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jusbrasil.com.br 29 de Outubro de 2017 A igualdade jurídica entre filhos e os direitos de sucessão nos casos de reprodução assistida post mortem autorizada por "testamento genético" Murad, Tatianna e Paz, Perez RESUMO Durante muito tempo a legislação brasileira estabeleceu um tratamento desigual entre filhos concebidos na constância de um casamento e os que o eram. Tal discriminação foi modificada com a promulgação da Constituição de 1988. Contudo, com o avanço da tecnologia e dos conhecimentos científicos na área de engenharia genética, além da dinamicidade das relações sociais, outras situações põem em dúvida a igualdade entre filhos. Uma dessas situações ocorre nos casos em que alguém deixa autorização por meio de testamento para utilização de seus óvulos ou sêmen mesmo após sua morte. Atualmente, boa parte da doutrina entende que só pode ter direito sucessório aqueles que estavam vivos ou concebidos no momento da morte. Assim, é necessário compreender quais os direitos de sucessão do sujeito concebido por meio de reprodução assistida post mortem autorizada por “testamento genético” e como a igualdade entre filhos pode contribuir numa evolução interpretativa neste contexto. Palavras-Chave: Sucessão Legítima. Reprodução Assistida Post Mortem. Igualdade. INTRODUÇÃO Durante muito tempo a legislação brasileira estabeleceu um tratamento desigual entre filhos concebidos na constância de um casamento e os que o eram, tratando- os, respectivamente, como legítimos e ilegítimos. Tal discriminação foi modificada com a promulgação da Constituição de 1988, que no seu artigo 227 determina: PUBLICAR CADASTRE-SE ENTRARPESQUISAR art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá- los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. [...] § 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. (Negrito Nosso) Com tal disposição, ficou clara a determinação constitucional pela não recepção da legislação que implicasse discriminação entre os filhos. Entre os direitos decorrentes disso, está o reconhecimento dos filhos (sem distinção) como herdeiros legítimos para efeitos de sucessão. Entretanto, o avanço da engenharia genética e a dinamicidade social trouxeram novas questões a serem enfrentadas pelo direito. Atualmente é possível que o material genético ou mesmo um embrião sejam preservados durante muito tempo, tornando possível uma concepção mesmo após a morte do (s) doador (es). Nosso Código Civil de 2002, que demorou décadas para ser promulgado, não trouxe precisão específica para os direitos de sucessão do sujeito concebido por reprodução assistida após a morte do doador do material genético. Não há qualquer previsão acerca dos direitos de sucessão daquele que nascer por meio de reprodução assistida com o consentimento do falecido expresso através de seu testamento se isso ocorrer após abertura da sucessão. E tal hipótese não se trata de mera ficção jurídico-científica, visto que a Resolução nº 2.013/2013, de 09 de maio de 2013, do Conselho Federal de medicina, regula tal possibilidade. Destarte, para fomentar esta discussão, inicialmente é realizada uma contextualização do atual tratamento dado à filiação e aos testamentos no direito brasileiro a partir de uma abordagem histórico-social. Após, passa-se a descrição dos principais elementos característicos do direito de sucessão atual e seu procedimento. Por fim, são retomados alguns aspectos gerais e identificadas as posições doutrinárias e possíveis interpretações às pretensões jurídicas sucessórias da pessoa concebida através de reprodução assistida post mortem diante do atual ordenamento jurídico brasileiro. 1 Filiação, testamentos e direitos de sucessão no ordenamento jurídico brasileiro Flávio Tartuce afirma ser a filiação “a relação jurídica decorrente do parentesco por consanguinidade ou outra origem, estabelecida particularmente entre os ascendentes e descendentes de primeiro grau” (2011, p. 342). Tem como base o dispositivo 1.596 do Código Civil, que aponta sobre o princípio da igualdade dos filhos, e em seu respectivo, artigo 1.597, que traz as presunções de paternidade. Por conta desta busca pela paternidade, deu-se abertura à verdade biológica, concedida por meio de ação de investigação de paternidade. O inciso III, do artigo 1.597, aponta que haverá presunção de paternidade dos filhos havidos por fecundação homóloga (material genético dos próprios cônjuges), ainda que falecido o marido. O mesmo ocorrerá no inciso IV do mesmo artigo, referente aos embriões excedentários, ou seja, concepção artificial também homóloga, mas que não foi introduzido no ventre materno. Por fim, o inciso V, ainda do aludido artigo, aponta sobre a inseminação heteróloga, lembrando ser essencial a aceitação prévia do marido, como aponta Tartuce “há a necessidade dessa prévia autorização, caso contrário, não existe a presunção de paternidade”. (2011, p. 346). O modelo tradicional adotado cientificamente aponta que a família atual não mais se baseia apenas pelo biológico. Isso acontece porque apenas a certeza absoluta da origem genética não mais conta como fundamentação suficiente, uma vez que outros valores foram acrescentados ao ordenamento e passaram a dominar o campo das relações humanas. Concomitantemente, não se pode comparar a identidade genética com a identidade de filiação devido ao fato de que esta segunda baseia-se por relações socioafetivas, e não apenas biológicas, determinando o parentesco por meio desta. Adiante, temos a questão do testamento no meio desta problemática. Prescreve o artigo 1.857 “toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte”. Testamento, pois, é o documento pelo qual a pessoa, em vida, indica como será a disposição de seus bens, tanto móveis quanto imóveis, manifestando sua vontade por meio deste e, consequentemente, produzindo efeitos jurídicos após sua morte. Trata-se, então, de um negócio jurídico unilateral e de natureza personalíssima, havendo a transmissão de bens com a morte do testador em prol dos legatários ou herdeiros indicados no documento. É necessário, porém, lembrar-se das regras jurídicas por quais este documento se baseia, como o fato de que a parte destinada aos herdeiros legítimos não poder entrar neste. Caso venha a ocorrer erro na designação do herdeiro, legatário ou do bem posto em pauta, anula-se o testamento (no que estiver comprometido). Apenas se for possível a identificação destes, por meio de outros documentos ou fatos inequívocos, considera-se válido o mesmo. Tem capacidade para adquirir por testamento as pessoas físicas ou jurídicas, existentes ao tempo da morte de quem testa, não sendo incapazes. Ainda, pessoas naturais, nacionais ou estrangeiras, maiores ou menores, vivas ao tempo de abertura da sucessão, também podem ser herdeiras ou legatárias. Por fim, as pessoas jurídicas, civis ou comerciais, de direito público ou de direito privado, também tem capacidade passiva no testamento. Mister frisar que estes só receberão da parte disponível deixada pelo testador, sendo a parte legítima inteiramente voltada aos herdeiros legítimos. Adiante, temos presente no ordenamento, duas espécies de sucessão, sendo elas: a legítima e a testamentária. Apesar de ser a testamentária mais extensa e em maior quantidade de artigos, é a legítima a mais frequente na sociedade brasileira. Dispõe, pois, o artigo 1.788 do Código Civil que“morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo”. Assim, tendo o de cujus falecido sem testamento, ou que o testamento tenha sido declarado ineficaz ou que tenha caducado, haverá uma relação preferencial das pessoas que serão chamadas a suceder o morto. Na sucessão legítima, os herdeiros são apresentados pelo legislador, feito em uma sequência denominada de vocação hereditária, a partir de uma relação preferencial, estabelecida por lei, em relação às pessoas que representarão a sucessão do de cujus. Temos então: a) descendentes, o qual os mais próximos excluem os mais remotos e os de mesmo grau concorrem por cabeça; b) ascendentes, no qual iguala-se aos descendentes e não podendo haver direito de representação para os mesmos, sendo interessado apenas o grau, não havendo distinção na linha materna ou paterna; c) colaterais, igualando-se aos anteriores com uma exceção: caso haja direito de representação para filho de irmão pré-morto. Caso haja irmãos híbridos, os bilaterais receberão o dobro dos unilaterais. No caso de sobrinhos e tios, os sobrinhos têm preferência. 2 Igualdade jurídica entre os filhos e sua repercussão nos direitos sucessório O Código Civil tem na sua regulamentação, especificamente em seu livro V, o direito das sucessões; o direito da transmissão de bens por causa mortis do de cujus deixados para os herdeiros, através da sucessão legítima ou por meio do testamento. Na Constituição Federal, ele é resguardado em seu artigo 5º, inciso XXX em que “é garantido o direito à herança” (BRASIL, 1988). Isso se dá, basicamente, devido aos princípios basilares que regem essa parte da legislação, tais quais, o da isonomia dos filhos; da dignidade da pessoa humana e, finalmente, o da pluralidade das relações familiares. Estão definidos nos artigos 1.798 e 1.799, as pessoas com capacidade legitima e testamentária, respectivamente, para que sucedam a herança do de cujus. O inciso I do artigo 1.799 afirma que “os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão” (BRASIL, 1988), reconhecendo, assim, a possibilidade de capacidade sucessória à prole que venha a ser concebida eventualmente à morte do de cujus, desde que concebido até dois anos após a abertura da sucessão. Os arrolados nesse inciso tem sua sucessão definida, pois, pelo artigo 1.800, em seus 3º e 4º parágrafos, estabelecendo: Art. 1.800. No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da herança serão confiados, após a liquidação e partilha, a curador nomeado pelo juiz. (...) § 3º Nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador. § 4º Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário pelo testador, caberão aos herdeiros legítimos. Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2008) aponta que o contido no artigo 277, § 6º da CF, divide-se em dois aspectos que não podem se confundir, os quais há a) a igualdade de qualificação entre filhos e b) a igualdade de direitos entre eles. Com a morte, a herança do falecido precisa ser titularizada e, por isso, o ordenamento jurídico brasileiro se utiliza do princípio de saisine, de modo que a transmissão de direitos e obrigações do falecido é imediata. Assim, quando aberta a sucessão, os descendentes do de cujus são os primeiros a serem chamados, recebendo ampla proteção do ordenamento. Já em relação aos descendentes pós- morte, há divergência doutrinária de como ocorre. Uma delas aduz que, apesar de serem considerados filhos, não lhes são imputáveis direitos sucessórios por conta de sua concepção após a morte do de cujus, não se enquadrando no rol do artigo 1.798. De forma contrária, há quem defenda, baseando-se no artigo 1.799, em seu inciso I, que haverá, sim, o direito sucessório destes. Voltar-se-á ao tema adiante. Na sucessão testamentária, traz o novo código a possibilidade de direitos hereditários para a chamada prole eventual, nome dado aos filhos ainda não concebidos, mas de pessoas indicadas pelo testador que ainda vivas quando ocorrer sua morte. Afirma a autora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka que: [...] efetivada a liquidação ou a partilha da herança, os bens que couberem ao sucessor não concebido serão confiados a um curador nomeado pelo juiz, a quem caberá administrar os bens. Verificado seu nascimento com vida, ser-lhe- á deferida a sucessão, prestadas todas as contas devidas pelo curador dos atos que tenha praticado nessa qualidade. Caso se trate do pai ou da mãe do neonato, permanecerá este, em conjunto com o outro genitor, na administração dos bens que pertençam a seu descendente, mas agora por deterem os genitores o poder familiar, com os ônus e privilégios que dele advenham. Nessa hipótese de herdeiro ou sucessor esperado que vem efetivamente a existir e nasce com vida, o que acaba por ocorrer é, portanto, uma dupla ficção legal: não só os bens se transmitem ao sucessor no exato momento da morte do autor da herança (princípio da saisine) como essa transmissão se opera em favor de uma pessoa inexistente. A lei presume que ela existirá e reserva os bens que a ela caberão, garantindo que ela os adquira, na qualidade de nascituro; e presume, ainda, que tal nascituro nascerá com vida, confirmando, então a aquisição operada no momento da concepção de forma retroativa ao momento da morte. Admite-se, então, a possibilidade desse indivíduo gerado após a morte do falecido herdar, mas mister lembrar que é necessário a sua indicação em testamento, assim como de sua progenitora. Ao nascer com vida, desde que no prazo de dois anos, este indivíduo poderá tomar a posse de sua condição de herdeiro. 3 Direitos de sucessão nos casos de reprodução assistida post mortem autorizada por testamento genético A sucessão envolve transmissão de titularidade. Em sentido lato, suceder é "pospor-se no tempo"; em sentido estrito para o Direito, "suceder é herdar, ou haver por legado, ou haver por deixa modal: supõe a morte de quem foi sucedido" (MIRANDA, LV, 2012, p. 221). Seu fundamento está ligado ao sistema capitalista, pois a sucessão é um instrumento, ou melhor, uma consequência, do direito à propriedade e sua manutenção (DINIZ, 2013, p. 18; GONÇALVES, 2014, p. 28,29). O direito brasileiro não tolera que com a morte os bens do falecido fiquem sem proprietário, sem dono. Assim, conforme o disposto no artigo 1.784 do Código Civil (2002), com a morte ocorre a transferência instantânea da titularidade dos direitos (passíveis de sucessão) aos seus sucessores de modo universal, unitário (RODRIGUES, 2003, p.11; GONÇALVES, 2014, p. 39). Trata-se do princípio da saisine, que surgiu na Idade Média com finalidade de transmitir as terras do arrendatário aos seus sucessores de modo instantâneo com a morte, evitando a anterior prática de devolver as terras ao senhor feudal e o pagamento de tributos para nova imissão na posse (GONÇALVES, 2014, p. 38). Assim, no momento da morte ocorre também o que o Código denomina de "abertura da sucessão". Neste primeiro momento, se entende por "sucessores" todos os herdeiros que o são a título universal, quer por legitimidade, quer por testamento, desde que preenchidos os requisitos legais e não haja impedimento. Não obstante, dentro dos limites da liberdade de testar, pode o autor da herança determinar a quem irá a titularidade singular de determinado bem/direito no momento da abertura da sucessão, indicando tanto o sujeito (legatário), que pode ser determinado ou determinável por terceiro indicado, e bem/direito (DINIZ, 2013, p. 31,32; RODRIGUES, 2003, p. 18). Dentre as váriasformas de legado, há o legado de coisa singular (TARTUCE & SIMÃO, 2010, p. 357, 358). A situação do legatário difere dos herdeiros a título universal em relação à propriedade do bem legado: caso seja infungível, se dará desde a abertura da sucessão; fungível, somente após a partilha (DINIZ, 2013, p. 37). Quanto ao objeto do legado: [...] a liberdade de legar nada mais é senão a liberdade de fazer testamento aplicado à hipótese de um objeto singular, que deve ser lícito, possível, economicamente apreciável e suscetível de alienação, podendo ser presente ou futuro, corpóreo (imóveis, móveis, semoventes), incorpóreo (títulos particulares, ações, etc.), abranger ou não acessórios, pertencente ou não ao testador ou ao herdeiro, podendo, ainda, incidir em prestações de fazer ou não fazer algo (DINIZ, 2013, p. 349, 350). Importante salientar que no testamento pode haver disposições tanto de cunho patrimonial como não-patrimonial. Contudo, estas últimas, para gerar efeitos, devem conter "cunho jurídico" (VENOSA, 2006, p. 179-181). Conforme destacou Pontes de Miranda (2012, LVI, p. 122), no direito hodierno "só não pode ser testável o bem que não pode ser transmitido, seja em geral, seja por faltar ao beneficiado pressuposto para aquisição". Pois bem, com tais considerações é possível adentrar na discussão proposta, iniciando com a possibilidade de testamento genético no Brasil. Durante as últimas décadas houve grande avanço tecnológico, onde um dos principais focos foi a engenharia genética, que hoje torna possível o congelamento de óvulos e sêmen para posterior utilização de modo relativamente acessível à grande parte da população. São dois os tipos de pessoas que levam seu material a uma clínica especializada neste trabalho: para o uso alheio (inseminação artificial heteróloga) e para uso próprio - com o próprio cônjuge/convivente/parceiro (inseminação artificial homologa). Uma advogada israelense, Irit Rosenblum, tem defendido que, entre as disposições testamentárias, é possível que um dos "bens" destinados a sucessão seja o material genético previamente congelado com indicação de quem poderá dele fazer uso (ALVES, 2014). A esta disposição é que se refere o termo "testamento genético". Ressalte-se que tal defesa se refere àqueles que buscaram o congelamento do material genético para fins de reprodução assistida homóloga, mantendo, portanto, a titularidade sobre o mesmo - o que difere substancialmente de doações a bancos de material genético para fim de reprodução assistida heteróloga. Apesar de o Código Civil determinar a presunção de paternidade para os casos de reprodução assistida homóloga, não há legislação vigente regulando o assunto. Desde 2003 há no Congresso Nacional diversos projetos de Lei com o fim de regular este processo, mas até agora não houve aprovação. Neste vácuo legislativo, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução CFM nº 1.957/10, que regula as técnicas de reprodução assistida e tem sido seguida pelos médicos e profissionais da área como se lei fosse. Entre as diversas diferenças entre a reprodução assistida homóloga e a heteróloga, podemos destacar as questões relativas à filiação e ao anonimato. Quanto à filiação, estabelece o Código Civil: Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: [...] III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. Nota-se que o código determina a presunção de paternidade do doador no caso da homóloga e a presunção de paternidade do marido na heteróloga - pode ser aplicada a convivente por analogia desde que haja contrato de convivência. Isso ocorre porque no Brasil, em regra, o doador do material genético permanece no anonimato no caso da reprodução assistida heteróloga, conforme determina a Resolução CFM n. 1.957/2010: IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES [...] 2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa. 3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador. Com isso, não é possível que alguém indique o receptor do material genético para reprodução heteróloga. Trata-se de um ilícito, caso ocorra. Por decorrência lógica, considerando que mesmo durante a vida não é possível transferir a titularidade sobre material genético a um sujeito específico para reprodução heteróloga, também não o será por meio de testamento. Não há que se falar, portanto, em testamento genético para esta espécie de reprodução assistida. Mesmo que fosse superada tal barreira e se admitisse tal disposição, não haveria nenhum efeito jurídico entre doador-"filho", pois a filiação seria exclusiva do casal/sujeito que recebeu o material. A doação de material genético neste caso não tem qualquer possibilidade de gerar efeitos de filiação ou sucessórios entre o eventual sujeito que nascer por tal meio e o doador. Por outro lado, como já mencionado, o Código Civil prevê a possibilidade de reprodução assistida homóloga post mortem e presume o estado de filiação dai decorrente. Segundo a Resolução CFM n.º 1.957/2010: VIII – REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM Não constitui ilícito ético a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização prévia específica do (a) falecido (a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente. Considerando que o testamento pode conter disposições não materiais, e. G. Reconhecimento de filho, não há nenhum óbice de que a autorização mencionada pela resolução se dê mediante disposição testamentária. Neste sentido estrito, é possível reconhecer a juridicidade de testamento genético no Brasil e seu efeito de autorizar a reprodução assistida homóloga post mortem. O Código Civil já garante o direito à filiação do filho que nascer por este meio. Desta forma, não há dúvidas acerca dos direitos decorrentes do estado de filiação deste filho, e. G., direito a alimentos. Contudo, em relação aos direitos sucessórios a situação é diversa. Grande parte da doutrina entende que o filho decorrente de reprodução assistida POST MORTEM (filho PM) não possui legitimidade para suceder por não preencher os requisitos do Código Civil: Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. A partir de tal dispositivo legal, advogam em favor do princípio da coexistência, ou seja, de que no momento da morte devem coexistir o falecido e o (s) sucessor (es), salvo o nascituro - exceção legal (RODRIGUES, 2003, p. 37; TARTUCE & SIMÃO, 2010, p. 43; GONÇALVES, 2014, p. 69, 70; DINIZ, 2013, p. 35-39; VENOSA, 2006, p. 50, 51). Que somente pode suceder por meio de sucessão legítima quem possuir "personalidade jurídica material" ao tempo da morte e que essa espécie, diferente da testamentária, além do nascituro, "não comporta exceções" (TARTUCE & SIMÃO, 2010, p. 46). O principal motivo de observância do princípio da coexistência é o princípio da saisine, visto que é necessária a existência do sucessor no momento da abertura da sucessão. Não obstante, Pontes de Miranda (2012, LV, p. 59) destaca que este princípio não é absoluto e é pela própria legislação relativizada no caso da prole eventual para herdeiro/legatário testamentário: Uma vez que se permite a sucessão pela prole eventual de alguém, bem como pela entidade que, através de alguma pessoa, indicada pelo testador, vai ser criada e personificada, abre-se exceção ao princípio da contemporaneidade damorte com os pressupostos da sucessibilidade. Apesar desta lição, Pontes de Miranda (2012, LV, p. 60) também advoga que na sucessão legítima só pode suceder quem estiver vivo ou, ao menos, concebido. É pacífico entre a doutrina e jurisprudência o direito do nascituro in vivo a figurar como sucessor legítimo desde que venha a nascer com vida, mas em relação ao embrião congelado há muita controvérsia. Tem prevalecido que o embrião in vitro no momento da abertura da sucessão também figura como sucessor, desde que venha a ser fecundado e nascer com vida, conforme o Enunciado n. 267 do Conselho Federal de Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil (DINIZ, 2013, p. 62; TARTUCE & SIMÃO, 2010, p. 45). Segundo o Enunciado, o filho proveniente deste embrião poderá fazer uso da petição de herança para obter seus direitos sucessórios. O mesmo não ocorre com relação ao material genético ainda não fecundado no momento da abertura da sucessão. Os autores entendem o filho proveniente de reprodução assistida homóloga ocorrida após a abertura da sucessão, mesmo que autorizada pelo testamento, não possui direitos sucessórios em relação de cujus. Interessante que a doutrina que não vê possibilidade de direitos sucessórios neste caso é a mesma que louva a igualdade entre os filhos reconhecida na Constituição de 1988 em seu artigo 227, § 6. A doutrina tem feito interpretação restritiva deste artigo, considerando não ser admitido tratamento desigual entre filhos em relação à filiação em sentido estrito, e que o mesmo não ocorre em relação a sucessão legítima, podendo ser excluídos dela os filhos não nascidos nem concebidos no momento da abertura da sucessão. Há uma preocupação excessiva com o patrimônio, com base numa construção jurídica de que este não admite ficar sem dono, a ponto de se admitir o tratamento desigual entre filhos na sucessão. O parlamento, apesar da morosidade em aprovar uma lei sobre o assunto, tem mostrado interpretação mais adequada à valorização do ser humano, da família e do princípio da igualdade. Pode se notar isso no parecer dado pela Comissão de Constituição E Justiça e de Cidadania ao Projeto de Lei n.º 1.184, de 2003 (Apensos os de nos 2.855, de 1997, 4.665, de 2001; 120, 1.135, 2.061, de 2003, 4.686, de 2004 e 4.889, de 2005) que visa regulamentar a matéria. Em um dos trechos, no voto do relator, Deputado Colbert Martins, há o seguinte argumento sobre a constitucionalidade de excluir os filhos provenientes de reprodução assistida post mortem da sucessão: No concernente à juridicidade, não vemos nos projetos afronta aos princípios jurídicos que informam nosso ordenamento jurídico, salvo o PL 120/03 que proíbe a geração de direitos sucessórios ao filho, carece de legitimidade, e, portanto, é injurídico. O próprio artigo 227, § 6o, de nossa Magna Carta estabelece que: “§ 6o - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” Deste modo não há como aprovar o que pretende este Projeto 120/03 nem o que pretende o de no 4.686/04, no concernente à sucessão. Se nossa Magna Carta proíbe quaisquer discriminações relativas à filiação (o que abarca o direito sucessório), se o Código Civil (art. 1626) ao tratar da situação de filho ao adotado, desliga-o de qualquer vínculo com os pais e parentes consangüíneos, salvo quanto aos impedimentos para o casamento, que dizer do filho que nasceu de uma situação consentida dos pais, qual seja, a da inseminação artificial (art. 1597 do CCB)? Teria ele menos direitos do que o adotado? Ora, se se admite que o filho adotado possua todos os direitos dos demais desde o processo já esteja em fase adequada, como não permitir que o filho concebido após o falecimento, com consentimento firmado em testamento, não possua também os direitos sucessórios de quaisquer outros filhos? Houve muitas mudanças sociais desde a época em que o atual código foi promulgado e o direito não pode deixar de progredir a interpretação jurídica no sentido de valorizar a pessoa humana e seus direitos. Com a devida vênia aos autores mencionados, a interpretação que admite o tratamento desigual do filho post mortem na sucessão legítima não se coaduna com a interpretação Constitucional vigente. É necessária uma interpretação conforme a Constituição do artigo 1.798 do Código Civil para interpretá-lo de acordo com a igualdade plena entre os filhos ou a revogação do mesmo. CONCLUSÃO No Brasil, só se pode entender por “testamento genético” a disposição de vontade de caráter não patrimonial contida em testamento com o fim de autorizar o uso de material genético previamente congelado para o uso em reprodução assistida homóloga post mortem. Não é possível deixar material genético para uso em reprodução assistida heteróloga, nem durante a vida, nem após ela, por caracterizar prática ilícita, vedada. Tendo em vista as disposições do Código Civil, o princípio da coexistência e da saisine, além do aspecto eminentemente patrimonialista do direito sucessório, a maioria da doutrina entende que aos filhos concebidos por reprodução assistida homóloga post mortem não há direitos sucessórios por não preencherem o requisito de existir ou estar concebido ao tempo da abertura da sucessão, e, portanto, não possuírem legitimidade sucessória. Porém, a partir de uma leitura constitucional que leve em conta as mudanças sociais e os princípios basilares do nosso sistema, como a dignidade da pessoa humana e a igualdade entre filhos, é possível mudar esta interpretação para proceder a uma interpretação conforme a Constituição para o artigo 1.798 do Código Civil ou mesmo revogá-lo. Assim como já houve tempo em que o branco teve privilégios sobre o negro em função da cor da pelé; o homem sobre a mulher em função do sexo; e do filho nascido de casamento sobre o que não nasceu; a legitimidade nos direitos sucessórios só para os filhos nascidos ou concebidos na abertura da sucessão e exclusão dos nascidos após o falecimento também deve ser rechaçada pela interpretação jurídica comprometida com os princípios constitucionais e valorização da pessoa humana. REFERÊNCIAS BRASILEIRO, Flávia Ayres de Morais e Silva. Direitos sucessórios dos inseminados “post mortem” versus direito à igualdade e à segurança jurídica. Disponível em:. Acesso em: 26 de agosto de 2014. DINIZ, Maria Helena. Direito Civil Brasileiro: direito das sucessões. V. 6. 27. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família: guarda compartilhada à luz da lei n.º 11.698/08: família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008, p.91. 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