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CAPÍTULO 13 Vida afetiva A IMPORTÂNCIA DA VIDA AFETIVA “O coração tem razões que a própria razão desconhece.” Quais são essas razões? São nossos afetos que dão o colorido especial à conduta de cada um e às nossas vidas. Eles se expressam nos desejos, sonhos, fantasias, expectativas, nas palavras, nos gestos, no que fazemos e pensamos. É o que nos faz viver. Para falarmos de afetos, seria preferível dar a palavra aos poetas. Estes sim, expressam-nos de uma maneira tão clara, tão precisa, que traduzem com perfeição estados internos que não cabem na racionalidade científica: Quanto mais desejo Um beijo seu Os afetos podem ser duradouros ou passageiros. Muito mais eu vejo Gosto em viver.1 [pg. 189] Por que os psicólogos precisam falar da vida afetiva? Porque ela é parte integrante de nossa subjetividade. Nossas expressões não podem ser compreendidas, se não considerarmos os afetos que as acompanham. E, mesmo os pensamentos, as fantasias — aquilo que fica contido em nós — só têm sentido se sabemos o afeto que os acompanham. Por exemplo, aquela idéia de que o melhor amigo irá se sair mal em uma competição, só adquire sentido quando descobrimos que sua origem está na inveja que se tem dele. O Psicólogo, em seu trabalho, não pode deixar de lado esse aspecto constitutivo da subjetividade — a vida afetiva — e estudar apenas a vida cognitiva e racional dos indivíduos. Agindo assim, certamente não irá compreendê- los em sua totalidade. Por tanto amor Por tanta emoção A vida me fez assim Doce ou atroz Manso ou feroz Eu, caçador de mim.2 Pense em quantas vezes você já programou uma forma de agir e, na hora “H”, comportou-se completamente diferente. Por exemplo, uma jovem soube algo de seu namorado que a aborreceu, mas ela racionalmente resolveu não criar caso e pensou: “Quando ele chegar, vou ser carinhosa e não vou deixar transparecer que me aborreci” e, de repente, quando o tem à sua frente, ela se vê esbravejando, agredindo, enciumada. Seus afetos a traíram. Foi difícil ou, no caso, impossível contê-los. Tanto nesse exemplo, como em muitas situações de vida, não 1 Djavan. Pétala. In: Luz. LR Rio de Janeiro, CBS, 138251, 1982. L. A. F. 1. 2 Sérgio Magrão e Luís Carlos Sá. Caçador de mim. In: Caçador de mim. Milton Nascimento. LP. Diadema, Ariola, 201632, 1981. Outro lado. F. 1. há a mediação do pensamento — são os afetos que determinam nosso comportamento. É nesta circunstância que se ouve aquela frase tão corriqueira: “Como ele é impulsivo!”. Por isso, os afetos são importantes para os psicólogos. Marx afirmou “que o homem se define no mundo objetivo não somente em pensamento, senão com todos os sentidos (...). Sentidos que se afirmam, como forças essenciais humanas (...). Não só os cinco sentidos, mas os sentidos espirituais (amor, vontade...)”3. [pg. 190] O ESTUDO DA VIDA AFETIVA O estudo da razão tem sido privilegiado no interesse dos homens, principalmente na ciência, pois os afetos têm sido vistos como deformadores do conhecimento objetivo. Mesmo na Psicologia, não são todas as teorias que consideram a importância da vida afetiva, tendo, muitas delas, priorizado apenas o estudo da cognição, das funções intelectivas. Consideramos que estudar apenas alguns aspectos do homem é considerá-lo como um ser fragmentado, correndo-se o risco de deixar de analisar aspectos importantes. Como diz Bader Sawaya: “O homem se afirma no mundo objetivo, não só no ato do pensar, mas com todos os sentidos, até com os sentidos mentais (vontade, amor e emoção)”4. Minha mãe achava estudo A coisa mais fina do mundo, Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, 3 K. Marx. Manuscritos econômicos e filosóficos, p. 149-50. 4 B. Sawaya. A consciência em construção no trabalho de construção da existência. São Paulo, PUC, 1987, tese de doutoramento (mimeo.). Ela falou comigo: “Coitado, até essa hora no serviço pesado”. Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com Água quente. Não me falou em amor, Essa palavra de luxo.5 A vida afetiva, ou os afetos, abarca muitos estados pertencentes à gama prazer-desprazer, como, por exemplo, a angústia em seus diferentes aspectos — a dor, o luto, a gratidão, a despersonalização — os afetos que sustentam o temor do aniquilamento e a afânise, isto é, o desaparecimento do desejo sexual. Ao procurarmos compreender a vida afetiva, é importante adotarmos a terminologia adequada por tratar-se de uma área de estudo repleta de nuances. Portanto, se até o século 19 usavam-se, indiscriminadamente, termos como emoção e sentimento, hoje, no estudo da vida afetiva, já fazemos uma distinção mais precisa entre esses termos: • a emoção: estado agudo e transitório. Exemplo: a ira. • o sentimento: estado mais atenuado e durável. Exemplo: a gratidão, a lealdade. [pg. 191] OS AFETOS Os afetos podem ser produzidos fora do indivíduo, isto é, a partir de um estímulo externo — do meio físico ou social — ao qual se atribui um significado com tonalidade afetiva: agradável ou desagradável, por exemplo. A origem dos afetos pode também nascer, surgir do interior do indivíduo. O universo dos afetos é comunicável na medida que as representações de coisa e palavra formam, com os afetos, um complexo 5 Adélia Prado. Ensinamento. In: Bagagem. 2. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1979. p. 124 (Coleção Poiesis). psíquico inteligível. É importante lembrar aqui que, para a Psicanálise, não há afeto sem representação, isto é, sem idéia. Se assim fosse, poderíamos ter a impressão que existe afeto solto dentro de nós — uma sensação de mal-estar, por exemplo —, isso porque a idéia à qual o afeto se refere pode estar inconsciente. O prazer e a dor são as matrizes psíquicas dos afetos, ou se constituem em afetos originários. Entre estes dois extremos encontram- se inúmeras tonalidades, intensidades de afetos, que podem ser vagos, difíceis de nomear ou discriminados. Com açúcar, com afeto Fiz seu doce predileto Pra você parar em casa.6 Existem dois afetos que constituem a vida afetiva: o amor e o ódio. Estão sempre presentes na vida psíquica — de modo mais ou menos integrado —, associados aos pensamentos, às fantasias, aos sonhos e se expressam de diferentes modos na conduta de cada um. Freud, quando postulou a teoria do Complexo de Édipo, concebeu-o como conflito desses afetos básicos (ambivalência de sentimentos), pois uma das suas principais dimensões é a oposição entre “um amor fundamentado e um ódio não menos justificado, ambos dirigidos à mesma pessoa”7. As aparências enganam 6 Chico Buarque de Hollanda. Com açúcar, com afeto. In: Chico Buarque de Hollanda. LP. São Paulo, RCA-Abril Cultural, 1970 (MPB, 4). L.1. F. 2. 7 Freud. Apud J. Laplanche e J.-B. Pontalis. Vocabulário da Psicanálise, p. 51. Entre o prazer e a dor há inúmeros matizes de afeto. Aos que odeiam e aos que amam Porque o amor e o ódio Se irmanam na fogueira das paixões8. [pg. 192] Os afetos ajudam-nos a avaliar as situações, servem de critério de valoração positiva ou negativa para as situações de nossa vida; eles preparam nossas ações, ou seja, participam ativamente da percepção que temos das situações vividas e do planejamento de nossas reações ao meio. Essa função é caracterizada como função adaptativa. Quando olhaste bem Nos olhos meus E o teu olhar era de adeus Juro que não acreditei Eu te estranhei Me debrucei sobre oteu corpo E duvidei E me arrastei.9 Os afetos também têm uma outra característica — eles estão ligados à consciência, o que nos permite dizer ao outro o que sentimos, expressando, através da linguagem, nossas emoções. E é isso o que fazem, incessantemente, os poetas, até mesmo quando não querem falar: 8 Tunai e Sérgio Natureza. As aparências enganam. In: Saudade do Brasil. Elis Regina. LP. Rio de Janeiro, Elektra, 32054, 1980. v. 1. L. B. F. 2. 9 Chico Buarque de Hollanda e Francis Hime. Atrás da porta. In: O melhor de Elis. LP. Rio de Janeiro, Polygram, 6470625, 1979. L. 2. F. 3. Qual o afeto oculto por esta expressão? Não quero falar, Pois sinto. Não tenho de amar, Pois amo.10 Contudo, muitas vezes os afetos são enigmáticos para quem os sente. Exemplos: quando temos muitos motivos para não gostar de alguém de quem gostamos; ou quando deveríamos ser gratos a alguém de quem temos raiva. Há motivos dos afetos que estão fora do campo da consciência; nem mesmo quem os vivência consegue explicar — só sente a estranheza daquele sentimento que parece “fora do lugar”. Eu queria ficar triste Mas não consigo parar de rir...11 [pg. 193] Os afetos também podem ser enigmáticos para aqueles que os supõem em nós a partir de alguma expressão, isso porque, muitas vezes, nossa reação não condiz com o que sentimos (com que o outro esperava), ou seja, nem sempre o comportamento está em conformidade com os nossos afetos, os quais não queremos (ou não podemos) demonstrar. Nada ficou no lugar Eu quero quebrar essas xícaras Eu vou enganar o diabo Eu quero acordar sua família Eu vou escrever no seu muro E violentar o seu gosto Eu quero roubar no seu jogo Eu já arranhei os seus discos. 10 Paulo Benedito Pinheiro (Lentomar de Cascais). Eternidade. In: Marvento. São Paulo, Taba, 1981. 11 Alvin L. e Vinícius Massena. Casa e Jardim. Cantada por Marina Lima. Que é pra ver se você volta Que é para ver se você vem Que é pra ver se você olha pra mim12. AS EMOÇÕES As emoções são expressões afetivas acompanhadas de reações intensas e breves do organismo, em resposta a um acontecimento inesperado ou, às vezes, a um acontecimento muito aguardado (fantasiado) e que, quando acontece... Nas emoções é possível observar uma relação entre os afetos e a organização corporal, ou seja, as reações orgânicas, as modificações que ocorrem no organismo, como distúrbios gastrointestinais, cardiorrespiratórios, sudorese, tremor. Um exemplo comum é a alteração do batimento cardíaco. Meu coração Não sei por quê Bate feliz Quando te vê.13 [pg. 194] Durante muito tempo, acreditou-se no coração como o lugar da emoção, talvez pelo fato de, ao manifestar-se, vir freqüentemente acompanhada de fortes batimentos cardíacos. Por isso, até hoje desenhamos corações para dizer que estamos apaixonados. Amigo é coisa pra se guardar Debaixo de sete chaves Dentro do coração.14 Outras reações orgânicas acompanham as emoções e revelam 12 Adriana Calcanhoto. Mentiras. 13 Pixinguinha. Carinhoso. In: Pixinguinha. LR São Paulo, RCA-Abril Cultural, 1970 (MPB, 2). L. 1. F. 2. 14 Milton Nascimento e Fernando Brant. Canção da América. In: Saudade do Brasil. Elis Regina. LP Rio de Janeiro, Elektra, 32054, 1980. v. 2. L. A. F. 4. vivências ou estados emocionais do indivíduo: tremor, riso, choro, lágrimas, expressões faciais etc. As reações orgânicas fogem ao nosso controle. Podemos “segurar o choro”, mas não conseguimos deixar de “chorar por dentro”, sentindo aquele nó na garganta e, às vezes, tentamos, mas não conseguimos segurar duas ou três lágrimas que escorrem, traindo-nos, demonstrando nossa emoção. Assim como o riso e a aceleração dos batimentos cardíacos, o choro — cantado e recantado pelos poetas como expressão de amor, saudade e desejo — é uma das reações mais freqüentes e comuns em nossa cultura. Você partiu Saudades me deixou Eu chorei15. Quem parte leva saudades De alguém que fica16. Todas essas reações de que vimos falando são importantes descargas de tensão do organismo emocionado, pois as emoções [pg. 195] são momentos de tensão em um organismo, e as reações orgânicas são descargas emocionais. Se eu chorasse Talvez desabafasse O que sinto no peito E não posso dizer 15 Alcebíades Barcellos e Armando V. Marçal. Agora é cinza. In: Carnaval, confete e serpentina. Rio de Janeiro, Coopim, 1985. 16 Henricão e Rubens Campos. Está chegando a hora. In: Carnaval, confete e serpentina. Rio de Janeiro, Coopim, 1985. É possível dissimular as emoções. Só porque não sei chorar Eu vivo triste a sofrer17. Infelizmente, nossa cultura estimula algumas reações emocionais e reprime outras. Os homens sabem bem disso. “Homem não chora” é uma das frases mais comuns na educação de nossos jovens. Infelizmente, o senso comum não foi sensível para aprender com os poetas que se chora, sim, e que choro é expressão de vida afetiva, de amor e de ódio; de força de um organismo que se adapta a uma situação de tensão — nunca sinal de fraqueza! Por outro lado, as reações emocionais orgânicas são, até certo ponto, aprendidas, ou seja, nosso organismo pode responder de diversas maneiras a uma situação, mas a cultura “escolhe” algumas formas como sendo mais adequadas a determinadas situações ou tipo de pessoas (por exemplo, de acordo com a idade, o sexo ou a posição social). Durante nossa socialização, aprendemos essas formas de expressão das emoções aceitas pelo grupo a que pertencemos. Assim, passamos a associar reações do organismo às emoções, as quais podemos distinguir. Por exemplo, distinguimos o choro de tristeza do choro de alegria; o riso de alegria do riso de nervoso. As emoções são muitas: surpresa, raiva, nojo, medo, vergonha, tristeza, desprezo, alegria, paixão, atração física — ora são mais difusas, ora mais conscientes; às vezes encobertas, às vezes não. As emoções, por estarem ligadas diretamente à vida afetiva — aos afetos básicos de amor e ódio — estão ligadas também à sexualidade (amor). [pg. 196] Quando transmites o calor De tua mão para o meu corpo Que te espera Me deixas louca 17 Max Bulhões e Milton de Oliveira. Não tenho lágrimas. In: Carnaval, confete e serpentina. Rio de Janeiro, Coopim, 1985. E quando sinto que teus braços Se cruzaram em minhas costas Desaparecem as palavras Outros sons enchem o espaço Você me abraça A noite passa Me deixas louca.18 Não temos por que esconder nossas emoções. Elas são nossa própria vida, uma espécie de linguagem na qual expressamos percepções internas; são sensações que ocorrem em resposta a fatores geralmente externos. São fortes, passageiras; intensas, mas não imutáveis. Isto quer dizer que o que hoje nos emociona, poderá amanhã não nos emocionar mais. Essa força e mutabilidade foi expressa neste poema de Vinícius de Moraes: De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama 18 A. Manzanero. Me deixas louca. Ver. Paulo Coelho. In: Trem azul. LR Rio de Janeiro, Som Livre, 4116006, 1982.Disco 1. L. B. F. 5. Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure.19 [pg. 197] OS SENTIMENTOS Os afetos básicos (amor e ódio), além de manifestarem-se como emoções, podem expressar-se como sentimentos. Os sentimentos diferem das emoções por serem mais duradouros, menos “explosivos” e por não virem acompanhados de reações orgânicas intensas. Assim, consideramos a paixão uma emoção, e o enamoramento, a ternura, a amizade, consideramos sentimentos, isto é, manifestações do mesmo afeto básico — o amor. 96467785 O importante é compreender que a vida afetiva — emoções e sentimentos — compõe o homem e constitui um aspecto de fundamental importância na vida psíquica. As emoções e os sentimentos são como alimentos de nosso psiquismo e estão presentes em todas as manifestações de nossa vida. Necessitamos deles porque dão cor e sabor à nossa vida, orientam-nos e nos ajudam nas decisões. Enfim, são elementos importantes para nós, que não podemos nos compreender sem os sentimentos e as emoções. Socorro, não estou sentindo nada. Nem medo, nem calor, nem fogo. Não vai dar mais pra chorar. Nem pra rir. Socorro, alguma alma, mesmo que penada, me empreste suas penas. Já não sinto amor nem dor, 19 Vinícius de Moraes. Soneto de fidelidade. In: Antologia poética. Rio de Janeiro, José Olympio, 1987. p. 77. Já não sinto nada. Socorro, alguém me dê um coração, Que esse já não bate nem apanha. Por favor, uma emoção pequena, Qualquer coisa. Qualquer coisa que se sinta, Tem tantos sentimentos, Deve ter algum que sirva. Socorro, alguma rua que me dê sentido, Em qualquer cruzamento, Acostamento, Encruzilhada. Socorro, eu já não sinto nada.20 [pg. 198] Saber e compreender o mundo que nos rodeia é fundamental para que possamos estar nele. A apreensão do real é feita de modo sensível e reflexivo e, portanto, realizada pelo pensar, sentir, sonhar, imaginar. Para finalizar este capítulo — o poeta não poderia estar ausente! — escolhemos o trecho de uma poesia cujos versos destacam a importância da vida afetiva: O que pode o sentimento não pode o saber nem o mais claro proceder nem o mais amplo pensamento. (...) Só o amor com sua ciência nos torna tão inocentes.21 20 Arnaldo Antunes e Alice Ruíz. Socorro. In: Um som. 21 Violeta Parra. Volver a los 17. In: Geraes. LR S. Bernardo do Campo, EMI-Odeon, 12973, 1976. L. 1.F. 3. Texto complementar O ENAMORAMENTO Quando nos enamoramos, por muito tempo continuamos a dizer a nós mesmos que não o estamos. Passado o momento em que se revelou o acontecimento extraordinário, retornamos à vida quotidiana e pensamos que tudo foi passageiro. Mas, para nosso espanto, esse momento nos volta à mente, nos cria um desejo, uma ânsia que só se aplacam quando re-vemos a pessoa amada ou escutamos sua voz. Mas tudo volta logo a desaparecer, e dizemos a nós mesmos que foi apenas uma exaltação que não tem importância alguma. Talvez haja um pouco de verdade nisso, pois no começo não se distingue bem se é realmente um enamoramento ou se tudo não passa de uma reestruturação radical do mundo social em que vivemos, e que faz parte orgânica de todos nós. Mas se esse desejo reaparece, e torna a reaparecer e se impõe, então estamos verdadeiramente enamorados. O enamoramento é um processo no qual a outra pessoa, aquela que encontramos e que nos correspondeu, se nos impõe como o objeto pleno do desejo. Esse acontecimento nos impõe a reorganização de tudo, e esse fato obriga- nos a repensar tudo, especialmente o nosso passado. Na realidade, não é um repensar, mas um refazer. É, com efeito, um renascimento. O estado nascente (do enamoramento ou dos movimentos sociais) tem a extraordinária propriedade de refazer o passado. Na vida quotidiana, não podemos refazer o passado. Nosso passado existe com suas desilusões, suas recordações, suas amarguras. (...) As pessoas enamoradas (e muitas vezes ambas conjuntamente) revêem o passado e se dão conta de que o que aconteceu foi assim porque, naquele momento, fizeram opções, que elas quiseram e agora não querem mais. O passado não é negado nem oculto, é privado de valor. É verdade que amei e odiei meu marido, mas não o odeio mais; enganei-me, mas posso mudar. Então o passado se configura como [pg. 199] pré-história, e a verdadeira história começa agora. Desse modo terminam o ressentimento, o rancor e o desejo de vingança. Não se pode odiar o que não tem mais valor nem importância. Essa experiência muitas vezes provoca nos enamorados uma angústia, uma inquietação. A pessoa amada fala na minha frente sobre o seu passado, sobre seus amores e sobre a pessoa com quem se casou ou com quem vive. De início fala com rancor, num desabafo; depois, pouco a pouco, quase com ternura. Diz: “Ele foi mau para mim, mas me ama; gosto dele, não quero fazê-lo sofrer, gostaria que fosse feliz”. Essas palavras indicam um distanciamento que existe apenas porque não há mais tensão, nem medo, nem vingança. Mas podem ser interpretadas como um amor que persiste e que, por vezes, provoca ciúme. A pessoa enamorada pode até relacionar-se com o marido (ou com a mulher), se este não cria obstáculo, sem rancor, com afeto. Seu passado adquiriu outro significado à luz de seu novo amor. No fundo, pode até continuar gostando do marido ou da mulher justamente por estar apaixonada. A alegria desse amor a torna dócil, meiga, boa. É geralmente a outra pessoa enamorada que não aceita esse fato, que não acredita nele, que deseja a pessoa amada somente para si. Como cada um dos dois almeja essa exclusividade e essa certeza, ambos se vêem obrigados muitas vezes a se magoarem mais do que cada um desejaria. (...) Francesco Alberoni. Enamoramento e amor. Trad. Ary Gonzales Galvão. Rio de Janeiro, Rocco, 1986. p. 18-9. Questões 1. Por que os psicólogos estudam as emoções? 2. Por que, por vezes, as emoções são consideradas como deformadoras da realidade? 3. O que são os afetos? 4. Quais os dois afetos básicos de nossa vida psíquica? 5. O que é a ambivalência de sentimentos? 6. O que são emoções? 7. Por que se pensava que o lugar das emoções era o coração? 8. Quais tipos de reações orgânicas acompanham as emoções? 9. Qual a importância dessas reações orgânicas para a saúde? 10. Como se explica a função adaptativa das emoções? Atividades em grupo 1. Descreva para seus colegas um momento de emoção que você viveu, procurando completar a descrição com as reações orgânicas que você sentiu. 2. Qual a importância das emoções e sentimentos na nossa vida? Falem de situações que vocês viveram. 3. Discutam a influência da socialização na expressão dos afetos. Vocês conhecem alguma cultura em que as pessoas expressem diferentemente de nós os seus afetos? [pg. 200] 4. Escolham uma emoção ou um sentimento e pronunciem-se sobre: • o que aquele afeto significa para você; • quando e como você o sente? 5. Debatam se os nossos sentimentos e as nossas emoções são sentidos da mesma forma por todos nós. As pessoas sentem emoções sempre da mesma forma? 6. De acordo com o texto complementar, respondam: que é o enamoramento e o que acontece quando nos enamoramos? 7. Discutam um filme visto por vocês e que os tenha emocionado. Falem sobre a emoção sentida e suas causas. Bibliografia indicada Para o aluno É interessante explorar com os alunos a sua própria vivência afetiva, favorecendo a troca de experiências entre eles. A literatura em Psicologia sobre o assunto não é muito adequada para esta fase da escolarização. Temos, no entanto, “Emoção e afetividade”,texto de Solange Nogueira Buono, publicado no livro Psicologia no ensino de 2º grau, coordenado pelo Sindicato dos Psicólogos e CRP-06 (São Paulo, Edicon, 1986). Há ainda o capítulo 5 do livro Motivação e emoção, de Edward Murray (Rio de Janeiro, Zahar, 1971). E, sem dúvida, grande parte dos livros de Psicologia abordam este aspecto, podendo o professor selecionar textos mais simples que complementem o trabalho. Para o professor Para os alunos aprofundarem o estudo do tema deste capítulo, sugerimos a leitura de Teoria das emoções: introdução à obra de Henri Wallon (Lisboa, Moraes, 1981), de M. Martinet. O discurso vivo — uma teoria psicanalítica do afeto (Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982), de André Green, aborda a vida afetiva na obra de Freud e na dos pós-freudianos, como Lacan e Melanie Klein, além de desenvolver uma teoria sobre os afetos baseada na Psicanálise. Filmes indicados O cinema é um excelente meio de provocar e reviver emoções. Qualquer filme pode ser visto com proveito para o debate da vida afetiva. [pg. 201]
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