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A CARREIRA MORAL DO DOENTE MENTAL

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*A CARREIRA MORAL DO DOENTE MENTAL*
   Tradicionalmente, o termo carreira tem sido reservado para os que esperam atingir os postos ascendentes de uma profissão respeitável. No entanto, o termo está sendo cada vez mais usado em sentido amplo, a fim de indicar qualquer trajetória percorrida por uma pessoa durante sua vida. Aceita-se a perspectiva da história natural: os resultados singulares são esquecidos, considerando-se as mudanças temporais que são básicas e comuns aos participantes de uma categoria social, embora ocorram de maneira independente em cada um deles. Essa carreira não é algo que possa ser brilhante ou decepcionante; tanto pode ser um triunfo quanto urn fracasso. É sob esse aspecto que desejo considerar o doente mental.
Uma vantagem do conceito de carreira é sua ambivalência. Um lado está ligado a assuntos íntimos e preciosos, tajs como, por exemplo, a imagem do eu e a segurança sentida; o outro lado se liga à posição oficial, relações jurí-
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dicas e um estilo de vida, e é parte de um complexo institucional acessível ao público. Portanto, o conceito de carreira permite que andemos do público para o íntimo, e vice-versa, entre o eu e sua sociedade significativa, sem precisar depender manifestamente de dados a respeito do que a pessoa diz que imagina ser.
   Portanto, este artigo é um exercício no estudo institucional do eu. O principal interesse se refere aos aspectos morais da carreira — isto é, a sequência regular de mudanças que a carreira provoca no eu da pessoa e em seu esquema de imagens para julgar a si mesma e aos outros*1.
(*Nota de rodapé 1 – Podemos encontrar material sobre a carreira moral nos trabalhos iniciais sobre cerimônias de transição de status, e em descrições clássicas de psicologia social das mudanças extraordinárias na interpretação que a pessoa dá do seu eu, quando ocorre participação em seitas e movimentos sociais. Recentemente, novos tipos de dados significativos foram sugeridos por interesse psiquiátrico pelo problema da “identidade” e por estudos sociológicos sobre carreiras de trabalho e “socialização de adulto”. – Fim da nota)
   A categoria ”doente mental” será entendida em um sentido sociológico rigoroso. Nesta perspectiva, a interpretação psiquiátrica de uma pessoa só se torna significativa na medida em que essa interpretação altera o seu destino social -— uma alteração que se torna fundamental em nossa sociedade quando, e apenas quando, a pessoa passa pelo processo de hospitalização*2. Por isso, excluo algumas categorias próximas: os candidatos não-descobertos que seriam considerados ”doentes” pelos padrões psiquiátricos, mas que nunca chegam a ser assim considerados por si mesmos ou pelos outros, embora possam causar muitos problemas para todos*3; o paciente de consultório que um psiquiatra considera poder tratar com medicamentos ou choques, fora do hospital; o doente mental que participa de relações psicoterapêuticas. E incluo todos, por mais robustos quanto ao temperamento, que de alguma forma são apanhados pela pesada máquina de serviços de hospitais para doentes mentais. Dessa forma, os efeitos de tratamento como doente mental podem ser bem separados dos efeitos, sobre a vida
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de uma pessoa, dos traços que um clínico consideraria psicopatológicos*4. As pessoas que se tornam pacientes de hospitais para doentes mentais variam muito quanto ao tipo e grau de doença que um psiquiatra lhes atribuiria, e quanto aos atributos que os leigos neles descreveriam. No entanto, uma vez iniciados nesse caminho, enfrentam algumas circunstâncias muito semelhantes e a elas respondem de maneiras muito semelhantes. Como tais semelhanças não decorrem de doença mental, parecem ocorrer apesar dela. Por isso, é um tributo ao poder das forças sociais que o status uniforme de paciente mental possa assegurar, não apenas um destino comum a um conjunto de pessoas e, finalmente, por isso, um caráter comum, mas que essa reelaboração social possa ser feita com relação ao que é talvez a mais irredutível diversidade de materiais humanos que pode ser reunida pela sociedade. Aqui, falta apenas a formação frequente de um grupo de vida protetor por ex-pacientes para exemplicar, de maneira integral, o ciclo clássico de resposta pelo qual os subgrupos divergentes são psicodinamicamente formados na sociedade.
(*Nota de rodapé 2 – Este aspecto foi recentemente salientado por ELAINE e JOHN CUMMINO, Closed Ranks, Cambridge, Commonwealth Fund, Harvard University Press, 1957, PP. 101-2: ”A experiência clínica confirma a impressão de que muitas pessoas definem a doença mental como a condição que exige que uma pessoa seja tratada em hospital psiquiátrico.’ (...) Aparentemente, a doença mental é uma condição que atinge as pessoas que vão para hospital para doentes mentais, mas, até esse momento, quase tudo que fazem é normal”. Leila Deasy me sugeriu a correspondência que existe entre esse caso e o crime de pessoas de classe média. Entre os que são identificados nessa atividade, apenas os que não conseguem evitar a prisão recebem o papel social de delinquentes. – Fim da nota)
(*Nota de rodapé 3 –  Só agora os registros de casos de hospitais psiquiátricos começam a ser explorados para mostrar a incrível perturbação que uma pessoa pode provocar, para si mesma e para os outros, antes de alguém pensar psiquiatricamente nela, e muito menos efetivar alguma ação psiquiátrica a seu respeito. Ver JOHN A. CLAUSEN e MARIAN RADKE YARROW, Paths to the Mental Hospital, Journal of Social Issues, XI (1955), pp. 25-32; AUGUST B HOLLINGSHEAD e FREDRICK C. REDLICH, Social Class and Mental Illness, New York, Wiley, 1958, pp. 173-174. – Fim da nota)
(* Nota de rodapé – Um exemplo da maneira de usar essa perspectiva para todas as formas de desvio pode ser vista em EDWIN LEMERT, Social Pathology, New York, McGraw-Hill, 1951; ver principalmente pp. 74-76. Uma aplicação específica a deficientes mentais pode ser vista em STEWART E. PERRY, Some Theoretic Problems of Mental Deficiency and Their Action pp. 402-3, Patients in Mental Institutions, 1941, Washington, D.C., Department of Commerce, Bureau of the Census, 1941, p. 2 – Fim da nota)
   Esta perspectiva sociológica geral é muito reforçada por uma verificação básica de estudiosos sociologicamente orientados para pesquisa em hospitais psiquiátricos. Como se mostrou repetidamente no estudo de sociedades não-letradas, o temor, a repulsa e a barbárie de uma cultura estranha podem reduzir-se quando o estudioso se familiariza com o ponto de vista aceito por seus sujeitos. De forma semelhante, o estudioso de hospitais psiquiátricos pode descobrir que a loucura ou o “comportamento doentio” atribuídos ao doente mental são, em grande parte, resultantes da distância social entre quem lhes atribui isso e a situação em que o paciente está colocado, e não são, fundamentalmente, um produto de doença mental. Quaisquer que sejam os refinamentos dos diagnósticos psiquiátricos dos vários pacientes, e quaisquer que sejam as maneiras específicas pelas quais se singulariza a vida “no interior”, o pesquisador pode verificar que está participando de uma comunidade que não é significativamente diferente de qualquer outra que já tenha estudado. Evidentemente, ao limitar-se à comunidade externa dos pacientes não-internados, pode sentir, como a’guns pacientes, que a vida nas enfermarias fechadas é bizarra; e quando está nas enfermarias fechadas ou de convalescentes, pode sentir que as enfermarias “atrasadas” de
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doentes crónicos são locais socialmente insanos. Mas é suficiente que mude sua esfera de participação sentimental para a pior enfermaria do hospital, para que esta possa passar, na focalização social, a ser um local com um mundo social onde se pode viver e que tem um sentido contínuo. Isto de forma alguma nega que encontre, em qualquer enfermaria ou grupo de pacientes, uma minoria que continua a parecer bem distante da capacidade para seguir regras de organização social, ou que o atendimento ordenado de expectativas normativas na sociedade de pacientes seja possível,em parte, por medidas estratégicas que de alguma forma foram institucionalizadas nos hospitais para doentes mentais.
   De um ponto de vista popular ou naturalista, a carreira do doente mental cai em três fases principais: o período anterior à admissão no hospital, e que denominarei a fase de pré-paciente; o período no hospital, aqui denominado fase de internamento; o período posterior à alta no hospital que, quando ocorre, será denominado fase de ex-doente*5. Este artigo se refere apenas às duas primeiras fases.
(*Nota de rodapé 5 - Essa imagem simples é complicada pela experiência um pouco específica de aproximadamente um terço de antigos pacientes — isto é, readmissão ao hospital, onde se encontraria a fase de “reincidência” ou “reinternamento”. - Fim da nota)

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