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A Geografia do aluno trabalhador Márcia Spyer Resende

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5 1
MÁRCIA SPYER RESENDE
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A GEOGRAFIA DO ALUNO 
TRABALHADOR
CAMINHOS PARA UMA PRATICA DE ENSINO
cEdiçôes 
0Loyola
■
*1
i
S U M Á R I O
APRESENTAÇÃO ..................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 11
Capítulo I
— Dos problemas gerais ao problema central do ensino
de geografia .............................................................................................. I 5
Capítulo II
— Espaço geográfico ................................................................................. 23
Capítulo III
— Espaço real: contando nossas histórias, nossa geografia 43 
Capítulo IV
— Espaço real: análise das “ histórias de vida” ...................... 131
Capítulo V
— Integração do “ espaço real” ao espaço geográfico no 
ensino de geografia ............................................................................ 163
CONCLUSÃO ............................................................................................................ 177
BIBLIOGRAFIA 179
APRESENTAÇÃO
O trabalho da Profa. Márcia Maria de Resende se constitui num 
esforço de inversão de ótica, de mudança de perspectiva no interior 
do ‘‘ensino de Geografia” . E ele se apresenta como um esforço redo­
brado, na medida em que, preocupada na essência com o pedagógico, 
mergulha fundamente nas questões teóricas e metodológicas da ciência 
geográfica, já que estas informam o ‘‘ato de ensinar” .
Márcia tem uma experiência de mais de dez anos ensinando 
Geografia para alunos das camadas populares — pedreiros, serviçais 
domésticos, metalúrgicos etc. — que, tardiamente, segundo o parâ­
metro das faixas etárias convencionais, ingressam nas últimas quatro 
séries do 1.° grau. Foi praticando a ‘‘educação popular” (como modelo 
alternativo ã educação regular) e explorando a via da “ educação 
sindical” , segundo suas próprias palavras, que ela adquire a convicção 
da necessidade da escola regular para as camadas populares e a 
urgência de encontrar formas de socializar o saber sistematizado. 
Avança mais quando se propõe partir, no ato de ensinar, do saber 
que o aluno traz consigo, de sua história, de sua vida. Será tomando 
essa experiência de vida como ponto de partida que se poderá con­
duzi-lo à visão mais abrangente do saber universal.
“ . . . na aula de Geografia eu dormia, não sabia o porquê. 
Então, do jeito que a professora dava aula, não dava von­
tade nenhuma de ouvir a aula. Era preso demais; mostrar 
para você o que está no livro, de falar questão é isso, isso 
e não mostrar o porquê daquilo." Antônio Henrique da 
Silva, 18 anos, 6.a série, atendente de vestiário.
“ Na c id ad e ... a gente se sente assim tipo uma pessoa 
oprimida. Quer dizer, é a mesma coisa de um cara tra-
9
balhar num restaurante ou o mordomo, por exemplo. Talvez 
ele pega tanta coisa boa, mas nem tudo ele come, só tem 
o prazer de levar para os outros.” Adair Gonçalves da 
Silva, 28 anos, 6.a série, encarregado de obras.
Dos relatos de vida: “ Minas história, minha Geografia" que os 
alunos de Márcia elaboraram sob sua orientação e que fazem parte do 
corpo deste trabalho, extraímos estes dois trechos acima. De um 
lado, eles evidenciam a experiência, a vivência espacial que os alunos 
têm, o seu próprio saber geográfico; de outro, mostram claramente
o desinteresse que estes mesmos alunos apresentam com a Geografia 
que a escola se propõe ensinar, além de conter uma crítica tímida, 
mas explicitada com propriedade, a propósito da escola e da Geografia 
que lhes é ensinada. Fica claro que este ensino, por não trabalhar 
a realidade vivida pelo aluno, tem sido um processo de parcelamento 
da totalidade percebida e vivenciada, uma cristalização do todo que 
não é estático e sim dinâmico.
A partir dos relatos de vida e levando em conta a percepção, 
conhecimento e consciência espacial própria que os alunos têm, 
Márcia faz a crítica da concepção tradicional positivista do espaço. 
E caminha, no sentido de superar a própria crítica, apontando direções 
para o ensino da Geografia a partir do questionamento do ser desta 
ciência e de sua própria razão de ser. Este deve se constituir como 
um processo de desvendamento e de entendimento da realidade do 
aluno e do seu espaço na sua dimensão conflitual. Nesta medida, 
conhecendo, tomando consciência e organizando prática e mental­
mente esta realidade, o aluno se forma como cidadão e, como tal, num 
agente transformador do mundo.
Assim, em seu trabalho. Márcia resgata a Geografia como uma 
ciência social e a própria escola na sua função política e social. 
Desta forma, este texto abre caminhos de reflexão fecunda para todos 
os geógrafos: pesquisadores e professores.
Maria Lúcia Estrada Rodrigues 
Professora de Geografia na Escola de 1.° Grau do 
CENTRO PEDAGÓGICO - UFMG
10
INTRODUÇÃO
0 tema do presente livro é fruto de três convicções. Indireta­
mente das duas primeiras e diretamente da última.
1 — A importância da escola formal para as classes populares.
Sem eliminar ou descartar outras formas de prática educacional, 
considero hoje a escola formal como espaço prioritário de trabalho 
para quem pretenda produzir uma educação que sirva aos interesses 
imediatos e históricos das classes populares.
Não cheguei a esta convicção pelo caminho da teoria. Nunca 
dispus dos meios nem de experiência especulativa suficiente para 
fazê-lo. Foi praticando a "educação popular” (como modelo alter­
nativo à escola formal) e explorando a via ainda movediça da "edu­
cação sindical" que o papel decisivo da escola formal se evidenciou 
para mim. E o que julgo mais importante: não fui eu, como “ peda­
goga” , a partir de outra origem de classe, que estabeleci esta impor­
tância: foram os próprios alunos, seus pais e as comunidades, enfim, 
com quem trabalhei, que reclamaram, a despeito de todos os projetos 
alternativos, o direito aos benefícios da escola formal também para 
eles.
De início acreditei que esta demanda fosse reflexo de “ atraso de 
consciência” ou de qualquer outro “ defeito ideológico” , rapidamente 
superável pelas qualidades intrínsecas da pedagogia alternativa. Mas, 
paulatinamente, a verdade desta atitude se impôs: não se trata de 
atração pela imagem ilusória da escola formal, mas de uma poderosa 
vontade coletiva, aspiração aos bens sociais concretos e palpáveis 
que a escola formal pode proporcionar.
11
2 — A necessidade de redefinir o conteúdo de nosso ensino e 
encontrar formas pedagógicas capazes de socializá-lo.
Não basta, penso eu, que se compreenda o valor da escola formal 
para as classes populares. Seria cair em uma ilusão oposta, em 
uma nova "euforia” , se nos limitássemos a constatá-lo. Para escapar 
à cilada conservadora, precisamos redefinir o próprio conteúdo da 
educação que praticamos, resgatando a sua verdade social e política, 
bem como forjar uma nova estratégia pedagógica — mecanismos ori­
ginais de transmissão/assimilação de conhecimentos — que a viabilize 
no dia-a-dia das relações educacionais. Ou seja: o reconhecimento 
da importância da escola formal não exclui (pelo contrário: reclama) 
a crítica de nossas ideologias escolares e de nossas artes pedagógicas.
3 — A importância de partir, no ato de ensinar, do saber que 
o aluno traz consigo, de sua "história” .
Na condição de professores, sempre julgamos de alguma forma 
(implícita ou explicitamente) o saber que o aluno traz consigo ao 
chegar às "mãos” da escola. Nem sempre reconhecemos este fato, 
mas na verdade somos juizes desse saber e quase sempre o rejei­
tamos como não-saber ou pré-saber. Nossaprática pedagógica nos 
levou à terceira convicção que está na raiz deste trabalho: no ensino 
em geral e de Geografia em particular é não apenas possível, mas 
(do ponto de vista das classes populares) necessário partir do saber 
do aluno, de sua.acumulação "histórica” de vida.
Dessa forma, foi acreditando na importância da escola formal e 
na necessidade de socializar através dela o saber geográfico, sem 
render-se todavia ao seu projeto ideológico, que empreendi a pesquisa 
que gerou este livro.
Existe um saber geográfico pré-escolar que brota da vivência 
prática, social do espaço? Será, como geralmente se afirma, uma 
soma arbitrária de intuições vagas com opiniões equivocadas ou 
podemos efetivamente atribuir-lhe status de conhecimento, ainda que 
muitas vezes passe à margem das categorias analíticas e das conclu­
sões "positivas” da Geografia tradicional? Afinal, quais são as 
características fundamentais, os traços distintivos dessa "consciência 
espacial” peculiar? É possível que ela tenha assim tanta importância 
para e n s in a r... Geografia?
Para responder a estas indagações, desenvolvi a minha investi­
gação a partir dos "relatos de vida” de um elenco de cento e sessenta 
alunos, da 5.a à 8 “ série, curso noturno, dos quais selecionei vinte 
e quatro para uma interpretação exaustiva. Oito destes relatos, a 
título de exemplo, constituem o III capítulo do presente volume. Achei
12
imprescindível reproduzi-los na íntegra porque eles falam por si, meu 
comentário sendo muitas vezes apenas um complemento.
Seus autores, como já mencionei, são alunos adultos pertencentes 
às classes populares, 1 conceito que julgo prudente explicitar. Pre­
tendo com ele designar, nas páginas que seguem, os trabalhadores 
assalariados manuais na indústria (ex.: metalúrgico, mestre de obras, 
pedreiro etc.) e empregados no setor de serviços em funções de 
baixa qualificação (ex.: balconistas, emgregadas domésticas, “ boys” de 
escritório, mecânico de automóveis, chofer de coletivo etc.).
A redução de cento e sessenta para vinte e quatro “ histórias de 
vida’’, ou seja, a definição do corpus da pesquisa, obedeceu a um 
critério biográfico: a variedade dos percursos vitais narrados: alunos 
que nasceram na roça e vieram direto para Belo Horizonte; outros 
que nasceram na roça, viveram em diversas regiões brasileiras e estão 
hoje em Belo Horizonte; e, finalmente, aqueles que nasceram e sem­
pre viveram em Belo Horizonte.
Este livro recolhe o texto, parcialmente modificado, da dissertação 
de Mestrado que apresentei, em junho de 1983, à Faculdade de Educa­
ção da Universidade Federal de Minas Gerais. Resulta de pesquisa 
financiada pelo INEP — Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas 
Educacionais.
Revisando-o agora para publicação, procurei suprimir, tanto quanto 
possível, o jargão acadêmico e os cacoetes de geógrafa. Impossível 
evitar, porém, sem refundi-lo inteiramente, a andadura pesada e o 
esquematismo expositivo que parecem infelizmente compulsórios em 
nossa literatura universitária. Espero sobretudo que ele seja útil ao 
combate que cada professor de Geografia trava consigo mesmo para 
evitar a sedução do conformismo e da pseudociência.
Sem distinguir grau, intensidade e nível de colaboração, gostaria 
de dizer que este livro foi construído junto com Hugo, Marilda, Flávio, 
Jair, Lourdes, Tia Verinha, Ronaldinho, Otávio, Cynara, Rosalina, Nair- 
zinha, Ju, Duzão, Maria Lúcia, Léa, Maria Inês, Rejane, Virgínia, Rosani, 
Cacau, Tetê e Lu.
1. Acredito que todo e qualquer aluno, na verdade, seja ele adulto ou 
criança, proletário ou não, chega à escola com uma determinada “cons­
ciência espacial” que deveríamos, a meu juízo, incorporar à nossa estra­
tégia pedagógica. Contudo, o lugar social do sujeito (aluno), o seu papel 
nas relações sociais de produção, pode alterar decisivamente a natureza 
mesma deste saber e, logo, a qualidade de seu aproveitamento escolar. Daí 
a necessidade, para o pesquisador, de delimitar com precisão o universo 
sociológico investigado> no meu caso alunos adultos de classes populares. 
Estudos posteriores deverão testar a hipótese com alunos de distintas ida­
des e origens de classe.
13
Agradeço a toda a equipe de professores do Mestrado em Educação 
da FAE-UFMG. O projeto atual daquele Mestrado — abrir-se a pessoas 
sem experiência teórica, ajudando-as a pensar sua prática educacional 
concreta, muitas vezes rica de pistas, indagações, problemas — per- 
mitiu-me freqüenta-lo com proveito e orientar-me no cipoal de angústias 
e anseios de minha prática individual.
Agradeço em especial a Miguel González Arroyo que iluminou, 
como orientador da pesquisa, um caminho em que ele também acre­
ditava; a Luiz Dulci, companheiro, que dividiu comigo, além do mais, 
a elaboração deste trabalho; aos alunos entrevistados, pelo interesse, 
cooperação e responsabilidade com o tema; somos co-autores.
d* àp h ws s
14
Capítulo I
DOS PROBLEMAS GERAIS 
AO PROBLEMA CENTRAL 
DO ENSINO DE GEOGRAFIA
( . . . ) na aula de Geografia eu dormia, não sabia 
o porquê. Então, do jeito que a professora 
dava aula, não dava vontade nenhuma de ouvir 
a aula. Era preso demais; mostrar para você 
o que está no livro, de falar questão é isso, 
isso, e não mostrar o porquê daquilo.
Antônio Henrique
15
É quase generalizada hoje a opinião de que o ensino está “ um fra­
casso” , sobretudo o ensino das chamadas ciências humanas.
Particularmente no caso do ensino de Geografia (disciplina que, 
por diversas razões, sempre foi considerada secundária na escola 
brasileira) esta opinião se manifesta com máxima intensidade, tradu­
zindo um estado de coisas realmente desalentador.
Tornou-se lugar-comum afirmar que o ensino de Geografia está 
em crise, que os professores não conseguem ensinar, que os alunos 
não conseguem aprender e t c . . .
Tal situação tem levado a que, nos congressos, simpósios e semi­
nários da área, os professores apresentem como prioridade maior a 
realização de um diagnóstico do ensino de Geografia no 1.° e 2.° 
graus, que determine as causas dessa crise e prepare o caminho 
para possíveis soluções.
Esta demanda vem geralmente precedida por toda sorte de dúvi­
das, angústias e frustrações que cada professor nutre sobre seu 
próprio trabalho.
Várias razões são apresentadas para explicar essa crise e muitas 
vezes para justificar o papel que os professores de Geografia desenv 
penham nela.
A mais oomum é o desprezo pelas ciências humanas em função 
das ciências físicas e biológicas “ que a escola inculca e/ou desen­
volve no aluno” . As disciplinas chamadas “ humanas” são conside­
radas pela escola (e pelo aluno e pela comunidade) como menores, 
destituídas de importância real: “ É só decorar e dar uma lida que a 
gente passa de ano” . Nesta área, quando o aluno é reprovado, para 
citar um exemplo, geralmente o fato é atribuído à incompetência do 
professor ou ao seu exibicionismo. Este juízo, aliás, dissemina-se com 
tanta facilidade que os próprios professores o assimilam, julgando-se 
efetivamente “ piores” ou “ menos científicos” . Ao passo que as 
matérias “ técnicas” são consideradas necessárias, exigem raciocínio 
e frente a elas não adianta decorar: “ estas são as mais difíceis: dão 
bomba mesmo!”
16
Além disso, considera-se que para os alunos das classes traba­
lhadoras é supérfluo o aprendizado das disciplinas “ humanas” . Na 
vida prática eles não teriam necessidade delas.
A escola, em suma, para os professores de Geografia, não consi­
dera esta disciplina como “ ciência” , o que a condena inapelavelmente 
aos olhos dos alunos e — dizemos nós — também da maioria dos 
professores.
Outra razão freqüentemente apontada é a má organização do con­
teúdo curricular, sobretudo o salto de conteúdos que ocorre da 4 a 
para a 5.a série do 1.° grau. O professor da 5.a série geralmenterecebe 
os alunos com noções de espaço geográfico imediato, ligado via de 
regra ao seu espaço vital: na 1* série o aluno estuda a família, na 
2." a comunidade, na 3.a o município e na 4.a o seu Estado. Ora, na 
5." série (onde a Geografia não raro é ensinada junto com "História” 
e "Moral e Cívica" a título de Estudos Sociais) o programa inicia-se 
com "o homem e a conquista do espaço" ou tópico semelhante. 
Passa-se bruscamente do espaço vivido ou pelo menos conhecido dire­
tamente, para um espaço "de informação” , distante, longínquo, que 
inclui até mesmo noções cosmológicas dificilmente assimiláveis 
pelo aluno.
Acresce ainda a insuficiência da carga horária para o cumpri­
mento do programa oficial. É muito comum a queixa: como ensinar 
toda a matéria em tão pouco tempo? Como integrar, em carga 
horária tão exígua, os programas de História e Geografia, conforme 
exige a escola?
Embora o programa oficial não seja, a rigor, compulsório, nem 
tampouco deva necessariamente ser exaurido em suas minúcias, na 
verdade a coerção padronizadora da escola e a própria demanda dos 
alunos acabam por exigi-lo assim. Sem falar nos livros didáticos 
que, em geral, o seguem rigidamente, obrigando o professor a terrível 
ginástica dentro do tempo disponível.
A exigência de cursos de tal forma "panorâmicos” ou mesmo 
"enciclopédicos” acaba por impor ensino de grande superficialidade: 
rara vez o professor dispõe de margem de arbítrio suficiente para 
soparar o essencial do periférico. E quando o faz, à custa de esforço 
pessoal, arrisca-se ao rótulo de “ incompetente” , de profissional que 
"não dá conta de seu recado” .
Os professores de Geografia enfatizam também o peso da con­
dição sócio-econômica do aluno em toda essa crise: "Aluno de peri- 
lorln 6 muito fraco, não sabe sequer o indispensável: ler, escrever; 
como exigir dele que observe, interprete, analise, compare, deduza,
17
critique? Como exigir dele domínio do vocabulário geográfico, se 
mesmo palavras do cotidiano lhe escapam? Somos com ‘‘freqüência 
obrigados a avaliá-los pela expressão oral para que o inepto manuseio 
da língua escrita não os reprove a todos. De que forma provocar o 
interesse, ‘sacudir’ a inteligência de alunos que nos chegam em 
condições tão precárias de nutrição, saúde, higiene — logo, aptidão?"
Aliadas a esta condição miserável do aluno estão também as 
precárias condições de trabalho do professor. Seja no plano físico, 
com salas estreitas, mal-iluminadas, classes muito numerosas, carência 
de instrumentos didáticos (privilegiado é o professor que dispõe, 
em sua escola, de boa biblioteca, atlas, mapas, material audiovi­
sual e t c . . . ) seja em termos salariais, com salários baixos, inexis­
tência de garantia de emprego e t c . . . , que o obrigam a uma média 
altíssima de aulas semanais (para quem leciona no 1.° grau, 40 aulas 
por semana não é carga horária exagerada) sem falar na verdadeira 
maratona entre escolas que resulta desse absurdo ritmo de trabalho.
Os livros didáticos, segundo os professores da área, também 
têm a sua parcela de responsabilidade no insucesso do ensino de 
Geografia. Sua "qualidade” está caindo progressivamente e, de 
maneira esquemática, se pode dividi-los em dois tipos: os livros de 
linguagem dita mais acessível tratam os alunos quase sempre como 
incapazes, impedindo-os de raciocinar, analisar, interpretar, criti­
car etc.; já os que não rebaixam arbitrariamente nem "facilitam” o 
conteúdo têm uma linguagem e trabalham com um código de refe­
rências dificilmente acessível às classes populares.
Por outro lado, devido à sua formação deficiente, o professor 
geralmente não identifica na "forma” e “ conteúdo” dos manuais didá­
ticos a visão de mundo de quem os produziu. Freqüentemente o pro­
fessor adota um livro que não corresponde à sua filosofia de trabalho 
e que até mesmo a contradiz. Em seminários ou encontros de prática 
de ensino é muito comum ouvir-se a declaração algo espantada: “ . . .eu 
não sabia que o livro que adoto transmite essa visão do mundo. . . 
in te re ssan te ...” Via de regra o manual é escolhido por critérios 
extradidáticos, ou seja, o seu preço, o impacto publicitário de seu 
lançamento, o esforço menor que exige do professor em sala de 
aula e t c . . . Quando não é simplesmente o livro “ oficial” da escola 
ou a apostila que ela própria preparai . . .
A precária formação profissional é outra explicação usualmente 
apresentada. As licenciaturas de curta duração em Estudos Sociais, 
a ênfase maior posta pela Universidade na formação do Geógrafo-Pes- 
quisador em detrimento do “ aluno normal” que vai para a vala comum
18
do magistério de 1.° grau, bem como um ensino universitário “ teórico” , 
“ doutrinário” , olimpicamente distante das contradições e misérias da 
prática, tudo isso tem igualmente graves repercussões — julgam os 
professores — sobre o nível de ensino.
Como estas, outras tantas razões são apresentadas para explicar 
o fracasso do ensino de Geografia no 1.° grau. Desde o vestibular, 
entidade quase mítica, de tantas e tão pouco estudadas conseqüências, 
até a inexistência de participação democrática nas decisões educacio­
nais (a nível do cotidiano escolar como da Política Educacional dos 
governos), muitas razões se dão para essa crise que, de tão dita e 
constatada, sem que quase nada se faça para a sua superação, já 
começa a parecer uma fatalidade.
Todos esses fatores, apontados não por burocratas ou “ especialis­
tas” em Educação, mas sim por professores que enfrentam dia a dia 
o desafio de transmitir conhecimentos geográficos, são relevantes e 
determinam em grande medida a relativa frustração de nossa prática 
de ensino. Podemos afirmar com segurança que, sem levá-los em 
conta, à revelia de suas implicações muitas vezes terríveis, jamais 
se logrará um equacionamento real, sem mistificações, do ensino de 
Geografia no Brasil de hoje.
Atrevo-me a sugerir, porém, que este mosaico de dificuldades, 
objeto necessário de lutas acadêmicas, sindicais e políticas, não 
identifica a questão fundamental do nosso ensino de Geografia. Minha 
experiência de 14 anos como professora dessa disciplina, primeiro na 
escola primária e depois de 5.a a 8.a séries do 1.° grau, bem como 
em projetos alternativos de “ Educação Popular” , convenceu-me de 
que há um problema ao mesmo tempo anterior e transcendente a todos 
estes, um problema que diz respeito à própria sobrevivência da Geo­
grafia enquanto ciência, um problema que poderia permanecer (e ele 
sozinho bastaria para alimentar indefinidamente a crise da Geografia) 
ainda que todos os anteriores fosse satisfatoriamente resolvidos.
Mas, afinal, que problema será este? Ele reside justamente no 
objeto de investigação que constituímos, vale dizer, na maneira como 
n Geografia é encarada por nós que a ensinamos: de uma forma fra- 
clonada e parcial, nunca como totalidade; nunca como o trabalho de 
homens históricos sobre um espaço que a história da sociedade 
humana reproduz. 2
Uma Geografia assim concebida leva-nos fatalmente a considerar 
o nluno, em especial aquele oriundo das classes populares, como um
2 O próximo capítulo tenta caracterizar melhor esta afirmação.
19
ser neutro, sem vida, sem cultura, sem história — um ser que não 
trabalha, não produz a riqueza neste momento histórico e neste espaço 
geográfico determinado. O aluno não participa do espaço geográfico 
que ele estuda. Se o espaço não é encarado como algo em que o 
homem (o aluno) está inserido, natureza que ele próprio ajuda a 
moldar, a verdade geográfica do indivíduo se perde e a Geografia 
torna-se alheia para ele.
Considero esta a falha mais grave de nossa Geografia/nosso 
ensino: desprezar o ser histórico da Geografia e, conseqüentemente, 
o ser histórico do aluno. Acolhê-los seria, de certa forma, redefinir 
a relação mesma de ensino-aprendizagem, construiro caminho do 
conhecimento, da descoberta, a partir da realidacíe vivenciada pelo 
aluno. Aí estariam, professor e aluno, descobrindo e recriando a 
ciência geográfica.
Agir assim significaria, contudo, valorizar uma experiência de 
espaço do aluno, do aluno pobre — uma experiência de espaço que 
lhe é própria. Nossa escola prefere excluir esse espaço real do 
espaço geográfico que ensinamos. (Razão manifesta: estas "impres­
sões" são irrelevantes: razão política: este saber pode ser arriscado, 
subversivo para a própria Geografia, para a escola). Ao negar o 
espaço histórico do aluno (da Geografia), ela marginaliza o próprio 
aluno como sujeito do processo do conhecimento e transforma-o em 
objeto deste processo.
Creio necessário combater semelhante des-historização da Geo­
grafia e do aluno. Sei que não é tarefa simples nem pode ser 
cometida na solidão. Os avanços neste campo resultarão tanto da 
controvérsia teórica ou da reflexão especulatva quanto do empenho 
experimental de cada professor em sua sala de aula .3
Pretendo oferecer a minha contribuição demonstrando empirica- 
mente que os alunos chegam à escola com um saber peculiar sobre 
o espaço, fruto de sua experiência imediata de vida. A esta consciên­
cia espacial própria denominei "espaço real” , ou seja, aquele espaço 
cuja lógica eles experimentam na própria carne, espaço que faz 
parte de suas histórias, das múltiplas atividades que "enchem” suas 
vidas.
3. Esta não é diretamente uma pesquisa de prática de ensino. Ela 
examina problemas, ao meu ver decisivos, quanto ao método geográfico, 
que precedem e determinam a nossa prática. A discussão do método, po­
rém, não é feita teoricamente, mas a partir de realidades da própria sala 
de aula (a insatisfação do professor, a percepçãc do aluno, o manual di­
dático) que levam a análise a evoluir quase sempre na fronteira entre a 
concepção de Geografia e a sua didática.
20
É com a percepção intensa deste espaço que todos eles chegam 
à escola. E nós, professores, devemos, então, ensinar-lhes o "espaço 
geográfico” , aqueles dados espaciais que eles não têm, sobre um 
espaço que eles em tese não experimentam nem conhecem.4
Mas este espaço geográfico — este "outro” espaço — não é tam­
bém historicamente produzido por homens, por alunos?
4. Se a escola considera devidamente este saber (o espaço real) in­
tegrando-o ao saber especial que ela própria deve transmitir aos alunos 
— o que, já se vê, supõe repensar criticamente o objeto mesmo da geo­
grafia que ensinamos —t tal atitude poderá trazer profundas e benéficas 
conseqüências à nossa prática de ensino.
21
Capítulo U
ESPAÇO GEOGRÁFICO
“Eu não entendo, a Geografia me deixa intri­
gada por isso, eu descubro tanta coisa e não 
se i como é que as coisas foi parar no pé que 
chegou.”
Rita Lucas
Sobre a Geografia que ensinamos
Quando iniciava esta pesquisa, ainda nas entrevistas prelimi­
nares, perguntei aos alunos: o que é a Geografia? Para que serve? 
Estas duas perguntas, cujo objetivo era apenas o de confrontar per­
cepção empírica com capacidade conceitual, acabaram por ensejar 
um retrato agudo, embora inadvertido pelos seus “ autores” , da Geo­
grafia que ensinamos na Escola de 1.° grau.
A maioria (150 em 160 alunos) respondeu que a Geografia é o 
estudo físico da natureza (‘‘o relevo, rios, picos, vulcões, florestas, 
pressão atmosférica, rochas, oceanos, mares” ). Outros responderam 
que é o estudo do cosmos (planetas, satélites, lua, “ das coisas ao 
redor da terra”) e também da latitude, longitude, dos fusos horários, 
da linha do equador e dos trópicos. Outros ainda afirmaram que a 
Geografia é o estudo "das grandes paisagens do Brasil e do mundo". 
Somente dois alunos (em 160) responderam que a Geografia é o estudo 
do espaço, sim, mas ocupado por homens, transformado pelas mãos 
ou aparatos humanos, "o estudo de nossas vidas em contato com a 
natureza” .
Quanto à questão — para que serve a Geografia? — a maioria 
respondeu que “ serve para ficarmos sabendo dos vários tipos de 
relevo, clima, vegetação, rios, mares e oceanos do Brasil e do mundo” , 
ou seja, uma resposta inteiramente coerente com a que foi dada à 
primeira pergunta. Segundo os nossos alunos, a Geografia pode 
servir ainda para que se tenha um conhecimento “ geral” do Brasil e 
do mundo, “ p r^a darmos uma visualizada no mundo em geral” , con­
forme a ling jem pitoresca de um dos entrevistados, ou até mesmo 
para diferenciar países, capitais, continentes, estados e regiões, “ para 
mostrar (assim) aos estudantes um pouco de cada país” .
Pouquíssimas respostas fogem a este diapasão. Umas mais líricas 
ou mais perceptivas: “ Serve para ajudar a descobrir as riquezas que 
existem nos lugares, para mostrar toda a riqueza, a beleza que todo 
o Brasil e o globo têm", apontando quase sem querer uma das funções 
que a Geografia efetivamente desempenha em certos "espaços" insti­
tucionais: "descobrir riquezas” : outras mais superficiais e tributárias 
de um utilitarismo quase turístico: "Serve para saber de localizações 
precisas, conhecer mapas, localizar países e estados, saber onde 
estamos, serve para ir a qualquer distância sabendo usar o caminho 
mais curto” : enfim, aquelas poucas que, embora imprecisamente, 
fazem à Ger ,a uma exigência mais profunda, um repto de sentido:
24
"Serve para nos orientar na nossa vida de ser humano, para nós 
entendermos o mundo mais claro, mais real” .
Um pouco através do método de colagem, da "palavra-puxa-pala- 
vra", todavia sem trair — espero — o essencial das respostas colhi­
das, o que se pode depreender desse painel de opiniões sobre o 
ser da Geografia e a sua razão de ser?
Em primeiro lugar, e independente de qualquer outra conclusão, 
que não temos trabalhado, como quer o último aluno, no sentido de 
fazer entender o mundo ‘‘mais claro e mais real” , pois, se assim 
o fosse, a sua resposta não seria a exceção que é frente a todas 
as demais.
Mas podemos extrair desse conjunto de respostas conclusões 
mais rigorosas, internas, sobre a prática escolar de Geografia.
Com efeito, nota-se, por quase todos os depoimentos, que conti­
nuamos a trabalhar em sala de aula com a Geografia mais tradicional 
possível, com uma Geografia a que não cabe outra designação senão 
positivista.
Releia-se com atenção as respostas dos alunos e teremos o 
retrato falado de uma ciência que se esgota na observação e catalo­
gação dos dados de realidade, sem buscar jamais a contradição de 
que brota, em uma palavra, o seu sentido. "Ciência” empirista, que 
recusa-se a transcender o dado em si, o imediato, para não correr 
o risco de surpreender um sentido que a questione em seu funda­
mento mesmo. “ Ciência” que assenta sua análise — ou por outra: 
constitui o seu objeto — “ no solo e não na sociedade” que produz 
e reproduz este so lo ,5 vale dizer, disciplina igualmente naturalista, 
para quem a História não existe, mas somente o tempo geológico 
supra-humano e diante do qual a sociedade e seu tempo parecem 
pequeninos, irrelevantes. . .
Nesta Geografia — é C. Vallaux quem o afirma — o homem 
importa apenas por ser um "agente de modelagem do relevo” , 6 por 
sua atividade como força de erosão. O homem é um fato a mais 
na paisagem. Não pode surpreender-nos, assim, que os nossos alunos, 
ao definir o que a Geografia estuda, quase nunca mencionam o homem.
Quando muito, esta Geografia examina o relacionamento entre 
o homem e a natureza, sem se preocupar com a relação social entre 
os homens, mediação inevitável da dialética homem/natureza.
Ao abordar o “ aspecto humano” (o próprio termo já assinala o 
caráter lateral do homem nesta Geografia), fala sempre em população 
(um conceito puramente numérico) e jamais em sociedade; fala das
5. Antônio Carlos Robert Moraes, Geografia, pequena história crítica, 
Hucitec, São Paulo, 1981.
6. Antônio CarlosRobert Moraes, op. cit.
25
técnicas e dos instrumentos de trabalho, porém não de processo 
social de produção; fala de fenômenos humanos mas nunca de 
relações de trabalho; uma Geografia, como já se disse, que age como 
se fosse uma ciência natural dos fenômenos humanos, para quem 
“ a casa (como elemento fixo da paisagem) tem maior importância 
que o morador” . 7 Como ciência dos lugares (e não do homem no 
espaço social), esta Geografia acaba por ser um conjunto de fragmen­
tos atomizados e às vezes até contraditórios (Geografia Física, Huma­
na, Econômica, que internamente se dividem e subdividem), compar- 
timentando de tal forma os dados de realidade que se torna impossível 
uma visão prismática do objeto de estudo, uma visão integradora, 
dialética. Basta lembrar, a título de exemplo, o conceito de região 
como universo auto-explicável, microcosmo que não dependeria em 
nada do conjunto da sociedade, para ser exaustivamente descrito — 
e "explicado".
O que falta a esta Geografia para que possa, no seu próprio 
campo, ensinar a "ver o mundo mais real” , a verdade do espaço? 
Não é competência que geralmente falta, nem entusiasmo científico. 
O problema não é técnico e menos ainda subjetivo. Ele é ideológico. 
Os porta-vozes doutrinários desta Geografia (o que raramente é perce­
bido pelo professor comum que está em sala de aula) optam por 
um método de pensar (e, logo, de ensinar) o espaço que despreza 
ou mesmo deliberadamente oculta o papel central, decisivo, do 
trabalho social na construção do espaço geográfico. E por que isso? 
Porque reconhecer este caráter central, originário, do trabalho, obri­
garia a reconhecer também a exploração do trabalho (uns possuem a 
terra, outros vendem o seu trabalho para quem a possui; estes pro­
duzem os bens mas só aqueles podem fruí-los) como mecanismo 
estrutural, na sociedade capitalista, de produção e reprodução deste 
espaço. Obrigaria a reconhecer que a lógica da produção do espaço 
é o interesse objetivo das classes dominantes. Obrigaria a reco­
nhecer, enfim, a dimensão política irrecusável do espaço geográfico 
e, em conseqüência, da ciência que o investiga.
Para que estas observações não pareçam abstratas, nem se afi­
gure “ injusta” esta sumária síntese crítica, convém trocá-la em miú­
dos, testando a sua veracidade com um produto típico da geografia que 
ensinamos. Escolhemos para isto o Manual do Professor Elian Lu cc i.s
Tomemos o volume n.° 5, correspondente à 5.a série do 1.° grau.11 
Abra-se o livro no capítulo 8:
7. Antônio Carlos Robert Moraes, op. cit.
8. Este livro foi escolhido por ser (segundo a Revista VEJA 756, 2 de 
março, 1983) um dos manuais de Geografia mais vendidos no Brasil.
9. Elian Alabi Lucci, Geografia: Geografia geral, astronômica, física,
humana e econômica: 5.» série, 1.° grau, Saraiva, São Paulo( 1983.
26
CAPÍTULO O Relevo Brasileiro
8
Você estudou no capítu lo an terio r que a superfície terrestre possui 
q u a tro form as fundam entais de relevo.
Essas q ua tro form as fundam entais de relevo sào:
■ as montanhas;
■ os planaltos;
■ as planícies;
■ as depressões.
Neste capitu lo , vam os identificar as principais form as de relevo do 
te rritó rio brasileiro. P ara isto , observe o m apa e leia com atenção o texto 
a seguir.
Bratll Relevo
27
Você nota que a form a de relevo predom inante no Brasil é o planalto.
Em nosso País não existem m ontanhas, porque os nossos terrenos 
são m uito antigos, p o rtan to , foram bastante desgastados e aplainados 
pela ação do clima. Devido a esse processo, as m aiores altitudes a tu a l­
mente se acham bastante reduzidas.
O cupando mais da m etade do nosso território , o p lanalto mais ex­
tenso do Brasil é o Brasileiro.
P o r ser m uito extenso, esse p lanalto subdivide-se em três partes:
■ Atlântico;
■ Central;
■ Meridional.
V oltando a observar o m apa da pág. 56, você no ta que a parte loca­
lizada próxim o ao litoral denom ina-Se p lanalto Atlântico.
N o planalto Atlântico acham -se localizadas as serras;
■ do Mar;
■ da Mantiqueira;
■ do Espinhaço.
O p on to mais elevado desse p lanalto é o pico da Bandeira, com 2890 
m etros de altitude.
S ituada no centro do P aís, a parte do planalto Brasileiro em que se 
localiza Brasília constitui o p lanalto Central.
A ou tra divisão do p lanalto Brasileiro, situada bem ao sul do Brasil, 
é o p lanalto Meridional.
V oltando a observar o m apa do relevo, você n o ta que, ocupando 
m enor extensão, ao norte do Brasil localiza-se o p lanalto das Guianas.
Esse p lanalto não nos pertence to talm ente, pois apenas parte dele se 
encontra em nosso território .
N o planalto das G uianas localizam-se os picos mais elevados do 
Brasil;
■ o da Neblina, com 3014 m etros de altitude;
■ o 31 de Março, com 2992 m etros.
A lém do p lanalto , ou tra form a de relevo encontrada no Brasil é a 
planície.
Localizada ao norte , a planície mais extensa do País é a planície 
A m azônica.
A planície Am azônica, localizada entre o p la­
nalto Brasileiro e o p lanalto das G uianas, com 
um a área aproxim ada de 2000000 km 2 de exten­
são, è considerada um a das mais extensas planícies 
do m undo.
Pelo que você observa, ela é atravessada por 
um rio bastan te extenso, o rio A m azonas.
Pico da Neblina.
Saiba que...
Q pico da Neblina 
foi descoberto 
somente em 1962. 
Até entOo, o ponto 
mais elevado do 
Brasil era o pico da 
Bandeira, no planalto 
Atlântico.
Vista de um trecho 
da planicie Amazônica
L
28
Saiba que...
N os m eses em que 
as águas da planfcie 
do Pantanal baixam , 
ela constitui um a 
'mportante regido 
para a criação 
extem w a d o gado.
Trecho da planície do 
Pantanal após as cheias do 
rio Paraguai, quando se 
observam Inúmeras lagoas 
residuais
Localizada ao sul do Brasil, destaca-se a planície dos Pampas.
Essa planície, localizada no Rio G rande do Sul, é um prolongam en­
to da planície P latina, que se estende pelo norte da A rgentina, pelo P ara ­
guai e pelo U ruguai.
U m a im portan te planície localizada em M ato G rosso e M ato G rosso 
do Sul é a do Pantanal Mato-grossense.
A planície do Pantanal Mato-grossense, duran te vários meses, se 
apresenta sob a form a de um a im ensa lagoa, a Xaraiés. Isto ocorre por­
que aquela planície se encontra sujeita a inundações periódicas do rio P a­
raguai e de seus afluentes.
A planície localizada próxim o ao litoral e sujeita ás influências do 
oceano A tlântico é a planície L itorânea ou C osteira.
A planície Litorânea ou Costeira ocupa um a faixa, de largura variá­
vel, en tre o oceano A tlântico e as encostas do p lanalto Brasileiro.
29
Quase nos deixamos seduzir, após sua leitura, pela tentação de 
não comentá-lo, de considerar desnecessário qualquer comentário. 
Mas afrontemos o risco da redundância... Em que e como este 
texto corresponde à Geografia (que ensinamos) rapidamente descrita 
atrás?
Deixemos de lado o furor taxionômico, esta sucessão inesgotável 
de denominações, como se o nome traduzisse necessariamente o fenô­
meno ou manifestasse a sua “ natureza” .
Passemos igualmente ao largo deste curioso "Saiba que. . . ” sobre 
o pico da Neblina, que nos faz recordar (com prazer, é verdade) o 
saudoso ‘‘Tesouro da Juventude” , edição de 1927, em sua ‘‘secção” 
cousas que devemos saber, consciencioso inventário de saborosas 
inutilidades.. .
Não, não se encontra nestes aspectos a inconsistência do texto 
e a sua conseqüente alienação da verdade geográfica. Nem tampouco 
pretendemos negar a exatidão das informações específicas nele con­
tidas (nomes, datas e t c . . . ) .
É na concepção mesma de relevo, do lugar conceitual que este 
ocupa no espaço geográfico global, que poderemos surpreender esta 
alienação.
Com efeito, o relevonão é aqui (nem em parte alguma do livro) 
vinculado à totalidade do espaço que o determina, isto é, ao clima, 
à vegetação, às atividades produtivas, às condições de vida: em uma 
palavra, à lógica estrutural do espaço que preside a articulação de 
suas várias dimensões.
Neste passo, poder-se-ia contestar: ora, pode-se conceber o espaço 
integrado e ainda assim decompô-lo analiticamente para efeito de 
investigação (o pesquisador, por exemplo) ou de eficácia didática 
(o autor de um manual).
É verdade. Seria obviamente insensato negar a possibilidade ou 
até mesmo a necessidade desse artifício experimental ou pedagógico. 
É claro que o exame de um determinado fenômeno (digamos: a vege­
tação amazônica) supõe a sua descrição precisa, descendo a detalhes 
quem sabe microscópicos. Conforme o objetivo da pesquisa, tal espe­
cialização será mesmo imprescindível. O argumento vale também, 
em outro nível de complexidade, para o texto didático.
Contudo, distinção analítica não pode significar fragmentação do 
objeto, sob pena de desagregá-lo, acabando por adulterar a sua ver­
dade, o seu sentido.
A descrição localizada, parcial, de um fenômeno é apenas o 
1.° momento (sem dúvida, necessário) de qualquer investigação. Ela 
não esgota, porém, de modo algum, o conteúdo do objeto, pois este 
só se. evidencia quando integrado à totalidade. No caso, o relevo só 
tem sentido quando referido à sociedade que o produz e reproduz 
(até mesmo a ausência de uma ação produtiva sobre o relevo é uma 
opção, ao fim e ao cabo, social, política).
Ainda aqui poderíamos ser contraditados: ora, assim como se 
decompõe o objeto para análise, basta somar de novo as suas partes 
para recuperar a totalidade e atingir o seu sentido.
Pois bem, eis aqui a nossa questão. Eis aqui o miolo do problema, 
o hiato entre a Geografia tradicional e uma ciência que se pretenda 
dialética.
Porque não basta justapor as partes (resultantes da descrição de 
aspectos do objeto) para se obter a totalidade do objeto. Não basta 
descrever exaustivamente e depois somar relevo + clima + vege­
tação + economia + população para se lograr um espaço geográfico 
integrado. A totalidade não é uma soma, ela é uma síntese. E esta 
síntese só pode ser alcançada através de um elemento mediador que 
permeie cada uma das partes, através de uma categoria interpreta- 
tiva que permita estabelecer a lógica deste espaço. Esta categoria 
só pode ser o trabalho social concreto, com todas as suas determi­
nações históricas (no Brasil de hoje, o modo de produção capitalista, 
garantido e administrado pelo Estado burguês). Sem ela, não há inte­
gração possível do objeto espaço. Sem ela, o que há é no máximo a 
tentativa de soldar canhestramente as suas várias dimensões, atomi- 
zadas desde o início e em definitivo pela análise, através de alguns 
raros exemplos de interdependência técnica: se as águas baixam, a 
planície fica adequada para a criação de gado e t c . . .
Ainda aqui poder-se-ia contestar: ora, se fôssemos extrair todas 
as conseqüências deste método, teríamos na verdade outra disciplina 
e não mais a Geografia: na verdade, este método acaba com a Geo­
grafia.
Não, não acaba. Este método, isto sim, por resgatar a lógica da 
produção social do espaço, por estudar o modo como o espaço se 
organiza e não a sua aparência fragmentária, abre caminho para uma 
outra Geografia. Mas que outra Geografia? Não será apenas uma 
moda intelectual, esnobismo universitário? Poderia ser, se a Geografia 
que ensinamos não fosse, em seu resultado objetivo, menos uma 
ciência que uma ideologia, vale dizer, uma forma de ocultação dos 
princípios — econômicos, sociais, políticos — que efetivamente go­
vernam o espaço. Não se trata, pois, de “ inventar” uma segunda
31
Geografia. Trata-se, antes de mais nada, de assegurar à Geografia 
a sua condição de ciência, a sua capacidade de analisar o real sem 
desagregá-lo e por um caminho que conduza ao seu sentido.
Neste caso, ela não estaria invadindo outras disciplinas e/ou sen­
do invadida por elas? Onde fica a nossa especificidade? Sim, este 
processo está (felizmente) ocorrendo com todas as disciplinas, e 
decorre justamente desta referência necessária à totalidade. Mais 
e mais os investigadores percebem que o sentido dos fenômenos 
extrapola os compartimentos estanques de nossa estrutura curricular 
e/ou de nossa especialização profissional. E compreendem que saltar 
barreiras artificiais de modo algum aniquila ou sequer prejudica cada 
ramo da investigação. Pelo contrário: tais saltos são requisito indis­
pensável às suas respectivas vitalidades. Sobretudo porque são 
operações interdisciplinares reclamadas pela própria compreensão 
do objeto, não são externas a ele. E se dão ao nívél do método, rara­
mente de conceitos particulares. A categoria analítica modo de pro­
dução capitalista (com todas as suas implicações, inclusive culturais, 
ideológicas) não é uma categoria das ciências econômicas, mas do 
método materialista dialético.
O texto do Prof. Lucci, portanto, não é cientificamente inconsis­
tente e alienador pelas informações factuais, tópicas que contém. 
Poderíamos, é claro, argüir, do ponto de vista pedagógico, isto é, no 
que diz respeito à formação da consciência/cultura geográfica do 
aluno, a irrelevância de várias destas informações assim como a vora- 
gem classificadora que conduz inevitavelmente à memorização, à 
decoreba. Mas elas são, enquanto informações particulares, corretas.
O caráter alienador se manifesta acima de tudo pelo que não 
está no texto, ou melhor, pela maneira como este texto (assim como 
os demais do volume) não está organizado. É pela ausência radical 
do trabalho social concreto como categoria mediadora da totalidade 
espacial; é pela concepção do relevo como um dado em si, preexis­
tente à sociedade e que “ aparece" à sua revelia, que o texto aliena 
a verdade científica do objeto.
Consideremos mais um exemplo. Tomemos agora o capítulo 15 
do mesmo manual, “ a população brasileira” , com o seguinte texto;
32
CAPÍTULO A População Brasileira 
15
A gora que você já conhece os aspectos quan tita tivos e qualitativos 
de um a população , vai estudá-los na população da qual faz parte.
Com aproxim adam ente 123 milhões de hab itan tes, o Brasil é o sex;o 
país do m undo em população absolu ta .
A população brasileira apresenta quatro im portan tes características, 
que você vai conhecer observando inicialm ente os m apas abaixo.
Rio de Janeiro
(sede da Colônia)
B rasil D e n a íd a d e 
D e m o g rá f ic a
menos de t hab. por km* 
r j l de 1 a 10 hab. por km* 
H de 10 a 50 hab. por km1 
S i de 50 a 100 hab. por kirv 
£ ■ mais de 100 hab. por knrf>
C onform e você observa, a população brasileira, assim com o a po­
pulação de um a form a geral, está irregularm ente distribuída.
A primeira característica da população brasileira é a sua irregular 
distribuição pelo território . E nquan to alguns Estados apresentam grande 
núm ero de habitantes, com o São Paulo e Rio de Janeiro , outros, com o 
os Estados do P ará , A m azonas e M ato G rosso, apresentam um pequeno 
núm ero. Em alguns Estados brasileiros podem os registrar verdadeiros 
“ vazios” dem ográficos.
Pela observação do m apa dem ográfico, você consta ta que a popula­
ção brasileira está concentrada em m aior núm ero no litoral do País.
Essa irregular distribuição da população brasileira, concentrando-se 
em m aior núm ero no litoral, vem ocorrendo desde o início da coloniza­
ção.
33
M uitos fatores de ordem geográfica e social co laboraram para que 
as prim eiras vilas e cidades do Brasil fossem fundadas na faixa litorânea. 
D entre esses fatores se destacam :
■ a m aior proxim idade do litoral com a E uropa;
■ a presença dos índios selvagens no interior;
■ os obstáculos que as serras constituíam para a penetraçãono inte-
Com a m aior concentração da população no litoral, você conclui 
que o interior do Brasil perm aneceu, e ainda perm anece, desabitado em 
determ inados trechos, aos quais denom inam os vazios dem ográficos.
A concentração populacional na faixa litorânea é a segunda ca racte­
rística que a população brasileira apresenta.
Um dos fatores responsáveis por isso é a m igração in terna que, ge­
ralm ente, ocorre do in terior, pouco povoado , para o litoral, com trechos 
superpo voados.
A população, concentrando-se cada vez m ais no litoral, en fren ta sé­
rios problem as, com o a falta de m oradias, escolas, em pregos etc.
A ausência de um a in fra-estru tu ra u rbana para receber os grandes 
contingentes populacionais nas cidades litorâneas causa problem as.
A gora, leia com atenção o texto abaixo e veja qual é a terceira carac­
terística da nossa população .
Q uando os portugueses aqui chegaram , nosso País já era hab itado 
pelas prim itivas tribos indígenas.
Com a chegada do b ranco colonizador, a população com eçou a se 
m isturar (m iscigenação), dando , assim , início ao processo da form ação 
do povo brasileiro.
A form ação do povo brasileiro teve início com o cruzam ento do 
branco (colonizador) com o indígena (prim eiro hab itan te do Brasil).
Da m iscigenação do branco com o am arelo resultou o caboclo ou 
mameluco.
Depois, com a escravidão, veio para o Brasil um grande núm ero de 
negros africanos. Estes, fixando-se em nosso território , acabaram -se 
miscigenando tan to com o branco com o com o indígena.
Do cruzam ento do branco com o negro resultou o mulato, e do ne­
gro com o índio, o cafuzo.
Pelo que você observou, conclui, p o rtan to , que a terceira caracterís­
tica do povo brasileiro é a mestiçagem.
A mestiçagem é um a característica não só da população brasileira, 
m as de toda a A m érica L atina, onde, na m aioria dos países, o núm ero de 
m estiços é bastan te elevado, em m uitos casos superior ao dos brancos.
As M ed id a# PW * i : 
M e lh o ra r a 
D is írtb trkçS o d a 
P o p u la ç ã o
P reocupado com a 
maior concentração da 
p opaíaçS o b rasüeira
n a s ::
0 CsW em o vem. pró- 
curà»&!%'adotai algu­
m as : 
"w lb o r
U ma m edida coiocada 
em prática foi' a trans* : 
ferêncià d a C a p ita l 
que se loeaííjsâvaf' «a
íaixa
interior d ó -
sando atrair a popuia-
ç í » o « ,
maior impulso a o <k- 
senvolvhttén*© dessa 
Região. P ara 
essa área às dem ais re- 
yíôes, era necessário 
m elhorar as vias de 
com unicarão .'
U m a das m edidas 
ado tadas pelo G over­
no. para m elhorar a 
co m u n icação , ín ierr» . 
foi a Construção <c& 
tradas transreglonais, 
com o a B elém —S rasf 
Ha. a Transamaióni<%« 
a
P a ta a co»sm iç8o
dessas um -
d<?tra-
b a fh a d d re s 'r colono^ 
d<> litoral se dirigiu pa- 
ra o interior, cwvdè re ­
cebeu :âu^io /'fe ' terras 
do Q w & m \ V \ ' y.
Saiba que...
N o sécu lo X IX , o 
G overn o atraiu 
milhões de imigrantes 
de outras partes do 
m undo para 
trabalharem nas 
lavouras de café 
E sses im igrantes, que 
vieram com pletar a 
nossa m estiçagem , se 
concentraram 
principalm ente no sul.
34
H » i andando
At quatro principais 
i mm itnltllc n* da po- 
|<uUçA<i t>rn*llvlra sâo:
■ ifmytilnr distribui- 
(Ao,
■ i um vntraçAo po­
pulacional na fai- 
xn lllorAnea:
■ mt>«llça<jt>m;
■ maior número de 
|ov*n»
Mas existe ainda um a quarta característica da população brasileira 
que você conhecerá a seguir.
Você estudou que no Brasil a taxa de crescim ento dem ográfico é al­
ta.
Se no Brasil há um m aior núm ero de nascim entos em relação ao nú ­
mero de m ortes, conclui-se que a população cresce rapidam ente.
Se a população brasileira cresce devido à grande natalidade, ela é 
constitu ída por m aior núm ero de jovens (53% ) com menos de 20 anos de 
idade.
O predom ínio de jovens constitu i, po rtan to , um a ou tra característi­
ca da nossa população.
E n tre tan to , esse predom ínio de jovens na estru tu ra populacional 
brasileira acarreta um a elevada taxa de população econom icam ente ina­
tiva, isto é, sem trabalho rem unerado.
Quadro da População
Brasileira por Faixa
Etária
Idade %
0 — 19 55,7
19 — 60 37,4
mais de 60 6,9
Além disso, essa população inativa exige do G overno grandes inves­
tim entos, principalm ente no cam po da saúde e da educação.
O Brasil, que até há pouco possuia um índice de analfabetism o bas­
tante elevado, graças a algum as m edidas ado tadas no cam po da educa­
ção , após 1964, sobretudo com a criação do M OBRAL, conseguiu redu­
zir esses índices, passando de 29% , em 1970, para , aproxim adam ente,
1 l«/o. em 1980.
Nosso povo se distribui de maneira irregular pelo território nacio­
nal, eis uma afirmação incontestável. A maioria dos brasileiros 
concentra-se na faixa litorânea, não há qualquer dúvida sobre isto. 
Porém, qual é o sentido desta informação (e a sua própria razão peda­
gógica de ser) se o texto não fornece os motivos reais dessa irregular 
distribuição populacional? E, o que é pior, se ainda apresenta expli­
cação inteiramente acientífica para o fenômeno?
Segundo o Prof. Lucci, a penetração colonizadora do interior foi 
retardada pelos obstáculos naturais (sobretudo as serras) e os huma­
nos (os índios selvagens). Ora, esta afirmativa contraria liminar­
mente a verdade histórica. O avanço para o interior (quase exclusi­
vamente político no início da colônia) deu-se vencendo todos os obstá­
culos naturais ou humanos quando a sua superação tornou-se neces­
sária do ponto de vista econômico, ou seja, no chamado ‘‘ciclo do 
ouro” . Antes disso, resultava mais conveniente ao poder dominante 
o cultivo da cana-de-açúcar no litoral. Bastou a ocorrência do inte­
resse econômico para que os obstáculos naturais fossem transcen­
didos. E os índios? Enfrentados militarmente e dizimados aos milha­
res, de modo a não entravar a extração e sobretudo o transporte 
do ouro interiorano para os portos de embarque, a caminho da Europa.
Situação idêntica, aliás, à de boa parte da Amazônia brasileira 
no século XX. Imensas áreas em repouso, despovoadas, “ improdu­
tivas” . Mesmo que quisessem possuí-las, ocupá-las, trabalhadores não 
poderiam fazê-lo, devido à inexistência de estradas e aos sempre 
alegados “ obstáculos naturais” . Bastou, contudo, que o capitalismo 
manifestasse interesse objetivo pela exploração destas regiões — e 
a infra-estrutura de produção, de sobrevivência, de transporte começou 
a ser criada (rodovia Transamazônica, hidrelétrica de Tucuruí e t c . . . ) .
Nos dois casos, não é o acidente físico que determina a ação 
dos homens — mas, ao contrário, a lógica da produção social é 
que trabalha e forja o espaço, segundo os seus desígnios.
Ignorando a mediação do trabalho social, imprescindível como 
vimos à síntese dialética, o Prof. Lucci não vê contradição alguma 
entre a sua primeira afirmativa e a que faz a seguir, a saber, que os 
brasileiros do interior abandonam cada vez mais o seu habitat rumo 
às grandes metrópoles, em geral litorâneas. Vocação nômade? Cos- 
mopolitismo? Complexo de inferioridade? Qual será a causa fisica 
ou psicológica deste êxodo continuado?
Claro, tal fenômeno não será jamais devido ao latifúndio, que 
virtualmente expulsa da terra o lavrador; nem tampouco devido à 
industrialização e acumulação do capital (e dos meios de produção 
e da infra-estrutura) nas grandes metrópoles; e menos ainda, certa­
36
mente, pelo interesse objetivo das elites dominantes em baratear a 
mão-de-obra através de um “ exército de reserva” nos grandes centros 
produtores.
Estas seriam razões alheias à geografia e, como ensinavam 
nossos avós, “ é bom não confundir as coisas” . Mesmo que desta 
forma se comprometainteiramente a verdade da população brasileira, 
mesmo que esta recusa da mediação econômica signifique falsificar 
a realidade investigada/ensinada.
O manual em questão utiliza esta autêntica ficção científica para 
“ descrever” também outros fenômenos. Assim, a vida miserável de 
enormes segmentos da população urbana (gente das favelas, dos 
mocambos, das invasões e t c . . . ) é justificada en passant pelo excesso 
de população nas metrópoles. Mas não se explica por que cidades 
inteiras foram construídas em meses para viabilizar projetos extra- 
tivos ou industriais como o Jari ou Carajás, para citar apenas dois 
exemplos. Nem se menciona a criação, da noite para o dia, de “ Dis­
tritos Industriais” inteiro, em terrenos pagos pelo Estado, com a 
mais completa e moderna infra-estrutura, para a instalação de em­
presas transnacionais, muitas vezes financiadas pelo próprio Estado.10
E não se trata de erro localizado, de falha científica eventual, 
passível de aperfeiçoamento “ em edição posterior” . É mesmo um 
método de análise e ensino que seleciona e explica de maneira arbi­
trária os fatos geográficos, adulterando assim o seu sentido e masca- 
rando o seu caráter político.
Sem pretender esgotar todos os tópicos do texto em pauta, 
consideremos ainda o tratamento dado ao problema étnico. O tema 
é tratado em meia dúzia de frases e as informações resumem-se a 
umas quantas denominações para os diferentes tipos de mestiçagem: 
branco + preto = mulato; negro + índio = cafuso e t c . . . Afora dar 
a conhecer aos alunos alguns termos pretensamente úteis (até mesmo 
sua utilidade é relativa) estas magras noções não cumprem nenhum 
outro papel. Mesmo ao nível de simplicidade requerido por uma 5.a 
série, elas pouco ajudam o aluno a saber o que é importante em 
nossa composição étnica — e por quais razões.
Quem são os negros brasileiros e em que a sua cor altera a situa­
ção que ocupam no espaço geográfico que estudamos? Por que as 
elites dominantes no Brasil são esmagadoramente brancas? Aos 
negros, enquanto coletivo racial, estão vedados certos espaços so­
10. Sobre o assunto ver: Maria Lúcia Estrada Rodrigues, Produção do 
Espaço e expansão industrial, Ed. Loyola, São Paulo, 1983.
37
ciais? Se tal ocorre, deve-se ao “ preconceito racial” ou a que outro(s) 
motivo(s)?
Certo, já prevejo a objeção: “ Mas estes são problemas antro­
pológicos, culturais, éticos, não dizem respeito ao objeto de estudo 
da Geografia. Afinal, a Geografia não pode estudar/ensinar tudo". De 
fato, a Geografia não pode fazê-lo e seria absurdo exigir-lhe esforço 
semelhante. Como focalizar, entretanto, a etnia do brasileiro margi­
nalizando a sua significação social? Esta atitude eqüivale pura e 
simplesmente a destruir o seu sentido por meio da análise que diz 
persegui-lo.
Que Geografia queremos ensinar?
Os professores, claro, não estamos de modo algum satisfeitos 
com esta geografia. Sentimos que ela não traduz a verdade do espaço 
e podemos comprovar a cada dia em sala de aula que esta ausência 
de verdade acaba sendo igualmente sentida pelos alunos. A desva­
lorização da Geografia não é apenas institucional (patrocinada pela 
escola), mas também de status científico, estimulada pela indigência 
cognitiva da Geografia dominante.
Muitas vezes nos autocriticamos porque os alunos desvalorizam 
a Geografia que recebem, como se o problema fosse de competência 
ou incompetência individual de cada professor.
Quase sempre nos martirizamos por não encontrar uma incenti- 
vação capaz de superar o desinteresse do aluno, como se o problema 
do aluno fosse antes de mais nada psicológico.
»
Abrimos cada novo livro didático com a avidez de quem espera 
da “ disposição da matéria” e da “ motivação visual” a milagrosa capa­
cidade de interessar o aluno, roubando um pouquinho de seu tempo 
às demais disciplinas.
Acolhemos cada nova técnica de ensinar como um doente desen­
ganado pelos médicos experimenta as rezas, as romarias, as pro­
messas, as ervas mais esdrúxulas e misteriosas.
Já é hora de pensar a questão coletivamente. Já é hora de 
reconhecer que a dificuldade central não é via de regra de compe­
tência técnica nem de charme individual. Já é hora de “ colocar o 
dedo na ferida” : a própria Geografia que ensinamos. E como fazê-lo? 
Não basta repetir o poeta José Régio — "não sei por onde vou/mas 
sei que não vou por aí” . Precisamos construir uma alternativa que 
resgate o sentido da Geografia para nossos alunos e — por que não? — 
também para nós.
O que buscamos é apreender e ensinar a verdade do espaço. 
Cabe, por isso, perguntarmos a nós mesmos: Que Geografia devemos 
ensinar aos nossos alunos?
Uma Geografia que apenas transfere ao aluno um punhado de 
informações atomizadas sobre o mundo físico, econômico ou hu­
mano — que, de outra parte, preexistem ao processo de ensino-apren- 
dizagem, ao ato de pensar o espaço, como se jazessem à espera num
39
banco de perguntas e respostas — ou uma ciência (embora nem 
sempre de jaleco) que investiga e pesquisa o espaço — logo, no 
plano pedagógico, o produz — como um todo integrado, em que o 
econômico, o físico, o humano sejam estudados em sua tensão 
social e, mais que isso, histórica?
Continuaremos a "informar" aos nossos alunos que existem tan­
tos e tais fatos, que tal situação apresenta este e aquele dado em si, 
sem explicar-lhes a razão de ser de cada segmento do espaço — ou 
vamos agora transcender a simples observação e catalogação de infor­
mações para trabalhar com os nossos alunos sobre o processo de 
produção social do espaço, cujas raízes estão deitadas na divisão 
social do trabalho e, conseqüentemente, nas relações sociais de pro­
dução?
Prosseguiremos descrevendo o espaço e o homem como entida­
des distintas, um estudado no capítulo "estrutura física” , outro no 
capítulo "população” , como se o espaço não fosse resultado perma­
nente da ação do homem sobre a natureza, ou já estamos dispostos 
a subverter estas categorias positivistas e correr o risco de criar 
outras e distintas categorias, que dêem conta da totalidade contradi­
tória do espaço que ensinamos?
Continuaremos a negar o caráter político — em sentido lato — 
da Geografia, ou seja, do elenco de dados que ela descobre e inter­
preta no espaço regional, nacional ou internacional, ou estamos 
decididos a assumir esse caráter e não obscurecer nunca, não apenas 
em plano filosófico, moral, mas no ensino cotidiano da Geografia 
(isto é, no que diz respeito ao nosso programa, nossos manuais didá­
ticos, às nossas indicações de pesquisa e t c . . . ) , a pergunta — a 
quem serve a Geografia?
Persistiremos em trabalhar com conceitos-chave do tipo região 
ou zona como se fossem espaços autonômos, auto-explicáveis, ou 
vamos de fato extrair do conceito de Estado (e não apenas "governo" 
ou "administração” ) todas as conseqüências metodológicas que ele 
reclama?
E, por último, cabe ainda perguntar a nós mesmos: a Geografia 
que desejamos ensinar pretende considerar o aluno como um sujeito 
social concreto (portanto, com uma espécie própria de saber que 
não pode ser ignorada no processo de conhecimento da ciência geo­
gráfica) ou simplesmente como um objeto passivo, neutro, recebedor 
de informações que aniquilariam este saber prévio oriundo da expe­
riência social imediata?
Esta é a opção que cabe a todos nós — professores de Geografia 
— fazer. O presente trabalho de pesquisa e análise supõe a opção
40
antipositivista, a opção por uma Geografia, na palavra de Milton San­
tos, dialética. Pretendemos explorar justamente, dentro dos marcos 
dessa Geografia, a um só tempo social e histórica, o papel do saber 
do aluno e sua integração, que acreditamos necessária, com o saber 
que a Escola preteVide levá-lo a adquirir.
Creio que é preciso ensinar uma Geografia que considere o homem 
como sujeito e não como objetodo processo histórico. Que não 
separe, enfim, a sociedade da natureza, e que, se eventualmente a 
separar (numa etapa específica de investigação), não fragmente esse 
saber, perdendo a sua dimensão de totalidade. Que possamos trans­
mitir aos nossos alunos uma Geografia que sirva aos interesses deles 
e não dos detentores de poder.
Para nós, esta questão se liga intimamente à maneira de tratar a 
concepção de espaço com que o aluno chega à Escola, a sua percepção 
do espaço oriunda da vivência direta, da experiência imediata. E se 
vincula igualmente à percepção que o aluno traz consigo sobre a lógica 
própria do mundo do trabalho.
Capítulo III
ESPAÇO REAL: CONTANDO 
NOSSAS HISTÓRIAS, NOSSA 
GEOGRAFIA
Aí nós lá vai viajando,
“Aí nós lá vai viajando, v ia jando...
E elas falando que a madrugada 
estava longa, que era muito cedo, 
que a Estrela Dalva 
estava muito alta . . . "
José Mariano
Sou filho de lavradores, primeiro filho. Então, como diz, nasci 
pobre, mas pobre mesmo. Meu pai mexia com roça. Nasci em Santa 
Maria do Suaçui! Acho que é . . . Mata, não é? Zona da Mata! Então 
minha mãe foi ajudar o meu pai, me levava para a roça, pequeno 
ainda, chegava lá, me colocava debaixo de uma árvore, uma bananeira 
a s s im . . . Lugar mais preferido, e por lá eu dormia, e quando dava 
fome eu tinha de mamar. Quando eu tinha oito meses de idade eu 
tive uma febre. Eles falam antigamente marinha, é febre amarela, 
não é? Então ali eu quase morri. E lá assim, fui crescendo. . . São 
seis irmãos!
A terra não era de meus pais. Era terça. Plantava e de três 
partes meu pai tinha duas e o dono da terra tinha uma. E assim a 
gente foi vivendo, vivendo. Meu pai, muito trabalhador, foi traba­
lhando, trabalhando. Era fazenda pequena! Tamanho médio. O dono 
dava a terra simplesmente e meu pai plantava. No fim da colheita, 
suponhamos se tivesse cem alqueires de milho, por exemplo, o dono 
tinha trinta e mèu pai tinha setenta; não é uma espécie de terça? 
Lá nessa roça onde a gente morava eu trabalhei até os dezoito anos! 
A vida não tinha vantagem, não. Sofria demais, apanhava demais. Era 
muito novo, sete anos, já ia para a roça ajudar meu pai. Então quando 
dava época de mês de junho, ele me levava para a roça para plantar 
milho com ele. Tinha que plantar uma quarta — aqueles balaio grande. 
Então, toda viagem que ele dava, eu tinha que dar junto com ele. 
Meu balaio era menor, na verdade, eu tinha que pôr de lado. Assim 
que ele terminava o dele, que completava uma rama, ele fazia 10 
alqueires, aí ele media o meu em outra rama. Eu tinha que estar 
sempre junto com ele. Rama é um lote de milho. Porque juntava as 
espigas, vai lá e faz um monte. E semppe trabalhando. Eu via as 
outras crianças brincar, não podia brincar; tinha vontade de estudai,
não podia. Vim estudar depois que eu vim embora para aqui. Eu 
sempre trabalhando, toda vida vida fui trabalhador. Sei que quando foi 
em 69 meu pai largou a casa. E eu, sendo o mais velho, tive que pegar 
a casa. Aí foi outra dose porque os irmãos, todas são irmãs. Só o 
mais novo, que é o caçula, é homem. Nasceu na época que ele saiu 
de casa em 1969. Meu pai ficou beirando lá pros lados mesmo, mas 
não entrava em casa mais não. Aí fiquei segurando a barra. Foi em 
71, parece, os políticos montaram um MOBRAL lá na roça com o 
intuito de colher voto, entende, aí entrei no Mobral. Fiz cursinho do 
Mobral, passei, aí fiquei lá uns tempo. O patrão era de partido con­
trário e queria que a gente votasse com ele, mas como a gente não quis, 
então fomos obrigados a deixar o terreno dele. Ele era do PDS, não é! 
E lá, inclusive, em 72 tinha outro nome este partido, era ARENA e 
MDB. Então eles votava com o MDB e ele com a ARENA. Aí a 
gente não aceitou as idéias deles e tivemos que deixar as terra dele. 
Aí, eu, aproveitando ojensejo, pedi ao candidato e ele mandou buscar 
a mudança da gente e viemos para a cidadezinha, Santa Maria. Tra­
balhei lá um ano, um ano e pouco, até na época da eleição. Trabalhava 
fora, só ia em casa dia de sábado. Quando chegava meu dinheiro 
não tinha nem jeito de pegar nele. Minha mãe ficava em casa 
trabalhando para os outros. E eu lá na roça, então pegava coisa no 
armazém em meu nome. Quando chegava para acertar, muitas vezes 
tava devendo. Pensei assim: — ‘‘isto não tá certo, isso não dá para 
mim” . Aí, um dia falei com ela: — ‘‘eu vou embora.” — ‘‘Quê que 
você vai fazer? O que que nós vamos fazer aqui sem você?" Falei 
assim: — “ não, vocês se viram aí, porque eu vou dar meu jeito” . 
Quando é um belo dia, eu arrumei um dinheiro emprestado, acho que 
foi até oitenta cruzeiros na época, comprei a passagem e vim embora 
para aqui. Nunca tinha saído, tinha vindo perto de São João Evange­
lista, por ali só. Não conhecia mais nada.
Chegando aqui, foi a coisa mais estranha do mundo entrar nesta 
cidade, os prédios cresciam, não s e i . . . Parece que eu tava des­
cendo para o centro da terra, que eu vou descendo, principalmente 
ali na Antônio Carlos, por que a chegada é por lá. Então, * medida 
que você vai descendo, os prédios vão só crescendo. Então, quer 
dizer, a rua parece que v a i . . . A rua . . . A gente tem impressão 
que a rua é que tá descendo. Quando cheguei na Rodoviária, a única 
coisa que eu pude fazer era levantar a cabeça, olhar para cima e 
girar. Falei assim: “ E agora, para onde que eu vou?” Eu tinha o 
endereço na mão, não é? Mas por sorte minha, a hora que acabo de 
descer do ônibus tinha um conhecido lá de minha terra, que tava lá. 
Fale i : “ Oba, você aqui? Para onde você quer ir?" Falei: “ Quero 
ir pi •'a. . . Não sei nem aonde que eu estou!” — “ Ah, vamos pegar 
um áxi — vamos pegar um táxi que ele te leva.” Aí nós fomos.
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Peguei o carro com o único restinho de dinheiro que eu tinha, custou 
a dar. Cheguei lá no pessoal que eu tinha que ir. Achei tudo 
estranho, pessoal tudo prendado. Pessoas ativas, entende? Todo 
mundo sabia conversar, todo mundo na brincadeira e eu cheguei assim 
e eles aproveitaram, tiraram o sarro mesmo, um bocó de roça, não é? 
Isso foi há uns nove anos. Porque eu tinha entrado na risada deles 
sem saber, eles riam de mim e eu sem saber que eles riam de mim, 
ria também. Pois, com isso, fui me adaptando. Antes, achava uma 
coisa estranha, tudo diferente, depois eu me acostumei, aí saí para 
procurar um serviço porque senão não tinha com quem andar, quem 
andaria comigo. Dinheiro, não tenho. Aí marquei bem esse morro 
ali de c ima . . . Morro do Lixo, ali onde era o antigo lixo! Conjunto 
Santa Maria. Então estou tranqüilo, estou na base desse morro aqui. 
Subi ele, passei por cima, bem aqui pelo asfalto, acho que não dá 
para perder não. Desci até no Coração de Jesus, subi, atravessei 
Santo Antônio, São Pedro, passei lá pelo Anchieta e fui sair lá no 
mercado distrital da Barroca, Afonso Pena. Fiquei procurando serviço. 
Quer dizer, sempre eu procurava também um morro, porque de um 
morro eu avistava o outro. Quando entrava na baixa, não perder, 
não é? Cheguei lá, conversei com o cara. Tinha um monte de má­
quina trabalhando. Pedi serviço para ele. Falou assim: “ Pelo seu 
jeito tô vendo que está vindo da roça. Quando você procurar serviço, 
não procura boca, entende, se você procurar boca eles vão apro­
veitar de sua simplicidade e vão te mandar para a Mannesmann. 
Lá é que você vai encontrar boca e por sinal você vai encontrar é 
boca de forno” . Quer dizer, eu procurava uma boca de serviço, um 
lugar para eu trabalhar. Que era costume de lá na minha terra, tinha 
uns cara que sempre falavam boca de serviço. Mas a boca de serviço 
que eles diziam, trabalhavam no garimpo. Então aí já era local no 
túnel, eles falavam boca. Eu vim com aquela na cabeça onde era o 
contrário.
Aí, de lá não deu nada certo. Nisso, já era meio-dia, eu com uma 
fome que Deus dava, falei: “ O jeito é andar” . Desci outravez, 
saí na Contorno ali, subi ela; saí lá no Colégio Batista, lá em cima. 
De lá eu tornei a avistar o morro cá em cima. Daqui eu estou vendo, 
desço reto aqui e saio lá. Com aquilo na cabeça, tornei a descer outra 
vez, subi no Padre Eustáquio, lá em cima, lá perto da igreja de São 
Francisco. De lá tornei avistar o morro, tô bem perto. Aí já tava 
dando a tardinha, não quis mais andar para lá. Falei: “ Eu vou 
descer por aqui mesmo” . Desci no Minas Brasil, passeio perto da 
Católica, ali no Dom Cabral, já tava de tardinha. Passei perto de 
uma obra, conversei com o encarregado de lá. Ele falou: “ Tem 
serviço aqui, o serviço é bruto, você tem que trabalhar mesmo” . 
Falei: “ Não senhor, eu preciso trabalhar, vim da roça e t a l . . . não
tenho ninguém aqui, sou sozinho, então tenho que arrumar um jeito 
para mim” . Aí ele falou: “ Então você pode vir amanhã cedo” . 
Fiquei todo satisfeito. Tinha três dias que eu estava aqui, aí comecei 
a trabalhar. Serviço estranho, quer dizer, o peso eu não estranhava 
porque já era acostumado com serviço pesado. Mexia assim com 
burro, sempre mexia com burro, boi. Comecei a trabalhar, lá fui 
ficando, ficando, f icando. . . Tinha que medir cascalho, medir a brita, 
medir a areia, tudo, colocar lá, a gente mesmo misturar, pegar água. 
Então, na hora de pegar o cimento, que era pior, eu muito fraco, um 
saco de cimento de 50 qui los. . . No dia de pegar ele eu dançava 
uma roda em volta dele — fazia das tripas coração. Tinha que pegar 
com medo de perder o serviço. Tinha dia que largava o serviço de 
tarde, ficava assim pensando.. . Tinha até preguiça de ir embora de 
lá onde trabalhava porque já era tarde. Com isso fui me acostu­
mando, acostumando. E trabalhei com eles um ano e oito meses.
Eu, toda vida, fui assim curioso. Por exemplo, se alguém faz 
alguma coisa e não conheço, sempre procuro observar. Mexia nos 
caixotes dos pedreiros de lá, ficava em volta deles observando como 
que assentava tijolo. E de vez em quando assentava algum. Depois, 
quando foi chegando o final da casa, já comecei a pegar na colher, 
trabalhar direitinho, e fui lutando. Depois, quando eu vim aqui para 
o Coração de Jesus, fizemos uma casa ali na Francisco Arantes. Aí 
já quase não mexi com serviço bruto não, trabalho na colher, um 
aqui, outro ali, sempre coisa pequena, mas fazendo. Saí de lá, e tra­
balhando e estudando. Saí de onde eu estava e ficava no próprio local 
de serviço, quer dizer, morava na obra e ali mesmo trabalhava, não é? 
Ali pertinho do Estadual, pensei: “ Assim eu vou estudar” . Fui lá 
no Dom José Gaspar, fiz uma prova lá, passei para o 2.° ano. Aí 
comecei, fiz 2.°; 3.°; 4.°; 5.°. Aí tirei o diploma direto, sem bomba. 
Na 5.a série eu tomei bomba, tomei e repeti, passei, fiz a 6.a, tomei 
bomba, tornei a repetir. No meio do ano eu saí. Isso já foi agora. . . 
79 me parece, ou 78. Foi 79, porque 80 eu não fiz nada. Então minha 
cabeça tava descansada, o corpo também. Fiquei um ano parado. Foi 
em 81, fiz o Curso de Mestre de Obra na Escola de Engenharia, passei, 
e consegui o serviço aonde eu trabalho. E daí eu falei: “ Tenho 
que estudar porque agora vou lidar com pessoas de um nível mais 
elevado” . Por isso eu vim para aqui de noite. Eu trabalho no setor 
de obras — trabalhava na Maranhão com Aimorés. Mas aí já vem o 
engenheiro conversar comigo, talvez chega um visitante que vem 
conversar comigo. Porque enquanto você é um simples empregado 
da obra, essas pessoas não te procuram para nada não. É a gente 
que está lá em cima, como se diz, no comando do serviço. Aí um quer 
uma informação, outro quer outra, e você tem que ter um jeito melhor 
para tratar as pessoas. Muitas vezes você fala uma palavra para a
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pessoa, para você, pra gente. Para mim não é nada, mas preciso 
ver se ofendeu a pessoa, sem saber que está ofendendo. Aí eu 
senti que deveria estudar mais e estou tentando.
Mas antes disso, depois que eu vim para aqui, fiquei um bocado 
de tempo sem saber se estudava a 5.a. Depois saí da 5.a, terminou 
a obra e assim que eu apanhei a profissão, eu saí da companhia dessas 
casas, e entrei na firma onde eu trabalho hoje. Aí eu já não podia 
ficar mais na obra, que era prédio grande, pois eles não aceitava. 
Então tive que arrumar um barraco mesmo lá no Conjunto. Eu morava 
sozinho, tinha chegado em casa depois de onze horas, fazer janta 
para mim jantar, tirar a marmita para o outro dia. Eu senti aquilo 
muito perigoso. Então, daí tinha um outro cara que veio lá da 
minha terra e que morava sozinho, quer dizer, no próprio local de 
serviço. A casa já tava no fim, ele chegou cansado, ligou o fogão, 
pôs as panelas para cozinhar e deixou elas. Foi deitar para descan­
sar e dormiu, a casa toda fechada. Não sei se a panela secou. A pa­
nela de pressão estourou e apagou o fogo, mas o gás continuou 
evaporando. Quando é no outro dia, a turma chega para trabalhar, 
chama Jorge daqui, chama Jorge dali e nada de ele aparecer. Quando 
eles atinaram de subir e olhar pela janela, que era vidro transparente, 
ele tava estirado no chão, próximo do fogareiro dele, sangue pelo 
nariz, pela boca e ele já tava morto. Ele tinha rastro de sangue. 
Quando ele acordou, tentou sair. Ele tava sem jeito e não conseguiu 
mais. Isso ainda me fez mais medo ainda. Aí eu fui e busquei minhas 
irmãs. Mas foi um tal de sufoco, porque aqui elas não conheciam 
nada. Minha mãe já tinha vindo aqui, mas só mesmo assim por vir. 
Não tinha costume de rodar aí. Foi outro sufoco, mas daí a gente 
foi lutando, trabalhando e ela também passou a ambientar, começou 
a trabalhar, graças a Deus. Da vida que eu tinha lá e da vida que 
eu tenho aqui, considero rico, graças a Deus. Tem o barraco dela, 
eu tenho o meu. Eu tenho o meu lote. E se não vale nada, deve tá 
valendo uns setecentos mil, mais ou menos. De forma que de roça 
eu não tenho saudade não. Lá na roça, passa meses e entra meses, 
você lidando com as mesmas pessoas, e não muda nada. Aqui na 
cidade não, costuma passar meses sem ver a mesma pessoa, ao 
menos que se vá procurar aquela pessoa. Então eu já acho assim. 
Porque tem aquele ditado: peixe pequeno procura água grande. Aqui 
é tudo caro na verdade, mas, sei lá, o dinheiro é mais fácil. Você 
consegue pegar mais dinheiro que na roça, porque na roça, só em 
fim de ano. Porque na roça é o seguinte: se você tem um jeito de 
trabalhar sem dever patrão, tudo bem. Agora, quando você deve 
ele, muitas vezes você tem que deixar a sua plantação morrer para 
cuidar da dele, não é? Porque ele fala: “ Ah! você me deve. 
Você tem que me pagar” . Como é que você vai pagar, você não
48
m
tem outro jeito de pagar. Outra coisa que me mata também: supo­
nhamos, eu não tenho recursos para tocar a minha lavoura, então 
eu vou só no paiol do patrão e ir buscando, cada um alqueire de 
cada coisa que eu pego lá; eles fala é vender na folha — pois é, 
minha planta tá bonitinha, coisa e tudo. Falo assim: "Eu te dou 
um dinheiro e você me dá dois na colheita". E assim vai indo, vai indo, 
vai indo, você vai buscando. Quando pensa que não, quando você 
colhe . . . só para ele levar, não sobra nada mesmo depois. Então foi 
aonde eu pensei: não, vou sumir daqui.
Aqui, a relação com patrão é muito pouca, a gente conhece o 
engenheiro administrativo da obra. Agora, o chefe conhece assim: 
só de vista. Dialogar mesmo, muito pouco. Talvez faz uma pergunta 
ou outra, mas é só.
A gente se sente assim tipo uma pessoa oprimida. Quer dizer, 
é a mesma coisa de um cara trabalhar num restaurante ou o mordomo, 
por exemplo. Talvez ele pega tanta coisa boa, mas nem tudo ele come, 
só tem o prazer de levar para os outros. Aqui é isso: a gente faz 
tanta coisa boa e no fim, depois de tudo terminado, não tem nem. . . 
Você não pode nem parar perto, muitas vezes. Se você pára 
assim é suspeita. Então é uma coisa chata para a gente também, 
mas infelizmente é a

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