, como com o grupo de ouvintes, já que é a minoria de ouvintes que aprende a Língua de Sinais. No entanto, vale lembrar que, pelo fato de frequentarem o CE- PRE, que segue uma abordagem bilíngue, essas mães receberam orientações sobre a importância e a necessidade do uso da Língua de Sinais, o que pode ter contribuído para que elas percebessem que a criança pode se desenvolver melhor se utilizar a Língua de Sinais e que esta não impede ou atrapalha o de- senvolvimento da fala. Apesar de todas terem a mesma orientação, percebem-se diferenças na ênfase que as mães dão à modalidade de língua. O quanto a mãe privilegia uma modalidade em detrimento da outra vai depender da concepção que ela tem de surdez e da representação que construiu das possibilidades lin- guísticas do seu filho surdo. É importante ressaltar que, por vezes, a relação entre a concepção de surdez e a escolha da modalidade é influenciada pelas opções que os pais têm à sua disposição na comunidade em que estão inseridos. Verificou-se que das 10 mães somente duas delas apresentaram posições mais definidas e opostas em relação à concepção de surdez e da pessoa surda. Uma delas, a M10, parece se aproximar de uma concepção socioantropológica da surdez, na medida em que concebe o surdo como diferente, aceita a Língua de Sinais e não esquece em nenhum momento que a filha é surda. Prioriza a via visual-gestual para a criança ter acesso às informações e conhecimento de mundo. Essa mãe optou pelo trabalho bilíngue e a filha, em idade escolar (nove anos), usa as duas línguas, a de Sinais e a Portuguesa, dependendo do seu interlocutor. A mãe 3 revela, em seus depoimentos, se identificar com uma concepção clínico- terapêutica da surdez, acreditando que tanto o aparelho auditivo quanto a fala trazem a cura para a perda da audição. Apesar de frequentar o CEPRE, relata que não consegue aprender a Língua de Sinais e o filho entende tudo pela fala. O filho, em idade escolar (sete anos e oito meses), faz uso constante do aparelho auditivo, ficando "nervoso" quando a pilha acaba. Ele apresenta uma fala inteli- gível, mais para pessoas que estão acostumadas a ouvir a voz de surdos, e usa assistematicamente os sinais com os colegas surdos no CEPRE. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– © Língua Brasileira de Sinais92 Ao finalizar o artigo, as autoras, em suas considerações fi- nais, concluíram que: –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A expectativa da família ouvinte é, geralmente, que seu filho possa usar a Língua de Sinais entre os surdos e a Língua Portuguesa na modalidade oral com os ouvintes. A fala possibilitaria a integração dos filhos no mundo dos ouvintes e os sinais, por outro lado, a melhor compreensão e o estabelecimento de relações sociais entre iguais. As mães não se mostram muito seguras em relação à sua concepção de surdez. Parecem hesitar em usar o termo deficiência, por ter uma conotação pejorativa, mas suas palavras refletem que têm a visão de que o surdo é menos capaz. Como a maioria das mães não está ciente da concepção que tem de surdez, sua representação das possibilidades linguísticas do filho surdo parece variar de acordo com as informações que elas vão tendo sobre a surdez e com a vivência com outras pessoas surdas, o que parece explicar o fato de, em alguns momen- tos, privilegiarem os sinais, e, em outros, a fala. Fica evidente a importância de a família ter uma concepção mais clara da surdez para que possa escolher de forma mais segura a modalidade de linguagem que será privilegiada na relação mãe-criança. Cabe ressaltar, ainda, a importância de que não só as famílias, mas também os profissionais da área da saúde, da educação e os próprios membros da socieda- de reflitam sobre suas concepções para que atitudes preconceituosas e ações discriminatórias em relação à pessoa surda se modifiquem e que o surdo possa, de fato, ser incluído numa sociedade majoritária, tendo o direito de ser reconhe- cido e respeitado na sua diferença. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 14. QUESTÕES AUTOAVALIATIVASConfira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 1) O que diferencia os conceitos de fala, língua e linguagem? 2) Descreva, brevemente, com suas palavras, o processo normal de aquisição e desenvolvimento da linguagem na criança ouvinte. 3) Descreva, brevemente, com suas palavras, como ocorre o desenvolvimento da linguagem nas crianças ouvintes e nas crianças surdas. 4) De que forma a família reage diante do diagnóstico de surdez para um de seus integrantes? Descreva alguns dos sentimentos que, geralmente, ela vivencia. 5) Que atitudes a família pode assumir para auxiliar o desenvolvimento cogni- tivo e linguístico da criança surda? Claretiano - Centro Universitário 93© U3 - A Surdez na Família e o Desenvolvimento da Linguagem 15. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, você pôde refletir sobre a importância da lín- gua de sinais para o desenvolvimento cognitivo, linguístico e afeti- vo da criança surda. Vimos que a surdez pode afetar todo o siste- ma familiar; porém este deve formar interlocutor(es) em libras e envolver-se no processo educacional do filho surdo. Na próxima unidade, você terá a oportunidade de refletir so- bre a escolarização de crianças surdas, enfocando sua condição na classe de ouvintes e a presença ou não da língua de sinais nesse contexto. Estudaremos, também, o Atendimento Educacional Es- pecializado para os Alunos com Surdez, uma nova proposta elabo- rada pelo Ministério da Educação a fim de garantir aos surdos uma educação mais adequada às suas reais necessidades. 16. E-REFERÊNCIA PAIVA E SILVA, A. B.; PEREIRA, M. C. C.; ZANOLLI, M. L. Mães ouvintes com filhos surdos: concepção de surdez e escolha da modalidade de linguagem. Psicologia: Teoria e Pesquisa, jul.-set. 2007, v. 23, n. 3, p. 279-286. Disponível em: <http://www.scielo.br/ pdf/ptp/v23n3/a06v23n3.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2010. 17. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMIRALIAN, M. L. T. M. 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