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5 1 MÁRCIA SPYER RESENDE 1 1 " q lti+o 6bc/<u £r ^ 7/1/ P<e£ -TI^ T/(/A € /^ ê3( 'M ôÃ /l i iA 7 0TQ L i ú A ò c ç £ ?P c. (' /VL " i A GEOGRAFIA DO ALUNO TRABALHADOR CAMINHOS PARA UMA PRATICA DE ENSINO cEdiçôes 0Loyola ■ *1 i S U M Á R I O APRESENTAÇÃO ..................................................................................................... 9 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 11 Capítulo I — Dos problemas gerais ao problema central do ensino de geografia .............................................................................................. I 5 Capítulo II — Espaço geográfico ................................................................................. 23 Capítulo III — Espaço real: contando nossas histórias, nossa geografia 43 Capítulo IV — Espaço real: análise das “ histórias de vida” ...................... 131 Capítulo V — Integração do “ espaço real” ao espaço geográfico no ensino de geografia ............................................................................ 163 CONCLUSÃO ............................................................................................................ 177 BIBLIOGRAFIA 179 APRESENTAÇÃO O trabalho da Profa. Márcia Maria de Resende se constitui num esforço de inversão de ótica, de mudança de perspectiva no interior do ‘‘ensino de Geografia” . E ele se apresenta como um esforço redo brado, na medida em que, preocupada na essência com o pedagógico, mergulha fundamente nas questões teóricas e metodológicas da ciência geográfica, já que estas informam o ‘‘ato de ensinar” . Márcia tem uma experiência de mais de dez anos ensinando Geografia para alunos das camadas populares — pedreiros, serviçais domésticos, metalúrgicos etc. — que, tardiamente, segundo o parâ metro das faixas etárias convencionais, ingressam nas últimas quatro séries do 1.° grau. Foi praticando a ‘‘educação popular” (como modelo alternativo ã educação regular) e explorando a via da “ educação sindical” , segundo suas próprias palavras, que ela adquire a convicção da necessidade da escola regular para as camadas populares e a urgência de encontrar formas de socializar o saber sistematizado. Avança mais quando se propõe partir, no ato de ensinar, do saber que o aluno traz consigo, de sua história, de sua vida. Será tomando essa experiência de vida como ponto de partida que se poderá con duzi-lo à visão mais abrangente do saber universal. “ . . . na aula de Geografia eu dormia, não sabia o porquê. Então, do jeito que a professora dava aula, não dava von tade nenhuma de ouvir a aula. Era preso demais; mostrar para você o que está no livro, de falar questão é isso, isso e não mostrar o porquê daquilo." Antônio Henrique da Silva, 18 anos, 6.a série, atendente de vestiário. “ Na c id ad e ... a gente se sente assim tipo uma pessoa oprimida. Quer dizer, é a mesma coisa de um cara tra- 9 balhar num restaurante ou o mordomo, por exemplo. Talvez ele pega tanta coisa boa, mas nem tudo ele come, só tem o prazer de levar para os outros.” Adair Gonçalves da Silva, 28 anos, 6.a série, encarregado de obras. Dos relatos de vida: “ Minas história, minha Geografia" que os alunos de Márcia elaboraram sob sua orientação e que fazem parte do corpo deste trabalho, extraímos estes dois trechos acima. De um lado, eles evidenciam a experiência, a vivência espacial que os alunos têm, o seu próprio saber geográfico; de outro, mostram claramente o desinteresse que estes mesmos alunos apresentam com a Geografia que a escola se propõe ensinar, além de conter uma crítica tímida, mas explicitada com propriedade, a propósito da escola e da Geografia que lhes é ensinada. Fica claro que este ensino, por não trabalhar a realidade vivida pelo aluno, tem sido um processo de parcelamento da totalidade percebida e vivenciada, uma cristalização do todo que não é estático e sim dinâmico. A partir dos relatos de vida e levando em conta a percepção, conhecimento e consciência espacial própria que os alunos têm, Márcia faz a crítica da concepção tradicional positivista do espaço. E caminha, no sentido de superar a própria crítica, apontando direções para o ensino da Geografia a partir do questionamento do ser desta ciência e de sua própria razão de ser. Este deve se constituir como um processo de desvendamento e de entendimento da realidade do aluno e do seu espaço na sua dimensão conflitual. Nesta medida, conhecendo, tomando consciência e organizando prática e mental mente esta realidade, o aluno se forma como cidadão e, como tal, num agente transformador do mundo. Assim, em seu trabalho. Márcia resgata a Geografia como uma ciência social e a própria escola na sua função política e social. Desta forma, este texto abre caminhos de reflexão fecunda para todos os geógrafos: pesquisadores e professores. Maria Lúcia Estrada Rodrigues Professora de Geografia na Escola de 1.° Grau do CENTRO PEDAGÓGICO - UFMG 10 INTRODUÇÃO 0 tema do presente livro é fruto de três convicções. Indireta mente das duas primeiras e diretamente da última. 1 — A importância da escola formal para as classes populares. Sem eliminar ou descartar outras formas de prática educacional, considero hoje a escola formal como espaço prioritário de trabalho para quem pretenda produzir uma educação que sirva aos interesses imediatos e históricos das classes populares. Não cheguei a esta convicção pelo caminho da teoria. Nunca dispus dos meios nem de experiência especulativa suficiente para fazê-lo. Foi praticando a "educação popular” (como modelo alter nativo à escola formal) e explorando a via ainda movediça da "edu cação sindical" que o papel decisivo da escola formal se evidenciou para mim. E o que julgo mais importante: não fui eu, como “ peda goga” , a partir de outra origem de classe, que estabeleci esta impor tância: foram os próprios alunos, seus pais e as comunidades, enfim, com quem trabalhei, que reclamaram, a despeito de todos os projetos alternativos, o direito aos benefícios da escola formal também para eles. De início acreditei que esta demanda fosse reflexo de “ atraso de consciência” ou de qualquer outro “ defeito ideológico” , rapidamente superável pelas qualidades intrínsecas da pedagogia alternativa. Mas, paulatinamente, a verdade desta atitude se impôs: não se trata de atração pela imagem ilusória da escola formal, mas de uma poderosa vontade coletiva, aspiração aos bens sociais concretos e palpáveis que a escola formal pode proporcionar. 11 2 — A necessidade de redefinir o conteúdo de nosso ensino e encontrar formas pedagógicas capazes de socializá-lo. Não basta, penso eu, que se compreenda o valor da escola formal para as classes populares. Seria cair em uma ilusão oposta, em uma nova "euforia” , se nos limitássemos a constatá-lo. Para escapar à cilada conservadora, precisamos redefinir o próprio conteúdo da educação que praticamos, resgatando a sua verdade social e política, bem como forjar uma nova estratégia pedagógica — mecanismos ori ginais de transmissão/assimilação de conhecimentos — que a viabilize no dia-a-dia das relações educacionais. Ou seja: o reconhecimento da importância da escola formal não exclui (pelo contrário: reclama) a crítica de nossas ideologias escolares e de nossas artes pedagógicas. 3 — A importância de partir, no ato de ensinar, do saber que o aluno traz consigo, de sua "história” . Na condição de professores, sempre julgamos de alguma forma (implícita ou explicitamente) o saber que o aluno traz consigo ao chegar às "mãos” da escola. Nem sempre reconhecemos este fato, mas na verdade somos juizes desse saber e quase sempre o rejei tamos como não-saber ou pré-saber. Nossaprática pedagógica nos levou à terceira convicção que está na raiz deste trabalho: no ensino em geral e de Geografia em particular é não apenas possível, mas (do ponto de vista das classes populares) necessário partir do saber do aluno, de sua.acumulação "histórica” de vida. Dessa forma, foi acreditando na importância da escola formal e na necessidade de socializar através dela o saber geográfico, sem render-se todavia ao seu projeto ideológico, que empreendi a pesquisa que gerou este livro. Existe um saber geográfico pré-escolar que brota da vivência prática, social do espaço? Será, como geralmente se afirma, uma soma arbitrária de intuições vagas com opiniões equivocadas ou podemos efetivamente atribuir-lhe status de conhecimento, ainda que muitas vezes passe à margem das categorias analíticas e das conclu sões "positivas” da Geografia tradicional? Afinal, quais são as características fundamentais, os traços distintivos dessa "consciência espacial” peculiar? É possível que ela tenha assim tanta importância para e n s in a r... Geografia? Para responder a estas indagações, desenvolvi a minha investi gação a partir dos "relatos de vida” de um elenco de cento e sessenta alunos, da 5.a à 8 “ série, curso noturno, dos quais selecionei vinte e quatro para uma interpretação exaustiva. Oito destes relatos, a título de exemplo, constituem o III capítulo do presente volume. Achei 12 imprescindível reproduzi-los na íntegra porque eles falam por si, meu comentário sendo muitas vezes apenas um complemento. Seus autores, como já mencionei, são alunos adultos pertencentes às classes populares, 1 conceito que julgo prudente explicitar. Pre tendo com ele designar, nas páginas que seguem, os trabalhadores assalariados manuais na indústria (ex.: metalúrgico, mestre de obras, pedreiro etc.) e empregados no setor de serviços em funções de baixa qualificação (ex.: balconistas, emgregadas domésticas, “ boys” de escritório, mecânico de automóveis, chofer de coletivo etc.). A redução de cento e sessenta para vinte e quatro “ histórias de vida’’, ou seja, a definição do corpus da pesquisa, obedeceu a um critério biográfico: a variedade dos percursos vitais narrados: alunos que nasceram na roça e vieram direto para Belo Horizonte; outros que nasceram na roça, viveram em diversas regiões brasileiras e estão hoje em Belo Horizonte; e, finalmente, aqueles que nasceram e sem pre viveram em Belo Horizonte. Este livro recolhe o texto, parcialmente modificado, da dissertação de Mestrado que apresentei, em junho de 1983, à Faculdade de Educa ção da Universidade Federal de Minas Gerais. Resulta de pesquisa financiada pelo INEP — Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Revisando-o agora para publicação, procurei suprimir, tanto quanto possível, o jargão acadêmico e os cacoetes de geógrafa. Impossível evitar, porém, sem refundi-lo inteiramente, a andadura pesada e o esquematismo expositivo que parecem infelizmente compulsórios em nossa literatura universitária. Espero sobretudo que ele seja útil ao combate que cada professor de Geografia trava consigo mesmo para evitar a sedução do conformismo e da pseudociência. Sem distinguir grau, intensidade e nível de colaboração, gostaria de dizer que este livro foi construído junto com Hugo, Marilda, Flávio, Jair, Lourdes, Tia Verinha, Ronaldinho, Otávio, Cynara, Rosalina, Nair- zinha, Ju, Duzão, Maria Lúcia, Léa, Maria Inês, Rejane, Virgínia, Rosani, Cacau, Tetê e Lu. 1. Acredito que todo e qualquer aluno, na verdade, seja ele adulto ou criança, proletário ou não, chega à escola com uma determinada “cons ciência espacial” que deveríamos, a meu juízo, incorporar à nossa estra tégia pedagógica. Contudo, o lugar social do sujeito (aluno), o seu papel nas relações sociais de produção, pode alterar decisivamente a natureza mesma deste saber e, logo, a qualidade de seu aproveitamento escolar. Daí a necessidade, para o pesquisador, de delimitar com precisão o universo sociológico investigado> no meu caso alunos adultos de classes populares. Estudos posteriores deverão testar a hipótese com alunos de distintas ida des e origens de classe. 13 Agradeço a toda a equipe de professores do Mestrado em Educação da FAE-UFMG. O projeto atual daquele Mestrado — abrir-se a pessoas sem experiência teórica, ajudando-as a pensar sua prática educacional concreta, muitas vezes rica de pistas, indagações, problemas — per- mitiu-me freqüenta-lo com proveito e orientar-me no cipoal de angústias e anseios de minha prática individual. Agradeço em especial a Miguel González Arroyo que iluminou, como orientador da pesquisa, um caminho em que ele também acre ditava; a Luiz Dulci, companheiro, que dividiu comigo, além do mais, a elaboração deste trabalho; aos alunos entrevistados, pelo interesse, cooperação e responsabilidade com o tema; somos co-autores. d* àp h ws s 14 Capítulo I DOS PROBLEMAS GERAIS AO PROBLEMA CENTRAL DO ENSINO DE GEOGRAFIA ( . . . ) na aula de Geografia eu dormia, não sabia o porquê. Então, do jeito que a professora dava aula, não dava vontade nenhuma de ouvir a aula. Era preso demais; mostrar para você o que está no livro, de falar questão é isso, isso, e não mostrar o porquê daquilo. Antônio Henrique 15 É quase generalizada hoje a opinião de que o ensino está “ um fra casso” , sobretudo o ensino das chamadas ciências humanas. Particularmente no caso do ensino de Geografia (disciplina que, por diversas razões, sempre foi considerada secundária na escola brasileira) esta opinião se manifesta com máxima intensidade, tradu zindo um estado de coisas realmente desalentador. Tornou-se lugar-comum afirmar que o ensino de Geografia está em crise, que os professores não conseguem ensinar, que os alunos não conseguem aprender e t c . . . Tal situação tem levado a que, nos congressos, simpósios e semi nários da área, os professores apresentem como prioridade maior a realização de um diagnóstico do ensino de Geografia no 1.° e 2.° graus, que determine as causas dessa crise e prepare o caminho para possíveis soluções. Esta demanda vem geralmente precedida por toda sorte de dúvi das, angústias e frustrações que cada professor nutre sobre seu próprio trabalho. Várias razões são apresentadas para explicar essa crise e muitas vezes para justificar o papel que os professores de Geografia desenv penham nela. A mais oomum é o desprezo pelas ciências humanas em função das ciências físicas e biológicas “ que a escola inculca e/ou desen volve no aluno” . As disciplinas chamadas “ humanas” são conside radas pela escola (e pelo aluno e pela comunidade) como menores, destituídas de importância real: “ É só decorar e dar uma lida que a gente passa de ano” . Nesta área, quando o aluno é reprovado, para citar um exemplo, geralmente o fato é atribuído à incompetência do professor ou ao seu exibicionismo. Este juízo, aliás, dissemina-se com tanta facilidade que os próprios professores o assimilam, julgando-se efetivamente “ piores” ou “ menos científicos” . Ao passo que as matérias “ técnicas” são consideradas necessárias, exigem raciocínio e frente a elas não adianta decorar: “ estas são as mais difíceis: dão bomba mesmo!” 16 Além disso, considera-se que para os alunos das classes traba lhadoras é supérfluo o aprendizado das disciplinas “ humanas” . Na vida prática eles não teriam necessidade delas. A escola, em suma, para os professores de Geografia, não consi dera esta disciplina como “ ciência” , o que a condena inapelavelmente aos olhos dos alunos e — dizemos nós — também da maioria dos professores. Outra razão freqüentemente apontada é a má organização do con teúdo curricular, sobretudo o salto de conteúdos que ocorre da 4 a para a 5.a série do 1.° grau. O professor da 5.a série geralmenterecebe os alunos com noções de espaço geográfico imediato, ligado via de regra ao seu espaço vital: na 1* série o aluno estuda a família, na 2." a comunidade, na 3.a o município e na 4.a o seu Estado. Ora, na 5." série (onde a Geografia não raro é ensinada junto com "História” e "Moral e Cívica" a título de Estudos Sociais) o programa inicia-se com "o homem e a conquista do espaço" ou tópico semelhante. Passa-se bruscamente do espaço vivido ou pelo menos conhecido dire tamente, para um espaço "de informação” , distante, longínquo, que inclui até mesmo noções cosmológicas dificilmente assimiláveis pelo aluno. Acresce ainda a insuficiência da carga horária para o cumpri mento do programa oficial. É muito comum a queixa: como ensinar toda a matéria em tão pouco tempo? Como integrar, em carga horária tão exígua, os programas de História e Geografia, conforme exige a escola? Embora o programa oficial não seja, a rigor, compulsório, nem tampouco deva necessariamente ser exaurido em suas minúcias, na verdade a coerção padronizadora da escola e a própria demanda dos alunos acabam por exigi-lo assim. Sem falar nos livros didáticos que, em geral, o seguem rigidamente, obrigando o professor a terrível ginástica dentro do tempo disponível. A exigência de cursos de tal forma "panorâmicos” ou mesmo "enciclopédicos” acaba por impor ensino de grande superficialidade: rara vez o professor dispõe de margem de arbítrio suficiente para soparar o essencial do periférico. E quando o faz, à custa de esforço pessoal, arrisca-se ao rótulo de “ incompetente” , de profissional que "não dá conta de seu recado” . Os professores de Geografia enfatizam também o peso da con dição sócio-econômica do aluno em toda essa crise: "Aluno de peri- lorln 6 muito fraco, não sabe sequer o indispensável: ler, escrever; como exigir dele que observe, interprete, analise, compare, deduza, 17 critique? Como exigir dele domínio do vocabulário geográfico, se mesmo palavras do cotidiano lhe escapam? Somos com ‘‘freqüência obrigados a avaliá-los pela expressão oral para que o inepto manuseio da língua escrita não os reprove a todos. De que forma provocar o interesse, ‘sacudir’ a inteligência de alunos que nos chegam em condições tão precárias de nutrição, saúde, higiene — logo, aptidão?" Aliadas a esta condição miserável do aluno estão também as precárias condições de trabalho do professor. Seja no plano físico, com salas estreitas, mal-iluminadas, classes muito numerosas, carência de instrumentos didáticos (privilegiado é o professor que dispõe, em sua escola, de boa biblioteca, atlas, mapas, material audiovi sual e t c . . . ) seja em termos salariais, com salários baixos, inexis tência de garantia de emprego e t c . . . , que o obrigam a uma média altíssima de aulas semanais (para quem leciona no 1.° grau, 40 aulas por semana não é carga horária exagerada) sem falar na verdadeira maratona entre escolas que resulta desse absurdo ritmo de trabalho. Os livros didáticos, segundo os professores da área, também têm a sua parcela de responsabilidade no insucesso do ensino de Geografia. Sua "qualidade” está caindo progressivamente e, de maneira esquemática, se pode dividi-los em dois tipos: os livros de linguagem dita mais acessível tratam os alunos quase sempre como incapazes, impedindo-os de raciocinar, analisar, interpretar, criti car etc.; já os que não rebaixam arbitrariamente nem "facilitam” o conteúdo têm uma linguagem e trabalham com um código de refe rências dificilmente acessível às classes populares. Por outro lado, devido à sua formação deficiente, o professor geralmente não identifica na "forma” e “ conteúdo” dos manuais didá ticos a visão de mundo de quem os produziu. Freqüentemente o pro fessor adota um livro que não corresponde à sua filosofia de trabalho e que até mesmo a contradiz. Em seminários ou encontros de prática de ensino é muito comum ouvir-se a declaração algo espantada: “ . . .eu não sabia que o livro que adoto transmite essa visão do mundo. . . in te re ssan te ...” Via de regra o manual é escolhido por critérios extradidáticos, ou seja, o seu preço, o impacto publicitário de seu lançamento, o esforço menor que exige do professor em sala de aula e t c . . . Quando não é simplesmente o livro “ oficial” da escola ou a apostila que ela própria preparai . . . A precária formação profissional é outra explicação usualmente apresentada. As licenciaturas de curta duração em Estudos Sociais, a ênfase maior posta pela Universidade na formação do Geógrafo-Pes- quisador em detrimento do “ aluno normal” que vai para a vala comum 18 do magistério de 1.° grau, bem como um ensino universitário “ teórico” , “ doutrinário” , olimpicamente distante das contradições e misérias da prática, tudo isso tem igualmente graves repercussões — julgam os professores — sobre o nível de ensino. Como estas, outras tantas razões são apresentadas para explicar o fracasso do ensino de Geografia no 1.° grau. Desde o vestibular, entidade quase mítica, de tantas e tão pouco estudadas conseqüências, até a inexistência de participação democrática nas decisões educacio nais (a nível do cotidiano escolar como da Política Educacional dos governos), muitas razões se dão para essa crise que, de tão dita e constatada, sem que quase nada se faça para a sua superação, já começa a parecer uma fatalidade. Todos esses fatores, apontados não por burocratas ou “ especialis tas” em Educação, mas sim por professores que enfrentam dia a dia o desafio de transmitir conhecimentos geográficos, são relevantes e determinam em grande medida a relativa frustração de nossa prática de ensino. Podemos afirmar com segurança que, sem levá-los em conta, à revelia de suas implicações muitas vezes terríveis, jamais se logrará um equacionamento real, sem mistificações, do ensino de Geografia no Brasil de hoje. Atrevo-me a sugerir, porém, que este mosaico de dificuldades, objeto necessário de lutas acadêmicas, sindicais e políticas, não identifica a questão fundamental do nosso ensino de Geografia. Minha experiência de 14 anos como professora dessa disciplina, primeiro na escola primária e depois de 5.a a 8.a séries do 1.° grau, bem como em projetos alternativos de “ Educação Popular” , convenceu-me de que há um problema ao mesmo tempo anterior e transcendente a todos estes, um problema que diz respeito à própria sobrevivência da Geo grafia enquanto ciência, um problema que poderia permanecer (e ele sozinho bastaria para alimentar indefinidamente a crise da Geografia) ainda que todos os anteriores fosse satisfatoriamente resolvidos. Mas, afinal, que problema será este? Ele reside justamente no objeto de investigação que constituímos, vale dizer, na maneira como n Geografia é encarada por nós que a ensinamos: de uma forma fra- clonada e parcial, nunca como totalidade; nunca como o trabalho de homens históricos sobre um espaço que a história da sociedade humana reproduz. 2 Uma Geografia assim concebida leva-nos fatalmente a considerar o nluno, em especial aquele oriundo das classes populares, como um 2 O próximo capítulo tenta caracterizar melhor esta afirmação. 19 ser neutro, sem vida, sem cultura, sem história — um ser que não trabalha, não produz a riqueza neste momento histórico e neste espaço geográfico determinado. O aluno não participa do espaço geográfico que ele estuda. Se o espaço não é encarado como algo em que o homem (o aluno) está inserido, natureza que ele próprio ajuda a moldar, a verdade geográfica do indivíduo se perde e a Geografia torna-se alheia para ele. Considero esta a falha mais grave de nossa Geografia/nosso ensino: desprezar o ser histórico da Geografia e, conseqüentemente, o ser histórico do aluno. Acolhê-los seria, de certa forma, redefinir a relação mesma de ensino-aprendizagem, construiro caminho do conhecimento, da descoberta, a partir da realidacíe vivenciada pelo aluno. Aí estariam, professor e aluno, descobrindo e recriando a ciência geográfica. Agir assim significaria, contudo, valorizar uma experiência de espaço do aluno, do aluno pobre — uma experiência de espaço que lhe é própria. Nossa escola prefere excluir esse espaço real do espaço geográfico que ensinamos. (Razão manifesta: estas "impres sões" são irrelevantes: razão política: este saber pode ser arriscado, subversivo para a própria Geografia, para a escola). Ao negar o espaço histórico do aluno (da Geografia), ela marginaliza o próprio aluno como sujeito do processo do conhecimento e transforma-o em objeto deste processo. Creio necessário combater semelhante des-historização da Geo grafia e do aluno. Sei que não é tarefa simples nem pode ser cometida na solidão. Os avanços neste campo resultarão tanto da controvérsia teórica ou da reflexão especulatva quanto do empenho experimental de cada professor em sua sala de aula .3 Pretendo oferecer a minha contribuição demonstrando empirica- mente que os alunos chegam à escola com um saber peculiar sobre o espaço, fruto de sua experiência imediata de vida. A esta consciên cia espacial própria denominei "espaço real” , ou seja, aquele espaço cuja lógica eles experimentam na própria carne, espaço que faz parte de suas histórias, das múltiplas atividades que "enchem” suas vidas. 3. Esta não é diretamente uma pesquisa de prática de ensino. Ela examina problemas, ao meu ver decisivos, quanto ao método geográfico, que precedem e determinam a nossa prática. A discussão do método, po rém, não é feita teoricamente, mas a partir de realidades da própria sala de aula (a insatisfação do professor, a percepçãc do aluno, o manual di dático) que levam a análise a evoluir quase sempre na fronteira entre a concepção de Geografia e a sua didática. 20 É com a percepção intensa deste espaço que todos eles chegam à escola. E nós, professores, devemos, então, ensinar-lhes o "espaço geográfico” , aqueles dados espaciais que eles não têm, sobre um espaço que eles em tese não experimentam nem conhecem.4 Mas este espaço geográfico — este "outro” espaço — não é tam bém historicamente produzido por homens, por alunos? 4. Se a escola considera devidamente este saber (o espaço real) in tegrando-o ao saber especial que ela própria deve transmitir aos alunos — o que, já se vê, supõe repensar criticamente o objeto mesmo da geo grafia que ensinamos —t tal atitude poderá trazer profundas e benéficas conseqüências à nossa prática de ensino. 21 Capítulo U ESPAÇO GEOGRÁFICO “Eu não entendo, a Geografia me deixa intri gada por isso, eu descubro tanta coisa e não se i como é que as coisas foi parar no pé que chegou.” Rita Lucas Sobre a Geografia que ensinamos Quando iniciava esta pesquisa, ainda nas entrevistas prelimi nares, perguntei aos alunos: o que é a Geografia? Para que serve? Estas duas perguntas, cujo objetivo era apenas o de confrontar per cepção empírica com capacidade conceitual, acabaram por ensejar um retrato agudo, embora inadvertido pelos seus “ autores” , da Geo grafia que ensinamos na Escola de 1.° grau. A maioria (150 em 160 alunos) respondeu que a Geografia é o estudo físico da natureza (‘‘o relevo, rios, picos, vulcões, florestas, pressão atmosférica, rochas, oceanos, mares” ). Outros responderam que é o estudo do cosmos (planetas, satélites, lua, “ das coisas ao redor da terra”) e também da latitude, longitude, dos fusos horários, da linha do equador e dos trópicos. Outros ainda afirmaram que a Geografia é o estudo "das grandes paisagens do Brasil e do mundo". Somente dois alunos (em 160) responderam que a Geografia é o estudo do espaço, sim, mas ocupado por homens, transformado pelas mãos ou aparatos humanos, "o estudo de nossas vidas em contato com a natureza” . Quanto à questão — para que serve a Geografia? — a maioria respondeu que “ serve para ficarmos sabendo dos vários tipos de relevo, clima, vegetação, rios, mares e oceanos do Brasil e do mundo” , ou seja, uma resposta inteiramente coerente com a que foi dada à primeira pergunta. Segundo os nossos alunos, a Geografia pode servir ainda para que se tenha um conhecimento “ geral” do Brasil e do mundo, “ p r^a darmos uma visualizada no mundo em geral” , con forme a ling jem pitoresca de um dos entrevistados, ou até mesmo para diferenciar países, capitais, continentes, estados e regiões, “ para mostrar (assim) aos estudantes um pouco de cada país” . Pouquíssimas respostas fogem a este diapasão. Umas mais líricas ou mais perceptivas: “ Serve para ajudar a descobrir as riquezas que existem nos lugares, para mostrar toda a riqueza, a beleza que todo o Brasil e o globo têm", apontando quase sem querer uma das funções que a Geografia efetivamente desempenha em certos "espaços" insti tucionais: "descobrir riquezas” : outras mais superficiais e tributárias de um utilitarismo quase turístico: "Serve para saber de localizações precisas, conhecer mapas, localizar países e estados, saber onde estamos, serve para ir a qualquer distância sabendo usar o caminho mais curto” : enfim, aquelas poucas que, embora imprecisamente, fazem à Ger ,a uma exigência mais profunda, um repto de sentido: 24 "Serve para nos orientar na nossa vida de ser humano, para nós entendermos o mundo mais claro, mais real” . Um pouco através do método de colagem, da "palavra-puxa-pala- vra", todavia sem trair — espero — o essencial das respostas colhi das, o que se pode depreender desse painel de opiniões sobre o ser da Geografia e a sua razão de ser? Em primeiro lugar, e independente de qualquer outra conclusão, que não temos trabalhado, como quer o último aluno, no sentido de fazer entender o mundo ‘‘mais claro e mais real” , pois, se assim o fosse, a sua resposta não seria a exceção que é frente a todas as demais. Mas podemos extrair desse conjunto de respostas conclusões mais rigorosas, internas, sobre a prática escolar de Geografia. Com efeito, nota-se, por quase todos os depoimentos, que conti nuamos a trabalhar em sala de aula com a Geografia mais tradicional possível, com uma Geografia a que não cabe outra designação senão positivista. Releia-se com atenção as respostas dos alunos e teremos o retrato falado de uma ciência que se esgota na observação e catalo gação dos dados de realidade, sem buscar jamais a contradição de que brota, em uma palavra, o seu sentido. "Ciência” empirista, que recusa-se a transcender o dado em si, o imediato, para não correr o risco de surpreender um sentido que a questione em seu funda mento mesmo. “ Ciência” que assenta sua análise — ou por outra: constitui o seu objeto — “ no solo e não na sociedade” que produz e reproduz este so lo ,5 vale dizer, disciplina igualmente naturalista, para quem a História não existe, mas somente o tempo geológico supra-humano e diante do qual a sociedade e seu tempo parecem pequeninos, irrelevantes. . . Nesta Geografia — é C. Vallaux quem o afirma — o homem importa apenas por ser um "agente de modelagem do relevo” , 6 por sua atividade como força de erosão. O homem é um fato a mais na paisagem. Não pode surpreender-nos, assim, que os nossos alunos, ao definir o que a Geografia estuda, quase nunca mencionam o homem. Quando muito, esta Geografia examina o relacionamento entre o homem e a natureza, sem se preocupar com a relação social entre os homens, mediação inevitável da dialética homem/natureza. Ao abordar o “ aspecto humano” (o próprio termo já assinala o caráter lateral do homem nesta Geografia), fala sempre em população (um conceito puramente numérico) e jamais em sociedade; fala das 5. Antônio Carlos Robert Moraes, Geografia, pequena história crítica, Hucitec, São Paulo, 1981. 6. Antônio CarlosRobert Moraes, op. cit. 25 técnicas e dos instrumentos de trabalho, porém não de processo social de produção; fala de fenômenos humanos mas nunca de relações de trabalho; uma Geografia, como já se disse, que age como se fosse uma ciência natural dos fenômenos humanos, para quem “ a casa (como elemento fixo da paisagem) tem maior importância que o morador” . 7 Como ciência dos lugares (e não do homem no espaço social), esta Geografia acaba por ser um conjunto de fragmen tos atomizados e às vezes até contraditórios (Geografia Física, Huma na, Econômica, que internamente se dividem e subdividem), compar- timentando de tal forma os dados de realidade que se torna impossível uma visão prismática do objeto de estudo, uma visão integradora, dialética. Basta lembrar, a título de exemplo, o conceito de região como universo auto-explicável, microcosmo que não dependeria em nada do conjunto da sociedade, para ser exaustivamente descrito — e "explicado". O que falta a esta Geografia para que possa, no seu próprio campo, ensinar a "ver o mundo mais real” , a verdade do espaço? Não é competência que geralmente falta, nem entusiasmo científico. O problema não é técnico e menos ainda subjetivo. Ele é ideológico. Os porta-vozes doutrinários desta Geografia (o que raramente é perce bido pelo professor comum que está em sala de aula) optam por um método de pensar (e, logo, de ensinar) o espaço que despreza ou mesmo deliberadamente oculta o papel central, decisivo, do trabalho social na construção do espaço geográfico. E por que isso? Porque reconhecer este caráter central, originário, do trabalho, obri garia a reconhecer também a exploração do trabalho (uns possuem a terra, outros vendem o seu trabalho para quem a possui; estes pro duzem os bens mas só aqueles podem fruí-los) como mecanismo estrutural, na sociedade capitalista, de produção e reprodução deste espaço. Obrigaria a reconhecer que a lógica da produção do espaço é o interesse objetivo das classes dominantes. Obrigaria a reco nhecer, enfim, a dimensão política irrecusável do espaço geográfico e, em conseqüência, da ciência que o investiga. Para que estas observações não pareçam abstratas, nem se afi gure “ injusta” esta sumária síntese crítica, convém trocá-la em miú dos, testando a sua veracidade com um produto típico da geografia que ensinamos. Escolhemos para isto o Manual do Professor Elian Lu cc i.s Tomemos o volume n.° 5, correspondente à 5.a série do 1.° grau.11 Abra-se o livro no capítulo 8: 7. Antônio Carlos Robert Moraes, op. cit. 8. Este livro foi escolhido por ser (segundo a Revista VEJA 756, 2 de março, 1983) um dos manuais de Geografia mais vendidos no Brasil. 9. Elian Alabi Lucci, Geografia: Geografia geral, astronômica, física, humana e econômica: 5.» série, 1.° grau, Saraiva, São Paulo( 1983. 26 CAPÍTULO O Relevo Brasileiro 8 Você estudou no capítu lo an terio r que a superfície terrestre possui q u a tro form as fundam entais de relevo. Essas q ua tro form as fundam entais de relevo sào: ■ as montanhas; ■ os planaltos; ■ as planícies; ■ as depressões. Neste capitu lo , vam os identificar as principais form as de relevo do te rritó rio brasileiro. P ara isto , observe o m apa e leia com atenção o texto a seguir. Bratll Relevo 27 Você nota que a form a de relevo predom inante no Brasil é o planalto. Em nosso País não existem m ontanhas, porque os nossos terrenos são m uito antigos, p o rtan to , foram bastante desgastados e aplainados pela ação do clima. Devido a esse processo, as m aiores altitudes a tu a l mente se acham bastante reduzidas. O cupando mais da m etade do nosso território , o p lanalto mais ex tenso do Brasil é o Brasileiro. P o r ser m uito extenso, esse p lanalto subdivide-se em três partes: ■ Atlântico; ■ Central; ■ Meridional. V oltando a observar o m apa da pág. 56, você no ta que a parte loca lizada próxim o ao litoral denom ina-Se p lanalto Atlântico. N o planalto Atlântico acham -se localizadas as serras; ■ do Mar; ■ da Mantiqueira; ■ do Espinhaço. O p on to mais elevado desse p lanalto é o pico da Bandeira, com 2890 m etros de altitude. S ituada no centro do P aís, a parte do planalto Brasileiro em que se localiza Brasília constitui o p lanalto Central. A ou tra divisão do p lanalto Brasileiro, situada bem ao sul do Brasil, é o p lanalto Meridional. V oltando a observar o m apa do relevo, você n o ta que, ocupando m enor extensão, ao norte do Brasil localiza-se o p lanalto das Guianas. Esse p lanalto não nos pertence to talm ente, pois apenas parte dele se encontra em nosso território . N o planalto das G uianas localizam-se os picos mais elevados do Brasil; ■ o da Neblina, com 3014 m etros de altitude; ■ o 31 de Março, com 2992 m etros. A lém do p lanalto , ou tra form a de relevo encontrada no Brasil é a planície. Localizada ao norte , a planície mais extensa do País é a planície A m azônica. A planície Am azônica, localizada entre o p la nalto Brasileiro e o p lanalto das G uianas, com um a área aproxim ada de 2000000 km 2 de exten são, è considerada um a das mais extensas planícies do m undo. Pelo que você observa, ela é atravessada por um rio bastan te extenso, o rio A m azonas. Pico da Neblina. Saiba que... Q pico da Neblina foi descoberto somente em 1962. Até entOo, o ponto mais elevado do Brasil era o pico da Bandeira, no planalto Atlântico. Vista de um trecho da planicie Amazônica L 28 Saiba que... N os m eses em que as águas da planfcie do Pantanal baixam , ela constitui um a 'mportante regido para a criação extem w a d o gado. Trecho da planície do Pantanal após as cheias do rio Paraguai, quando se observam Inúmeras lagoas residuais Localizada ao sul do Brasil, destaca-se a planície dos Pampas. Essa planície, localizada no Rio G rande do Sul, é um prolongam en to da planície P latina, que se estende pelo norte da A rgentina, pelo P ara guai e pelo U ruguai. U m a im portan te planície localizada em M ato G rosso e M ato G rosso do Sul é a do Pantanal Mato-grossense. A planície do Pantanal Mato-grossense, duran te vários meses, se apresenta sob a form a de um a im ensa lagoa, a Xaraiés. Isto ocorre por que aquela planície se encontra sujeita a inundações periódicas do rio P a raguai e de seus afluentes. A planície localizada próxim o ao litoral e sujeita ás influências do oceano A tlântico é a planície L itorânea ou C osteira. A planície Litorânea ou Costeira ocupa um a faixa, de largura variá vel, en tre o oceano A tlântico e as encostas do p lanalto Brasileiro. 29 Quase nos deixamos seduzir, após sua leitura, pela tentação de não comentá-lo, de considerar desnecessário qualquer comentário. Mas afrontemos o risco da redundância... Em que e como este texto corresponde à Geografia (que ensinamos) rapidamente descrita atrás? Deixemos de lado o furor taxionômico, esta sucessão inesgotável de denominações, como se o nome traduzisse necessariamente o fenô meno ou manifestasse a sua “ natureza” . Passemos igualmente ao largo deste curioso "Saiba que. . . ” sobre o pico da Neblina, que nos faz recordar (com prazer, é verdade) o saudoso ‘‘Tesouro da Juventude” , edição de 1927, em sua ‘‘secção” cousas que devemos saber, consciencioso inventário de saborosas inutilidades.. . Não, não se encontra nestes aspectos a inconsistência do texto e a sua conseqüente alienação da verdade geográfica. Nem tampouco pretendemos negar a exatidão das informações específicas nele con tidas (nomes, datas e t c . . . ) . É na concepção mesma de relevo, do lugar conceitual que este ocupa no espaço geográfico global, que poderemos surpreender esta alienação. Com efeito, o relevonão é aqui (nem em parte alguma do livro) vinculado à totalidade do espaço que o determina, isto é, ao clima, à vegetação, às atividades produtivas, às condições de vida: em uma palavra, à lógica estrutural do espaço que preside a articulação de suas várias dimensões. Neste passo, poder-se-ia contestar: ora, pode-se conceber o espaço integrado e ainda assim decompô-lo analiticamente para efeito de investigação (o pesquisador, por exemplo) ou de eficácia didática (o autor de um manual). É verdade. Seria obviamente insensato negar a possibilidade ou até mesmo a necessidade desse artifício experimental ou pedagógico. É claro que o exame de um determinado fenômeno (digamos: a vege tação amazônica) supõe a sua descrição precisa, descendo a detalhes quem sabe microscópicos. Conforme o objetivo da pesquisa, tal espe cialização será mesmo imprescindível. O argumento vale também, em outro nível de complexidade, para o texto didático. Contudo, distinção analítica não pode significar fragmentação do objeto, sob pena de desagregá-lo, acabando por adulterar a sua ver dade, o seu sentido. A descrição localizada, parcial, de um fenômeno é apenas o 1.° momento (sem dúvida, necessário) de qualquer investigação. Ela não esgota, porém, de modo algum, o conteúdo do objeto, pois este só se. evidencia quando integrado à totalidade. No caso, o relevo só tem sentido quando referido à sociedade que o produz e reproduz (até mesmo a ausência de uma ação produtiva sobre o relevo é uma opção, ao fim e ao cabo, social, política). Ainda aqui poderíamos ser contraditados: ora, assim como se decompõe o objeto para análise, basta somar de novo as suas partes para recuperar a totalidade e atingir o seu sentido. Pois bem, eis aqui a nossa questão. Eis aqui o miolo do problema, o hiato entre a Geografia tradicional e uma ciência que se pretenda dialética. Porque não basta justapor as partes (resultantes da descrição de aspectos do objeto) para se obter a totalidade do objeto. Não basta descrever exaustivamente e depois somar relevo + clima + vege tação + economia + população para se lograr um espaço geográfico integrado. A totalidade não é uma soma, ela é uma síntese. E esta síntese só pode ser alcançada através de um elemento mediador que permeie cada uma das partes, através de uma categoria interpreta- tiva que permita estabelecer a lógica deste espaço. Esta categoria só pode ser o trabalho social concreto, com todas as suas determi nações históricas (no Brasil de hoje, o modo de produção capitalista, garantido e administrado pelo Estado burguês). Sem ela, não há inte gração possível do objeto espaço. Sem ela, o que há é no máximo a tentativa de soldar canhestramente as suas várias dimensões, atomi- zadas desde o início e em definitivo pela análise, através de alguns raros exemplos de interdependência técnica: se as águas baixam, a planície fica adequada para a criação de gado e t c . . . Ainda aqui poder-se-ia contestar: ora, se fôssemos extrair todas as conseqüências deste método, teríamos na verdade outra disciplina e não mais a Geografia: na verdade, este método acaba com a Geo grafia. Não, não acaba. Este método, isto sim, por resgatar a lógica da produção social do espaço, por estudar o modo como o espaço se organiza e não a sua aparência fragmentária, abre caminho para uma outra Geografia. Mas que outra Geografia? Não será apenas uma moda intelectual, esnobismo universitário? Poderia ser, se a Geografia que ensinamos não fosse, em seu resultado objetivo, menos uma ciência que uma ideologia, vale dizer, uma forma de ocultação dos princípios — econômicos, sociais, políticos — que efetivamente go vernam o espaço. Não se trata, pois, de “ inventar” uma segunda 31 Geografia. Trata-se, antes de mais nada, de assegurar à Geografia a sua condição de ciência, a sua capacidade de analisar o real sem desagregá-lo e por um caminho que conduza ao seu sentido. Neste caso, ela não estaria invadindo outras disciplinas e/ou sen do invadida por elas? Onde fica a nossa especificidade? Sim, este processo está (felizmente) ocorrendo com todas as disciplinas, e decorre justamente desta referência necessária à totalidade. Mais e mais os investigadores percebem que o sentido dos fenômenos extrapola os compartimentos estanques de nossa estrutura curricular e/ou de nossa especialização profissional. E compreendem que saltar barreiras artificiais de modo algum aniquila ou sequer prejudica cada ramo da investigação. Pelo contrário: tais saltos são requisito indis pensável às suas respectivas vitalidades. Sobretudo porque são operações interdisciplinares reclamadas pela própria compreensão do objeto, não são externas a ele. E se dão ao nívél do método, rara mente de conceitos particulares. A categoria analítica modo de pro dução capitalista (com todas as suas implicações, inclusive culturais, ideológicas) não é uma categoria das ciências econômicas, mas do método materialista dialético. O texto do Prof. Lucci, portanto, não é cientificamente inconsis tente e alienador pelas informações factuais, tópicas que contém. Poderíamos, é claro, argüir, do ponto de vista pedagógico, isto é, no que diz respeito à formação da consciência/cultura geográfica do aluno, a irrelevância de várias destas informações assim como a vora- gem classificadora que conduz inevitavelmente à memorização, à decoreba. Mas elas são, enquanto informações particulares, corretas. O caráter alienador se manifesta acima de tudo pelo que não está no texto, ou melhor, pela maneira como este texto (assim como os demais do volume) não está organizado. É pela ausência radical do trabalho social concreto como categoria mediadora da totalidade espacial; é pela concepção do relevo como um dado em si, preexis tente à sociedade e que “ aparece" à sua revelia, que o texto aliena a verdade científica do objeto. Consideremos mais um exemplo. Tomemos agora o capítulo 15 do mesmo manual, “ a população brasileira” , com o seguinte texto; 32 CAPÍTULO A População Brasileira 15 A gora que você já conhece os aspectos quan tita tivos e qualitativos de um a população , vai estudá-los na população da qual faz parte. Com aproxim adam ente 123 milhões de hab itan tes, o Brasil é o sex;o país do m undo em população absolu ta . A população brasileira apresenta quatro im portan tes características, que você vai conhecer observando inicialm ente os m apas abaixo. Rio de Janeiro (sede da Colônia) B rasil D e n a íd a d e D e m o g rá f ic a menos de t hab. por km* r j l de 1 a 10 hab. por km* H de 10 a 50 hab. por km1 S i de 50 a 100 hab. por kirv £ ■ mais de 100 hab. por knrf> C onform e você observa, a população brasileira, assim com o a po pulação de um a form a geral, está irregularm ente distribuída. A primeira característica da população brasileira é a sua irregular distribuição pelo território . E nquan to alguns Estados apresentam grande núm ero de habitantes, com o São Paulo e Rio de Janeiro , outros, com o os Estados do P ará , A m azonas e M ato G rosso, apresentam um pequeno núm ero. Em alguns Estados brasileiros podem os registrar verdadeiros “ vazios” dem ográficos. Pela observação do m apa dem ográfico, você consta ta que a popula ção brasileira está concentrada em m aior núm ero no litoral do País. Essa irregular distribuição da população brasileira, concentrando-se em m aior núm ero no litoral, vem ocorrendo desde o início da coloniza ção. 33 M uitos fatores de ordem geográfica e social co laboraram para que as prim eiras vilas e cidades do Brasil fossem fundadas na faixa litorânea. D entre esses fatores se destacam : ■ a m aior proxim idade do litoral com a E uropa; ■ a presença dos índios selvagens no interior; ■ os obstáculos que as serras constituíam para a penetraçãono inte- Com a m aior concentração da população no litoral, você conclui que o interior do Brasil perm aneceu, e ainda perm anece, desabitado em determ inados trechos, aos quais denom inam os vazios dem ográficos. A concentração populacional na faixa litorânea é a segunda ca racte rística que a população brasileira apresenta. Um dos fatores responsáveis por isso é a m igração in terna que, ge ralm ente, ocorre do in terior, pouco povoado , para o litoral, com trechos superpo voados. A população, concentrando-se cada vez m ais no litoral, en fren ta sé rios problem as, com o a falta de m oradias, escolas, em pregos etc. A ausência de um a in fra-estru tu ra u rbana para receber os grandes contingentes populacionais nas cidades litorâneas causa problem as. A gora, leia com atenção o texto abaixo e veja qual é a terceira carac terística da nossa população . Q uando os portugueses aqui chegaram , nosso País já era hab itado pelas prim itivas tribos indígenas. Com a chegada do b ranco colonizador, a população com eçou a se m isturar (m iscigenação), dando , assim , início ao processo da form ação do povo brasileiro. A form ação do povo brasileiro teve início com o cruzam ento do branco (colonizador) com o indígena (prim eiro hab itan te do Brasil). Da m iscigenação do branco com o am arelo resultou o caboclo ou mameluco. Depois, com a escravidão, veio para o Brasil um grande núm ero de negros africanos. Estes, fixando-se em nosso território , acabaram -se miscigenando tan to com o branco com o com o indígena. Do cruzam ento do branco com o negro resultou o mulato, e do ne gro com o índio, o cafuzo. Pelo que você observou, conclui, p o rtan to , que a terceira caracterís tica do povo brasileiro é a mestiçagem. A mestiçagem é um a característica não só da população brasileira, m as de toda a A m érica L atina, onde, na m aioria dos países, o núm ero de m estiços é bastan te elevado, em m uitos casos superior ao dos brancos. As M ed id a# PW * i : M e lh o ra r a D is írtb trkçS o d a P o p u la ç ã o P reocupado com a maior concentração da p opaíaçS o b rasüeira n a s :: 0 CsW em o vem. pró- curà»&!%'adotai algu m as : "w lb o r U ma m edida coiocada em prática foi' a trans* : ferêncià d a C a p ita l que se loeaííjsâvaf' «a íaixa interior d ó - sando atrair a popuia- ç í » o « , maior impulso a o <k- senvolvhttén*© dessa Região. P ara essa área às dem ais re- yíôes, era necessário m elhorar as vias de com unicarão .' U m a das m edidas ado tadas pelo G over no. para m elhorar a co m u n icação , ín ierr» . foi a Construção <c& tradas transreglonais, com o a B elém —S rasf Ha. a Transamaióni<%« a P a ta a co»sm iç8o dessas um - d<?tra- b a fh a d d re s 'r colono^ d<> litoral se dirigiu pa- ra o interior, cwvdè re cebeu :âu^io /'fe ' terras do Q w & m \ V \ ' y. Saiba que... N o sécu lo X IX , o G overn o atraiu milhões de imigrantes de outras partes do m undo para trabalharem nas lavouras de café E sses im igrantes, que vieram com pletar a nossa m estiçagem , se concentraram principalm ente no sul. 34 H » i andando At quatro principais i mm itnltllc n* da po- |<uUçA<i t>rn*llvlra sâo: ■ ifmytilnr distribui- (Ao, ■ i um vntraçAo po pulacional na fai- xn lllorAnea: ■ mt>«llça<jt>m; ■ maior número de |ov*n» Mas existe ainda um a quarta característica da população brasileira que você conhecerá a seguir. Você estudou que no Brasil a taxa de crescim ento dem ográfico é al ta. Se no Brasil há um m aior núm ero de nascim entos em relação ao nú mero de m ortes, conclui-se que a população cresce rapidam ente. Se a população brasileira cresce devido à grande natalidade, ela é constitu ída por m aior núm ero de jovens (53% ) com menos de 20 anos de idade. O predom ínio de jovens constitu i, po rtan to , um a ou tra característi ca da nossa população. E n tre tan to , esse predom ínio de jovens na estru tu ra populacional brasileira acarreta um a elevada taxa de população econom icam ente ina tiva, isto é, sem trabalho rem unerado. Quadro da População Brasileira por Faixa Etária Idade % 0 — 19 55,7 19 — 60 37,4 mais de 60 6,9 Além disso, essa população inativa exige do G overno grandes inves tim entos, principalm ente no cam po da saúde e da educação. O Brasil, que até há pouco possuia um índice de analfabetism o bas tante elevado, graças a algum as m edidas ado tadas no cam po da educa ção , após 1964, sobretudo com a criação do M OBRAL, conseguiu redu zir esses índices, passando de 29% , em 1970, para , aproxim adam ente, 1 l«/o. em 1980. Nosso povo se distribui de maneira irregular pelo território nacio nal, eis uma afirmação incontestável. A maioria dos brasileiros concentra-se na faixa litorânea, não há qualquer dúvida sobre isto. Porém, qual é o sentido desta informação (e a sua própria razão peda gógica de ser) se o texto não fornece os motivos reais dessa irregular distribuição populacional? E, o que é pior, se ainda apresenta expli cação inteiramente acientífica para o fenômeno? Segundo o Prof. Lucci, a penetração colonizadora do interior foi retardada pelos obstáculos naturais (sobretudo as serras) e os huma nos (os índios selvagens). Ora, esta afirmativa contraria liminar mente a verdade histórica. O avanço para o interior (quase exclusi vamente político no início da colônia) deu-se vencendo todos os obstá culos naturais ou humanos quando a sua superação tornou-se neces sária do ponto de vista econômico, ou seja, no chamado ‘‘ciclo do ouro” . Antes disso, resultava mais conveniente ao poder dominante o cultivo da cana-de-açúcar no litoral. Bastou a ocorrência do inte resse econômico para que os obstáculos naturais fossem transcen didos. E os índios? Enfrentados militarmente e dizimados aos milha res, de modo a não entravar a extração e sobretudo o transporte do ouro interiorano para os portos de embarque, a caminho da Europa. Situação idêntica, aliás, à de boa parte da Amazônia brasileira no século XX. Imensas áreas em repouso, despovoadas, “ improdu tivas” . Mesmo que quisessem possuí-las, ocupá-las, trabalhadores não poderiam fazê-lo, devido à inexistência de estradas e aos sempre alegados “ obstáculos naturais” . Bastou, contudo, que o capitalismo manifestasse interesse objetivo pela exploração destas regiões — e a infra-estrutura de produção, de sobrevivência, de transporte começou a ser criada (rodovia Transamazônica, hidrelétrica de Tucuruí e t c . . . ) . Nos dois casos, não é o acidente físico que determina a ação dos homens — mas, ao contrário, a lógica da produção social é que trabalha e forja o espaço, segundo os seus desígnios. Ignorando a mediação do trabalho social, imprescindível como vimos à síntese dialética, o Prof. Lucci não vê contradição alguma entre a sua primeira afirmativa e a que faz a seguir, a saber, que os brasileiros do interior abandonam cada vez mais o seu habitat rumo às grandes metrópoles, em geral litorâneas. Vocação nômade? Cos- mopolitismo? Complexo de inferioridade? Qual será a causa fisica ou psicológica deste êxodo continuado? Claro, tal fenômeno não será jamais devido ao latifúndio, que virtualmente expulsa da terra o lavrador; nem tampouco devido à industrialização e acumulação do capital (e dos meios de produção e da infra-estrutura) nas grandes metrópoles; e menos ainda, certa 36 mente, pelo interesse objetivo das elites dominantes em baratear a mão-de-obra através de um “ exército de reserva” nos grandes centros produtores. Estas seriam razões alheias à geografia e, como ensinavam nossos avós, “ é bom não confundir as coisas” . Mesmo que desta forma se comprometainteiramente a verdade da população brasileira, mesmo que esta recusa da mediação econômica signifique falsificar a realidade investigada/ensinada. O manual em questão utiliza esta autêntica ficção científica para “ descrever” também outros fenômenos. Assim, a vida miserável de enormes segmentos da população urbana (gente das favelas, dos mocambos, das invasões e t c . . . ) é justificada en passant pelo excesso de população nas metrópoles. Mas não se explica por que cidades inteiras foram construídas em meses para viabilizar projetos extra- tivos ou industriais como o Jari ou Carajás, para citar apenas dois exemplos. Nem se menciona a criação, da noite para o dia, de “ Dis tritos Industriais” inteiro, em terrenos pagos pelo Estado, com a mais completa e moderna infra-estrutura, para a instalação de em presas transnacionais, muitas vezes financiadas pelo próprio Estado.10 E não se trata de erro localizado, de falha científica eventual, passível de aperfeiçoamento “ em edição posterior” . É mesmo um método de análise e ensino que seleciona e explica de maneira arbi trária os fatos geográficos, adulterando assim o seu sentido e masca- rando o seu caráter político. Sem pretender esgotar todos os tópicos do texto em pauta, consideremos ainda o tratamento dado ao problema étnico. O tema é tratado em meia dúzia de frases e as informações resumem-se a umas quantas denominações para os diferentes tipos de mestiçagem: branco + preto = mulato; negro + índio = cafuso e t c . . . Afora dar a conhecer aos alunos alguns termos pretensamente úteis (até mesmo sua utilidade é relativa) estas magras noções não cumprem nenhum outro papel. Mesmo ao nível de simplicidade requerido por uma 5.a série, elas pouco ajudam o aluno a saber o que é importante em nossa composição étnica — e por quais razões. Quem são os negros brasileiros e em que a sua cor altera a situa ção que ocupam no espaço geográfico que estudamos? Por que as elites dominantes no Brasil são esmagadoramente brancas? Aos negros, enquanto coletivo racial, estão vedados certos espaços so 10. Sobre o assunto ver: Maria Lúcia Estrada Rodrigues, Produção do Espaço e expansão industrial, Ed. Loyola, São Paulo, 1983. 37 ciais? Se tal ocorre, deve-se ao “ preconceito racial” ou a que outro(s) motivo(s)? Certo, já prevejo a objeção: “ Mas estes são problemas antro pológicos, culturais, éticos, não dizem respeito ao objeto de estudo da Geografia. Afinal, a Geografia não pode estudar/ensinar tudo". De fato, a Geografia não pode fazê-lo e seria absurdo exigir-lhe esforço semelhante. Como focalizar, entretanto, a etnia do brasileiro margi nalizando a sua significação social? Esta atitude eqüivale pura e simplesmente a destruir o seu sentido por meio da análise que diz persegui-lo. Que Geografia queremos ensinar? Os professores, claro, não estamos de modo algum satisfeitos com esta geografia. Sentimos que ela não traduz a verdade do espaço e podemos comprovar a cada dia em sala de aula que esta ausência de verdade acaba sendo igualmente sentida pelos alunos. A desva lorização da Geografia não é apenas institucional (patrocinada pela escola), mas também de status científico, estimulada pela indigência cognitiva da Geografia dominante. Muitas vezes nos autocriticamos porque os alunos desvalorizam a Geografia que recebem, como se o problema fosse de competência ou incompetência individual de cada professor. Quase sempre nos martirizamos por não encontrar uma incenti- vação capaz de superar o desinteresse do aluno, como se o problema do aluno fosse antes de mais nada psicológico. » Abrimos cada novo livro didático com a avidez de quem espera da “ disposição da matéria” e da “ motivação visual” a milagrosa capa cidade de interessar o aluno, roubando um pouquinho de seu tempo às demais disciplinas. Acolhemos cada nova técnica de ensinar como um doente desen ganado pelos médicos experimenta as rezas, as romarias, as pro messas, as ervas mais esdrúxulas e misteriosas. Já é hora de pensar a questão coletivamente. Já é hora de reconhecer que a dificuldade central não é via de regra de compe tência técnica nem de charme individual. Já é hora de “ colocar o dedo na ferida” : a própria Geografia que ensinamos. E como fazê-lo? Não basta repetir o poeta José Régio — "não sei por onde vou/mas sei que não vou por aí” . Precisamos construir uma alternativa que resgate o sentido da Geografia para nossos alunos e — por que não? — também para nós. O que buscamos é apreender e ensinar a verdade do espaço. Cabe, por isso, perguntarmos a nós mesmos: Que Geografia devemos ensinar aos nossos alunos? Uma Geografia que apenas transfere ao aluno um punhado de informações atomizadas sobre o mundo físico, econômico ou hu mano — que, de outra parte, preexistem ao processo de ensino-apren- dizagem, ao ato de pensar o espaço, como se jazessem à espera num 39 banco de perguntas e respostas — ou uma ciência (embora nem sempre de jaleco) que investiga e pesquisa o espaço — logo, no plano pedagógico, o produz — como um todo integrado, em que o econômico, o físico, o humano sejam estudados em sua tensão social e, mais que isso, histórica? Continuaremos a "informar" aos nossos alunos que existem tan tos e tais fatos, que tal situação apresenta este e aquele dado em si, sem explicar-lhes a razão de ser de cada segmento do espaço — ou vamos agora transcender a simples observação e catalogação de infor mações para trabalhar com os nossos alunos sobre o processo de produção social do espaço, cujas raízes estão deitadas na divisão social do trabalho e, conseqüentemente, nas relações sociais de pro dução? Prosseguiremos descrevendo o espaço e o homem como entida des distintas, um estudado no capítulo "estrutura física” , outro no capítulo "população” , como se o espaço não fosse resultado perma nente da ação do homem sobre a natureza, ou já estamos dispostos a subverter estas categorias positivistas e correr o risco de criar outras e distintas categorias, que dêem conta da totalidade contradi tória do espaço que ensinamos? Continuaremos a negar o caráter político — em sentido lato — da Geografia, ou seja, do elenco de dados que ela descobre e inter preta no espaço regional, nacional ou internacional, ou estamos decididos a assumir esse caráter e não obscurecer nunca, não apenas em plano filosófico, moral, mas no ensino cotidiano da Geografia (isto é, no que diz respeito ao nosso programa, nossos manuais didá ticos, às nossas indicações de pesquisa e t c . . . ) , a pergunta — a quem serve a Geografia? Persistiremos em trabalhar com conceitos-chave do tipo região ou zona como se fossem espaços autonômos, auto-explicáveis, ou vamos de fato extrair do conceito de Estado (e não apenas "governo" ou "administração” ) todas as conseqüências metodológicas que ele reclama? E, por último, cabe ainda perguntar a nós mesmos: a Geografia que desejamos ensinar pretende considerar o aluno como um sujeito social concreto (portanto, com uma espécie própria de saber que não pode ser ignorada no processo de conhecimento da ciência geo gráfica) ou simplesmente como um objeto passivo, neutro, recebedor de informações que aniquilariam este saber prévio oriundo da expe riência social imediata? Esta é a opção que cabe a todos nós — professores de Geografia — fazer. O presente trabalho de pesquisa e análise supõe a opção 40 antipositivista, a opção por uma Geografia, na palavra de Milton San tos, dialética. Pretendemos explorar justamente, dentro dos marcos dessa Geografia, a um só tempo social e histórica, o papel do saber do aluno e sua integração, que acreditamos necessária, com o saber que a Escola preteVide levá-lo a adquirir. Creio que é preciso ensinar uma Geografia que considere o homem como sujeito e não como objetodo processo histórico. Que não separe, enfim, a sociedade da natureza, e que, se eventualmente a separar (numa etapa específica de investigação), não fragmente esse saber, perdendo a sua dimensão de totalidade. Que possamos trans mitir aos nossos alunos uma Geografia que sirva aos interesses deles e não dos detentores de poder. Para nós, esta questão se liga intimamente à maneira de tratar a concepção de espaço com que o aluno chega à Escola, a sua percepção do espaço oriunda da vivência direta, da experiência imediata. E se vincula igualmente à percepção que o aluno traz consigo sobre a lógica própria do mundo do trabalho. Capítulo III ESPAÇO REAL: CONTANDO NOSSAS HISTÓRIAS, NOSSA GEOGRAFIA Aí nós lá vai viajando, “Aí nós lá vai viajando, v ia jando... E elas falando que a madrugada estava longa, que era muito cedo, que a Estrela Dalva estava muito alta . . . " José Mariano Sou filho de lavradores, primeiro filho. Então, como diz, nasci pobre, mas pobre mesmo. Meu pai mexia com roça. Nasci em Santa Maria do Suaçui! Acho que é . . . Mata, não é? Zona da Mata! Então minha mãe foi ajudar o meu pai, me levava para a roça, pequeno ainda, chegava lá, me colocava debaixo de uma árvore, uma bananeira a s s im . . . Lugar mais preferido, e por lá eu dormia, e quando dava fome eu tinha de mamar. Quando eu tinha oito meses de idade eu tive uma febre. Eles falam antigamente marinha, é febre amarela, não é? Então ali eu quase morri. E lá assim, fui crescendo. . . São seis irmãos! A terra não era de meus pais. Era terça. Plantava e de três partes meu pai tinha duas e o dono da terra tinha uma. E assim a gente foi vivendo, vivendo. Meu pai, muito trabalhador, foi traba lhando, trabalhando. Era fazenda pequena! Tamanho médio. O dono dava a terra simplesmente e meu pai plantava. No fim da colheita, suponhamos se tivesse cem alqueires de milho, por exemplo, o dono tinha trinta e mèu pai tinha setenta; não é uma espécie de terça? Lá nessa roça onde a gente morava eu trabalhei até os dezoito anos! A vida não tinha vantagem, não. Sofria demais, apanhava demais. Era muito novo, sete anos, já ia para a roça ajudar meu pai. Então quando dava época de mês de junho, ele me levava para a roça para plantar milho com ele. Tinha que plantar uma quarta — aqueles balaio grande. Então, toda viagem que ele dava, eu tinha que dar junto com ele. Meu balaio era menor, na verdade, eu tinha que pôr de lado. Assim que ele terminava o dele, que completava uma rama, ele fazia 10 alqueires, aí ele media o meu em outra rama. Eu tinha que estar sempre junto com ele. Rama é um lote de milho. Porque juntava as espigas, vai lá e faz um monte. E semppe trabalhando. Eu via as outras crianças brincar, não podia brincar; tinha vontade de estudai, não podia. Vim estudar depois que eu vim embora para aqui. Eu sempre trabalhando, toda vida vida fui trabalhador. Sei que quando foi em 69 meu pai largou a casa. E eu, sendo o mais velho, tive que pegar a casa. Aí foi outra dose porque os irmãos, todas são irmãs. Só o mais novo, que é o caçula, é homem. Nasceu na época que ele saiu de casa em 1969. Meu pai ficou beirando lá pros lados mesmo, mas não entrava em casa mais não. Aí fiquei segurando a barra. Foi em 71, parece, os políticos montaram um MOBRAL lá na roça com o intuito de colher voto, entende, aí entrei no Mobral. Fiz cursinho do Mobral, passei, aí fiquei lá uns tempo. O patrão era de partido con trário e queria que a gente votasse com ele, mas como a gente não quis, então fomos obrigados a deixar o terreno dele. Ele era do PDS, não é! E lá, inclusive, em 72 tinha outro nome este partido, era ARENA e MDB. Então eles votava com o MDB e ele com a ARENA. Aí a gente não aceitou as idéias deles e tivemos que deixar as terra dele. Aí, eu, aproveitando ojensejo, pedi ao candidato e ele mandou buscar a mudança da gente e viemos para a cidadezinha, Santa Maria. Tra balhei lá um ano, um ano e pouco, até na época da eleição. Trabalhava fora, só ia em casa dia de sábado. Quando chegava meu dinheiro não tinha nem jeito de pegar nele. Minha mãe ficava em casa trabalhando para os outros. E eu lá na roça, então pegava coisa no armazém em meu nome. Quando chegava para acertar, muitas vezes tava devendo. Pensei assim: — ‘‘isto não tá certo, isso não dá para mim” . Aí, um dia falei com ela: — ‘‘eu vou embora.” — ‘‘Quê que você vai fazer? O que que nós vamos fazer aqui sem você?" Falei assim: — “ não, vocês se viram aí, porque eu vou dar meu jeito” . Quando é um belo dia, eu arrumei um dinheiro emprestado, acho que foi até oitenta cruzeiros na época, comprei a passagem e vim embora para aqui. Nunca tinha saído, tinha vindo perto de São João Evange lista, por ali só. Não conhecia mais nada. Chegando aqui, foi a coisa mais estranha do mundo entrar nesta cidade, os prédios cresciam, não s e i . . . Parece que eu tava des cendo para o centro da terra, que eu vou descendo, principalmente ali na Antônio Carlos, por que a chegada é por lá. Então, * medida que você vai descendo, os prédios vão só crescendo. Então, quer dizer, a rua parece que v a i . . . A rua . . . A gente tem impressão que a rua é que tá descendo. Quando cheguei na Rodoviária, a única coisa que eu pude fazer era levantar a cabeça, olhar para cima e girar. Falei assim: “ E agora, para onde que eu vou?” Eu tinha o endereço na mão, não é? Mas por sorte minha, a hora que acabo de descer do ônibus tinha um conhecido lá de minha terra, que tava lá. Fale i : “ Oba, você aqui? Para onde você quer ir?" Falei: “ Quero ir pi •'a. . . Não sei nem aonde que eu estou!” — “ Ah, vamos pegar um áxi — vamos pegar um táxi que ele te leva.” Aí nós fomos. / | 45 Peguei o carro com o único restinho de dinheiro que eu tinha, custou a dar. Cheguei lá no pessoal que eu tinha que ir. Achei tudo estranho, pessoal tudo prendado. Pessoas ativas, entende? Todo mundo sabia conversar, todo mundo na brincadeira e eu cheguei assim e eles aproveitaram, tiraram o sarro mesmo, um bocó de roça, não é? Isso foi há uns nove anos. Porque eu tinha entrado na risada deles sem saber, eles riam de mim e eu sem saber que eles riam de mim, ria também. Pois, com isso, fui me adaptando. Antes, achava uma coisa estranha, tudo diferente, depois eu me acostumei, aí saí para procurar um serviço porque senão não tinha com quem andar, quem andaria comigo. Dinheiro, não tenho. Aí marquei bem esse morro ali de c ima . . . Morro do Lixo, ali onde era o antigo lixo! Conjunto Santa Maria. Então estou tranqüilo, estou na base desse morro aqui. Subi ele, passei por cima, bem aqui pelo asfalto, acho que não dá para perder não. Desci até no Coração de Jesus, subi, atravessei Santo Antônio, São Pedro, passei lá pelo Anchieta e fui sair lá no mercado distrital da Barroca, Afonso Pena. Fiquei procurando serviço. Quer dizer, sempre eu procurava também um morro, porque de um morro eu avistava o outro. Quando entrava na baixa, não perder, não é? Cheguei lá, conversei com o cara. Tinha um monte de má quina trabalhando. Pedi serviço para ele. Falou assim: “ Pelo seu jeito tô vendo que está vindo da roça. Quando você procurar serviço, não procura boca, entende, se você procurar boca eles vão apro veitar de sua simplicidade e vão te mandar para a Mannesmann. Lá é que você vai encontrar boca e por sinal você vai encontrar é boca de forno” . Quer dizer, eu procurava uma boca de serviço, um lugar para eu trabalhar. Que era costume de lá na minha terra, tinha uns cara que sempre falavam boca de serviço. Mas a boca de serviço que eles diziam, trabalhavam no garimpo. Então aí já era local no túnel, eles falavam boca. Eu vim com aquela na cabeça onde era o contrário. Aí, de lá não deu nada certo. Nisso, já era meio-dia, eu com uma fome que Deus dava, falei: “ O jeito é andar” . Desci outravez, saí na Contorno ali, subi ela; saí lá no Colégio Batista, lá em cima. De lá eu tornei a avistar o morro cá em cima. Daqui eu estou vendo, desço reto aqui e saio lá. Com aquilo na cabeça, tornei a descer outra vez, subi no Padre Eustáquio, lá em cima, lá perto da igreja de São Francisco. De lá tornei avistar o morro, tô bem perto. Aí já tava dando a tardinha, não quis mais andar para lá. Falei: “ Eu vou descer por aqui mesmo” . Desci no Minas Brasil, passeio perto da Católica, ali no Dom Cabral, já tava de tardinha. Passei perto de uma obra, conversei com o encarregado de lá. Ele falou: “ Tem serviço aqui, o serviço é bruto, você tem que trabalhar mesmo” . Falei: “ Não senhor, eu preciso trabalhar, vim da roça e t a l . . . não tenho ninguém aqui, sou sozinho, então tenho que arrumar um jeito para mim” . Aí ele falou: “ Então você pode vir amanhã cedo” . Fiquei todo satisfeito. Tinha três dias que eu estava aqui, aí comecei a trabalhar. Serviço estranho, quer dizer, o peso eu não estranhava porque já era acostumado com serviço pesado. Mexia assim com burro, sempre mexia com burro, boi. Comecei a trabalhar, lá fui ficando, ficando, f icando. . . Tinha que medir cascalho, medir a brita, medir a areia, tudo, colocar lá, a gente mesmo misturar, pegar água. Então, na hora de pegar o cimento, que era pior, eu muito fraco, um saco de cimento de 50 qui los. . . No dia de pegar ele eu dançava uma roda em volta dele — fazia das tripas coração. Tinha que pegar com medo de perder o serviço. Tinha dia que largava o serviço de tarde, ficava assim pensando.. . Tinha até preguiça de ir embora de lá onde trabalhava porque já era tarde. Com isso fui me acostu mando, acostumando. E trabalhei com eles um ano e oito meses. Eu, toda vida, fui assim curioso. Por exemplo, se alguém faz alguma coisa e não conheço, sempre procuro observar. Mexia nos caixotes dos pedreiros de lá, ficava em volta deles observando como que assentava tijolo. E de vez em quando assentava algum. Depois, quando foi chegando o final da casa, já comecei a pegar na colher, trabalhar direitinho, e fui lutando. Depois, quando eu vim aqui para o Coração de Jesus, fizemos uma casa ali na Francisco Arantes. Aí já quase não mexi com serviço bruto não, trabalho na colher, um aqui, outro ali, sempre coisa pequena, mas fazendo. Saí de lá, e tra balhando e estudando. Saí de onde eu estava e ficava no próprio local de serviço, quer dizer, morava na obra e ali mesmo trabalhava, não é? Ali pertinho do Estadual, pensei: “ Assim eu vou estudar” . Fui lá no Dom José Gaspar, fiz uma prova lá, passei para o 2.° ano. Aí comecei, fiz 2.°; 3.°; 4.°; 5.°. Aí tirei o diploma direto, sem bomba. Na 5.a série eu tomei bomba, tomei e repeti, passei, fiz a 6.a, tomei bomba, tornei a repetir. No meio do ano eu saí. Isso já foi agora. . . 79 me parece, ou 78. Foi 79, porque 80 eu não fiz nada. Então minha cabeça tava descansada, o corpo também. Fiquei um ano parado. Foi em 81, fiz o Curso de Mestre de Obra na Escola de Engenharia, passei, e consegui o serviço aonde eu trabalho. E daí eu falei: “ Tenho que estudar porque agora vou lidar com pessoas de um nível mais elevado” . Por isso eu vim para aqui de noite. Eu trabalho no setor de obras — trabalhava na Maranhão com Aimorés. Mas aí já vem o engenheiro conversar comigo, talvez chega um visitante que vem conversar comigo. Porque enquanto você é um simples empregado da obra, essas pessoas não te procuram para nada não. É a gente que está lá em cima, como se diz, no comando do serviço. Aí um quer uma informação, outro quer outra, e você tem que ter um jeito melhor para tratar as pessoas. Muitas vezes você fala uma palavra para a 47 pessoa, para você, pra gente. Para mim não é nada, mas preciso ver se ofendeu a pessoa, sem saber que está ofendendo. Aí eu senti que deveria estudar mais e estou tentando. Mas antes disso, depois que eu vim para aqui, fiquei um bocado de tempo sem saber se estudava a 5.a. Depois saí da 5.a, terminou a obra e assim que eu apanhei a profissão, eu saí da companhia dessas casas, e entrei na firma onde eu trabalho hoje. Aí eu já não podia ficar mais na obra, que era prédio grande, pois eles não aceitava. Então tive que arrumar um barraco mesmo lá no Conjunto. Eu morava sozinho, tinha chegado em casa depois de onze horas, fazer janta para mim jantar, tirar a marmita para o outro dia. Eu senti aquilo muito perigoso. Então, daí tinha um outro cara que veio lá da minha terra e que morava sozinho, quer dizer, no próprio local de serviço. A casa já tava no fim, ele chegou cansado, ligou o fogão, pôs as panelas para cozinhar e deixou elas. Foi deitar para descan sar e dormiu, a casa toda fechada. Não sei se a panela secou. A pa nela de pressão estourou e apagou o fogo, mas o gás continuou evaporando. Quando é no outro dia, a turma chega para trabalhar, chama Jorge daqui, chama Jorge dali e nada de ele aparecer. Quando eles atinaram de subir e olhar pela janela, que era vidro transparente, ele tava estirado no chão, próximo do fogareiro dele, sangue pelo nariz, pela boca e ele já tava morto. Ele tinha rastro de sangue. Quando ele acordou, tentou sair. Ele tava sem jeito e não conseguiu mais. Isso ainda me fez mais medo ainda. Aí eu fui e busquei minhas irmãs. Mas foi um tal de sufoco, porque aqui elas não conheciam nada. Minha mãe já tinha vindo aqui, mas só mesmo assim por vir. Não tinha costume de rodar aí. Foi outro sufoco, mas daí a gente foi lutando, trabalhando e ela também passou a ambientar, começou a trabalhar, graças a Deus. Da vida que eu tinha lá e da vida que eu tenho aqui, considero rico, graças a Deus. Tem o barraco dela, eu tenho o meu. Eu tenho o meu lote. E se não vale nada, deve tá valendo uns setecentos mil, mais ou menos. De forma que de roça eu não tenho saudade não. Lá na roça, passa meses e entra meses, você lidando com as mesmas pessoas, e não muda nada. Aqui na cidade não, costuma passar meses sem ver a mesma pessoa, ao menos que se vá procurar aquela pessoa. Então eu já acho assim. Porque tem aquele ditado: peixe pequeno procura água grande. Aqui é tudo caro na verdade, mas, sei lá, o dinheiro é mais fácil. Você consegue pegar mais dinheiro que na roça, porque na roça, só em fim de ano. Porque na roça é o seguinte: se você tem um jeito de trabalhar sem dever patrão, tudo bem. Agora, quando você deve ele, muitas vezes você tem que deixar a sua plantação morrer para cuidar da dele, não é? Porque ele fala: “ Ah! você me deve. Você tem que me pagar” . Como é que você vai pagar, você não 48 m tem outro jeito de pagar. Outra coisa que me mata também: supo nhamos, eu não tenho recursos para tocar a minha lavoura, então eu vou só no paiol do patrão e ir buscando, cada um alqueire de cada coisa que eu pego lá; eles fala é vender na folha — pois é, minha planta tá bonitinha, coisa e tudo. Falo assim: "Eu te dou um dinheiro e você me dá dois na colheita". E assim vai indo, vai indo, vai indo, você vai buscando. Quando pensa que não, quando você colhe . . . só para ele levar, não sobra nada mesmo depois. Então foi aonde eu pensei: não, vou sumir daqui. Aqui, a relação com patrão é muito pouca, a gente conhece o engenheiro administrativo da obra. Agora, o chefe conhece assim: só de vista. Dialogar mesmo, muito pouco. Talvez faz uma pergunta ou outra, mas é só. A gente se sente assim tipo uma pessoa oprimida. Quer dizer, é a mesma coisa de um cara trabalhar num restaurante ou o mordomo, por exemplo. Talvez ele pega tanta coisa boa, mas nem tudo ele come, só tem o prazer de levar para os outros. Aqui é isso: a gente faz tanta coisa boa e no fim, depois de tudo terminado, não tem nem. . . Você não pode nem parar perto, muitas vezes. Se você pára assim é suspeita. Então é uma coisa chata para a gente também, mas infelizmente é a
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