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A falácia da proteção da saúde invidivual e pública da atual normativa de drogas brasileira e sua inconstitucionalidade Jeniffer Beltramin Scheffer

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INSTITUTO DE CRIMINOLOGIA E POLÍTICA CRIMINAL 
JENIFFER BELTRAMIN SCHEFFER 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A FALÁCIA DA PROTEÇÃO DA SAÚDE INDIVIDUAL E PÚBLICA 
DA ATUAL NORMATIVA DE DROGAS BRASILEIRA E SUA 
INCONSTITUCIONALIDADE 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CURITIBA 
2014 
 
 
 
 
JENIFFER BELTRAMIN SCHEFFER 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A FALÁCIA DA PROTEÇÃO DA SAÚDE INDIVIDUAL E PÚBLICA 
DA ATUAL NORMATIVA DE DROGAS BRASILEIRA E SUA 
INCONSTITUCIONALIDADE 
 
 
 
 
Monografia de especialização apresentada como 
requisito parcial à conclusão do Curso de 
especialização em Direito Penal e Criminologia 
(Pós-graduação lato sensu) do Instituto de 
Criminologia e Política Criminal – ICPC e a 
Universidade Tuiuti do Paraná. 
 
Orientador: Prof. Dr. André Peixoto de Souza
 
 
 
 
 
 
CURITIBA 
2014
i 
 
 
 
TERMO DE APROVAÇÃO 
 
 
 
A FALÁCIA DA PROTEÇÃO DA SAÚDE INDIVIDUAL E PÚBLICA 
DA ATUAL NORMATIVA DE DROGAS BRASILEIRA E SUA 
INCONSTITUCIONALIDADE 
por 
JENIFFER BELTRAMIN SCHEFFER 
 
 
 
Esta Monografia de Especialização foi apresentada em 31 de julho de 2014 ao Instituto de 
Criminologia e Política Criminal (ICPC) e da Universidade Tuiuti do Paraná como requisito 
parcial para a obtenção do título de Especialista em Criminologia e Política Criminal. Após 
deliberação, a Banca Examinadora considerou o trabalho aprovado com a seguinte avaliação: 
 
 
Nota de avaliação:__________________ 
 
 
 
_________________________________ 
Juarez Cirino dos Santos 
Prof. Dr. Coordenador do Curso 
 
 
_________________________________ 
André Peixoto de Souza 
Prof. Dr. Orientador 
 
ii 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 Agradeço ao meu marido, Dafner Santos Hirye, pelas inúmeras horas de reflexão 
conjunta sobre o assunto. Agradeço à minha irmã, Nicoli Beltramin Scheffer, e ao meu 
cunhado, Thiago Augusto Pereira, também pelas várias horas de reflexão conjunta, e em 
especial à Nicoli pelo apoio técnico na correção ortográfica e gramatical do trabalho. 
Agradeço aos meus pais, Joel dos Santos Scheffer e Noeli Lourdes Beltramin Scheffer, por 
terem me dado asas e me permitido experimentar situações da vida que sequer imaginariam. 
Agradeço a todos os professores do ICPC, em especial ao Professor Juarez Cirino dos Santos 
pela paciência e pela generosidade ao nos banquetear com tanto conhecimento calcado numa 
experiência de vida repleta de amor ao próximo. Agradeço ao meu orientador, o Professor 
André Peixoto de Souza, pela paciência e pela confiança. E por final, agradeço a todos os 
colegas que fizeram deste curso de pós-graduação um caldeirão de experiências únicas e 
particulares. 
 
iii 
 
 
 
RESUMO 
 
SCHEFFER, Jeniffer Beltramin. A falácia da proteção da saúde individual e pública da atual 
normativa de drogas brasileira e a sua inconstitucionalidade. 2014. 75 páginas. Monografia 
(Especialização em Direito Penal e Criminologia) – Instituto de Criminologia e Política 
Criminal e Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, 2014. 
 
Esta pesquisa apresenta uma abordagem teórica conceitual da questão da criminalização do 
uso e do comércio das drogas tornadas ilícitas. Discute-se os conceitos de droga ilícita, a 
forma como feita a escolha das drogas para se tornarem proibidas ao consumo humano, bem 
como da proibição do seu comércio. Traz um apanhado histórico do tratamento da matéria, 
demonstrando que razões político-econômicas determinaram a criminalização destas 
substâncias, e não as razões de saúde, comumente utilizadas pelo discurso oficial da 
criminalização. Demonstra como a criminalização das condutas de usar e comercializar 
drogas ocasiona mais danos à saúde do que o próprio uso e abuso destas substâncias. Conclui 
que a normativa relativa ao tema é inconstitucional por não proteger bem jurídico que se 
propõe – saúde individual e pública- e ainda por atingir outros bens jurídicos constitucionais – 
liberdade de disposição do próprio corpo, vida privada e intimidade. 
 
Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Drogas. Direito Penal. Saúde individual. Saúde 
Pública. 
 
 
iv 
 
 
 
LISTA DE ABREVIATURAS 
 
ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária 
BZP – 1-benzil-piperazina 
CCINC – Cabinet Committee for International Narcortic Control 
CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas 
CF – Constituição Federal Brasileira de 1998 
DEA – Drug Enforcement Administration 
EMCDDA – Centro Europeu de Monitoramento de Dependência de Drogas 
EUA – Estados Unidos da América 
LSD - é o acrônimo de Lysergsäurediethylamid, palavra alemã para a dietilamida do ácido 
lisérgico. 
MDMA – 3,4 metilenodioximetanfetamina (ecstasy) 
NSP – novas substâncias psicoativas 
NIDA– National Institute on Drug Abuse 
OMS – Organização Mundial de Saúde 
ONU – Organização das Nações Unidas 
PMA – paramethoxyamphetamine, 4-methoxyamphetamine, 4-MA. 
PNCDT - Plano Nacional Contra a Droga e as Toxicodependências de 2005-2012 
SINCAD – Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências de 
Portugal 
THC - Tetrahidrocanabinol 
UE – União Européia 
UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo 
 
 
v 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 1 
CAPÍTULO 1: Histórico da política criminal das drogas ......................................................... 5 
CAPÍTULO 2: Direito do uso de drogas como expressão da liberdade de disposição do 
próprio corpo, intimidade e vida privada.................................................................................... 24 
CAPÍTULO 3: A proteção deficiente da saúde individual e coletiva por meio da 
criminalização do uso de drogas ................................................................................................. 40 
3.1. Arbitrariedade da escolha das drogas tornadas ilícitas – violação do princípio 
da isonomia ....................................................................................................................... 43 
3.2. Danos à saúde causados pela proibição ..................................................................... 48 
3.2.1. Pela falta de controle de qualidade das drogas ofertadas no mercado 
ilegal ........................................................................................................................ 49 
3.2.2. Pelos perigos das novas substâncias psicoativas ou designer drugs ............. 51 
3.2.3. Pelo afastamento do usuário do sistema de saúde ......................................... 53 
3.2.4. Pela dificuldade de pesquisar sobre as drogas e suas propriedades ............... 55 
3.3. Danos à vida ............................................................................................................... 57 
CAPÍTULO 4: A inconstitucionalidade da criminalização do uso de drogas e da falta de 
regulamentação de todas as drogas utilizadas pelo homem ....................................................... 60 
CONCLUSÃO ............................................................................................................................ 68 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................... 71 
 
1 
 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
“Os médicos se uniram às forças da lei para decretar a separação entre a medicina e o 
prazer. Hoje definimos um meio de consumir drogas como terapia e outro como delito”, em 
entrevista comenta o psiquiatra norte-americano Lester Grinspoon no High Times (The Best 
of High Times, vol. II, 1977/78,pág. 99). 
 
Sempre tive muita dificuldade em compreender o discurso oficial da proibição das 
drogas tornadas ilícitas1. Nunca entendi porque o senso comum, as mídias e até o Estado 
vociferam tanto contra algumas drogas, e ao mesmo tempo são tão complacentes ou até 
permitem a propaganda em horário nobre de outras. Vemos diariamente propagandas de 
álcool exaltando os benefícios do seu consumo, mentindo ao consumidor, ao associar o 
consumo a conquistas pessoais, como relacionamentos com pessoas mais bonitas ou a 
conquista de mais amigos. As propagandas de cigarro eram até pouco tempo atrás também 
muito comuns na televisão e nas bancas de jornal, com seus atores e atrizes elegantes, 
desfilando charme ao fumarem um cigarro. Além das propagandas comerciais, temos uma 
enxurrada de merchandising2 destes produtos em filmes e novelas, incluídos em contextos 
especificamente selecionados para fazer o telespectador associar o seu consumo a situações 
especificas de alívio, prazer, angústia, alegria, etc. Em contrapartida, as campanhas contra o 
consumo de crack, por exemplo, trazem imagens pavorosas, associando o usuário a zumbis e 
doentes, estigmatizando o uso da substância. Isto sem falar na forma como a sociedade, em 
especial a família, exalta o consumo do álcool e do cigarro – quem já não ouviu a história do 
pai/mãe que molha a chupeta da criança no vinho, na cachaça ou na cerveja? Quem nunca 
ofereceu, brindou ou presenteou alguém com a droga álcool? 
Foi pela perplexidade e até esquizofrenia da forma como a sociedade trata do tema que 
me interessei pelo assunto. Desde o final do curso de graduação em direito, me intriga a 
questão da seleção das drogas tornadas ilícitas e de como elas servem a objetivos políticos e 
econômicos muitas vezes mascarados pelo discurso médico. Ao entrar em contato com a 
 
1
 Apropriei-me da expressão “drogas tornadas ilícitas”, freqüentemente utilizada pela Juíza e ex-defensora 
pública aposentada, Maria Lucia Karam em seus diversos artigos sobre a descriminalização das drogas, pois 
expressa a arbitrariedade da separação entre drogas lícitas e ilícitas, tema que será tratado no terceiro capítulo 
deste trabalho. 
2
 “No Brasil tem-se chamado de "merchandising" quando uma marca, logo, ou produto aparece em uma ou mais 
cenas, inserida no contexto, geralmente em segundo plano ou mesmo sendo parte de diálogo, manuseio, 
vestimenta, ou qualquer forma que permita ser inserida em um filme ou fotografia sem ser o carro chefe do 
produto, tendo para isso um custo e também uma forma de compensação. O termo correto usado nos Estados 
Unidos é "Product Placement".” Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Merchandising. Acesso em: 27 mar. 
2014. 
2 
 
 
 
história da criminalização de drogas, me deparei com diversos discursos diferentes. Há quem 
diga que as drogas foram proibidas para o “bem da humanidade”, pois geram grave dano à 
saúde pública. Estes, não conseguem delimitar o exato alcance do dano, caindo em 
generalizações nada científicas. E há quem demonstre que a evolução da criminalização de 
algumas drogas específicas tem razões muito mais obscuras do que a simples proteção à saúde 
dos cidadãos. Para estes, razões de cunho político e razões de cunho econômico, envolvendo 
especificamente grupos marginalizados, são explicações muito mais razoáveis à arbitrária 
seleção das drogas tornadas ilícitas. Esta incursão na história da criminalização das drogas é 
feita no primeiro capítulo do trabalho. 
No segundo capítulo é abordada a doutrina do bem jurídico, mais especificamente dos 
bens jurídicos constitucionais da liberdade individual, da intimidade e vida privada, e da 
saúde. O objetivo agora é demonstrar que a garantia do uso permitido de drogas é uma 
expressão da garantia da proteção destes bens. 
O terceiro capítulo é uma proposta de desmistificação do discurso oficial dos objetivos 
da criminalização e da manutenção da criminalização do uso e comércio de algumas drogas 
como proteção ao bem jurídico saúde individual e coletiva. Primeiramente apresento a 
normativa internacional que gerou a criminalização de drogas em praticamente todos os 
países, demonstrando o abismo entre os motivos da edição destes tratados e os efeitos 
benéficos ou maléficos de cada droga seja ela lícita ou ilícita, a fim de evidenciar a 
desproporcionalidade na escolha das substâncias que se tornariam ilegais. Em segundo 
momento proponho a desmistificação do discurso da saúde, no sentido de demonstrar que a 
saúde pública, longe de ter sido a razão da transformação de algumas drogas lícitas em 
ilícitas, não tem sido protegida pela atual proposta penal de criminalização do usuário e do 
comerciante destas substâncias. Ao contrário, o tratamento penal dado ao uso e comércio das 
drogas tornadas ilícitas tem como grave conseqüência diversos danos à saúde individual do 
usuário. Primeiro porque não há qualquer controle sobre as substâncias vendidas no mercado 
ilegal das drogas, sujeitando os usuários ao arbítrio do traficante, que no intuito de aumentar 
seus lucros utiliza substâncias perigosíssimas à saúde do usuário nas drogas que vende. 
Segundo porque a proibição de algumas substâncias, como o LSD3 e o Ecstasy4, faz com que 
 
3
 “LSD é o acrônimo de Lysergsäurediethylamid, palavra alemã para a dietilamida do ácido lisérgico, que é 
uma das mais potentes substâncias alucinógenas conhecidas.” (grifo meu) Disponível em: 
http://pt.wikipedia.org/wiki/LSD. Acesso em: 27 mar. 2014. 
4
 “A metilenodioximetanfetamina (MDMA), XTC, ADAM, MDM, pílula do amor mais conhecida 
por ecstasy, é uma droga moderna sintetizada (feita em laboratório), cujo efeito na fisiologia humana é a 
diminuição da reabsorção da serotonina, dopamina e noradrenalina no cérebro, onde estas substâncias ficarão em 
3 
 
 
 
outras substâncias similares e permitidas, mas muito mais perigosas, sejam fabricadas e 
colocadas no mercado de consumo em substituição àquelas, pois para o comerciante5 fugir da 
ilegalidade é muito mais importante do que a saúde de seus clientes. Terceiro porque o 
usuário não pode se aproximar do sistema de saúde, pois arrisca ser confundido com traficante 
e consequentemente ser preso e processado. Há ainda um problema a ser considerado, o status 
de ilegalidade das substâncias tornadas ilícitas dificulta imensamente, chegando a 
praticamente impedir pesquisas científicas sobre estas substâncias, sobre seus efeitos no 
organismo, forma de dependência e relação com o usuário, fazendo com que a ignorância 
impere no trato do tema. Mas não só a saúde individual é atingida pela criminalização. 
Centenas de pessoas, principalmente jovens da periferia, negros e pobres, são mortos 
anualmente tanto pelas mãos dos próprios traficantes, em acerto de contas, pois onde há 
ilicitude o Estado não tutela pelo judiciário; quanto pelas mãos de policiais, nos famigerados 
“Autos de Resistência”. 
Partindo desta desmistificação, o argumento de proteção ao bem jurídico saúde 
individual e saúde pública para criminalizar a conduta de usar substâncias psicoativas é 
desconstituído, esvaziando assim a justificativa jurídico-social para a criminalização do uso 
de drogas consideradas ilícitas. 
Desta forma, o Estado tanto não deve impedir, por meio de criminalização, que o 
usuário, amparado pelos direitos à intimidade e vida privada, liberdade e saúde, utilize alguma 
substância psicoativa, quanto deve garantir, autorizando e regulamentando o comércio, que 
este mesmo usuário tenha meios idôneos para adquirir qualquer droga. 
Neste sentido, inauguro o quarto capítulo deste trabalho, utilizando a chamada teoria 
da acessoriedade, que busca alcançar condutas acessórias – interligadas e necessárias – a 
conduta de usar, tal quais as condutas de produzire comercializar, para demonstrar que a 
criminalização da produção e do comércio de drogas também são inconstitucionais por serem 
acessórias à conduta de usar. Há, contudo, na alegação de inconstitucionalidade do tráfico6 de 
drogas uma barreira de difícil transposição, tal seja o mandamento constitucional do artigo 5º, 
 
maior contato entre as sinapses, causando euforia, sensação de bem-estar, alterações da percepção sensorial do 
consumidor e grande perda de líquidos, pertencente a família das anfetaminas.” (grifo meu) Disponível em: 
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ecstasy. Acesso em: 27 mar. 2014. 
5
 Utilizo o termo “comerciante”, pois não seria tecnicamente correto chamar de traficante quem comercializa 
substâncias lícitas, conforme art. 60, §2º da Lei 11.343/2006. 
6
 Utilizo neste trabalho a expressão “tráfico” incluindo todas as condutas do art. 33 da lei 11.343/2006, tal seja: 
Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em 
depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas. 
4 
 
 
 
inciso XLIII da Constituição Federal7. A doutrina e jurisprudência pátrias não aceitam que 
determinações constitucionais como o mandamento de criminalização do tráfico de drogas 
não sejam obedecidos pelo legislador constitucional derivado. A fim de superar esta ordem de 
criminalização do poder constituinte originário, ainda no capítulo quatro, utilizo a chamada 
teoria da inconstitucionalidade de normas inconstitucionais, nascida na Alemanha, mostrando 
que o tratamento originário da matéria baseou-se em mandamentos de países e organizações 
internacionais influentes, sem fundamentos científicos, e que contrastam com demais direitos 
constitucionais, como a intimidade, a privacidade, liberdade individual e a saúde. 
Diante deste cenário de guerra e dor, onde usuários são cada vez mais estigmatizados, 
e a periferia virou um campo de batalha entre traficantes e Estado, uma nova forma de 
proteção deve ser pensada e deve surgir a partir de um enfoque mais humanitário com a 
questão. Esta nova forma de proteção deve privilegiar o tratamento do tema partindo dos 
pressupostos da intimidade, liberdade individual e educação para a prevenção do abuso, 
fazendo com que as drogas deixem de ser um tabu na sociedade, única forma de permitir que 
haja espaço dentro das famílias pra a prevenção do abuso através da educação/informação. 
 
 
7
 Art. 5º, XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o 
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles 
respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; 
5 
 
 
 
CAPÍTULO 1 - Histórico da Política Criminal de Drogas 
 
 As grandes navegações do século XVI e XVII foram motivadas pela busca de novas 
drogas. O açúcar, o tabaco, os incensos, as resinas aromáticas, os bálsamos, o pau-brasil, a 
noz moscada, a pimenta e a canela são exemplos das chamadas drogas pelos homens daquele 
período, e todos estes produtos e vários outros os incentivaram a cruzarem os mares. Naquela 
época, o termo droga era utilizado tanto para produtos alimentícios quanto para produtos 
medicinais; e a sua origem provavelmente deriva do termo holandês droog, que significava 
produtos secos para designar substâncias naturais utilizadas, sobretudo, na alimentação e 
medicina. (CARNEIRO, 2005). 
 A saúde do corpo, a disposição dos sentidos, o prolongamento da vida e a 
aproximação dos povos por meio do comércio eram algumas das virtudes exaltadas das 
substâncias que levaram os europeus a buscarem por estes produtos tão preciosos por toda a 
terra. 
 Assim, antes de significar substância de origem vegetal, animal ou mineral usada para 
produzir remédios ou estimulantes sensoriais de prazer, as drogas representavam um conjunto 
de riquezas naturais exóticas destinadas ao consumo tanto para curar os males do corpo 
quanto para aprimorar a alimentação. 
 A história da humanidade é a história das suas relações com o ambiente. É a história 
do homem transformando o mundo a sua volta. É a história do homem que utiliza a natureza 
para os mais variados propósitos. Dentro deste universo particular, que é a relação do homem 
com o seu entorno, percebemos uma relação muito longa e especial com as drogas. Desde os 
tempos longínquos o homem utiliza as mais variadas formas de manipulação de vegetais, 
minerais, e produtos de origem animal para suprir suas necessidades alimentícias, de saúde e 
até para o entretenimento. 
Na Roma Antiga, por exemplo, o consumo do vinho já era muito corriqueiro entre os 
adultos. Homens e mulheres bebiam em diferentes locais, depois das refeições, para tornar as 
relações mais agradáveis. A bebida era proibida para as crianças. Mas a elas eram permitidas 
algumas gotinhas de ópio para poderem dormir melhor e mais tranquilamente. Na América 
latina, as folhas de coca eram mascadas pelos incas tanto para agüentarem as grandes altitudes 
das montanhas andinas, como para alcançarem a solução de problemas individuais e coletivos 
numa espécie de cosmovisão (ACSELRAD, 2013), apesar de que relatos históricos indicarem 
que seu uso ficava restrito às classes nobres da hierarquia andina. (BATOS, 1992) 
6 
 
 
 
Ainda na América latina, o álcool já era conhecido e fabricado pelos indígenas que 
aqui habitavam, e provinha de diferentes plantas. Na região nordeste do Brasil, jesuítas 
portugueses depararam-se com uma bebida preparada a base de mandioca tão fresca e 
medicinal para o fígado, que dentre eles não havia doentes do fígado. Somente as mulheres 
podiam prepará-las e os homens que a fizessem eram tachados de ridículos. No Maranhão a 
bebida era produzida a base de caju e conta-se na época da colheita que os índios não tinham 
gosto pelo trabalho. Já os tupinambás tinham o costume de produzir o álcool empregando 
abacaxis. Em Cabo Frio, a bebida era a feita à base de sementes pretas e brancas que mais 
pareciam ervilhas, e a bebedeira era muito apreciada pelos selvagens. No litoral sul do Brasil, 
o caldo extraído da mandioca junto à saliva de jovens índias era a mistura ideal para a 
produção da bebida que, consumida em vários momentos da vida social, como nascimento, 
primeira menstruação das moças, perfuração do lábio inferior dos rapazes, também fazia parte 
de momentos anteriores e posteriores às guerras, do trabalho coletivo da tribo na roça e das 
cerimônias canibalescas. (RAMINELLI, 2005). 
Na América do Norte, o Peiote, um pequeno cacto cuja região nativa se estende do 
sudoeste dos Estados Unidos até o centro do México, com efeitos psicodélicos, foi utilizado 
por povos indígenas, tais como os Huichóis do norte do México e os Navajos no sudoeste dos 
EUA, como uma parte dos rituais religiosos tradicionais. 
Na África Oriental, na região da Etiópia e também do Iêmen, a khat, uma planta com 
estimulante similar às anfetaminas, é encontrado dentre as comunidades tradicionais. Os 
nativos africanos mastigavam os novos brotos e as folhas frescas da Catha edulis. A khat era 
usada no Iémen ainda antes do café e era imensamente popular. Os antigos Egípcios 
consideravam a Catha edulis uma planta muito sagrada, uma “comida divina” capaz de 
libertar a divindade nascente da humanidade. 
Não muito distante no tempo, o Papa Leão XIII, que foi eleito papa em 20 de 
fevereiro de 1878 e só largou o posto quando faleceu em 20 de julho de 1903, tomava cocaína 
junto com o vinho e a louvava como uma benfeitoria da humanidade. (SCHEERER, 1992) 
Percebe-se,assim, que o relacionamento do homem com as drogas esteve sempre 
ligado a tentativas de abrandar sofrimentos e atingir outros níveis de consciência. 
“A recorrência histórica dos diversos usos de drogas como um recurso diante 
da depressão, um remédio para a angústia, um consolo para a dor de existir, 
um veículo extático, um lubrificante social ou uma via dionisíaca de vazão do 
instinto, da paixão e da festa lúdica, ressalta um outro aspecto epistemológico 
fundamental: a importância da experiência da consciência alterada 
quimicamente para a constituição da psicologia como ciência no século XIX, 
sobretudo no auxílio do questionamento da relação entre a consciência de si e 
a consciência do mundo, ou seja, na formação de uma experiência e de uma 
7 
 
 
 
teoria da subjetividade, em cuja origem encontram-se todos os dilemas da 
crise do sujeito, cuja consciência de si foi denunciada como ilusão.” 
(CARNEIRO, 2005, p. 23) 
 Diante deste aspecto tão particular de permitir alterações de consciência e estados 
elevados de prazer, as drogas são objeto de imenso interesse político e econômico. 
Antes do século XVI não existiam registros de grandes problemas relacionados ao uso 
de drogas a ponto de despertar a atenção do Estado para a sua regulamentação ou até a 
proibição. O Estado e o direito penal não intervinham maciçamente na questão. Foi só como 
início das importações de café, tabaco e bebidas alcoólicas destiladas – com grande 
concentração de álcool – que as regulamentações mercado-estatais começaram a aparecer na 
Europa. No entanto, tais regulamentações não estavam preocupadas com a saúde dos usuários 
destas novas drogas, e sim com questões mercadológicas. Alguns países europeus estavam 
preocupados com os comerciantes de cerveja e a perda de consumidores para estas novas 
drogas, a ponto de criar dificuldades para a sua importação. Porém, percebe-se que a posição 
dos países mudava de acordo com suas necessidades econômicas. A Inglaterra, por exemplo, 
passou de perseguidora do tabaco vindo das Américas a grande consumidora e importadora, 
na medida em que a sua nobreza se tornara apreciadora costumaz do produto. (BARATTA, 
1992) 
 A Europa cristã, desde o século XVI, despendeu inúmeros esforços para extirpar de 
suas colônias americanas as drogas sagradas dos indígenas, esforçando-se para manter o 
álcool no centro do comércio e escambo da época. A maior parte dos escravos trazidos da 
África foram trocados por tabaco e aguardente. (CARNEIRO, 2005) 
 À época da invasão da América pelos europeus, o uso da folha de coca já havia sido 
difundido entre as castas inferiores da sociedade inca, das quais pertenciam os trabalhadores 
das plantações e das explorações das minas. A Coroa Espanhola, julgando ser a folha obra do 
demônio, proibiu o trabalho compulsório acompanhado das folhas de coca. No entanto, o 
desejo do lucro rápido da Coroa se sobressaiu às suas superstições, permitindo em seguida o 
uso da coca pelos escravos a fim de acalentar-lhes o árduo trabalho nas minas. (BATOS, 
1992). Assim, apesar da boa intenção dos clérigos espanhóis, em condenar o uso da erva 
demoníaca, fatores político-econômicos ditaram a regulamentação do uso da coca nas 
colônias espanholas. 
Mas é só no início do século XX que as drogas legais e ilegais passaram a receber 
forte intervenção e controles estatais. Controles estes fortemente influenciados por cruzadas 
moralistas, discriminação racial e estigmatização de usuários (CARNEIRO, 2005). Para a 
8 
 
 
 
medicina, a preocupação com o consumo de drogas só tornou-se tema de discussão a partir do 
século XX, com exceção da preocupação com o abuso do álcool. Artigos da Gazeta Médica 
do Rio de Janeiro, em pesquisa realizada por Maurício Fiore, da USP, deixa claro que os 
abusos do álcool eram sempre relacionados a defeitos morais, individuais, sociais ou raciais, e 
não se atribuía à substância grande importância quanto ao seu grau de dependência ou de 
alteração psicoativa no usuário (FIORE, 2005). 
Este panorama se altera significativamente nas primeiras décadas do século XX. A 
normatização dos corpos começou a ter lugar na sociedade capitalista ocidental devido ao 
nascimento das fábricas e a concentração das pessoas nas cidades; cujos agrupamentos 
maciços de pessoas pobres eram comumente vistos como sinônimo de desregramento, vício, 
vadiagem, desvirtuamento e doença. Corporações policiais, médicas, psicológica-industriais e 
administrativas passaram a ocupar-se dos controles dos hábitos populacionais. A medicina 
passou a infiltrar-se no campo das intimidades dos cidadãos. Os séculos XVIII e XIX foram 
fortemente marcados por cruzadas moralistas contra a masturbação. Até os anos 40 do século 
XX os manuais de pediatria norte-americanos ainda condenavam as práticas masturbatórias. E 
Freud, ainda afirmava que alguns vícios, como fumar cigarro ou cheirar cocaína poderiam ser 
derivados da masturbação. 
É certo que a transformação do uso de drogas em questão social tomou grandes 
proporções inicialmente nos Estados Unidos da América. Entidades civis como a Anti-Saloon 
League e partidos como o Proibihition Party tiveram importante papel, influenciados por 
religiosos, na supressão dos mais variados “vícios”. As motivações dos grupos em cruzada 
contra as drogas eram as mais variadas, indo tanto do controle interno do uso e abuso das 
substâncias, quanto do controle de etnias e classes tidas como “perigosas”, vinculando o uso 
de terminadas substâncias diretamente a grupos étnicos específicos, como os irlandeses ao 
álcool, os negros à cocaína, os mexicanos à maconha8 e os chineses ao ópio. (FIORE, 2005) 
 Mas drogas hoje tornadas ilícitas, nem sempre tiveram o status de grande inimiga da 
sociedade e da moralidade pública. Por muito tempo, muitas delas eram consideradas grandes 
amigas do ser humano, com capacidade de elevar o espírito, de auxiliar na cura de doenças da 
mente e do corpo, e de auxiliar na superação de vícios de maior grandeza. 
 A cocaína é um exemplo emblemático da transformação de uma substância 
“milagrosa” em uma droga maléfica e odiada por todos os “homens de bem”. Logo que seu 
 
8
 Utilizarei o termo “maconha” como sinônimo de “cannabis” – termo aportuguesado do nome das plantas do 
gênero Cannabis, de onde se extraem vários componentes psicoativos como o tetrahidrocanabinol(THC), como 
o canabidiol(CBD), canabinol(CBN) e tetrahidrocanabivarin(THCV). 
9 
 
 
 
componente químico foi isolado - a cocaína foi retirada da folha de coca, não faltaram 
entusiastas a chamar-lhe a cura do século, a panacéia universal para os males humanos. Ela 
fora empregada com sucesso na cura ou auxílio da cura de várias doenças consumptivas. Ela 
foi utilizada como tratamento substitutivo do vício do ópio. Freud produziu três trabalhos 
sobre a cocaína. Concluindo no primeiro deles que a cocaína não produz qualquer efeito 
direto sobre a musculatura, mas que, através do bem estar geral e alívio que causa, alivia a 
sensação de fadiga. No segundo trabalho o psicanalista reitera o uso da droga em quadros 
psíquicos como as depressões e no adicto à morfina. Já no seu terceiro trabalho, defendendo-
se de outros cientistas que já estavam classificando a cocaína como praga da humanidade, 
Freud afirma que o uso para tratamento de adictos em morfina deve ser regulado e que a 
droga pode ter efeitos sistêmicos não conhecidos. É importante perceber que a cocaína estava 
sendo utilizada à época para diversas indicações terapêuticas, e alguns laboratórios a vendiam 
livremente, sem restrições médicas, indicando-a para prevenção de malária, gripe e doenças 
consumptivas; para elevar a capacidade de trabalho do organismo, etc. Mas havia quem 
estivesse na corrente contrária, considerando a como um vetor de corrupção física e psíquica. 
Assim, na primeiradécada do século XX a droga começou a ser associada à degeneração 
física e moral, e alguns médicos alertavam para a necessidade de perceber o problema de um 
ponto de vista médico-legal. Tal ponto de vista trazia um aspecto completamente moralista do 
uso da droga, associando-o ao cometimento de crimes, ao adultério e ao homossexualismo, 
por exemplo. A partir deste ponto já se pode perceber que o próprio discurso médico passa a 
utilizar de argumentos moralizantes para contra indicar o uso da cocaína. (BASTOS, 1992) 
 Mas foi só depois da 1ª Guerra Mundial que a venda da cocaína passou a ser reprimida 
pelos Estados. Diante do rompimento de relações diplomáticas e comerciais dentre vários 
países, a cocaína passou a ser comercializada cada vez mais através do mercado ilegal. Os 
mesmos médicos-cientistas que legitimavam um discurso médico-jurídico para o combate do 
uso da cocaína, passaram a relacionar o aumento no número de dependentes à decadência dos 
centros urbanos do pós-guerra. A França, por exemplo, em 1916 passou a contar com uma 
legislação “para lutar contra o abuso” da cocaína. Na Itália, o discurso era o de atribuir o 
aumento do consumo da droga não mais às exaustivas batalhas de trincheira da 1ª Guerra, mas 
ao contato dos italianos com cidadãos de outros países, apesar de reconhecer que em certos 
círculos sociais ainda era elegante cheirar algumas gramas de cocaína por dia (BASTOS, 
1992). Percebe-se que, aos poucos, a necessidade de encontrar um vilão para a “degeneração 
10 
 
 
 
social”, causada por uma crise no sistema capitalista da época – evidenciado pela profunda 
crise financeira do pós-guerra, encontrou na cocaína seu aliado perfeito. 
A história da criminalização do ópio e da heroína também encontra fortes indícios de 
perseguição de grupos étnicos considerados perigosos aos costumes da igreja cristã, em 
cruzadas moralistas contra a elevação do prazer, e, como conta Rosa Del Olmo, à proteção do 
mercado de trabalho americano: 
“O criminólogo alemão SEBASTIAN SCHEERER nos demonstra, por 
exemplo, em seu interessante trabalho sobre a história do ópio nos Estados 
Unidos, como seus distintos modos de consumo — fumá-lo, comê-lo ou 
injetá-lo — foram objeto de uma criminalização diferenciada (leia-se 
proibição)... “O tipo menos perigoso de consumo em termos de saúde, isto é, 
fumá-lo, foi rapidamente sujeito à criminalização, enquanto o mais perigoso 
(injetar-se heroína) foi o último a ser definido publicamente como problema 
social”. A explicação é muito clara neste caso: era preciso deslocar a mão-de-
obra chinesa — únicos fumadores na época — quando se tornou ameaçadora 
sua competição no mercado de trabalho. Assim observamos como para sua 
criminalização predominou o interesse econômico sobre o médico.” (OLMO, 
1990, p. 26) 
Nos EUA, a primeira lei contra as drogas foi imposta em 1875 em São Francisco, por 
uma ordem que proibiu a pratica de fumar ópio nas casas de ópio. Em nível federal, os EUA 
editou, em 1914, a primeira lei proibitiva em matéria de drogas, chamada de Harrison Act, 
que determinava o pagamento de impostos à produção, distribuição e consumo de ópio, 
morfina e derivados da folha de coca. Portanto, não havia repressão penal para a produção, 
distribuição e consumo destas substâncias, mas quem não pagasse os altos impostos para a 
distribuição que não estivesse amparada em questões médicas e científicas era considerado 
um sonegador de impostos e não um traficante (KARAM, 2014). 
Antes disso, no século XIX, a Inglaterra dominava o comércio entre a China e a 
Europa. No entanto, ao contrário da China que exportava seda, chá e porcelana, o império 
britânico pouco tinha a oferecer aos chineses, com exceção do ópio que traziam da Índia. O 
ópio trazido da Índia pela Companhia Britânica das Índias Orientais começou a ameaçar a 
economia e a estabilidade do império chinês. O volume de importação estava tão grande que, 
em 1839, o Imperador proibiu do comércio. O Reino Unido, não contente com suas perdas 
econômicas, decretou as conhecidas duas Guerras do Ópio, para tentar manter seus altíssimos 
lucros com o comércio da droga, que só tiveram fim em 1860 na Convenção de Pequim, 
quando a Inglaterra obrigou a China a assinar o Tratado de Tianjin, que garantiu que onze 
novos portos chineses seriam abertos ao comércio de ópio com o Ocidente. Percebe-se que 
não havia qualquer preocupação por parte da Inglaterra com os efeitos do uso e do abuso do 
11 
 
 
 
ópio pelos chineses. A única questão para os ingleses era manter seu lucrativo comércio com 
o oriente. 
Mas até os anos cinqüenta do século XX não havia muita preocupação no ocidente 
com a dependência dos opiáceos em geral. O seu uso nos EUA estava confinado aos guetos 
urbanos, especialmente vinculados aos grupos de negros, chineses e porto-riquenhos. 
A Convenção Internacional sobre o Ópio, adotada em Haia, havia sido assinada em 23 
de janeiro de 1912. Mas ainda não havia grandes intervenções estatais nacionais e 
internacionais sobre a produção e o comércio da droga. 
Contudo, com o fim da segunda guerra mundial, a produção do ópio cresce 
significativamente, e a Europa passa a converter mais e mais ópio em morfina e heroína. 
Nesta época os grupos que controlavam a produção na Europa estavam ligados 
principalmente às famílias mafiosas italianas. Em 1957 aconteceu no Estado de Nova Yorque, 
nos Apalaches, uma famosa reunião dos grupos ligados à importação da heroína para os EUA. 
A máfia pretendia ingressar com centenas de quilos de heroína nos EUA por meio de Havana, 
Cuba. Em 1959 foram condenados à prisão cerca de 20 mafiosos, todos participantes da 
famosa reunião acima mencionada. Prisões que só se concretizaram porque um dos 
integrantes da máfia delatou todo o esquema. Na mesma época, a Revolução Cubana 
desmantelou a conexão dos mafiosos italianos com Havana. 
 A Convenção Internacional do Ópio de 1912 foi então substituída pela Convenção 
Única sobre Entorpecente em 1961. O Brasil ratificou a Convenção em 18 de junho de 1964, 
que passou a vigorar internamente através do Decreto 54.261 de 1964, publicado em 27 de 
agosto de 1964. Esta convenção previa que diversas substâncias, dentre elas o ópio, a heroína, 
a maconha, a cocaína, etc., não poderiam ser produzidas, fabricadas, exportadas, importadas, 
distribuídas, comercializadas senão com fins exclusivamente médicos e científicos e mediante 
autorização governamental. 
Com a maconha a história não foi muito diferente. Apesar de existirem evidências 
antropológicas e arqueológicas de que pode ter sido a primeira planta cultivada pelo homem, 
com o aproveitamento total da planta (semente para óleo, talos para fibras e a flor para 
extração do THC) (SAAD, 2013), o seu uso nos últimos séculos foi comumente relacionado a 
grupos marginalizados. Na Colômbia, contudo, os Nadaístas - corrente de vanguarda 
considerada a versão latina da corrente filosófica existencialista - utilizavam a erva e faziam 
12 
 
 
 
ampla apologia ao seu uso, tal qual o faziam também os intelectuais norte-americanos 
conhecidos como Beatniks9 (OLMO, 1990). 
Em 1883, quando a maconha ainda não se apresentava como uma ameaça à 
moralidade da sociedade, o parlamento britânico criou a Indian Hemp Drugs Comission, para 
avaliar o impacto do uso da droga sobre a população indiana, e a sua conclusão foi 
apresentada no Indian Drugs Comission Report. O relatório afirmava que o uso moderado da 
erva não apresenta praticamente nenhum resultado maléfico (SAAD, 2013). Apesar das 
conclusões da comissão, o mundo inteiro entrou, no século seguinte, numa onda de 
demonização da droga, que levou à proibição do uso, produção e distribuição da erva em 
praticamente todos os países. 
Na Inglaterra, já no início do século XX, começava-se a associar o uso da maconha à 
depravação moral, considerando-a uma ameaçasocial, pois fora ligada especialmente aos 
emigrantes negros das Antilhas e do oeste da África – considerados depravados sexuais e 
degenerados morais. A maconha estava ameaçando a castidade das moças puras inglesas 
(OLMO, 1992). 
No Brasil, a história da maconha tem início com as populações de escravos negros. Há 
quem afirme que a erva foi introduzida já nas primeiras expedições negreiras africanas, em 
que os negros traziam a erva em bonecas de pano amarradas em suas tangas. Contudo, há 
quem conteste afirmando que as primeiras sementes da planta só foram introduzidas em solo 
nacional centenas de anos depois dos primeiros escravos aqui desembarcarem. Independente 
de sua entrada no Brasil, o “fumo de negro” – como a chamavam os senhores de escravo – era 
tolerado pelos donos dos escravos, a fim de preencher o ócio do tempo que sobrava na 
monocultura da cana de açúcar, e a erva era plantada em meio às plantações (SAAD, 2013). 
Apesar do uso e cultivo da canabis serem milenares, a sua proibição não conta com 
mais de 100 anos. 
No entanto, o Brasil conta com um primeiro documento conhecido que restringe o uso 
da erva, editado pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 1830, que penaliza o uso e a 
venda do “pito do pango”, sendo “o vendedor [multado] em 20$000, e os escravos, e mais 
pessoas que dêle usarem, em 3 dias de cadeia”. Pode-se perceber, pelo termo utilizado, que a 
proibição tinha um público alvo muito bem definido, pois “pito do pango” era uma expressão 
utilizada pelos escravos negros, e a própria lei enfatiza que os escravos que a usarem ficarão 3 
 
9
 Os Beatniks foram um movimento sócio-cultural nos anos 50 e princípios dos anos 60 que subscreveram um 
estilo de vida anti-materialista, na sequência da 2.ª Guerra Mundial. Disponível em: 
http://pt.wikipedia.org/wiki/Beatnik. Acesso em: 9 abr. 2014. 
13 
 
 
 
dias na cadeia. Percebe-se, portanto, que não há qualquer preocupação dos legisladores e 
aplicadores da lei com a saúde dos usuários, mas sim com o uso pelos negros escravos, e com 
sua inabilitação para o trabalho, pois bem dizia o ditado popular da época: “maconha em pito 
faz negro sem vergonha”. (SAAD, 2013). 
“Evidentemente, a associação entre o uso da maconha e a cultura negra pode 
ser interpretada como um dos motivos que levaram, depois de quase um 
século, à proibição definitiva dessa planta no Brasil; nas primeiras leis vão 
tratar especificamente dos psicoativos. Entretanto, não era contra a planta que 
a corte parecia voltada, mas sim, contra a propagação de práticas específicas 
de classe e/ou raça que, de alguma maneira, eram vistas como perigosas (...), 
num Rio de Janeiro que abrigava a maior população escrava urbana do Novo 
Mundo.” (FIORE, 2005, p. 263). 
Foi somente em 1932 que a maconha foi proibida em território nacional, 5 anos antes 
de ser proibida nos EUA, com a inclusão da planta na lista de substâncias proscritas, pelo 
Decreto n. 30.930 (que ampliou consideravelmente o número de substâncias proibidas, cujo 
porte sujeitava à prisão, podendo a justiça internar o usuário por tempo indeterminado), que 
foi substituída, em 1938, pela Lei de Fiscalização de Estupefacientes. 
Nos EUA, a erva foi sistematicamente associada aos emigrantes mexicanos. Era 
chamada de “a erva assassina” porque era relacionada à violência, agressividade e 
criminalidade. O uso e o comércio da maconha foram regulamentados pela primeira vez 
naquele país em de 1937, com o Ato de Imposto sobre a Maconha - Marihuana TcixAct, que 
previa o pagamento de impostos sobre a produção, importação, exportação e comércio da 
canabis. Antes disso, a maconha teria sido proibida em mais de 27 estados. Mas a proibição 
avançou no país e em 1951 surge o Boggs Act, que aumentou as penas para a posse da erva 
para o mínimo de 2 ao máximo de 10 anos de reclusão; em 1956, com o Daniel Act, há um 
aumento significativo das penas. 
Percebe-se que na história da criminalização da maconha, em todos os países, os 
fatores de controle moral das populações e de controle de etnias e grupos especificamente 
marginalizados se sobrepõem a qualquer discurso médico que pretenda delimitar os 
malefícios do uso da droga. Há pouco, nos textos históricos, referências à questão da saúde a 
fim de legitimar a criminalização do uso da substância. O que há é uma certa população, 
geralmente branca e cristã, querendo controlar os hábitos de populações marginalizadas, 
geralmente emigrantes e pobres; este fator é comumente camuflado por discursos médico-
legais, de que as drogas são substâncias que “propiciavam estados de loucura, 
comportamentos anormais e se tornavam, enfim, vícios que impediam um desenvolvimento 
de uma vida social saudável e regrada” (FIORE, 2005, p. 262). 
14 
 
 
 
E isso não se deu somente no início das proibições, no começo do século XX. Ainda 
hoje, a manutenção da proibição do uso, cultivo e comércio da maconha não encontra guarida 
em questões de saúde pública, mas sim em questões de controle moral e religioso. Em 2008, o 
Office of the National Drug Control Policy, autoridade Americana responsável pelo combate 
às drogas tornadas ilícitas, afirmou em um relatório que o cultivo da maconha em residências 
particulares para o consumo próprio é uma ameaça emergente para a sociedade norte-
americana, sem se questionar sobre qualquer efeito danoso na saúde do usuário, ou sem se 
questionar se outros hábitos, como comer muita gordura ou não praticar exercícios também 
não seriam hábitos perigosos à saúde dos cidadãos americanos (DIMITRI, 2002). 
 Até aqui foi apresentado um pequeno histórico, até cerca da metade do século XX, da 
proibição de algumas substâncias ainda hoje consideradas ilícitas e proibidas de serem 
produzidas e comercializadas. O objetivo deste histórico era pontuar os fatores econômicos, 
políticos, sociais, morais e religiosos que levaram à determinação de tornar ilícitas algumas 
drogas, reafirmando que os motivos de saúde pública formaram sempre uma cortina de 
fumaça sob os reais motivos da proibição destas drogas. 
“As passagens de stautus de substâncias psicoativas geralmente estão menos 
relacionadas com as características inerentes às drogas do que com o seu 
valor quanto símbolo social. Esse valor simbólico (geralmente negativo, mas 
também ambivalente) é de cunho social e reflete uma relação de poder entre 
grupos sociais concorrentes.” (SCHEERER, 1992, p. 66) 
A partir de agora, apresenta-se um panorama geral, desde a metade do século XX até 
os dias atuais sobre a manutenção da criminalização das drogas tornadas ilícitas, sem a 
separação entre as drogas, a fim de pontuar de que forma os estados e os organismos 
internacionais estão lidando com a manutenção da criminalização da produção, uso e 
distribuição das drogas tornadas ilícitas, e com o crescente aumento da demanda por estas 
drogas apesar da forte repressão institucional denominada “Guerra às Drogas”. 
No Brasil, a partir da Consolidação das Leis Penais em 1932, inicia-se efetivamente a 
sua cruzada em direção à pretensão de extermínio das drogas tornadas ilícitas. O diploma 
legal substituía o termo “substâncias venenosas” por “substâncias entorpecentes”, e 
aumentava significativamente a quantidade de condutas consideradas proibidas, introduzindo 
a pena privativa de liberdade para tais condutas no patamar de 1 a 5 anos para quem 
fornecesse tais substâncias. Em 1938, com o Decreto-lei 891, a internação compulsória dos 
toxicômanos é prevista, e a circunstância agravante de “sugerir ou provocar a satisfação dos 
prazeres sexuais” é prevista para a dosimetria da pena de produtores, comerciantes e 
consumidores. Já na ditadura militar, a Lei 4.451/64 introduz a tipificação de plantar as 
15 
 
 
 
matérias primas para a produção de drogas tornadas ilícitas, mantendo as penas de 1a 5 anos. 
(KARAM, 2014). 
Em nível internacional, a partir dos anos sessenta, a cruzada em busca da erradicação 
das drogas se intensifica. “Os anos sessenta bem poderiam ser classificados de o período 
decisivo de difusão do modelo médico-sanitário e de consideração da droga como sinônimo 
de dependência.” (OLMO, 1990, p. 33). O grande aumento do consumo já ultrapassava as 
fronteiras dos grupos marginalizados e chegava aos jovens brancos das classes superiores. O 
começo dos anos sessenta foi marcado por uma imensa propulsão social de contracultura, de 
movimentos políticos, de buscas míticas, de rebeliões dos negros, dos pacifistas, da 
Revolução Cubana, das guerrilhas latino-americanas, e dos problemas com a guerra do 
Vietnã. É nesta época que a indústria farmacêutica explode e o uso do LSD é disseminado. As 
problemáticas das minorias são integradas às atividades políticas da juventude branca, e junto 
com isso vem o questionamento sobre o consumo de drogas e os fatores morais que o 
proibiam. 
Na medida em que o consumo das drogas atinge cada vez mais os jovens brancos de 
classe média e alta, o discurso jurídico se intensifica no sentido de criminalizar aqueles que 
estavam levando os “bons garotos” da elite para a imoralidade do mundo das drogas. E é neste 
momento que se vê uma alteração no discurso do dependente químico. Antes um depravado 
moral, agora o dependente passa a ser tratado como um doente que precisa da assistência do 
Estado para livrar-se do “demônio das drogas”. Esta mudança de paradigma tem como 
evidente fator o alcance das drogas nos filhos das boas famílias da classe média e alta. Não 
por outro motivo, nos EUA é editada o NarcoticAddict Rehabilitation Act, que permitia o 
dependente escolher por uma sanção civil que o levava ao tratamento para a reabilitação. No 
Brasil, em 1963, o Instituto Nacional de Saúde Mental ganha, por lei, o papel de solucionar os 
problemas sociais da droga (OLMO, 1990). 
A união do discurso jurídico ao discurso médico se consolida com a promulgação 
pelas ONU da Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961, que previa duas formas de 
intervenção e controle: a primeira recaia sobre a limitação a posse, uso, troca, distribuição, 
importação, exportação e produção das drogas e a segunda pretendia combater o tráfico, por 
meio de cooperação internacional. Ainda assim, o diploma legal, no seu preâmbulo, deixa 
muito claro que o discurso médico-legal não está somente preocupado coma saúde dos 
16 
 
 
 
usuários, mas sim está repleto de julgamento morais sobre o uso das drogas. A saber, o 
Preâmbulo10: 
“As Partes, 
Preocupadas com a saúde física e moral da humanidade, 
Reconhecendo que o uso médico dos entorpecentes continua indispensável para o 
alívio da dor e do sofrimento e que medidas adequadas devem ser tomadas para garantir a 
disponibilidade de entorpecentes para tais fins, 
Reconhecendo que a toxicomania é um grave mal para o indivíduo e constitui um 
perigo social e econômico para a humanidade, 
Conscientes de seu dever de prevenir e combater êsse mal. 
Considerando que as medidas contra o uso indébito de entorpecentes, para serem 
eficazes, exigem uma ação conjunta e universal. (...) 
Concordam, pela presente, no seguinte:” (grifo meu) 
No final da década de 60 a maconha mudou de status social, antes denominada “erva 
do diabo”, agora era relacionada com a apatia dos jovens ao ideal de vida americano 
(Americam Way of Life). Foi a partir desta concepção que presidente norte-americano Richard 
Nixon declara que “O abuso de drogas atingiu dimensões de emergência nacional” e a partir 
de todo o alarde da juventude “desviada” que se deu a grande operação Iniercept, em1969, 
que objetivava acabar com a maconha que vinha do México. Contudo, a operação foi um “tiro 
no pé”, pois ao invés da maconha, começou a circular pela fronteira méxico-americana todo 
tipo de alucinógenos naturais como o Peiote e o Cogumelo11 e de drogas sintéticas, como a 
heroína, o que deu grande margem para a chamada “epidemia da heroína” da década de 70. 
Contudo, a chamada “epidemia da heroína”, tem menos razões no aumento do 
consumo em geral do que no alarde social provocado por grupos conservadores moralizantes 
da sociedade. 
“Na dramatização do consumo da heroína foi de fundamental importância a 
reação das classes conservadoras e dos mais idosos contra a revolta juvenil e 
progressista à época de Kennedy e Nixon. Trata-se da oposição entre a 
cultura do ‘ativismo instrumental’, dominante nos anos 50, então decadente, 
e a cultura da ‘passividade expressiva’, que determinou também fortes 
resistências à Guerra do Vietnã.” (BARATTA, 1992, p. 37). 
 
10
 Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=89192&norma=114990. 
Acesso em: 9 abr. 2014. 
11
 Os cogumelos alucinógenos (também cogumelos psicadélicos (português europeu) ou cogumelos psicodélicos (português 
brasileiro)
 ou ainda cogumelos mágicos) são fungos com propriedades alucinógenas, utilizados por diversos povos 
em suas atividades culturais, bem como drogas recreativas, especialmente por jovens urbanos influenciados por 
diversos movimentos culturais. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cogumelo_alucin%C3%B3geno. 
Acesso em: 9 abr. 2014. 
17 
 
 
 
Em 1972, Nixon declara a droga como o “inimigo número um” da sociedade 
americana, e os EUA iniciam uma cruzada contra os países supostamente produtores destas 
drogas. Como se houvesse uma dicotomia entre países consumidores “vítimas” e países 
produtores “algozes”. Contudo, isso não passou de uma ficção que associou o narcotráfico 
aos países pobres, de baixo desenvolvimento econômico. Isto porque tal dicotomia ignorava 
completamente a existência de plantações de maconha nos EUA e de laboratórios produtores 
de LSD por todo o país. (RODRIGUES, 2005). 
No Brasil, o combate ao “mal universal” também se intensifica nesta década. Em 1971 
a lei 5.726 aumenta a pena máxima para 6 anos, cria o tipo de quadrilha para o tráfico com 
apenas duas pessoas com pena de 2 a 6 anos, impõe que o estudante que responde por uso de 
substâncias proibidas tenha a matrícula escolar trancada, e que diretores escolares perdessem 
o cargo se não comunicassem o uso ou tráfico dentro da escola (KARAM, 2014). 
No nível internacional mais duas normativas são apresentadas, o Convênio sobre 
Substâncias Psicotrópicas, em 1972, e o Protocolo que modificava a Convenção Única sobre 
Estupefacientes de1961, para incluir nas listas desta uma série de substâncias ainda não 
proibidas, especialmente as anfetaminas. Interessante notar que os EUA, apesar de 
convencerem, através de seu representante na ONU, o vice-presidente George Bush, 104 
países a ratificarem os dois tratados, eles mesmo só o depositaram em 1980. Foi neste 
momento que Nixon centralizou o combate às drogas tornadas ilícitas em um só órgão, 
criando o Drug Enforcement Administration ou DEA. E tão importante quanto o problema 
interno da droga, era o esforço em combatê-la em nível internacional, a ponto de criar uma 
agência, em 1972, o Cabinet Committee for International Narcortic Control (CCINC), para 
coordenar os esforços dos EUA no exterior. (OLMO, 1992). 
Foi nesta década que toda a América Latina se alinha à política norte-americana de 
“Guerra às Drogas”, com a criação de comissões internas e a edição de diversas leis 
objetivando o combate ao tráfico das drogas tornadas ilícitas. Apesar de a coca começar a ser 
consumida em forma de pasta base já no final da década na Bolívia, no Peru e no Equador. 
Era a maconha a principal vilã dos discursos exportados pelos EUA. Todavia, tais discursos 
sempre dependiam do público alvo a que se destinava: se às populações pobres, o tom era de 
relação com violência e agressividade, reforçando-se o estereótipodo criminoso; mas se 
direcionados aos garotos da classe média, o tom era de droga amotivacional, relacionando-os 
ao estereótipo do doente. Estes discursos de demonização das drogas chegavam ao continente 
sul-americano de forma distorcida, pois não se adequavam às drogas aqui consumidas e à 
18 
 
 
 
realidade social dos países. Surgiram então grupos como o “poder jovem”, que defendiam o 
uso da maconha como uma forma de libertação interna contra a rebeldia dos jovens 
revolucionários. “Assim, se a heroína foi a droga contra-revolucionária dos Estados Unidos, a 
maconha o foi na América Latina no início da década de setenta.” (OLMO, 1992, p. 46). 
Com a grande e maciça operação contra a heroína desde os meados dos anos sessenta 
e até o final dos anos setenta, a cocaína, esquecida desde o início do século XX, passou a 
fazer parte de um estereótipo cultural, alimentado pelos meios de comunicação, relacionando-
a aos heróis da época, como estrelas do rock, do cinema americano e dos esportes. 
Lentamente se instalava a grande rede de produção e distribuição de cocaína que vai dos 
Andes até os EUA. Uma monografia chamada Cocaine 1977, publicada pelo National 
Institute on Drug Abuse (NIDA), nos EUA, afirmava que cerca de dois milhões de norte-
americanos haviam consumido no ano de 1976 a cocaína, qualificada como uma “fascinante 
substância”, pelo diretor da NIDA no trabalho mencionado. Ainda nos primeiros anos da 
década de setenta, o consumo de cocaína não era considerado um problema social. Contudo, 
no final da década, o seu consumo na forma de pasta base juntamente com a maconha passa a 
ser mais recorrente e potencialmente mais causador de dependência. Devido à falta de 
controle da qualidade das substâncias surge o que chamamos hoje de crack12, e o discurso 
médico sanitário em torno da droga ganha força novamente. Vários países da América Latina 
passam a criminalizar inclusive a prática milenar andina de mastigação de folhas de coca. 
(OLMO, 1992). 
Ingressa-se na década de oitenta com a cocaína no centro da preocupação em relação 
às drogas tornadas ilícitas. A maconha estava praticamente descriminalizada, mesmo que 
sendo ilegal, nos EUA na década de oitenta. O seu consumo aumentava e fontes 
conservadoras estimavam que a maconha fora a terceira colheita mais rentável em 1982 no 
país. 
No entanto, o discurso do usuário-dependente-doente passa a ser lentamente 
substituído pelo discurso do cliente-consumidor. E o aspecto econômico do tráfico de drogas, 
com grandes vultos de lavagem de dinheiro e evasão de divisas passam a fazer parte da gama 
de preocupações da chamada “Guerra às Drogas”. 
 
12
 Crack [crac], também chamado de pedra ou rocha, é cocaína solidificada em cristais. O 
nome inglês crack deriva do seu barulho peculiar ao ser fumado. O crack é a conversão do cloridrato de cocaína 
para base livre através de sua mistura com bicarbonato de sódio e água. É a forma de cocaína mais viciante e 
também a mais viciante de todas as drogas. As pedras de crack oferecem uma curta, mas intensa euforia aos 
fumantes. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Crack Acesso em: 11 abr. 2014. 
19 
 
 
 
Surge assim, o discurso jurídico-transnacional, colocando no centro da repressão 
transnacional militarizada norte-americana os países da América Latina. 
“As iniciativas capitaneadas pelos Estados Unidos da segunda metade dos 
anos 1980 em diante enfatizaram a via militar para enfrentar a questão do 
tráfico de drogas. Campanhas conjuntas com forças latino-americanas, 
montagem de tropas de elite nos moldes das americanas e intervenções 
diretas em países como a Bolívia e Peru foram o padrão de comportamento 
dos Estados Unidos em sua ‘guerra às drogas’.” (RODRIGUES, 2005, p. 
301). 
Este discurso deu margem à responsabilização dos emigrantes ilegais pelo comércio 
das drogas tornadas ilícitas e pela sua criminalização. Isto pode ser extraído das palavras de 
Ronald J. Caffey, chefe, em 1982, da Seção de Investigação sobre a Cocaína do DEA: 
“As investigações do DEA indicam que uma proporção significativa dos 
traficantes de cocaína colombianos que operam nos Estados Unidos é 
constituída de imigrantes ilegais. O que distingue este grupo de gerações 
anteriores de imigrantes ilegais é que estes possuem enormes recursos em 
dinheiro e, portanto, viajam sem problemas por todo o país realizando 
atividades clandestinas. Em virtude desta infiltração são exportadas para os 
Estados Unidos outras formas de atividade criminosa e potencialmente 
subversiva, o que representa um a grave ameaça à nossa segurança nacional... 
A cocaína está estabelecendo uma nova política... O tráfico de cocaína 
representa um grave dano à moral e à liderança das comunidades políticas, de 
negócios e de justiça penal dentro dos Estados Unidos... Mas, além da 
ameaça à Saúde Pública, o tráfico de cocaína está extraindo dos Estados 
Unidos 30 bilhões de dólares anualmente”. (OLMO, 1992, p. 59). 
Retoma-se o discurso do perigo da droga para a criminalização de grupos de 
emigrantes marginalizados. 
“Como os colombianos são o maior contingente de imigrantes da América 
Latina no país, seria interessante ver que conexão existe entre este dado e a 
criação do estereótipo. Lembremos o que aconteceu com os chineses e o ópio 
no início do século, ou com os mexicanos e a maconha nos anos trinta, para 
citar apenas dois casos de criação de estereótipos quando estes grupos se 
converteram em força de trabalho ameaçadora em momentos de crise 
econômica.” (OLMO, 1992, p. 60). 
A denominada “guerra à droga”, capitaneada pelos EUA, responde à necessidade 
imediata de um “novo inimigo”, especificamente após o desaparecimento do perigo 
comunista, sob o manto de numa verdadeira “cruzada contra o mal” para forjar uma 
identidade coletiva. Contudo, a guerra à droga, na realidade, corresponde a interesses políticos 
e econômicos, principalmente para exercer um controle permanente na Colômbia, país com 
costa sobre o Pacífico e Caribe, daí o porquê da segurança privada ali existente para dar 
proteção às empresas petroleiras americanas radicadas em solo colombiano. (LABROUSSE, 
2011 apud LYRA, 2012). 
No campo internacional, a década de oitenta foi palco da edição da Convenção das 
Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988, a 
20 
 
 
 
chamada Convenção de Viena, que enfatizou a questão “de que o tráfico ilícito gera 
consideráveis rendimentos financeiros e grandes fortunas que permitem às organizações 
criminosas transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas da administração 
pública, as atividades comerciais e financeiras lícitas e a sociedade em todos os seus níveis”, 
em seu preâmbulo13. 
No Brasil, nos anos 80, vemos um grande incremento no mercado ilícito de drogas no 
Rio de Janeiro, a partir do aumento da rede de influência do Comando Vermelho – nascido no 
presídio de Ilha Grande sob a denominação de Falange Vermelha em homenagem aos colegas 
de cela comunistas presos na Ditadura Militar, que lhe ensinaram técnicas de organização de 
guerrilha urbana. Grande parte da repressão às drogas estava direcionada ao desmantelamento 
do grupo e o símbolo maior disso foi a inauguração da prisão de segurança máxima Bangu 1. 
Porém, o combate às organizações no final da década de 80 e começo da década de 90 não 
abalou nem um pouco o mercado das drogas tornadas ilícitas, somente redefiniu seus 
contornos, tornando o negócio ainda mais difuso do que antes. (RODRIGES, 2005). 
Longe de proteger a saúde individual do usuário e a saúde pública, a “Guerra às 
Drogas” terminou o século XX de forma ainda mais violenta e militarizada do que nunca. Os 
anos 90 foram palco de inúmeras intervenções norte-americanas em países latino-americanos. 
No final doano de 1993, Peru, Bolívia e Colômbia foram palco de uma ofensiva do 
Governo Clinton a fim de desmantelar a conexão entre o cultivo de cocaína e a produção da 
pasta de coca no Peru e na Bolívia, e as refinarias e os distribuidores na Colômbia, fazendo 
com que a cultivo passasse para este último país. Em 1998, foi aprovado pelo Congresso 
Norte-Americano o Western Hemisphere Drug Elimination Act, que aumentou 
significativamente o financiamento para as operações nos países latino-americanos, que 
envolviam a substituição de cultivos, reformas judiciais, armas e treinamento de forças 
militares e policiais. (HERZ, 2002). 
Também foi nos anos 90 que as drogas legais sintéticas surgiram. Inicialmente à base 
de efedrina14, extraída de uma planta asiática chamada ma huang, e por isso apelidadas de 
herbal highs, tais drogas pretendiam simular os efeitos do ectasy e do LSD. Em 2000, a 
efedrina foi controlada em quase todo o mundo, o que levou a criação e disseminação de uma 
 
13
 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0154.htm. Acesso em: 9 abr. 2014. 
14
 A efedrina é uma amina simpaticomimética similar aos derivados sintéticos da anfetamina, muito utilizada em 
medicamentos para emagrecer, pois ela faz que o metabolismo acelere, queimando mais gordura (através 
da termogênese - produção de calor), porém causa uma forte dependência, o que fez a droga ser proibida para 
este uso. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Drogas_legais_sint%C3%A9ticas Acesso em: 10 abr. 2014. 
21 
 
 
 
nova geração bem mais potente de drogas legais, à base da substância BZP15, desenvolvidas 
na Nova Zelândia pela empresa Stargate International, e que deram origem ao termo legal 
highs. 
Apesar da tentativa dos Governos de mapearem e proibirem o uso destas novas drogas, 
a cada mês/ano surgem diversos outros tipos de drogas sintéticas. 
O início do século XXI não trouxe muita esperança na mudança da política de drogas 
mundial. Com exceção do uso, produção e comércio da maconha que está sendo 
gradativamente legalizado e regulamentado em alguns estados dos EUA 16 e também no 
Uruguai17; os moralismos hipócritas sobre as demais drogas tornadas ilícitas ainda são o 
discurso predominante no tratamento do tema. O modelo de “Guerra às Drogas” deste século 
continua marcado por fortes intervenções militares norte-americanas nos países latino-
americanos. Em 2000, os EUA aprovaram um pacote de ajuda de $ 1,3 bilhões à Colômbia, 
parte do chamado "Plano Colômbia", que previa o gasto de $ 7,5 bilhões para enfrentar a crise 
colombiana. (HERZ, 2002) 
 No Brasil, a política das internações compulsórias, com índice de sucesso no 
tratamento que não ultrapassa 2% (LOCCOMAN, 2012), continua sendo praticamente a única 
solução apresentada pelo poder público. 
A violência contra os grupos marginalizados que praticam o pequeno tráfico também 
não diminuiu com a “Guerra às Drogas”. O número de presos pelo uso e porte de drogas 
aumentou significativamente nos anos 10 do século XXI no mundo todo, fazendo suas vítimas 
principalmente entre homens jovens negros e pobres. 
 
15
 (1-benzil-piperazina) 
16 Estados americanos que regulamentaram a maconha para fins 
 1996 Califórnia e Arizona 
 1998 Alasca, Oregon e Washington 
 2000 Havaí, Nevada e Colorado 
 2003 Maryland 
 2004 Vermont 
 2007 Rhode Island e Novo México 
 2008 Michigan 
 2012 Nova Jersey 
 Estados americanos que regulamentaram o uso para fins recreativos: 
 2014 Colorado, Washington e Maryland 
Em 2004, Montana realizou um plebiscito aprovando o uso medicinal da maconha, mas devido a pressões de 
grupos contrários, a legislação ainda não foi regulamentada. 
17
 O Uruguai aprovou em 10 de dezembro de 2013 lei que descriminaliza o uso da maconha e prevê o controle 
total do Estado sobre a produção e o comércio. A regulamentação da lei deve acontecer ainda em 2014. 
22 
 
 
 
De 2002 a 2011 triplica o número de jovens presos por tráfico de drogas no Brasil18. 
Os EUA, antes conhecidos como a terra da liberdade, hoje tem a maior população 
carcerária do mundo. Após a declaração de “Guerra às Drogas” nos anos 70, o número de 
encarcerados nos EUA por crimes relacionados às drogas aumentou em mais de 2.000%. E, 
apesar dos negros constituírem apenas 13,5% dos usuários e vendedores das drogas tornadas 
ilícitas nos EUA, 37% dos detidos por violação às leis de drogas americanas são negros, 42% 
dos que estão em prisões federais por drogas são negros e 60% dos que estão em prisões 
estaduais por drogas são negros; a taxa de encarceramento de negros é de 4.749 presos por 
100.000 habitantes, enquanto que para a população em geral é de 734 presos por 100.000 
habitantes; o que evidencia uma política discriminatória e que tem como alvo principal a 
população negra norte-americana. (KARAM, 2012) 
No México, estima-se que a repressão penal ao tráfico das drogas tornadas ilícitas já 
tenha feito mais de 60.000 vítimas desde que o presidente mexicano, Felipe Calderón, lançou 
uma ofensiva de guerra contra os cartéis mexicanos19. 
Diante de todas as informações, dados e análises apresentadas pode-se concluir que a 
transformação de algumas drogas em ilícitas pouco se embasou na preocupação com a saúde 
do usuário. O argumento da proteção da saúde pública através da proibição de algumas drogas 
serviu e continua servindo de cortina de fumaça para interesses puramente políticos, 
econômicos e moralistas, de modo a permitir o controle sobre populações menos favorecidas 
e historicamente estigmatizadas, que acabam fazendo da ilegalidade das drogas seu meio de 
sustento; e também a fim de fazer o tão famigerado controle sobre os corpos, domínio sobre 
os comportamentos dos cidadãos, como bem explica o criminólogo Alessandro Baratta numa 
leitura de Michael Foucault sobre o tema: 
“É notório que nesta nova guerra santa, combate-se, aparentemente, em nome 
da saúde pública, do bem e da civilização, mas na verdade, e exclusivamente, 
contra uma pequena minoria de consumidores de drogas ilícitas; são eles os 
mais desprotegidos e explorados dentre os consumidores e os adictos, os que 
pagam com a sua própria personalidade o custo social da guerra, sendo objeto 
de um processo drástico de estigmatização, regressão e inserção em papéis 
criminais.” (BARATTA, 1992, p. 41) 
Contudo, apesar da clara demonstração de que a saúde individual e pública não foi a 
maior preocupação quando da seleção de algumas drogas para a ilicitude e clandestinidade, 
 
18
 Disponível em: http://coletivodar.org/2013/08/encarceramento-em-massa-triplica-parcela-de-jovens-
internados-por-trafico-de-drogas/ Acesso em: 9 abr. 2014. 
19
 Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2012-05-25/saiba-mais-sobre-os-carteis-de-drogas-do-
mexico.html Acesso em: 9 abr. 2014. 
23 
 
 
 
este continua sendo o maior argumento dos proibicionistas, que militam pela manutenção de 
proibição do uso, produção e distribuição destas especificamente escolhidas drogas. 
Assim, os próximos capítulos deste trabalho pretendem desconstruir o argumento de 
que a proibição das drogas tornadas ilícitas sustenta-se na proteção da saúde individual e 
pública, alertando inicialmente para o fato de que o direito ao uso de drogas passa 
necessariamente pela direito a individualidade e liberdade dos cidadãos. Em momento 
posterior pretende-se demonstrar como a falta de isonomia na escolha das drogas tornadas 
ilícitas evidencia o fato de que se a saúde pública fosse a real preocupação dos atores políticos 
da proibição outras drogas deveriam ter sido proibidas, e muitas das já proibidas deverias ser 
liberadas e regulamentadas, diante de sua real capacidade degerar dependência e danos 
físicos e psicológicos aos usuários. E em seguida, alguns dados serão apresentados a fim de 
sustentar que é a própria repressão estatal ao uso e ao comércio que cria um enorme dano à 
saúde dos usuários e dos atores do comércio ilícito (traficantes e policiais). 
 
24 
 
 
 
CAPÍTULO 2 - Direito do uso de drogas como expressão da liberdade de 
disposição do próprio corpo, intimidade e vida privada 
 
Vivemos num sistema representativo democrático, em que elegemos legisladores a fim 
de que eles direcionem a produção das leis, incluindo emendas constitucionais e outros 
formatos legislativos, que, por sua vez, regulam o comportamento dos indivíduos. Dentre as 
leis que limitam de atuação dos indivíduos, as leis penais são aquelas que exigem maior 
contraprestação do indivíduo, que carregam as piores sanções ao seu descumprimento, como a 
pena privativa de liberdade e as restritivas de direitos. 
Se entregamos aos legisladores a tarefa de criar, discutir e decidir quais os 
comportamentos serão modelados, indicados e proibidos, quais são os limites para essa 
atuação legislativa? Há limites para a criação ou para a extinção de tipos penais20? Ou 
estamos ao arbítrio do legislador? A Constituição Federal de 1988, ao elencar o rol de direitos 
fundamentais serve de limite paradigmático para atuação do legislador em matéria penal? Se 
sim, onde encontramos estes limites e de que forma eles se relacionam com o conteúdo dos 
tipos penais criminalizadores? O que dá legitimação ao tipo penal, que contém 
comportamento objeto da tutela penal, sujeito à sanção? 
Não há muito consenso entre os juristas e doutrinadores da dogmática penal de quais 
seriam os limites para a atuação do legislador em matéria penal. 
Contudo, acredito que seja útil e até necessário que se desenvolva uma teoria capaz de 
criar fronteiras de atuação para o legislador, principalmente no que diz respeito à criação de 
tipos penais incriminadores. Dentre as teorias pesquisadas, acredito que a que melhor atinge 
este objetivo é a da limitação do Direito Penal através da necessária relação das condutas 
incriminadas com bens jurídicos a serem protegidos. 
Assim, partirei do fundamento de que o Direito Penal se presta à proteção de bens 
jurídicos. Isto significa que para que a tutela penal alcance legitimamente algum 
comportamento, ele deve se mostrar lesivo ao bem jurídico objeto da tutela. Antes de apontar 
 
20
 Neste trabalho, especificamente neste capítulo, pretendo abordar somente a questão da inconstitucionalidade 
da criação de tipo penal, no sentido de que a criminalização atinge bem jurídico, deixando de fora a discussão 
sobre a inconstitucionalidade pela falta de criação de tipos penais que protejam bens jurídicos constitucionais, 
mas que por desídia legislativa deixaram de ser protegidos. A discussão sobre a proibição da proteção deficiente 
do Direito Penal pode ser lida em STRECK, L. L. BEM JURÍDICO E CONSTITUIÇÃO: DA PROIBIÇÃO DE 
EXCESSO (ÜBERMASSVERBOT) À PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO DEFICIENTE 
(UNTERMASSVERBOT) OU DE COMO NÃO HÁ BLINDAGEM CONTRA NORMAS PENAIS 
INCONSTITUCIONAIS. 2007. Disponível em: 
http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&task=search_result&Itemid=40 Acesso em: 25 abr. 
2014. 
25 
 
 
 
alguns delineamentos acerca do significado da expressão “bem jurídico” e da forma como o 
legislador escolhe os bens jurídicos passíveis de tutela, apresentarei um breve resumo da 
doutrina minoritária que não se sustenta sob a limitação do Direito Penal pela proteção de 
bens jurídicos, e sobre os argumentos que permeiam tal visão. 
O maior e principal expoente da visão de que o Direito Penal pode se fundar e se 
justificar em outras determinações é o alemão Günther Jakobs. Conhecido principalmente por 
defender um Direito Penal diferenciado para sujeitos “não sujeitos de direitos”21 em seu livro 
“Direito Penal do Inimigo: noções e críticas”, o autor, a partir de uma visão puramente 
pragmática e funcionalista do sistema penal, propõe que a legitimação a intervenção penal e 
violenta do Estado não se dá para proteger bens jurídicos e prevenir delitos, mas sim para 
sustentar as próprias expectativas normativas do Direito Penal. 
Sua visão fundamenta-se na teoria dos sistemas do sociólogo Niklas Luhmann, cuja 
preocupação central é a moderna sociedade do risco e as formas de gerir os novos riscos 
oriundos da sociedade pós-industrial, do capitalismo tardio. Luhmann acredita que o sistema 
social funciona como um mediador entre o homem singular e suas limitações e o conjunto de 
complexidades que o mundo oferece a este homem. Para isso, o homem tem que interagir 
tanto com o sistema quanto com outros homens simples como ele. Assim, o homem é um ser 
social, que precisa da interação com outros de sua espécie para agir no mundo e encontrar seu 
lugar na sociedade. E este agir no mundo depende tanto das expectativas criadas por este 
homem, quanto das expectativas dos outros em relação às suas próprias atitudes. O sociólogo 
separa estas expectativas em duas: as cognitivas e as normativas. As expectativas cognitivas 
dizem respeito ao processo de ação e reação do homem com o mundo, e quando desapontadas 
elas podem ser modificadas. São as expectativas do controle social informal - família, amigos, 
igreja, escola, etc. Já as expectativas normativas fazem parte do sistema social formal, o 
Direito, e são imutáveis, pela simples vontade do indivíduo - alteráveis somente por 
proposição legislativa, apesar da realidade muitas vezes não condizer com elas. Todos estes 
sistemas, formais e informais, objetivam delimitar estas expectativas. Assim, a norma 
jurídica, para o sociólogo, nada mais é do que uma expectativa normatizada, regulada, sujeita 
a uma sanção no caso de seu descumprimento a fim de manter vigente tais expectativas. 
(NIKITENKO, 2006). 
 
21
 Neste livro, o autor faz uma distinção entre cidadãos, sujeitos de direitos em face da presença punitiva do 
Estado, e não-cidadãos, sujeitos que perderam a condição de sujeitos de direitos devido a comportamentos que 
contradizem a aceitação da presença do Estado, como é o caso dos terroristas. 
26 
 
 
 
É neste sentido que o penalista alemão Günther Jakobs defende a validade da norma 
jurídica penal, como sendo uma orientação de comportamento social, em que a sanção pelo 
seu descumprimento é uma forma de reafirmar a expectativa contida na norma. A norma serve 
unicamente para manutenção do sistema social vigente. Para o autor, a pena só serve para 
garantir a vigência da norma, realizando-se a prevenção positiva, e não para prevenir a 
ocorrência de delitos – prevenção negativa. Jakobs acredita que todo indivíduo tem um papel 
a zelar na sociedade, e neste papel inclui-se o de não frustrar as expectativas normativas 
impostas pelo sistema. Assim, coloca-se a norma como centro da discussão de sua própria 
validade; e, em sendo ela violada, a pena deve ser aplicada, independentemente de o 
comportamento ter violado efetivamente qualquer bem jurídico. (NIKITENKO, 2006). 
Há ainda quem afirme que a definição do que seja bem jurídico é de tamanha 
dificuldade, que não se pode tomar o termo por delimitador da atuação do legislador penal. 
Para o autor alemão Günter Stratenwerth, o Direito Penal não pode se ocupar de definir os 
bens jurídicos a serem protegidos pela norma, pois tal tarefa se mostraria interminável. Para 
ele, a norma penal também serve para punir tabus cunhados culturalmente, ou até meros atos 
de vontade do legislador, aproximando-se de Jakobs no sentido de dar à norma a legitimação 
pela sua própria existência. (ROXIN, 2009) 
Contudo, pela evidente conseqüência de não trazer qualquer limitação ao poder 
punitivo do Estado, considero as correntes

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