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AS ESTRUTURAS FUNCIONAIS PÚBLICAS E A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO: DAS ORIGENS DOS TRÊS PODERES AOS LIMITES DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA Adolpho José Ribeiro* “The love of power is natural. It is insatiable, almost constantly whetted, never cloyed by possession.” Viscount Henry St. John Bolingbroke. The Craftsman, 1730. “If men were angels, no government would be necessary. If angels were to govern men, neither external nor internal controls on government would be necessary.” James Madison. The Federalist, 1788. ______________________________ *Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra, o autor foi titulado mestre em Ciências Jurídico-Políticas com menção em Direito Constitucional, em 2012, pela mesma universidade. Obteve sua especialização em Direito Constitucional, no ano de 2011, pela mesma instituição. É bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), desde 2010. É conselheiro científico convidado e membro fundador da Academia Nacional de Estudos Transnacionais (ANET). É membro convidado dos corpos editoriais da Revista Brasileira de Estudos Transnacionais e da Revista Acadêmica Epitácio Pessoa. É Presidente Honorário e Membro Fundador do Grupo Político Sala de Justiça, desde 2008, além de colaborador e pesquisador em Direito Público pela Universidade Federal da Paraíba, desde 2007, e professor de Direito Constitucional, Filosofia do Direito e Ciência Política do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ). 1 SUMÁRIO INTRODUÇÃO_________________________________________________________02 CAPÍTULO I- A manifestação das estruturas funcionais públicas antecedentes ao Estado Moderno: Da gênese centralizadora antiga ao polimorfo poderio político medieval _______________________________________________________________04 1.1 Da origem do Estado e suas características primitivas ___________________04 1.2 As principais sociedades políticas médio-orientais antigas: Das formas de exercício de poder de mando e suas estruturas funcionais públicas _________07 1.3 Formação e desenvolvimento político estrutural na Antiguidade Clássica____10 1.4 A poli-morfologia do poder: Os desafios à centralização política no Medievo_______________________________________________________20 CAPÍTULO II- A Estruturação filosófica e jurídica dos poderes do Estado: Antecedentes contextuais, a limitação de poder inter-órgãos e os aperfeiçoamentos constitucionais norte-americanos___________________________________________31 2.1 Das discussões filosóficas às concepções teorético-práticas de soberania: A gênese como tentativa de legitimação monárquico-absolutista e o seguimento de uma tendência____________________________________________________31 2.2 A Expressão das organizações funcionais estatais modernas como pressupostos à propositura da teoria da separação dos poderes montesquiana_______________40 2.3 Controle dos poderes executivos anglo-saxônicos como necessidade afirmativa das liberdades ____________________________________________________45 2.4 A clássica separação dos poderes de Montesquieu e os sistemas constitucionais anglo-americanos modernos como contributos de incremento colaborativo orgânico_________________________________________________________49 CAPÍTULO III- Os limites da justiça constitucional _________________________57 3.1 A questão da legitimidade democrática de atuação da justiça constitucional ___57 3.2 O papel do juiz no cenário contemporâneo e seus níveis de atuação__________60 3.3 Legitimidade democrática de atuação judicial como sinônimo de volição majoritária?______________________________________________________63 3.4 A polêmica Lassalle vs. Hesse sobre a essência da Constituição e os limites de atuação da justiça constitucional______________________________________68 3.5 A atuação dos juízes constitucionais e o princípio da igualdade _____________78 CONCLUSÕES________________________________________________________82 REFERÊNCIAS _______________________________________________________85 2 INTRODUÇÃO A complexidade da convivência humana, em nossos tempos, demanda uma atenção especial do poder público na busca da solução para as mais variadas espécies de conflito no âmbito intra-estadual. Nessa conjuntura, as violações de direitos aparecem como consequências inevitáveis nas relações da pós-moderna sociedade pluralista, e o poder judiciário assume papel crucial na defesa dos indivíduos, proferindo a última palavra aos envolvidos nesses conflitos. Através da atuação do poder judicial, há o aumento da presença interventiva do Estado, tanto no setor público quanto privado, para afirmar sua existência na proteção dos direitos das pessoas, quando tenta solucionar as querelas subsistentes nas vidas dos indivíduos. Algumas situações surgem como dúvidas em relação a esse panorama atual, de modo que as pessoas estão inseridas em um contexto carreado de problemas de outras épocas, que, caso se deixasse de analisar, possivelmente se incorreria em dúvida perene sobre as suas origens, e se fugiria de encontrar caminhos de possíveis soluções para as recentes contendas – que aparentemente decorrem de erros de experiências passadas. Disso tudo, sob pena de se incorrer em incompreensões de erros do passado, cujo conhecimento se mostra essencial à compreensão do presente e à possibilidade de melhoria do futuro da convivência humana, não se pode deixar de enfrentar alguns problemas, que, ao menos de início, passam diretamente pelos questionamentos que se seguem: Como se deu a formação do Estado? Que órgão antes do poder judiciário julgava as querelas entre os indivíduos? A partir de que momento a função judicial surgiu, e em que momento assumiu organicamente o status de poder do Estado? Em que é pautada a decisão judicial? Se o poder judicial controla o resultado de suas próprias decisões, então quem controla os controladores? Quais os limites da atuação do poder judicial? Essas são apenas algumas das questões a se tentar responder ao longo deste livro, cujas respostas certamente propiciarão o entendimento da questão de até onde o poder judiciário – aqui em específico a justiça constitucional – precisa agir, para garantir a efetividade dos direitos individuais e, ao mesmo tempo, não suplantar as competências dos outros poderes do Estado e, consequentemente, a garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos no futuro, conforme se pretende demonstrar. 3 Para se alcançar os objetivos inicialmente propostos nos escritos que se seguem não se analisa a realidade de um sistema jurídico em específico, mas se escreve em um plano abstrato, já que a questão de suplantação de competências do poder legislativo pelo poder judiciário mostra-se ser universal – pelo menos nos países de maior expressão democrática no ocidente, sejam na Europa, nos Estados Unidos, ou na América Latina –, embora existam diferenças peculiares em cada país, possivelmente mais aparentes ao nível teórico que propriamente na prática. Com isso, divide-se os escritos em três capítulos. No primeiro deles, escreve-se sobre a controversa questão da origem do Estado, ou das sociedades políticas pré-estatais, identificando as principais civilizações antigas e suas características primitivas, bem como as funções ligadas à atividade pública naqueles contextos civilizacionais. Em seguida, investiga-se sobre as estruturas políticas medievais e suas características mais marcantes. Por conseguinte, no segundo capítulo, trata-se das discussões filosófico-jurídicas que deram origem ao Estado Moderno, das estruturas de exercício do poder político e da colocação das suasfunções públicas em órgãos bem determinados. Escreve-se ainda sobre o surgimento da clássica teoria da separação dos poderes de Montesquieu, da doutrina dos checks and balances e dos contributos desta teoria à garantia das liberdades dos indivíduos. No último capítulo, escreve-se sobre a questão da atuação pró-ativa do poder judiciário, especificamente dos juízes constitucionais, do problema da legitimidade de atuação dos tribunais com função de justiça constitucional e dos limites de atuação desses juízes na defesa da Constituição e, consequentemente, na proteção dos indivíduos. 4 CAPÍTULO I- A manifestação das estruturas funcionais públicas antecedentes ao Estado Moderno: Da gênese centralizadora antiga ao polimorfo poderio político medieval 1.1 Da Origem do Estado e suas características primitivas Identificar a origem1 remota do Estado, em congruência com suas estruturas funcionais públicas, na antiguidade, constitui tarefa de extrema dificuldade.2 Há autores3 defensores da existência da entidade estatal na Idade Antiga,4 nomeadamente nas civilizações5 egípcia, mesopotâmica, israelense, grega e romana. Contudo, outra parte da doutrina entende que essas civilizações eram apenas sociedades políticas6 pré-estatais que, em alguns momentos, serão denominadas de Estado7, por questões de didática e de adequação discursiva. 1 Sobre as teorias patriarcalista, maternalista e violenta da origem do Estado, vide GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado. Trad. Paulo Edmur de Souza Queiroz. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1968. p. 79 e ss. 2 De acordo com Hall e Ikenberry, “é importante reiterar que não temos, e provavelmente nunca teremos, uma teoria geral unificada sobre as origens dos Estados primitivos;” E foi exatamente isso que percebemos em nossas investigações. HALL, John A; IKENBERRY, G. John. O Estado. Trad. M. F. Gonçalves de Azevedo. Lisboa: Editorial Estampa, 1989. p. 43. 3 Jellinek acredita ser o Estado o desenvolvimento do domínio sobre homens, desde que sejam habitantes sedentários de um território. Dentro dessa delimitação, o autor defende que, primariamente, o ente estatal se desenvolveu na antiguidade. JELLINEK, Georg. Teoria General Del Estado. Trad. Fernando de los Rios Urruti. 2. ed. Mexico: Compañia Editorial Continental, 1958. p. 217. 4 Constata-se nas alegações de Acquaviva que: “É no tocante à natureza dos primeiros grupamentos humanos e de seus organismos dirigentes que surgem as grandes polêmicas entre os pesquisadores.” ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 11. 5 Segundo Maluf: “Os Estados mais antigos que a história relata foram os grandes impérios que se formaram no Oriente desde 3.000 anos antes da era cristã. Os maiores e mais antigos foram os que se formaram na Baixa Mesopotâmia, banhada pelas águas do Tigre e do Eufrates, e no Egito, banhado pelo Nilo. É comprovado que houve anteriormente outras civilizações. A ciência do Estado, porém, estudando a evolução do poder político com base em elementos históricos, embora deficientes, tem como Idade Antiga o período que vem desde 3.000 a.C. até o século V da era cristã, quando o império romano desmoronou ante a invasão dos bárbaros, época em que tem início a Idade Média.” MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 93. 6 Aquiesce-se, aqui, do entendimento de Jorge Miranda, quando afirma que: “Não se justifica confundir as formas primitivas de sociedades políticas com as formas desenvolvidas e complexas que tardiamente surgem.” MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 31- 2. 7 Partilha-se, aqui, da acepção jurídica de Estado no entendimento de Burdeau, quando aduz que: “Nem toda a sociedade politicamente organizada é um Estado. Não se pode, por conseguinte, aceitar como válidas as definições que o assimilam à existência da diferenciação entre governados e governantes. O que esta hierarquia revela é a instalação de um Poder. Ora, se o fenômeno do Poder é universal, nem por isso deixa de haver formas dele que não são estatais.” BURDEAU, Georges. O Estado. Trad. Cascais Franco. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1981. p. 23. Percebemos nesse entendimento que Burdeau faz fortes críticas ao pensamento sociológico de Léon Duguit, o qual pontua o Estado como domínio dos fortes sobre os fracos, ou a sobreposição dos governantes sobre os governados em um dado território. DUGUIT, Léon. Manuel de droit constitutionnel. 4. ed. Paris: Anciennes Maisons Thorin et Fontemoing, 1923. p. 14-5. Acer Máquina de escrever 5 Pelo exposto, é de bom alvitre demonstrar as características mais marcantes daquelas sociedades políticas pré-existentes ao ente estatal, desde as mais simples8 uniões humanas com poder de mando,9 até o prenúncio da formalização do Estado Moderno.10 Nesse sentido, vale a pena observar as palavras de Dallari: Há, entretanto, duas marcas fundamentais, características do Estado desse período: a natureza unitária e a religiosidade. Quanto à primeira, verifica-se que o Estado Antigo sempre aparece como uma unidade geral, não admitindo qualquer divisão interior, nem territorial, nem de funções. A idéia da natureza unitária é permanente, persistindo durante toda a evolução política da Antiguidade. Quanto à presença do fator religioso, é tão marcante que muitos autores entendem que o Estado desse período pode ser qualificado como Estado Teocrático. A influência predominante foi religiosa, afirmando-se a autoridade dos governantes e as normas de comportamento individual e coletivo como expressões da vontade de um poder divino.11 Parece que aquelas entidades primitivas centro-orientais tinham esferas públicas ainda abstratas,12 tendo em vista a falta de institucionalização13 orgânica configurada em suas realidades sócio-políticas, como se percebe na doutrina Aristotélica na Grécia 8 Importante se expor os escritos de Durkheim, quando afirma que: “Ora, a organização a base de clãs é a mais simples que conhecemos. Ela existe, com efeito, com todos os seus elementos essenciais, desde que a sociedade compreende dois clãs primários; em consequência, não poderia haver outro mais rudimentar enquanto não se descobrir sociedades reduzidas a um único clã, e até agora, não acreditamos que se tenha descoberto.” Durkheim acreditava que a primeira organização dos humanos teria sido concebida em clãs, que tinham na autoridade matriarcal a origem do poder, já que pelo estágio primórdio de promiscuidade seria impreciso destacar quem seria o verdadeiro genitor da prole. É o que autores como Bachofen e Köhler denominam de teoria matriarcal do surgimento familiar, por acreditarem que esta entidade teria dado origem à sociedade civil, estrutura imediatamente anterior à formação do Estado. DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa. Trad. Joaquim Pereira Neto. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2008. p. 215. 9 Conforme o entendimento de Acquaviva: “Todas as sociedades humanas, incluídas as selvagens, sempre se apresentam dotadas de poder de mando rudimentar, e, por mais que recuemos no tempo, até onde alcancem os mais antigos vestígios deixados pelo homem, encontraremos, sempre, o elemento humano vivendo em sociedade e uma autoridade dirigindo o grupo.” ACQUAVIVA, Op. Cit., nota 04. p. 9. 10 Jellinek expõe os elementos constitutivos da formação inicial do Estado, conforme se pode ver em sua doutrina: “O Estado é a unidade de associação dotada originalmente de poder de dominação, e formada por homens assentados em um território” (Tradução livre) “El Estado es la unidad de asociación dotada originariamente depoder dominación, y formada por hombres asentados en un território.” JELLINEK, Op. Cit., nota 03. p. 145. 11 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1973. p. 55. 12 ARDANT, Philippe; MATHIEU, Bertrand. Institutions Politiques et Droit Constitutionnel. 23. ed. Paris: L.G.D.J, 2011. p. 16. 13 Nas palavras dos autores: “Isto pressupõe também que existiram sociedades anteriores à formação do Estado, mas que não atingiram o nível de institucionalização caracterizador da organização política estadual.” PINTO, Ricardo Leite; CORREIA, José de Matos; SEARA, Fernando Roboredo. Ciência Política e Direito Constitucional: Teoria Geral do Estado e Formas de Governo. 3. ed. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2005. p. 55. Acer Destacar Acer Destacar Acer Destacar Acer Destacar Acer Destacar Acer Destacar Acer Destacar Acer Destacar Acer Destacar Acer Destacar Acer Destacar 6 antiga, ou na formação política da clássica República romana, por exemplo – embora essa configuração orgânica das civilizações clássicas não necessariamente forneça substrato suficiente, para a fundamentalização de direitos dos indivíduos no âmbito do ente estatal, que, como se sabe, somente ocorre com a evolução dos movimentos constitucionalistas. Com o máximo de esforço de não se analisar as sociedades políticas pré-estatais mais marcantes na história da humanidade aos olhos do homem atual e, consequentemente, incorrer-se em severos anacronismos, pretende-se fazer uma cuidadosa diferenciação de suas organizações políticas, em relação à manifestação formal do Estado e sua organização político-jurídica moderna, nos escritos que se seguem. Em outras palavras, as multiplicidades de entes políticos não serão comparativamente inferiorizadas em relação ao Estado, pois o intuito, aqui, é buscar as origens primitivas das estruturas funcionais públicas e das principais características de exercício do poder político daquelas sociedades políticas, para que, assim, de maneira mais adequada, possa- se compreender quais as possíveis necessidades que deram causa à constituição das estruturas funcionais de formação do Estado em sentido estrito. Com isso, não parece ser de bom alvitre pôr as sociedades políticas centro- orientais antigas e as clássicas civilizações grega e romana, por exemplo, em degrau comparativo de igualdade com a institucionalização do Estado Moderno e sua organização política, sob pena de se estigmatizar as coletividades antigas aos dos olhos de um homem inserido em tempo diverso daquelas realidades e, com isso, fazer-se uma interpretação equivocada acerca dos contextos políticos vivenciados na antiguidade. Ressalta-se que o tema da origem do Estado14 constitui matéria de ampla controvérsia na doutrina, contudo, é pacífico dizer que a terminologia “Estado” só foi utilizada pela primeira vez por Machiavelli,15 na sua obra Il Principe, publicada somente 14 Ao anunciar o caráter político do ente estatal, Fontes afirma que: “O Estado não é, como sabemos, a única forma de organização política societária, mas a experiência contemporânea tem demonstrado que, como organização política, é aquela que se apresenta como mais usual e que é preferida pelos diferentes movimentos políticos nacionais e mesmo autonômicos ou de libertação.” FONTES, José. Teoria Geral do Estado e do Direito. 3. ed. Coimbra: Wolters Kluwer Portugal et. Coimbra Editora, 2010. p. 22. 15 Nas clássicas palavras de Maquiavel: “Todos os Estados, todos os domínios em que houve e ainda há sobre os homens, foram e são repúblicas ou principados.” (Tradução livre) “Tutti li Stati, tutti e’ dominii che hanno avuto et hanno imperio sopra li uomini, sono stati e sono o repubbliche o principati.” MACHIAVELLI, Niccolò. Il Principe. Torino: Einaudi, 1961. p. 3. 7 no início da Idade Moderna, em 1531. Mesmo assim, parece essencial16 descrever as principais17 características das sociedades políticas pré-estatais de maior destaque, de modo a se expor seus respectivos ensaios de formas de governo e suas diversas formas de expressão do poder político, a fim de se compreender e identificar de onde exatamente surgiram as necessidades de modificação e evolução daquelas ainda rudimentares estruturas funcionais públicas. 1.2 As principais sociedades políticas médio-orientais antigas: Das formas de exercício de poder de mando e suas estruturas funcionais públicas Como se trata de uma das principais sociedades políticas pré-estatais, não se poderia deixar de fazer referência ao Egito antigo, principalmente no período compreendido entre os anos de 3197 e 2778 a.C, tempo de governo das duas primeiras dinastias egípcias, em que os faraós18, em si mesmos, materializavam a presença do deus Hórus. Para se ter uma noção inicial da medida do poder político exercido pelos Faraós, no Egito antigo, importa ressaltar que os súditos egípcios acreditavam que as margens do rio Nilo somente continuariam férteis se houvesse a submissão do povo19 à vontade dos deuses. Caso as ordens do faraó não fossem seguidas, essa atitude era encarada como ato de indisciplina e, ao mesmo tempo, estar-se-ia a violar a vontade de um deus, haja vista os egípcios acreditarem na personificação das divindades nos faraós. Por essas 16 Segundo Jorge Miranda: “As sociedades políticas ou sociedades de fins gerais apresentam-se em tal variedade que é cientificamente imprescindível proceder a distinções e classificações.” MIRANDA, Op. Cit., nota 06. p. 31. 17 Faz-se referência somente às principais características das sociedades políticas pré-estatais e de seus contextos evolutivos, por entender ser de competência das Ciências Sociais um estudo detalhado a esse respeito, motivo pelo qual se elucida apenas as suas exposições em linhas gerais, para compreensão do fenômeno político da organização funcional de poder, bem como das limitações das arbitrariedades, que serão mais bem esclarecidas mais adiante. 18 Nas palavras de Menezes: “O Egito conhece no faraó não apenas um magistrado, mas, a rigor, uma divindade, um descendente divino, um deus visível. Existem, entretanto, outros deuses simultâneos, o que atenua a onipotência real por meio de um sistema de limitações de prerrogativas, de cujo zelo se encarregavam poderosos colégios sacerdotais, que não permitiam invasões nos campos de privilégios religiosos e políticos.” MENEZES, Anderson de. Teoria Geral do Estado. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 109. 19 Aqui se utiliza a expressão “povo” apenas por questões de didática, já que a expressão somente assume status de elemento constitutivo estatal com a institucionalização do Estado Moderno. 8 características existentes naquele período, verifica-se a identificação do exercício do poder político sob a forma de monarquia absoluta de direito divino no Egito.20 Semelhante forma de exercício de poder de mando a aquela configurada no Egito antigo também se pode observar na antiga civilização da Mesopotâmia. Na organização política babilônica, por exemplo, “o monarca era absoluto em suas decisões, atuando como representante da divindade na Terra;”21 já na Pérsia “o governo era estabelecido pelo próprio ORMUZD, de quem o monarca era servidor como seu descendente, unindo- se os dois poderes, espiritual e temporal, em sua autoridade ilimitada.” 22 Sobre a divisão funcional das atividades públicas, na mesopotâmia, percebe-se que, já no século V a.C., os Caldeus possuíam órgãos colegiados formados pelo clero e por julgadores profissionais na sua estrutura política, valendo-se ressaltar que, após serem proferidas, as decisões desses colegiados poderiam passar pela revisão – consistiade uma espécie rudimentar de apelação das partes – do monarca.23 Após a unificação sumeriana, por volta do ano 2300 a.C., a organização política da Suméria passou por significativas modificações. O poder monárquico sofreu pequenas limitações de um grupo deliberativo composto por nobres. Há aqui indícios de formação de um rudimentar parlamento, que, em graves questões suscitadas pelos populares, limitava o poder do governante, para aparentemente defender seus súditos.24 Percebe-se a existência de semelhantes configurações de monarquias absolutas metafísicas – monarquias absolutas transcendentais, ou, como queiram, nas palavras de Maluf,25 governos formados pela “teoria do direito divino sobrenatural” –, nas antigas civilizações egípcia e mesopotâmica. Contudo, acrescidas à similaridade nos modelos de exercício do poder político e na ligação entre política e religião, naquelas sociedades políticas, pode-se destacar a característica de expansão territorial imperialista como aspecto comum a aquelas civilizações.26 20 ACQUAVIVA, Op. Cit., nota 04. p. 17-8. 21 Ibidem. p.22. 22 MENEZES, Op. Cit., nota 18. p. 109. 23 ACQUAVIVA, Op. Cit., nota 04. p.23. 24 Ibidem. p.21-2. 25 MALUF, Op. Cit., nota 05. p. 60-2. 26 Para maiores esclarecimentos a respeito da característica imperialista desses povos, vide PINTO, Op. Cit., nota 13. p. 56. 9 Apesar das expostas semelhanças existentes entre aquelas sociedades políticas, no concernente ao exercício de poder político em suas esferas públicas, pode-se identificar uma diferença tênue entre elas: no Egito, enquanto o faraó era respeitado como a presença encarnada do próprio deus, na Mesopotâmia, o monarca era apenas representante da divindade. Interessante perceber que as lideranças políticas de direito divino não são exclusividade de tempos passados;27 mesmo nos dias de hoje, ainda existem povos crentes na legitimidade de exercício do poder político soberano pelo direito divino. Na região do Tibete, por exemplo, as pessoas acreditam que a reencarnação de Buda se configura na pessoa de um monarca soberano.28 Até aqui, não há dúvidas de que o exercício de poder sob a forma de monarquia teocrática seja a característica política comum mais marcante das antigas civilizações centro-orientais. Na antiga esfera pública de Israel, por exemplo, Jellinek elucida que o poder dos reis era limitado pelas leis de Jeová, as quais teriam sido transcritas por Deus nas Tábuas do Sinai, dirigidas a Moisés, na época de salvação do povo israelense do cativeiro egípcio.29 Os israelenses antigos acreditavam na submissão do seu chefe político, primeiramente, à vontade de Deus. Subsistia a crença de que, somente por vontade sentimental própria, os súditos teriam seus direitos cerceados perante a divindade do Messias – Deus inconfundível com a figura do monarca, tal como era característica de outras civilizações antigas médio-orientais. Dentre as civilizações antigas do centro do globo, no concernente a consideração da vontade popular pelo chefe político, parece que a sociedade política israelense possuía papel de destaque, dando indícios de que lá existia uma primária manifestação da ideia de participação popular democrática, a qual hoje subsiste na maior parte dos países ocidentais – respeitando-se as devidas proporções de simplicidade e complexidade, 27 Nomeadamente na Idade Antiga, nas civilizações orientais, que aqui se destaca, bem como nos períodos posteriores que se vai elucidar no transcurso dos escritos que se seguem. 28 Após o falecimento do soberano, um conselho de sacerdotes percorre toda a região tibetana, no intuito de recrutar uma das crianças observadas pelo caminho, apossando-se daquela que acreditam ser a nova encarnação do deus Buda, a fim de assegurar a continuidade do derramamento das dádivas divinas perante o povo tibetano. Para uma descrição mais completa sobre esse curioso ritual, vide MALUF, Op. Cit., nota 05. p. 61. 29 Ibidem. p. 95. 10 configuradas pelos espaços cronológicos de vivência daquela sociedade política israelense e os Estados democráticos atuais, respectivamente, para não se fazer julgo dos antigos aos olhos do homem contemporâneo.30 Perante as investigações das sociedades políticas centro-orientais, pode-se observar a característica predominante da materialização de uma simbiose entre diversas esferas de vivência social – designadamente a política e a religião que, hoje, visivelmente, são separadas, entre as áreas pública e privada das relações de exercício do poder dos Estados democráticos de maior visibilidade no ocidente. Por isso, conforme ressalta Raymond Gettel,31 não parece ser claramente possível se fazer uma distinção precisa entre os ramos da política, da filosofia e da moral naquelas sociedades políticas antigas. 1.3 Formação e desenvolvimento político estrutural na Antiguidade Clássica O Clássico Estado32 Grego foi politicamente subdividido em polis ou cidades- estados,33 que eram auto-suficientes34 política e economicamente, além de terem no elemento humano o corpo móvel35 de expressão quantitativa e qualitativa de suas estruturas políticas. Nesse sentido, vale a pena observar as conhecidas palavras de Aristóteles, sobre o principal elemento formador da cidade:36 30 JELLINEK, Op. Cit., nota 03. p. 238-9. 31 GETTEL, Raymond G. Historia de las Ideas Políticas. Trad. Eduardo Salgueiro. Lisboa: Editorial Inquérito, 1936. p. 61 e ss. 32 Sabe-se que o Estado ainda não possuía estruturas político-jurídicas bem determinadas nesse período, entretanto, aqui se emprega esse termo apenas para facilitar o entendimento da formação estrutural público- política dessas sociedades. Embora não tenham constituído um bloco unitário côngruo, chamar-se de Estado o conjunto de polis da civilização dos helênicos, que, para a mais clara compreensão didática destes estudos, parece ser a mais adequada designação a ser empregada neste momento inicial. 33 Diante dos estudos de Ferreira, esclarece-se que: “Nenhuma destas designações corresponde, no entanto, exactamente ao sentido do termo grego e, tanto uma como outra, pode gerar, além disso, confusão.” Contudo, utiliza-se essas expressões por questões de didática. FERREIRA, José Ribeiro. A Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Edições 70, 1992. p. 14. 34 Consta-se que, na doutrina de Menezes, “as polis formavam todos econômicos, sociais e políticos com vidas próprias. Eram legítimas autarquias, isto é, auto-suficientes, já que deviam bastar-se a si mesmas.” MENEZES, Op. Cit., nota 18. p. 109. 35 Para verificação mais aprofundada sobre as características quantitativa e qualitativa do elemento humano – como formador da estrutura política da polis – e da característica de mobilidade da cidade-estado, vide FERREIRA, Op. Cit., nota 33. p. 15. 36 ARISTÓTELES. Política. Trad. Pedro Constantin Tolens. 5. ed. São Paulo: Martin Claret, 2010. p. 56. 11 (...) a Cidade é uma criação da natureza, e que o homem, por natureza, é um animal político [isto é, destinado a viver em sociedade], e que o homem que, por sua natureza e não por mero acidente, não tivesse sua existência na cidade, seria um ser vil, superior ou inferior ao homem. Verifica-se que, na doutrina aristotélica, a participação do homem na política fazia parte da essência do desenvolvimento da polis. Dentre as mais notáveis, encontra-se Atenas que, embora não seja a única37 cidade-estado de destaque na civilização helênica, obteve uma maior visibilidade, pela configuração política de um avançado sistema de participação cidadã e, sem dúvida, forneceu algumas bases materiaispara a construção da doutrina de estruturação funcional do poder político em órgãos, para a formação do Estado Moderno, além de ter deixado um importante legado aos projetos constitucionalistas originários, para a futura estruturação institucionalizada da limitação do poder político. No auge de sua formação política, Atenas tinha estruturas orgânicas de exercício das funções públicas: uma Assembléia popular, competente para elaborar a legislação e revisar decisões; um senado, composto por quinhentos cidadãos, os quais eram sorteados para fiscalizar atos administrativos e elaborar leis de menor expressão; as magistraturas, com os arcontes, membros executivos de competências específicas; e uma espécie de órgão judiciário, o areópago.38 Em clara observância à constituição político-administrativa das cidades-estado – aqui com principal destaque dado à Atenas –, Aristóteles39 constatou a existência de três órgãos (respeitando-se os detalhes específicos) internos às polis, designadamente: o órgão deliberativo de assuntos públicos; o órgão das magistraturas; e o órgão julgador. Os cidadãos e magistrados, por meio dos órgãos deliberativos, participavam ativamente da vida política na cidade-estado onde viviam. Estes órgãos eram soberanos na tomada de suas decisões e tinham variadas competências, nomeadamente: a celebração da paz e a declaração da guerra; a dissolução de alianças; a votação de leis; a discussão 37 A título exemplificativo dessa condição de destaque também se pode citar Esparta, que, embora apresentasse como principal característica um forte poderio militar imperialista, “em seu apogeu (...) era governada por uma assembléia composta de todos os cidadãos, por um senado de vinte e oito membros vitalícios, por dois reis iguais em autoridade e por um conselho de cinco éforos, eleitos anualmente. Os éforos representavam, em princípio, como que um freio entre o poder dos reis e o senado, mas foram adquirindo, gradualmente, verdadeira supremacia política.” MENEZES, Op. Cit., nota 18. p. 111-2. 38 Loc. Cit. 39 ARISTÓTELES. Op. Cit., nota 39. p. 170. 12 do modo de escolha e fiscalização dos altos magistrados; dentre outras matérias específicas das distintas polis.40 Visualizando-se a estrutura política da polis ateniense, Aristóteles destacou a existência de três órgãos de atuação do poder público que, embora fossem bem definidos, pareciam ter funções que se confundiam internamente entre si. Os próprios componentes41 dos órgãos públicos celebravam cultos religiosos, pois os gregos antigos não teriam homens destinados exclusivamente a celebrar as cerimônias religiosas. Eis aqui um fator de demonstração da confusão entre as funções de autoridade pública e de sacerdote. Diante dessa confusão funcional também se pode afirmar que, na Grécia antiga, a política não era totalmente apartada da religião, apesar das autoridades políticas não terem aquele costume de representação ou personificação de um deus, tal como acontecia na maior parte das civilizações centro-orientais antigas.42 Propriamente a respeito da realidade política da Grécia antiga, enquanto Platão, nos diálogos de A República43, defendeu uma forte intervenção pública na vida dos cidadãos, como requisito fundamental para estruturação de sua cidade ideal, Aristóteles se preocupou em evidenciar, primeiramente, o caráter material das estruturas políticas44 das cidades-estado gregas de seu tempo. Acrescida à essa preocupação, Aristóteles buscou aplicar princípios de justiça social à realidade de seu tempo e, veementemente, 40 Loc. Cit. 41 FERREIRA, Op. Cit., nota 33. p. 18. 42 MALUF, Op. Cit., nota 05. p. 98. 43 PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997. 44 É bem certo que Aristóteles teve uma preocupação mais concreta, em relação à vida política da polis, entretanto, isso não significa que não tenha se debruçado a estudar e buscar o sentido de cidade ideal, conforme é demonstrado nos sua obra “Política”, quando evidencia os comportamentos opostos do homem como componente daquele ente autônomo. Em suas palavras: “A injustiça armada é a mais perigosa; o homem está provido por natureza de armas que devem servir à prudência e à virtude, as quais, todavia, ele pode usar para fins opostos. Eis porque o homem sem virtude é a mais perversa e cruel das criaturas, a mais entregue aos prazeres dos sentidos e seus desregramentos. Mas a justiça é o liame entre os homens nas Cidades, pois a administração da justiça, a qual é a determinação do que é justo, é o princípio da ordem na sociedade política.” ARISTÓTELES. Op. Cit., nota 36. p. 57. Sobre os ensinamentos aristotélicos, depreende-se que é feita uma advertência, no sentido de que o homem não dotado da virtude (moral utilizada para o bem ordenado da polis – aquilo que se definia como justo, correto) deveria ser submetido às rédeas da lei e ao rigor da justiça. Nessas passagens, percebe-se a conjugação entre a filosofia (consideração do que é justo), a moral (utilização da virtude) e a função pública da justiça, de maneira que Aristóteles demonstra não haver nítida separação entre aquelas searas na Grécia Antiga de seu tempo. 13 defendeu a participação dos cidadãos nas decisões45 políticas da polis. Aqui, parece que Aristóteles preconiza as primeiras noções estruturantes da soberania popular – que atualmente representa um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito.46 Com estruturas políticas mais complexas, em relação às civilizações antigas orientais, a Grécia possuía uma democracia definida na lei como única soberana de total obediência, seja para modelar o comportamento dos cidadãos mais simples, ou dos próprios governantes.47 Apesar disso, no seu mais alto grau de desenvolvimento democrático, mais da metade da sua população não era tomada como cidadã,48 já que os escravos, as mulheres, os comerciantes e os estrangeiros não faziam parte desse contingente. O acesso aos direitos individuais49 estava ainda limitado à pequena parcela da população, e o rol de direitos de caráter privado ficou bastante restrito nas polis gregas,50 apenas alcançando uma maior parcela de destinatários na sociedade política romana. 45 Para maiores explicações sobre a manifestação do poder popular na polis, vide MALUF, Op. Cit., nota 05. p. 100. 46 Nos dizeres de Ferreira, “a polis dava primazia à lei e era o meio pela qual esta se realizava e satisfazia, quer se tratasse do thesmos, quer do nomos – dois termos que significavam lei (...)”. E mais adiante, o autor acrescenta: “A polis estava baseada na aceitação absoluta das leis no sentido lato (...)”. FERREIRA, Op. Cit., nota 33. p. 18. 47 Ibidem. p. 19. 48 Maluf explica que: “O Estado Grego antigo, geralmente apontado como fonte da democracia, nunca chegou a ser um Estado democrático na acepção do direito público moderno. O próprio Estado ateniense, no auge da sua glória, sob a liderança de Péricles, apresentava, na sua população de meio milhão de habitantes, cerca de 60% de escravos, sem direitos políticos de qualquer espécie, além de cerca de 20.000 estrangeiros. Resumiam-se a pouco mais de 40.000 os cidadãos que governavam Atenas e constituíam a soberania do Estado.” Aqui devemos ter o devido cuidado, essencial para não incorrermos no erro de conceber àquela civilização aos olhos do homem de hoje. Por isso, salientamos que ao seu tempo de sobrevivência antiga, a civilização grega se demonstrou muito avançada em termos de obediência legal, não só dos súditos mas também dos governantes, o que sem dúvida contribuiu para o seu desenvolvimento das ideias de soberania popular e regime democráticode governo. MALUF, Op. Cit., nota 05. p. 97. Resta salientar que, a despeito de ser uma civilização baseada na produção essencialmente escravista, a Grécia representa um exemplar modelo democrático para aquele tempo. 49 Sobre a matéria, Jellinek descreve que: “A liberdade antiga consistia exclusivamente em que o indivíduo tinha capacidade para participar na formação das leis soberanas; mas estas dominavam ao indivíduo totalmente sem deixar-lhe esfera alguma de liberdade no sentido mais importante que tem este conceito de liberdade para o homem moderno.” (Tradução livre) “La libertad antigua consistia exclusivamente en que el individuo tenía capacidad para participar en la formación de las leyes soberanas; pero éstas dominaban al individuo totalmente sin dejarle esfera alguna de libertad en el sentido más importante que tiene este concepto de libertad para el hombre moderno.” JELLINEK, Op. Cit., nota 03. p. 239-40. 50 Dallari esclarece que: “No Estado Grego o indivíduo tem uma posição peculiar. Há uma elite, que compõe a classe política, com intensa participação nas decisões do Estado, a respeito dos assuntos de caráter público. Entretanto, nas relações de caráter privado, a autonomia de vontade individual é bastante restrita. Assim, pois, mesmo quando o governo era tido como democrático, isto significava que uma faixa restrita da população – os cidadãos – é que participava das decisões políticas, o que também influiu para a 14 A origem da antiga sociedade política romana é matéria de divergência entre os escritores. Há quem defenda que o marco de surgimento de Roma se manifestou com o assassinado de Remo por seu irmão Rômulo. Entretanto, sabe-se que este conhecido relato tem caráter lendário e, como lembra Augusto dos Santos,51 apesar de ser fantástico e misterioso, somente foi escrito depois de bastante tempo da provável fundação da cidade. Por outro lado, também se defende que o mérito pela fundação de Roma cabe às tribos latinas52 da região do Lácio – posteriormente dominadas pelos povos etruscos. Postas à parte as curiosidades sobre a origem de Roma, incontroverso é afirmar que a família é a base formadora do desenvolvimento social romano. A entidade familiar romana originária era composta por três diferentes integrantes, designadamente: o pater, autoridade máxima da entidade familiar; os patrícios, descendentes do pater; e os clientes, servos familiares.53 A gênese da sociedade romana era subdividida em família propriamente dita, consagrada como ente de direito privado, e as gens, entidades colocadas diretamente sob a égide do poder público: a reunião das gens formava as Cúrias, e a união de várias Cúrias constituía a civitas (cidade); o conjunto das civitas constituía o fundamento político do Estado Romano, que era habitado pelas classes sociais dos patrícios, dos clientes e dos plebeus, de modo que estes últimos constituíam uma população subjugada e sem direito algum.54 Descrever em poucas linhas a organização política55 de Roma constitui um grandioso desafio, pois se trata de uma sociedade pré-estatal gerida por pelo menos quatro distintos períodos de exercício do poder político que, em ordem cronológica de materialização, compreendem respectivamente: a Realeza, a República, o Principado e o Dominato. manutenção das características de cidade-Estado, pois a ampliação excessiva tornaria inviável a manutenção do controle por um pequeno número.” DALLARI, Op. Cit., nota 11. p. 100. 51 Sobre a origem de Roma vide SANTOS, Severino Augusto dos. Introdução ao Direito Civil: Ius Romanum. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 3-5. 52 Para maiores esclarecimentos sobre as tribos que deram origem a Roma vide ORESTANO, Riccardo. I fatti di normazione nell'esperienza romana arcaica. Bologna: Giappichelli, 1967. p. 42 e ss. 53 MENEZES, Op. Cit., nota 18. p. 113. 54 MALUF, Op. Cit., nota 05. p. 101-2. 55 Há divergência doutrinária sobre a constituição política da Roma Antiga, entretanto, aqui, são expostos os entendimentos da doutrina tradicional majoritária. 15 Segundo Moreira Alves,56 a estrutura política da Realeza57 era composta pelo rei, pelo senado e pelos comícios. O rei exercia os poderes de chefe de Estado até a sua morte, sendo irresponsável politicamente por suas decisões. Conjuntamente, a autoridade real acumulava as funções de comandante militar, juiz, administrador e sacerdote. Eis aqui, tal como nas polis gregas, a confusão entre o exercício das funções públicas e o exercício da função de líder religioso no Império Romano deste período.58 O senado, por sua vez, compunha-se por paters família, nomeados pelo rei e a ele submissos. Incumbia aos membros do senado apenas as funções de consulta – quando o monarca os convocava para oferecer opiniões a respeito de suas decisões – e de validação das reuniões dos comícios,59 que apenas os patrícios participavam com pleno exercício de direitos políticos. Com a deposição do rei Tarquínio, o Soberbo, em 510 a.C., a Realeza foi superada pela instauração da República romana, marcada por um período de intensas lutas dos plebeus pela aquisição de seus direitos civis e políticos. Em decorrência dessas manifestações populares, o poder político, antes concentrado nas mãos de um monarca, passou a ser dividido nas mãos de dois magistrados, denominados de cônsules. 56 Expõe-se aqui, indiretamente, o entendimento de Moreira Alves e se percebe que o rei possuía três auxiliares na função política, sendo o tribunus celerum e o tribunus militum os comandantes da cavalaria e da infantaria, respectivamente, e o praefectus urbis o encarregado de governar a cidade diante da ausência real. Acrescidos a estes assessores, o rei possuía membros auxiliares em matéria religiosa, que compunham os colégios dos pontífices, dos áugures e dos feciais. Havia ainda os juízes submetidos à autoridade do monarca, designadamente os duouiri perduellionis e os quaestores parricidii. ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. v. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 8-9. 57 Compreendeu o período de meados do Século VIII, ao final do Século VI a.C. 58 Correia e Sciascia esclarecem que no período da Realeza: “O governo é de forma monárquica patriarcal, baseada em princípios tradicionais de natureza prevalentemente religiosa. O rei é o magistrado único, vitalício, irresponsável. É assistido por um conselho de senatores, i. é, anciãos, também chamados de patres, por serem os chefes das tribos (gentes). Fonte do direito neste período é sobretudo o costume (mores); algumas leges regiae se atribuem aos reis Rômulo, Numa Pompílio e Sérvio Túlio. O direito sagrado (faz) está intimamente ligado ao humano (jus). O colégio sacerdotal dos Pontífices tem o monopólio de um e de outro.” CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Série “Cadernos Didáticos”, 1969. p. 15. 59 Segundo Moreira Alves, havia duas espécies de Comício no período de exercício da Realeza: Os Comitia Calata, que consistiam em órgãos de reuniões onde o povo não era ouvido, mas apenas tomava ciência das decisões relativas a assuntos religiosos; e os Comícios por Cúrias, convocados pelo representante da monarquia, onde não se sabe de modo incontroverso como acontecia ou se ocorria a participação popular pela aclamação, tal como se dava na Grécia. Ao certo, sabe-se que não deliberavam, mas apenas aprovavam ou rejeitavam as propostas apresentadas pelos patrícios, os cidadãos que votavam nas cúrias. ALVES, Op. Cit., nota 56. p. 11. 16 O início da edição das leis escritas de Roma aconteceu na República, destacando- se aprimeira delas, a Lei das XII Tábuas.60 Além disso, o período republicano foi marcado principalmente pela dialética da força popular dos plebeus vs. as arbitrariedades61 dos magistrados patrícios. Como resultado desse período de lutas sociais, os plebeus conquistaram inúmeras vitórias políticas,62 dentre as quais se destacam: o acesso às magistraturas, antes ocupadas restritamente pelos descendentes dos paters; a criação do tribunato, órgão formado inicialmente por dois magistrados plebeus, que tinham poderes de veto sobre os representantes do patriciado; e a criação dos cargos de edis, compostos inicialmente por dois auxiliares dos tribunos. Diante das vitórias políticas da plebe, as diferenças estamentais entre eles e os patrícios foram sendo gradativamente diminuídas. Como exemplo dessa transformação, os magistrados passaram a ser eleitos pelo povo e os seus tempos de mandato variavam conforme a espécie de magistratura por eles exercida. Os membros das magistraturas não recebiam proventos durante suas atuações em órgãos colegiados e, no final dos seus mandatos, embora fossem invioláveis politicamente, poderiam ser fiscalizados pela população.63 Dito isto, parece que essa possibilidade de fiscalização representa um importante instrumento de controle64 popular para se evitar o cometimento de abusos de uma função pública já nesse período. 60 Nas palavras de Menezes: “O princípio de direito desabrocha em Roma de maneira gradual, tanto que as primeiras leis romanas não excedem um conjunto de práticas religiosas, normas consuetudinárias e conhecimentos populares. Mas a idéia de Estado não tarda a formular leis desconhecidas, cuja primeira codificação é a Lei das XII Tábuas.” MENEZES, Op. Cit., nota 18. p. 115. 61 Conforme Moreira Alves: “(...) a plebe não tinha acesso à magistratura e, revoltada com o arbítrio dos magistrados patrícios, sai de Roma, em 494 a.C., e se dirige ao monte Sagrado, com o objetivo de fundar ali uma nova cidade. Os patrícios, em face disso, resolvem transigir, e a plebe retorna, após obter a criação de duas magistraturas plebéias (...) Ficaram, assim, os plebeus garantidos contra a arbitrariedade dos magistrados patrícios, pois os tribunos – cuja inviolabilidade pessoal lhes era conferida por lei sagrada – podiam vetar qualquer ato dos magistrados patrícios, embora esse veto pudesse ser neutralizado pela ação de outro tribuno mais dócil ao patriciado.” ALVES, Op. Cit., nota 56. p. 14. 62 Ibidem. p. 15. 63 Ibidem. p. 16. 64 Maluf lembra que: “O sistema de magistratura colegiada no Estado romano (dualidade de magistrados numa função única) foi uma garantia efetiva contra os abusos de autoridade, notadamente pelo direito de veto que um magistrado podia exercer contra a decisão do magistrado par. O cônsul, o questor, o pretor, o censor, por exemplo, anulava a decisão do seu par pela simples declaração: eu me oponho. Cada magistrado era soberano por si só na esfera de ação de ambos, mas a decisão definitiva devia resultar do consenso das duas inteligências, o que limitava, de certo modo, o arbítrio de cada um. Esse veto do magistrado par não se confunde como o veto do tribuno da plebe, que podia entravar a ação da magistratura dual em nome da soberania popular. O veto do magistrado à decisão do seu par equivalia a um embargo judicial, com a finalidade de suscitar um reexame do caso em conjunto e assegurar, por esse meio, 17 Na República, o senado tinha competências nas searas da administração pública e das políticas externas de Roma, além do poder de gerenciar a votação na atuação dos comícios e declarar a nulidade de dispositivos legais contrários aos bons costumes. Assim, os senadores passaram a ter maior importância perante os magistrados, já que estes consultavam os senadores,65 no intuito de diminuir suas cargas políticas de responsabilidade depois do exercício do mandato, quando voltassem à condição de cidadãos comuns.66 Existiam quatro espécies de comícios de participação67 dos cidadãos na vida pública desse período: a primeira espécie foi denominada de comício por cúria, que possuía as mesmas atribuições dos comícios do período da Realeza; a segunda espécie era o comício por centúria, formado por militares que deliberavam e votavam para resolver diversos assuntos;68 a terceira modalidade foi denominada comício por tribo,69 que era convocado pelos cônsules ou pretores; e a última espécie era o comício da plebe, formado pelos plebeus.70 Por consequência do sucesso obtido em batalhas anteriores, Otaviano71 toma o poder de toda Roma em 27 a.C., ano adotado por alguns como o marco cronológico de uma certa uniformidade das decisões. Por isso mesmo, o veto era oposto contra a decisão inovadora, para que prevalecesse o princípio tradicional. Seria esse engenhoso sistema de contenção do poder pelo poder, idealizado e praticado pelos romanos, a gênese do sistema democrático moderno de tripartição do poder do Estado.” MALUF, Op. Cit., nota 05. p. 105-6. 65 Eram escolhidos pelos cônsules, inicialmente, passando a ser atribuição dos censores fazê-lo mais adiante, sem distinção entre patrícios e plebeus para ocuparem o cargo. 66 Nas palavras de Moreira Alves: “Quanto à sua constituição, era o Senado formado, no início da república, de 300 senadores; Sila elevou esse número a 600; César e o segundo triunvirato (Otaviano, Marco Antônio e Lépido) o aumentaram: o primeiro, para 900; os segundos, para mais de 1.000.” ALVES, Op. Cit., nota 56. p. 16-7. 67 Foi durante a vigência da forma de governo republicana, que Roma consagrou seu apogeu da participação popular na política. 68 Eram atribuídas diversas competências aos comícios por centúrias, dentre as quais se destacam: a eleição dos magistrados maiores; a elaboração de leis sobre a declaração de guerra, celebração da paz e de obediência do povo aos censores; a apreciação de recurso de sentença de morte. Para observar maiores detalhes a respeito da composição e função dos comícios vide Ibidem. p. 17-8. 69 Eram atribuições dos comícios por tribo: a eleição dos edis curuis e dos questores; a votação das leis em geral; a apreciação de recursos de multas. 70 Competiam aos comícios da plebe: deliberar e votar em plebiscitos (equiparados as leis na promulgação da Lei Hortencia, em 234. a.C.); eleger os tribunos e os edis da plebe; apreciar os recursos das multas que eram aplicadas pelos magistrados da classe. Para aprofundamento das competências dos comícios da plebe vide Ibidem. p. 18-9. 71 Recebeu o título de Augustus pelo senado Romano. 18 instauração72 do Principado. A despeito de ser estabelecido como o tempo áureo das ciências, letras e artes, como lembra Augusto dos Santos,73 foi neste período que as instituições políticas criadas na República tiveram suas competências gradativamente reduzidas, ou até mesmo excluídas, sendo totalmente submetidas às ordens ou crivo do monarca, que refez o aparato administrativo de Roma, designando os seus funcionários imperiais.74 Foi no período do Principado, especificamente em 212 d.C., que o imperador Caracala concedeu cidadania a todos os habitantes do império romano. Entretanto, a medida não significou necessariamente a inclusão de toda população na participação da vida política romana,75 pois, contrariamente a isso, os indivíduos foram gradativamente perdendo seus direitos de participação política no Principado. Com efeito, alega-se que a concessão da cidadania constituiu ato com intuitos distintos da inclusão dos indivíduos na participação política daquela esfera pública. Nesse sentido é o entendimento de Geraldo Cintra:76O objetivo do edito de Caracala foi político, a unificação do Império; foi religioso, visa a aumentar os adoradores dos deuses de Roma; foi fiscal, quer obrigar os peregrinos a pagar impostos nas sucessões; foi social, com vistas a simplificar e facilitar as decisões judiciais, nos casos sobre o estado e constituição das pessoas. Essencialmente, o edito de Caracala propiciou um maior controle da esfera pública sobre os novos cidadãos, já que, a partir daquele momento, estes eram formalmente obrigados a pagar tributos. Além disso, o edito tinha a possibilidade de 72 Correia e Sciascia descrevem que: “O período do Principado, de Augusto até o imperador Diocleciano (anos 27 a.C. – 284 d.C.). É o período do maior poder de Roma. O imperador é um novo órgão que se insere na constituição republicana, gozando de um prestígio pessoal (auctoritas) que o coloca primus inter pares. As instituições antigas, também conservadas vivas pelo príncipe, vão perdendo sua importância; ao lado dos magistrados republicanos o imperador nomeia funcionários responsáveis diretamente perante ele.” CORREIA; SCIASCIA, Op. Cit., nota 58. p. 15. 73 SANTOS, Op. Cit., nota 51. p. 9. 74 ALVES, Op. Cit., nota 56. p. 29 e ss. 75 Depreende-se das lições de Augusto dos Santos, que, apesar da incontroversa decadência política de Roma, importa afirmar que o mesmo não aconteceu no âmbito jurídico, de modo que a jurisprudência surgiu neste tempo e o ius gentium se desenvolveu significativamente, desde esta época, até o fim do governo de Diocleciano, em 305, tempo inicial da decadência jurídica e do advento das influências religiosas cristãs no Império. Assim, pode-se afirmar que o apogeu do direito romano (Direito Clássico) foi evidenciado do ano 127 a.C. (período da vigente República) até 305. SANTOS, Op. Cit., nota 51. p. 14-5. 76 CINTRA, Geraldo de Ulhoa. De Statu Civitatis: alguns aspectos da cidadania romana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963. p. 64. 19 punir os futuros sonegadores de impostos, antes não contemplados com a cidadania romana, possibilitando uma maior arrecadação de recursos, por parte da esfera pública. Por outro lado, é preciso salientar que o ato romano de Caracala representa um fator de inspiração da futura concessão da cidadania nacional – que possibilita a participação popular no processo político decisório nas democracias ocidentais – em tempos pós- modernos. O Principado representou um período de transição do sistema democrático republicano à imposição da monarquia absolutista do Dominato.77 Este período foi instaurado por Diocleciano, em 284 d.C., pondo fim ao pouco de autonomia funcional das últimas instituições organizacionais republicanas que, no Principado, ainda resistiram. Como esclarece Moreira Alves,78 em razão dos inúmeros territórios conquistados e da vasta amplitude demográfica, o Império Romano foi dividido em dois blocos nesse período: o Império Romano do Oriente e o Império Romano do Ocidente. Cada bloco tinha dois monarcas absolutos, entre os quais o primeiro era titular do poder político e o segundo seria normalmente o sucessor do anterior. Com a assinatura do edito de Milão, por Constantino, em 322 d.C, o cristianismo foi reconhecido como religião oficial do império. A influência cristã se consolidava paulatinamente nas estruturas governamentais do Império Romano, subsistindo, inclusive, após a queda do Império do Ocidente, em 476 d.C, de modo a perdurar e se desenvolver durante toda alta Idade Média. 77 Segundo Correia e Sciascia, o Dominato foi estabelecido como “O período da Monarquia absoluta, da ascenção ao trono de Diocleciano, em 284 d.C., à morte do imperador Justiniano, em 565. O centro de gravidade do império desloca-se de Roma para Constantinopla. O imperador (dominus et deus) é o único órgão revelador do direito; o Estado burocratiza-se em todas as suas manifestações. Faltam os grandes juristas e a evolução se realiza como resultado do estado de fato precedente. Constantino, em 322, reconhece oficialmente a religião cristã (edito de Milão). Pertence a este período a Lei das Citações de Teodósio II e Valentiniano III, de 426, pela qual somente os escritos de cinco jurisconsultos têm valor de lei. Justiniano, enfim, recolhe a jurisprudência clássica e as constituições dos imperadores anteriores só dando força de lei a essa coletânea por ele organizada e às suas constituições posteriores.” CORREIA; SCIASCIA, Op. Cit., nota 58. p. 16. 78 ALVES, Op. Cit., nota 56. p. 41 e ss. 20 1.4 A poli-morfologia do poder: Os desafios à centralização política no Medievo Sabe-se que a queda79 do Império Romano representou um marco decisório e transcendental de mudança na cultura do centro continental europeu. De grande unidade territorial, o velho continente passava por um processo de desconstrução, que fragmentava a antiga unidade política imperial em diversificados organismos de exercício do poder político. Diante desse contexto de decadência do império, parece importante identificar e ilustrar, sucintamente, os fatores relevantes de desagregação de poder manifestados nesse período de configuração. O primeiro deles é a influência da igreja na vida política, confirmada formalmente desde a assinatura do Edito de Caracala, como se demonstrou; por conseguinte, as invasões bárbaras, que configuraram um fator externo àquela fragmentação político-demográfica; e, por fim, as relações feudais,80 que parecem fornecer as raízes discursivas sobre a existência ou inexistência de um ente de exercício do poder público, no período medieval, e das estruturas funcionais públicas delineadas nesse período. O medievo foi adotado81 como tempo de decadência política na visão de boa parte da doutrina, entretanto há autores defensores da ideia de que se trata de um período de amplo crescimento intelectual e cultural no continente europeu. Incontroverso é dizer que a Idade Média se caracterizou por um tempo de instabilidade e de dificuldade de centralização política. Por outro lado, não constitui tarefa simples a busca de um ente público bem definido nessa era, malgrado ser um 79 Nas palavras de Cabo Martín que: “A desaparição do Império romano se há considerado como um feito transcendental e uma mudança decisiva para a Humanidade desde o momento em que se tem consciência de que tal feito se há produzido e essa mesma consideração há continuado como uma constante na cultura histórica da Europa” (Tradução livre) “La desaparición del Imperio romano se ha considerado como un hecho trascendental y un cambio decisivo para la Humanidad desde el momento em que se tiene conciencia de que tal hecho se ha producido y esa misma consideración ha continuado como una constante en la cultura histórica de Europa.” DE CABO MARTÍN, Carlos. Teoría Histórica Del Estado Y Del Derecho Constitucional. v. 1. Barcelona: PPU, 1988. p. 221. 80 Nas palavras de Mário Soares: “A fragmentação feudal da soberania produziu, ainda, o fenômeno da cidade medieval na Europa Ocidental, como comunidade autogovernada com economia baseada em atividades comerciais e manufaturas, usufruindo de organização político-militar autônoma em relação à Igreja e à nobreza.” SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: O substrato clássico e os novos paradigmas como pré-compreensão para o Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 252. 81 Nesse sentido vide DALLARI, Op. Cit., nota 11. p. 58. 21 período ímpar de transição da escravista sociedade política romana ao centralizado Estado Moderno. É nesse contexto inicial, de assunção do modo de produção feudal e de descentralização política, queemergem os preceitos da Igreja cristã. Aqui se destaca a doutrina de Santo Agostinho – contrário à aparelhagem pública romana puramente terrena –, cuja expressão surge no visível cenário de destruição do império romano, ineficiente na promoção da justiça terrena, segundo o autor. Em resposta aos pagãos, que culpavam o desenvolvimento do Cristianismo como principal causa da decadência de Roma, no século V, Agostinho publicou Civitas Dei, expondo que a vivência humana era palco de guerra transcendental, ou de essência metafísica, entre duas realidades contrapostas que, segundo Moncada82, seriam a “civitas dei” e a “civitas terrena” ou “diaboli”. Em comentários sobre doutrina do Bispo de Hipona, Moncada83 afirma que aquela dicotômica denominação estabelecida por Agostinho representava, primeiramente, a cidade divina, lugar onde os indivíduos buscavam a justiça de Deus, livre do pecado, enquanto que o Estado, fiel representante da segunda grandeza, embora tivesse as funções de estabelecer a paz social e a justiça entre os homens, jamais teria alcançado prover empiricamente a harmonia e a probidade entre os indivíduos. O Estado puramente temporal, na visão de Agostinho, era visto como grupo para o exercício de ações pecaminosas, investidas de intuitos concupiscentes e de ambições dominiais, a fim de tentar legitimar no poder “verdadeiras quadrilhas de salteadores”84, tendo em vista tratar apenas de preocupações relacionadas a assuntos de interesse puramente humanos, terrenos, distante da divindade. A esfera pública estaria distante de alcançar o reino de Deus e, caso continuasse sendo administrada apenas pelos homens temporais, estaria mais próxima do reino diabólico. 82 Sobre esse conteúdo vide MONCADA, Luís Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado. v. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 58. 83 Ibidem. p. 58-60. 84 Loc. Cit. 22 Ante toda aquela conjuntura de exercício de poder na esfera pública, Moncada85 explica que a proposta de Agostinho consistia na submissão da administração temporal aos poderes da Igreja, de maneira a convertê-la completamente ao cristianismo. Apesar desse entendimento, Agostinho não considerava o Estado como representante do mau, pois seu fim consistiria na realização da convivência justa e pacífica entre os homens, desde que se tornasse um “reino” de realização das obras da vontade de Deus. Para Agostinho, só assim seria superado aquele cenário de ineficiência funcional pública, em favor da segurança da paz e da justiça social entre os homens. Em contínua ascensão, e ainda, mais fortalecida pela doutrina agostiniana, a Igreja, que já intervinha e influenciava crescentemente o meio político, passou a intensificar a sua pregação86 sobre a liberdade e a igualdade entre os homens, celebrando que um homem só poderia ser governado por outro a mando de Deus. Assim, a Igreja apoiou o exercício do poder monárquico nesse período, a fim de consagrar a universalização e a legitimação de um centralizado governo87 de Cristo. Por outro lado, as aspirações de centralização política dos eclesiásticos88 se contrapunham totalmente aos interesses dos senhores feudais, pois estes velavam pela continuidade do fracionamento demográfico e político daquela ordem, já que exerciam total domínio sobre os indivíduos que viviam em suas terras, sem que houvesse efetivas interferências públicas de limitação de seus poderes naqueles domínios. 85 Interpretando a doutrina do Bispo de Hipona, Moncada constata que: “(...) mantendo sempre, platônica e dualisticamente, a distinção entre a ideia e a realidade empírica, AGOSTINHO propunha-se transformar o Estado (que em si mesmo, apesar de conforme com a natureza humana, não é nem mau nem bom) numa comunidade de paz e de justiça entre os homens e, como tal, num meio de realização deste mundo da civitas Dei ou regnum misericordiae, pela sua total conversão ao Cristianismo e subordinação à Igreja. Este era o seu conceito de Estado de Direito natural;” Ibidem. p. 61. 86 Soares esclarece que: “A doutrina religiosa cristã, elegendo a liberdade e igualdade de todos os homens e a unidade da família, provocou transformações radicais nas concepções de direito e de Estado.” SOARES, Op. Cit., nota 80. p. 246. 87 Sobre a ideia de um governo papal, universalista e centralizador da Igreja, contrário à multiplicidade de grupos locais na Idade Média, vide MARTIN, Alfred Von. Sociologia de la Cultura Medieval. Trad. Antonio Truyol y Serra. 2. ed. Madrid: Instituto de Estúdios Políticos, 1970. p. 39 e ss. 88 Na visão de Soares: “A Igreja, monopolizando a autoridade religiosa, tornou-se instituição autônoma dentro da organização feudal, diferenciando-se da nobreza secular. A diluição do poder coercitivo no feudalismo embrionário possibilitou à Igreja a defesa de seus próprios interesses particulares, utilizando-se de reduto territorial ou de força armada em seus conflitos institucionais com a suserania laica.” SOARES, Op. Cit., nota 80. p. 255. 23 Como clara demonstração da influência89 da Igreja no meio político – na tentativa de legitimar um governo monárquico com a pregação da igualdade e da liberdade no tratamento dos povos –, pode-se citar o apoio oferecido pelo Papa Leão II a Carlos Magno, no ano 800 d.C, quando lhe foi concedido o título de imperador, a fim de se conduzir os esforços da aliança em busca da unificação imperial de conversão cristã no período.90 A tentativa de unificação da fragmentada vida política medieval consistia ponto de conjugação dos interesses da Igreja91 e dos imperadores, contudo as alianças estabelecidas não subsistiriam por toda a Idade Média, pois, aspirando ampliar os seus próprios poderes, papas e monarcas desenvolveram intensa disputa política.92 O clero já 89 Pallieri demonstra a insistência influenciadora da Igreja na vida política, expondo que: “Para o cristianismo, vive no estado de natureza o homem que vive na grande sociedade natural, em lugar de viver na artificial, na política; mas também vive sempre em sociedade com os seus semelhantes, e tem deveres para com os seus semelhantes. A lei da moral e do amor cristão é uma lei profundamente diferente da lei da cidade grega ou o império romano, funda uma outra sociedade, diferente das anteriores pela amplitude e pelo conteúdo, mas os homens continuam a sentir-se presos por laços mútuos, têm uma única lei, têm direitos e deveres recíprocos, isto é, formam, precisamente, como já dissemos, uma sociedade.” PALLIERI, Giorgio Balladore. A Doutrina do Estado. Trad. Fernando de Miranda. v. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1969. p. 25. 90 Verificar DALLARI, Op. Cit., nota 11. p. 59. 91 Nas palavras de Alfred Von Martin: “Se de um lado a Igreja necessitava de um poder estatal, de outro tinha que reivindicar sua liberdade frente a ele. Assim, a Igreja ensinou a concórdia ideal entre o sacerdócio e o império, e tinha que manter sua relação real com o Estado dentro de limites flexíveis. Ela averiguava e de ocasião em ocasião se o poder temporal não se havia desligado da justiça, e contra o príncipe degenerado em tirano a resistência era não só um direito, senão incluso um dever. O menor valor do Estado, comparado ao da Igreja, era, com efeito, um dos princípios fundamentais da concepção medieval do mundo, que nem o próprio poder temporal punha em discussão. Ao direito relativo do Estado como obra humana, se contrapunha o direito absoluto da Igreja como instituição de origem divina imediata.” (Tradução livre) “Si de un lado la Iglesia necesitaba un poder estatal, de outro tenía que reivindicar su “libertas” frente a él. Así, la Iglesia enseñaba la concordia ideal del sacerdocio y el imperio,y tenía que mantener su relación real con el Estado dentro de límites flexibles. Ella averiguaba y decidía de ocasión en ocasión si el poder temporal no se había desligado de la “justitia”, y contra el príncipe degenerado en “tirano” la resistencia era no solo un derecho, sino incluso um deber. El menor valor del Estado, comparado al de la Iglesia, era, en efecto, uno de los principios fundamentales de la concepción medieval del mundo, que ni el próprio poder temporal ponía en discusión. Al derecho relativo del Estado como obra humana, se contraponía el derecho absoluto de la Iglesia como institución de origen divino inmediato.” MARTIN, Op. Cit., nota 87. p. 92-3. 92 Moncada ilustra essa conjuntura: “Com a morte de CARLOS MAGNO em 814 e depois através da dissolução do Império franco, logo no tempo dos seus imediatos sucessores, tal sonho desfez-se, e com ele toda a metafísica social e política da época. A aliança entre o Sacerdócio e o Império não pôde continuar. Não tardou que também entre eles surgissem o ciúme e a rivalidade. Os Pontífices pretenderam então ter, como representantes directos de Deus, a plenitude do poder, inclusive sobre a consciência dos príncipes em matérias temporais; estes, por sua vez, pretenderam ser os representantes de Deus na terra, com plena autonomia na esfera de tais coisas. Ambos se deram como os continuadores e herdeiros da ideia universal de Roma. Daí as lutas entre os dois poderes durante a Idade-Média, cuja história, por assim dizer em dois actos, é bem conhecida. Por um lado a realeza foi tendendo a intervir, cada vez mais absorventemente, na esfera das coisas eclesiásticas, tendendo para um cesaropapismo de estilo bizantino; por outro, o Papa, 24 não mais desejava apenas realizar a unificação política em um império cristão, mas aspirava deter todo o poder temporal sobre as competências dos príncipes, que, por sua vez, reagiram, intervindo cada vez mais em matérias de alçada da Igreja. Assim, o período medieval, que já era marcado por intensas disputas de poder, passou a contar com mais esse fator de aumento de sua instabilidade política. Acrescidos a esses problemas de disputas de poder político, entre a realeza e a Igreja, desde o século III, a antiga unidade central européia se deparava com as invasões de povos estranhos ao Império Romano. Em decorrência do desmoronamento da coesão política e militar romana, os povos93 invasores enfrentaram pouca oposição às suas incursões e, com isso, conseguiram estimular os habitantes locais a formar novas unidades independentes, fragmentando demográfica e politicamente ainda mais o medievo – tendência esta que, sem dúvida, foi fundamental para a formação dos países do centro europeu no fim da Idade Média e no advento da modernidade. Desde os primeiros séculos do medievo, perante os povos invasores do antigo Império Romano, o foco da realeza política se voltou à conservação da união territorial, da mesma maneira que, aliada à Igreja, as monarquias buscaram defender seus interesses políticos, para obter uma dominação sobre as massas populares, em um império comum. Somados a esses fatores, os monarcas também se insurgiram contra a própria intervenção dos eclesiásticos em assuntos de natureza temporal. como cabeça da Igreja, na sua luta pela libertação desta em face do poder civil, não tardou, a partir de GREGÓRIO VII (1073-1085), em arrogar-se o direito de excomungar os reis e imperadores, anulando os deveres de fidelidade dos súbditos para com eles, e desta forma em se arvorar, ele, em único juiz das condições de legitimidade de todos os soberanos temporais.” MONCADA, Op. Cit., nota 82. p. 70-1. 93 Dallari dispõe que: “As invasões dos bárbaros, iniciadas já no século III e reiteradas até o século VI, representadas por incursões de hordas armadas pelo território do Império Romano, constituíram-se num fator de grave perturbação e de profundas transformações na ordem estabelecida. Oriundos de várias partes da Europa, sobretudo do norte, os povos que os romanos denominavam bárbaros e que incluíam germanos, eslavos, godos etc., introduziram novos costumes e estimularam as próprias regiões invadidas a se afirmarem como unidades políticas independentes, daí resultando o aparecimento de numerosos Estados. Ao mesmo tempo, não obstante a ação da Igreja tentando reunir os novos Estados num grande e poderoso Império, os povos do norte da África e do Oriente Médio sentiram-se também encorajados a fazer incursões em solo europeu, percebendo, desde logo, que encontrariam pouca resistência. E tudo se torna mais complicado quando se verifica que, em certas regiões, os povos cristãos, divididos entre si, chegam a celebrar alianças com chefes bárbaros, havendo também, em muitos casos, o estabelecimento de relações amistosas para fins econômicos.” DALLARI, Op. Cit., nota 11. p. 60. No mesmo sentido vide: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política & Teoria do Estado. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 24; MONCADA, Op. Cit., nota 82. p. 72. 25 Por isso tudo, não há dúvidas de que essa conjuntura de instabilidade94 demográfico-política do medievo tenha também fragmentado as forças da realeza em conter todos esses problemas, de modo que novas instituições descentralizadas95 de exercício do poder político tenham encontrado terreno amplamente favorável aos seus desenvolvimentos, onde o feudalismo assumiu papel de destaque. O feudalismo consistia, essencialmente, na valorização da terra para a produção manufatureira e agrícola de subsistência pelos servos e vassalos, os quais eram submetidos ao domínio do senhor proprietário. O desenvolvimento dessas relações feudais foi facilitado pelas seguidas guerras, que inviabilizavam um melhor desenvolvimento das relações econômicas entre os indivíduos. Perante todo esse panorama de instabilidade, os senhores feudais exerciam um poder político sobre os seus súditos, quase que completamente desvinculado do poder público, pois, nessa conjuntura, o centro do continente europeu sofria com o problema da fragmentação demográfica, principalmente em decorrência daquelas incursões feitas pelos invasores advindos das regiões do norte dos continentes europeu e africano. A submissão dos habitantes das terras fundiárias ao senhor feudal caracteriza marcadamente o cenário político da Idade Média, mas, segundo De Cabo Martín,96 a essencialidade jurídica97 do feudalismo era representada pela celebração de um contrato solene entre os vassalos e senhores proprietário de terras, que gerava obrigações mútuas entre as partes contraentes. Os vassalos prestavam ajuda militar, ofereciam conselhos quando solicitados e deviam total obediência aos senhores feudais. Estes, em contrapartida, proviam segurança jurídica e militar contra as arbitrariedades reais e as invasões decorrentes das guerras externas. Os senhores feudais ofereciam ainda o 94 Lenio Streck e Bolzan de Morais estabelecem como consequência da instabilidade do medievo a “fragmentação do poder, mediante a infinita multiplicação de centros internos de poder político, distribuídos aos nobres, bispos, universidades, reinos, corporações etc;” STRECK; MORAIS, Op. Cit., nota 93. p. 24. 95 Sobre a descentralização do poder político, Jorge Miranda assevera que: “Além das grandes abadias monacais, as estruturas urbanas autônomas que vão surgindo – comunas ou concelhos, corporações de mesteres, universidades, etc. – cada qual com a sua função, desenvolvem-se (ou formam-se e desenvolvem- se) à margem de qualquer estrutura administrativa centralizada.” MIRANDA, Op. Cit., nota 06. p. 49. 96 DE CABO MARTÍN, Op. Cit.,
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