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Reflexões sobre o Tempo

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Tempos[2: Transcrito do Jornal “O Globo”, edição de 30 de julho de 2009, p.7.]
“Eu morro ontem
... Nasço amanhã
Ando onde há espaço
- Meu tempo é quando”.
Vinicius de Moraes, “Poética”.
Cármen Lúcia Rocha[3: Cármen Lúcia Rocha, à época, Ministra do Supremo Tribunal Federal (STF).]
Uma amiga tem uma dúzia de relógios. E nenhum tempo. Seu tempo é nunca, sua pressa, sempre. Ela reclama do tempo todo o tempo. Aprendi que tempo não é questão de relógio, mas de prioridade. Alguém já viu uma pessoa apaixonada não dispor de tempo para encontrar o ser amado? E alguém já não se viu sem tempo para o desagrado ou para o desafeto?
O aprendizado do tempo – como o do espaço – vem do começo. O bebê aprende a noção do tempo pela sua necessidade vital: há a hora da fome e a do alimento. O choro é reclamo pelo tempo negado e o que nele no momento certo não veio. Carência do leite e do colo. O feto não tem e nem precisa da noção de tempo. O corte do cordão umbilical marca o início do “sentimento do tempo”. O mais é aprendizado.
Aprende-se, desde cedo, haver tempo para cada coisa. E aprende-se mais, que se há de respeitar o tempo, porque a ele nada se impõe. Respeitar o tempo é respeitar a si mesmo e ao outro.
Aprende-se a conter a fome, quando se sabe que há hora certa da comida. Mas não se tem noção de tempo quando a fome esbarra na incerteza do que comer. Aprende-se a suportar o sono e a adiar o dormir, a calar o grito porque é momento de ouvir; aprende-se que o tempo corre diverso quando é hora de alegria e quando a dor se eterniza. Ainda que os ponteiros apontem minutos iguais.
Diz-se que o tempo mudou. O homem é que mudou. Não vivemos tempo de mudanças, mas mudanças de tempos. As máquinas cada vez mais velozes viriam para que cada um tivesse mais tempo para si mesmo e para o outro. No entanto, passa-se mais e mais tempo escravo delas. Senhoras de mais tempos nossos, as máquinas se multiplicam.
Fico lembrando minha mãe: ela não tinha computador. Mas tinha uma penteadeira. Os sete filhos não lhe tiravam o tempo preciso de se assentar e se olhar. Via o seu tempo traduzido nas linhas que ela de certo notava brotarem e vicejarem em seu rosto. A banheira devia mostrar-lhe o corpo que mudava até o fim. Ela tinha hora para cada coisa, para cada gesto, para cada pessoa que desenhava a sua paisagem humana. Não se estranhava, decerto, em cada tempo e em cada mudança em sua vida. Quem não tem tempo para se ver enxerga de verdade o outro? Pergunto-me ciente de ser de uma geração que, em geral, nem ao menos curte o banho; toma uma ducha. E com água, escorre sem se perceber também a vida e o tempo de prestar atenção no que vai e não volta. Tempos sem tempo. Mal me dou conta de que minha cabeça vai ficando branca, porque o espelho três por quatro enquadra apenas um rosto curvado com o celular num dos ombros, colado ao ouvido, atenta/desatenta ao que escuto e falo: não tenho tempo de me ver por inteiro.
Meu tempo é depois. Mas será que há um depois quando todos os agoras são tão imperceptivelmente vividos nesta eterna falta de tempo? Tempos idos e vividos, diziam os antigos... Não há como lidar com o ido. Por isso é de se pensar em como seguir vivendo nestes nossos apressados tempos. O que viver nem sempre é escolha humana. Como se vive é opção de cada um. “Encontro você depois, pois estou atrasada” é o nosso até logo. Que nem sempre se faz logo. Às vezes é nunca. O poeta tinha razão: meu tempo é quando... Um quando que, às vezes não chega.

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