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DESIGUALDADE SOCIAL E EDUCAÇÃO: UMA ABORDAGEM EM J-J ROUSSEAU E PAULO FREIRE Sandro de Castro Pitano Mestrando em Educação pela UFPEL RESUMO Este trabalho analisa as categorias “educação” e “desigualdade social”, sob a ótica de Jean-Jacques Rousseau e Paulo Freire. Seu objetivo é, além de investigar os limites e possibilidades da educação perante a desigualdade social, proporcionar embasamento teórico acerca da educação e sua influência sobre a sociedade, marcada pela extrema desigualdade entre as pessoas. O desenvolvimento do artigo compreende uma abordagem aprofundada acerca das relações entre educação e desigualdade social, no pensamento de Rousseau e Freire. Na conclusão, o poder da educação é dimensionado na perspectiva dos autores, onde são apontados, também, aspectos múltiplos que ambos nos deixaram como legado, na luta contra a desigualdade social através da educação. Palavras-chave: educação, desigualdade social, Jean-Jacques Rousseau e Paulo Freire. INTRODUÇÃO O presente artigo está voltado para a apresentação resumida da Dissertação de Mestrado intitulada “Desigualdade Social e Educação: uma abordagem em Jean- Jacques Rousseau e Paulo Freire”, defendida em novembro último, junto a Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas-(UFPEL). A pesquisa, por ser teórica, teve como base metodológica a investigação bibliográfica das obras de Rousseau e Freire, além de vários autores que os comentam, como Moacir Gadotti, Carlos A. Torres, Jean Starobinski e Robert Derathé, entre outros. Como complemento foi realizada uma visita ao Instituto Paulo Freire (IPF-SP), com ênfase na biblioteca particular de Freire, onde foram analisadas obras de autores teoricamente relevantes para o trabalho. Tendo como objetivo central problematizar as relações entre educação e desigualdade social na perspectiva de Rousseau e Freire, a investigação almejou apontar, a partir de suas idéias, que tipo de educação leva a superação ou a reprodução da desigualdade social. Outrossim, cumpre salientar que, embora teórica, a pesquisa originou-se da realidade contraditória constatada pelo pesquisador em sua prática de ensino, estando, por isso, profundamente atrelada a concretude do ambiente escolar. 2 EDUCAÇÃO E DESIGUALDADE SOCIAL Como os conceitos básicos da pesquisa são “educação” e “desigualdade social” torna-se indispensável esclarecer o significado atribuído a ambos no intuito de proporcionar ao leitor uma melhor compreensão do trabalho. Por “educação” entende-se um processo contínuo e permanente de desenvolvimento da capacidade intelectual, moral e física do ser humano, partindo dos padrões pré- estabelecidos pela sociedade na qual está inserido. Processo este que se dá através da transmissão e aprendizado das técnicas culturais historicamente produzidas e pertencentes a um determinado grupo social, promovendo, sob a sua influência, a elaboração ou a modificação dos comportamentos das pessoas que a ele pertencem. Em Rousseau, o termo “educação” compreende os hábitos e as boas maneiras, (educação moral), além da instrução, correspondente à educação escolar. Sua perspectiva é de uma “educação negativa”, que significa evitar controlar a criança, forçá-la a todo instante. Existindo um curso natural muito mais saudável para o educando, o educador deve menos intervir do que respeitar a integridade desse desenvolvimento. Através de seu método negativo, Rousseau visa demonstrar como uma pessoa seria se fosse criada de acordo com a ordem natural, cujos princípios estão descritos no “Emílio”, comprovando a sua tese de que o homem é bom por natureza e que somente a sociedade o corrompe. O objetivo da educação em Rousseau é proporcionar o conhecimento sobre a realidade, atingindo um saber cujos benefícios devem ser universalizados, além de formar o coração, o espírito e a capacidade de julgamento do ser humano, tornando-o apto para governar-se através de seus próprios poderes. Para Freire (2001, p.78) a “educação” é “uma situação gnosiológica”, é um processo contínuo que envolve comunicação e diálogo entre sujeitos que buscam superar o saber que possuem. Não existem educados e não educados e, sim, graus relativos de educação entre si, pois todas as pessoas possuem algum tipo de saber. A educação possui uma dimensão política que pretende, ao prover o indivíduo de condições intelectuais autônomas, despertar nele a perspectiva de reconhecer-se como sujeito ativo do todo, que é a sociedade civil. Na teoria freireana, onde romper a opressão social na qual se encontra a maioria das pessoas é o objetivo basilar, a educação é uma ação corajosa que deve propor ao homem a reflexão sobre si mesmo, possibilitando o diálogo com o outro e a 3 assunção de uma certa rebeldia, além de identificá-lo com os métodos e processos científicos da sociedade em permanente processo de vir-a-ser. Freire classifica a educação em “bancária” e “problematizadora”. A primeira é baseada na palavra do professor, que busca transferir seu conhecimento ao aluno, o qual é considerado mero depósito do seu saber. Caracteriza-se por ser antidialógica, domesticadora e falsamente neutra. Já a segunda considera a todos como sujeitos do processo de ensino-aprendizagem (educadores e educandos), possibilitando a reflexão crítica sobre a realidade. Por sua vez a “desigualdade social” corresponde ao resultado das diferentes condições econômicas e políticas das pessoas entre si. Como afirma Bobbio (1999, p.443) “os homens estão colocados em posições diferentes no que respeita ao acesso aos bens sociais a que todos, em geral aspiram, mas cuja disponibilidade é escassa”. Portanto, é o modo de existência das pessoas, diverso no que se refere às condições materiais de saúde, de alimentação, de habitação e de ensino que determina que elas sejam desiguais dentro da sociedade a que pertencem. Indignado com a opressão não apenas vista, mas também sofrida, Rousseau fez da desigualdade social uma das grandes preocupações de sua vida, considerando-a o problema chave da estrutura social. Segundo o autor, em relação à espécie humana existem duas formas completamente distintas de desigualdade. A primeira, a desigualdade natural é imposta pela própria natureza humana e “que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito ou da alma” (Rousseau, 1999a, p.159); a segunda, a desigualdade moral, é engendrada a partir da sociedade. Este segundo tipo de desigualdade corresponde à existência dos privilégios possuídos por alguns homens em relação a outros, ou seja, centra-se no âmbito moral ou político; existe somente porque os homens, agindo contra a sua própria natureza, aceitaram-na erroneamente e submeteram-se a uma convenção proposta pelos poderosos, com o objetivo de manter e/ou ampliar suas vantagens. Para Freire, a questão da desigualdade social, no sentido de injustiça, bem como as características dos homens e mulheres que compõem o grupo dos injustiçados, oprimidos e violentados, aproxima-se da preocupação, manifestada pelo autor, relativamente ao problema da desumanização que agride a sociedade como um todo. Esta preocupação se materializa em sua obra, quando expõe seu posicionamento político-pedagógico e defende uma educação escolar 4 “problematizadora” com o intuito de transformar a sociedade considerada injusta e opressora, dividida entre uma maioria oprimida, violentada e uma minoria que oprime. Tanto Rousseau como Freire percebem a educação escolar como fator de possível ruptura ou de reprodução da desigualdade instituída,ou seja, na perspectiva de ambos a escola é um dos elementos estreitamente vinculados às necessidades orgânicas de preservação ou ruptura da ordem social. Althusser, quando vincula a escola à reprodução da força de trabalho, indaga: “Como é que esta reprodução da qualificação (diversificada) da força de trabalho é assegurada no regime capitalista?” Para logo em seguida responder que é “através do sistema escolar capitalista e outras instâncias e instituições” (Althusser, 1970, p.21). Na perspectiva althusseriana, a escola exerce o papel principal de agente reprodutor da ordem social, facilitadamente por que se constitui em uma instituição privilegiada que “dispõe durante tanto tempo de audiência obrigatória” (Althusser, 1970, p.66) da pessoa na fase em que mais facilmente pode ser convencida do que quer que seja - a infância, período de sua formação inicial. Paulo Freire concorda em parte com a opinião de Althusser ao comentar a “neutralidade” da educação como uma manifestação do poder dominante, armadilha sutilmente preparada para atingir objetivos dos opressores. DESIGUALDADE SOCIAL E EDUCAÇÃO NO PENSAMENTO DE ROUSSEAU Assim como hoje, a desigualdade social “justificada” por meio de um poder ideológico dominante também existia na época de Rousseau. Conforme Pilletti (2002, p.82-83) naquele período, a população da França, cerca de 25 milhões de pessoas, dividia-se em três estados ou ordens: o clero, ou seja, a primeira ordem, formada por aproximadamente 125 mil pessoas (0,5 %); a nobreza, ou segunda ordem, composta por 375 mil pessoas (1,5%); e os camponeses e trabalhadores urbanos, que formavam a maioria da população – 24,5 milhões de pessoas (98%) e eram os únicos que pagavam impostos, possibilitando que o clero e a nobreza desfrutassem de grandes privilégios. As famílias camponesas, geralmente, eram numerosas, pois os casais costumavam ter muitos filhos, o que agravava mais a situação em que viviam. A saída encontrada era mandar os filhos mais velhos prestar serviços em casas mais ricas ou partir para longe, angariar fundos e contar, para isso, com a sorte, a fim de garantir a própria subsistência. A desigualdade 5 social aparece como fator determinante do modo de vida de grande parte da população da época, que exerceu e também sofreu influência do ideário rousseauniano. Embora as obras de Rousseau provocassem transformações no contexto social francês à medida que eram publicadas, elas traziam consigo influências sabidamente oriundas de pensadores importantes que o antecederam no tempo. Conforme Ulhôa (1996, p.33) “Rousseau é o filósofo a quem agrada o paradoxo, e se serve sempre das teorias de seus predecessores para acentuar- lhes os conflitos e propor uma fórmula original e própria...” Alguns desses pensadores, tomados como referência por Rousseau tornaram- se clássicos do pensamento político e filosófico, como Thomas Hobbes (Leviatã, editado em 1651), John Locke (Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, de 1690) e Charles Louis de Secondat, conhecido por Montesquieu (Do Espírito das Leis, editado em 1748). Estudando cada um deles, Rousseau separou cuidadosamente o que considerou verdadeiro daquilo que não concordava, aprimorou conceitos e refutou eventuais falhas. Certamente, essa atitude proporcionou-lhe condições amplamente favoráveis que, aliadas ao seu espírito genial, sistematizaram a construção de seus próprios princípios sobre política e educação, tendo como centralidade conciliar os aparentemente inconciliáveis: dependência social com independência natural. Para demonstrar que a estrutura social era fundada sobre falsas convenções, Rousseau sistematizou um conjunto de idéias sobre a trajetória do homem, desde as origens até a sua contemporaneidade, marcada por relações de subserviência entre os indivíduos. E tendo em vista que as desigualdades naturais pouco influenciam na vida dos homens no sentido de degenerá-los, Rousseau aprofunda e direciona seus esforços para demonstrar como ocorre a desigualdade política e, ao mesmo tempo, refutá-la. A desigualdade moral (ou política), fruto da vida em sociedade, surgiu juntamente com o estado civil, através da transformação do “amor-de-si-mesmo” (que é inato) em amor próprio, identificado com a vaidade e o ciúme em relação aos semelhantes. A sociedade provoca o surgimento de necessidades supérfluas, vícios e paixões que em sua origem o homem nunca teria acesso, pois lhe oferece, estrategicamente, recursos e desejos que mutuamente se influenciam e se multiplicam de forma desenfreada. Além disso, a legislação vigente foi engendrada pelos dominantes, para estabilizar seu status de opressor sobre os dominados, o que agravou paulatinamente a desigualdade, culminando 6 em um abismo enorme entre as condições de vida dos ricos e dos miseráveis. Buscando explicar como os homens atingiram tão brutal desigualdade social, Rousseau parte do começo dos tempos, ou seja, do estado de natureza, o qual descreveu com extrema singularidade em relação aos seus antecessores. Rousseau concluiu, refutando a concepção de Hobbes, que o estado de natureza não é um estado de guerra, pois, se o homem não possuía bens, que desejos de cobiça despertaria em seus semelhantes, que também nada possuíam, sequer sabiam o que era possuir? Caracterizou este estado como uma época (a qual pode nem ter existido de fato) em que o homem vivia em paz consigo mesmo, solitário, tranqüilo e ocioso, guiado por instintos, preocupando-se somente com a própria conservação. Porém, se o estado de natureza era solitário, calmo e tranqüilo, porque iria transformar-se repentinamente num estado de convivência em grupo, caracterizado por Rousseau como o verdadeiro estado de guerra entre os homens? Segundo ele, essas mudanças teriam se originado a partir da ocorrência de terríveis fenômenos físicos sobre o ambiente, os quais, transformando o habitat dos homens e impondo-lhes novas necessidades vitais, obrigou-os a desenvolver condições para tornar possível a continuidade da espécie, as quais seriam obtidas somente através da vida coletiva – a associação. Frente ao espaço vital que antecede a sua capacidade reflexiva e, impulsionado por necessidades inesperadas, o homem se associa, produzindo meios técnicos para, de forma mais cabal, intervir neste espaço e humanizá-lo. Doravante, continua a desenvolver sua capacidade mental, percebendo a superioridade que possuía em relação aos animais, e, logo a seguir, aos outros indivíduos da espécie. Estava instituído o início da desigualdade entre os homens. Após obter uma idéia provável sobre o homem natural, e, compará-lo com o homem social, Rousseau não vacilou em apontar a má formação da sociedade como o fato originário da desigualdade social; só a partir dela é que o homem se tornou infeliz e escravo de si mesmo. Entretanto, não se deve concluir que a sociedade seja má por natureza. Ela é sim, um ente necessário face ao progresso do gênero humano, que precisa apenas ser bem formada, constituída levando em conta princípios nobres, como a liberdade, fruto natural da igualdade. E na expectativa de encontrar solução para as desigualdades sociais e, ao mesmo tempo, recuperar a liberdade natural do homem, estendendo-a para o indivíduo e para a sociedade, Rousseau idealiza um 7 Estado modelar, igualitário. Na perspectiva rousseauniana, para que os homens aceitem uma força superior a eles mesmos, submetendo-os de maneira incontestável, é preciso que esta emane da sua própria vontade e mantenha todos os indivíduos em condições morais dignas e respeitosas da sua radicalidade humana. Ser homem é ser livree o homem jamais pode abrir mão dessa liberdade, a não ser em seu próprio proveito e desejo supremos, o que constitui a submissão à “vontade geral”. Ela estabelece as leis que regulamentam a dinâmica social, evitando privilégios e a violência recíproca, garantindo a liberdade e a igualdade, valores concretamente distantes da maioria vitimada pela desigualdade social. A obra pedagógica de Rousseau constituiu um conjunto de métodos, princípios educativos que objetivam garantir ao educando uma formação individual solidamente virtuosa, para que ele enfrente a sociedade tal como ela é. Entretanto, como nem todos os homens conseguirão ser educados ao mesmo tempo, é essencial instituir uma convenção artificial, porém, válida para todos, que garanta a moralidade ao conjunto da sociedade. Não basta salvar uma parte, é preciso socorrer o todo. Tendo como linha mestra a igualdade, para atingir a liberdade de fato, Rousseau estabelece o seu “Contrato Social” apoiado no direito natural que considera, em primeiro lugar, o direito à vida (e não à propriedade, como Locke). No pensamento rousseauniano é como se, necessariamente, o homem devesse passar por uma nova transformação que conservasse intactos seus sentimentos naturais e reformulasse sua concepção de todo, anteriormente existente como ser natural, em uma idéia de parte indivisível de um todo, na nova condição de existência social. Este é o papel fundamental que cabe à educação na perspectiva rousseauniana: formar o homem de acordo com sua nova condição, ou seja, prepará-lo, desde o nascimento, para conviver com os semelhantes de forma harmoniosa, numa relação social completamente diferente daquela que Rousseau presenciava, marcada pela desigualdade e pela injustiça. Outrossim, é possível observar que a salvação do homem, mesmo pela via política, através do “Contrato Social”, jamais abre mão da salvação individual, que é a educação, embora coletivizada pela educação pública e igualitária, oferecida pelo Estado. Vivendo em coletividade, os homens precisam ser disciplinados. Porém, como tudo que é imposto tende a fracassar, a disciplina deve formar-se espontaneamente, ou seja, é a formação do cidadão pleno, através da educação, 8 que irá garantir a ordem social. É a política e a educação, unidas em prol da felicidade humana. DESIGUALDADE SOCIAL E EDUCAÇÃO NO PENSAMENTO DE FREIRE Considerando o contexto histórico de Freire, destacam-se dois momentos de maior relevância: a década de 50, época de criação do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), marcada pela euforia nacional com o desenvolvimentismo apregoado pelo governo JK, quando Freire trabalhou no setor de projetos para assistência social do SESI, e a década seguinte, na qual o Brasil passava pela administração de João Goulart. A educação começava a ganhar força nas áreas mais pobres do Brasil, onde Freire estava engajado como um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento do programa de alfabetização de adultos no nordeste brasileiro, desde a criação do PNA (Plano Nacional de Alfabetização), posteriormente extinto com o golpe de 1964. A construção do pensamento político- pedagógico de Paulo Freire tem, certamente, profunda conexão com a realidade do povo com o qual trabalhou como educador, trocando experiências, compreendendo a situação de miséria em que viviam as pessoas e, como não poderia deixar de ser, indignando-se com ela. Freire entende que a carga opressora carregada pelo oprimido resulta na dualidade de consciência deste. Romper essa dupla consciência torna-se uma necessidade para que o oprimido alcance sua liberdade. Sendo histórico, o homem se depara com obstáculos diversos durante o curso de sua vida. Libertar-se é um deles. Freire afirma que, se por um lado, o oprimido teme a liberdade frente ao desafio de assumir o seu próprio destino, por outro, pode buscar a superação da condição de oprimido para, além de libertar-se, trocar de lugar com o opressor, aquele mesmo que o atormentava anteriormente. Seria uma falsa libertação, que não resolveria o problema ao manter tanto opressores quanto oprimidos. O homem novo, que resulte do processo de libertação, jamais pode ser opressor de outro, pois isto seria a reprodução estrutural da opressão. Assim como Rousseau, desde a infância Freire identificou-se com os oprimidos, dedicando sua vida (de educador) para promover a consciência de classe, ou seja, que o homem consciente de sua situação de explorado alcance o pleno entendimento do seu contexto, desenvolvendo forças que possibilitem superar essa exploração. Para tanto, propõe que, após refletirem sobre sua prática, homens e 9 mulheres dialoguem entre si, libertando-se em conjunto, pois se a realidade social desigual e injusta resulta da ação humana, pode ser modificada: A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa de homens (FREIRE, 2002a, p.37). Esta afirmação revela que transformar a realidade, libertando a oprimidos e a opressores, é a preocupação que o levou a engendrar a “pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora” (Freire, 2002a, p.41), a qual tem dois momentos distintos. No primeiro, ainda dentro de uma realidade desigualmente injusta, logo, opressora, “os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação” (Freire, 2002a, p.41). O segundo momento, quando está “transformada a realidade opressora”, ou seja, no qual os homens e mulheres já estão em “processo de permanente libertação”, a pedagogia deixa de ser apenas do oprimido e passa a ser a pedagogia de todos os homens, assegurando uma convivência pautada no amor, respeito mútuo e tolerância. Portanto, universalizar o vir-a-ser, a humanidade plena para todos, é este o objetivo final da educação que, segundo Freire, precisa posicionar-se entre dois caminhos completamente antagônicos: A opção, por isso, teria de ser também, entre uma educação para a “domesticação”, para a alienação, e uma educação para a liberdade. “Educação” para o homem-objeto ou educação para o homem-sujeito (FREIRE, 2002b, p.44). Coerente com sua posição acerca da sociedade, “insatisfeito com o mundo de injustiças que está aí”, o autor opta pela “educação para a liberdade”. Uma educação “respeitadora do homem como pessoa”, única opção a ser seguida, em se tratando de educadores que acreditam no “futuro como possibilidade e não determinismo”, sabedores que se o amanhã fosse um porvir pré-concebido, caberia tão somente às pessoas se prepararem, para a ele se adaptar. A educação para a liberdade busca recuperar essa concepção de homem sujeito, que não se acomoda, mas se integra ao contexto. Freire explica que a integração é resultado 10 do ajustamento das pessoas à realidade, acrescida da capacidade de transformá- la, o que a torna mais completa, diferente da simples acomodação/ajustamento. Daí que, sendo o futuro um tempo a ser construído, moldado pela mão humana, existe a necessidade da educação, da formação conjunta dessas mãos que serão as encarregadas de lhe dar forma. Formar essas mãos significa capacitá-las, dar-lhes condições tanto físicas como intelectuais para que ajam em seu próprio nome, e não manipuladas para agirem em nome de outros, alienadas. Se o futuro fosse pré- dado, não haveria necessidade de educação, mas tão somente de “adestramento”.Treinam-se os animais, não os homens. Por outro lado, a educação “neutra”, apregoada assim por seus adoradores, reflete diretamente a ideologia dominante, estratégia fundamental do poder opressor para manter tudo como está. Em contrapartida à ideologia dominante e à educação “bancária”, Freire propõe a educação “problematizadora”, a única que, na sua concepção, promove as possibilidades humanas em face da necessária luta pela liberdade dos homens e mulheres. A educação “problematizadora” caracteriza-se por sua vinculação contextual à realidade dos sujeitos envolvidos no processo de ensino- aprendizagem, no caso, os educandos. Partindo do próprio contexto, estes conseguem mais facilmente compreender o sentido dos conteúdos propostos, não de forma imposta pelos educadores, mas adaptados às reais condições da comunidade. Ao mesmo tempo, tendo a própria situação como objeto do conhecimento, os educandos começam a desenvolver conjuntamente sua conscientização. É uma problematização constante, cujo objetivo maior é proporcionar às pessoas que construam sua autonomia, sua capacidade de entender não só o entorno, mas a realidade em sua complexa totalidade, que os envolve e condiciona. Propondo a “educação como prática da liberdade”, Freire reafirma o caráter político de sua pedagogia, o que não significa uma tomada de posição contra alguém específico, mas contra uma situação considerada injusta, ou seja, a miséria. Enfim, a concepção de educação “problematizadora” é aquela em que o educador propõe (não impõe) ao educando o conteúdo do estudo a ser feito a partir das próprias palavras e temas geradores (previamente investigados junto à comunidade) do educando. No primeiro momento, que é a alfabetização (considerada um complemento típico de um ser que não atua conduzido apenas por instinto), os educandos começam a aprender a ler, não somente a palavra, mas 11 o mundo. No segundo momento (pós-alfabetização), as áreas do conhecimento, que geralmente são separadas na escola tradicional, passam a fazer parte do processo, adaptadas de modo a se tornarem próximas em sua significação - interdisciplinares. O aproveitamento temático do que foi discutido durante a etapa de alfabetização é a forma mais coerente de dar prosseguimento ao nível de pós- alfabetização. Pensando com Freire, se a alfabetização de adultos segue uma metodologia própria que “rompe com os esquemas tradicionais”, seria um absurdo “prolongar-se numa pós-alfabetização que a negue” (Freire, 2001, p.47). Engajado na causa da libertação, coerentemente posicionado junto aos oprimidos, Freire salienta a importância de respeitar seus “saberes de experiência feitos”, alavancando os níveis de consciência de um plano “ingênuo” para um plano “crítico”. Enfim, tal procedimento faz da sua teoria pedagógica um instrumento não mecânico, mas eticamente humano e dialético para emancipar, num primeiro momento, o homem e a mulher que sobrevivem na opressão, para que posteriormente estes possam (e devem) emancipar, por sua vez, o seu contrário – o opressor. AFINIDADES ENTRE ROUSSEAU E FREIRE: UM ENCONTRO EM MARX Apostando na constituição legítima da sociedade civil, Rousseau projeta a associação ideal, baseada na democracia das potencialidades naturais dos indivíduos, ou seja, a liberdade igualitária, semelhante ao que Marx buscava com o socialismo científico. De acordo com Della Volpe, a liberdade igualitária é: o direito de cada qual ao reconhecimento social das suas pessoais qualidades e capacidades; é a instância democrática verdadeiramente universal, do mérito, isto é, do fortalecimento social do indivíduo e, portanto da personalidade. É precisamente a liberdade igualitária, liberdade justa, ou seja, liberdade em função da justiça (DELLA VOLPE, 1982, p.46). Aproximando a teoria do contrato social rousseauniano ao socialismo científico, é possível identificar algumas afinidades teóricas que Paulo Freire possui, primeiro com Marx e, logo a seguir, com Rousseau, indiretamente por intermédio do alemão. Os três pensadores demonstram acreditar na solução das desigualdades sociais, refutando uma organização social onde imperam os ideais de apenas uma parcela da população. Para isso, idealizaram uma forma de convivência coletiva 12 extremamente semelhante, onde a liberdade se efetiva na consideração dos méritos e na conseqüente contribuição pessoal de cada um para a sociedade. A concepção de Rousseau acerca da natureza humana parece bastante próxima à de Freire, pois ambos percebem o homem não como um animal originalmente político, como pensava Aristóteles, mas que se torna político pelo desenvolvimento de sua forma de vida frente ao mundo. Embora quase não teorize acerca do homem primitivo, ao longo de algumas obras, entre elas “Educação e Mudança” e “Pedagogia da Autonomia”, Freire parece concordar que o homem sofreu um processo de mudança em determinado momento histórico, adquirindo capacidade de reflexão, através do que passou a construir o mundo cultural. Aproximando-se de Rousseau, Freire assevera que, enquanto natureza, o homem vivia imerso, adaptado ao mundo como qualquer outro animal. Porém, mediante o surgimento das relações conscientes entre si, passaram a existir os sentimentos indignos como o egoísmo e a inveja, que colocando o bem e o mal sob tensão, necessitam de ordenamento ético. A moralidade, instituída pela capacidade de comparação entre os homens é uma questão própria do estado social. Desde o momento em que a moral se incorpora ao ser humano, pela convivência coletiva, tem início a diferenciação artificial entre os indivíduos e a opressão dos fracos pelos fortes. Assim como Freire, Rousseau denuncia toda a negatividade que envolve a realidade social, a desigualdade aviltante que massacra a maioria das pessoas, bem como o erro em que incorre o processo educacional das mesmas. Entretanto, ele não fica limitado ao ato de denúncia, pois logo em seguida anuncia, através dos seus escritos, a possibilidade de reverter a injustiça. Denúncia e anúncio, eis mais um elo entre os dois pensadores que analogamente presenciaram a barbárie em sua época. A miséria frente à opulência, opressores e oprimidos, desigualdades que levam o homem a ser objeto e negar sua natureza. Ambos repudiam a realidade, ambos promovem a mudança. Modificar a desigualdade instituída é uma questão que em ambos passa pela ordem político-pedagógica. Rousseau trabalha através de seus escritos, enquanto Freire escreve e executa em sua prática de educador aquilo que teoriza em suas reflexões: é sua práxis. Educar pela natureza, preservando o homem dos vícios que a sociedade corrupta lhe impõe, formando sua autonomia, esta é a educação de Rousseau: educação “negativa”. Educar pela realidade prática, humildade e 13 diálogo, conscientizando o educando, formando sua autonomia para que lute pela própria liberdade, esta é a educação de Freire: educação “problematizadora”. Enfim, Rousseau e Freire parecem acreditar que a educação pode, embora com um poder impreciso, fruto das “lutas” e das “transgressões”, transformar paulatinamente as pessoas, para que estas, reconsiderando suas concepções acerca de si e da realidade concreta em que estão inseridas processem, gradativamente, a transformação. Esta luta incansável contra a injusta desigualdade social parece ser mais um legado deixado pelos autores. Se a realidade e os homens alteram-se mutuamente, esta luta anunciada no “ontem” e atualizada todos os dias no “hoje”, aproxima-se de uma “prática revolucionária”, pressupondo a “coincidência da mudança das circunstânciascom a da atividade humana, ou mudança dos próprios homens” (Marx, 1983, p.27). É neste embate dialético entre homens e realidade que ambos se modificam, ensejando que comece por nós, agora mesmo, esta transformação! REFERENCIAS ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa, Portugal: Editorial Presença Ltda, 1970. BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Trad. João Ferreira. Brasília: UNB, 1999. DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. Trad. Antonio José Pinto Ribeiro. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1982. FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? São Paulo: Paz e Terra, 2001. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002a. FREIRE, Paulo. Educação Como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002b. MARX, Karl. Tese Sobre Feuerbach. In. Textos Sobre Educação e Ensino. São Paulo: Editora Moraes, 1983. PILLETTI, Nelson. História e Vida Integrada, vol.2 e 3. São Paulo: Ática, 2002. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 14 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999a. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emilio, ou, Da Educação. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1999b. ULHÔA, Joel Pimentel de. Rousseau e a Utopia da Soberania Popular. Goiânia: Editora da UFG, 1996. RESUMO EDUCAÇÃO E DESIGUALDADE SOCIAL
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