Baixe o app para aproveitar ainda mais
Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original
Maria Celina Bodin de Professora Associada do Departamento de da PUC-Rio. Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ. DANOS À PESSOA HUMANA Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais RENOVAR Rio de Janeiro. São Paulo. Recife 4Q tiragem - setembro 2009 RESI't;ITC o AUTOR CÓPIA Em 28 de março de 2001, o Senado francês adotou uma emenda para complementar o artigo 16 do Code Civil com uma nova alínea, cuja redação estabelecia: "Nul n'est receva- ble à demander une indemnisation du seul Jait de sa naissan- ce." A emenda, porém, foi rejeitada na Assembléia Nacional em 17 de abril do mesmo ano. Tais e tantas dificuldades, no que tange a encontrar a me- dida adequada de proteção da pessoa humana através do me- canismo da responsabilidade civil, servem apenas para confir- mar a consolidação do principal objetivo do Direito Civil atual: o pleno desenvolvimento do projeto de vida de cada pessoa. Trata-se, na verdade, de reafirmar, com Paul Valéry, que "o que há de melhor no novo é o que responde ao desejo mais antigo"; por mais antigo, neste caso, tome-se a busca pela efetivação, tão ampla quanto possível, da conclamação de Pico della Mirandola, feita seis séculos atrás, segundo a qual "nada é mais magnífico na terra do que o homem". 263 a Ministra Elisabeth Guigou (Ministério do Emprego e da Solidariedade) advertiu sobre a possibilidade de inserir a questão no âmbito de outro Projeto de Lei, sobre os direitos dos doentes, que se encontrava em vias de ser aprovado pelo Senado. Outro Projeto de Lei, nO 3.268, de 26.09.2001 (disponível em .. http://www.assemblee-nat.fr/proposi- tions/pion3268.asp"), foi apresentado pelos deputados Georges Sarre e Jean-Pierre Chevenement e, com a finalidade de "garantir a igual dignida- de de toda vida humana", também propôs a inclusão de alínea ao artigo 16 do Code Civil: "Nul ne peut se prévaloir d'un prejudice du fait d' être né". 263 G. PICO DELLA MIRANDOLA, Discurso sobre a dignidade do homem, cit., p. 47 e ss. Assim começa a famosa Oratio Ioannis Pici Mirandulani Concoriae Comitis: "Li nos escritos dos Árabes, venerandos padres, que, interrogado Abdala Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espetáculo mais maravilhoso neste cenário do mundo, tinha respondido que nada via de mais admirável do que o homem." 140 3 o que é e o que não é dano moral Da vez primeira em que me assassinaram Perdi um jeito de sorrir que eu tinha [ ... ] -QUINTANA 3.1 Conceito e características do dano indenizável; - 3.2 Danos patrimoniais e danos extrapatrimoniais; - 3.3 Novas espécies de dano; - 3.4 A "injustiça" do dano; - 3.5 O dano moral segundo a metodologia civil-constitucional. 3.1. Conceito e características do dano indenizável Tradicionalmente, define-se dano patrimonial como a di- ferença entre o que se tem e o que se teria, não fosse o evento danoso. A assim chamada "Teoria da Diferença", devida à reelaboração de Friedrich MOMMSEN, converteu o dano numa dimensão matemática e, portanto, objetiva e facilmen- te calculáveF64. A importância desta construção hoje nos escapa, de tal modo estamos acostumados a pensar o patrimônio como um conceito dado, quase como se fosse proveniente da natureza das coisas. Atribui-se, no entanto, originariamente a F.-C. VON SAVIGNY, o precursor da cientificidade do Direito265, a 264 F. MOMMSEN, Zur Lehre von dem Interesse, apud H. HATTENHAUER, Conceptos fundamentales deI derecho civil, cit., p. 104, o qual traduz do original a seguinte passagem: "La expresión id quod interest hace refer- encia a una equivalencia, o ajuste, que es precisamente la que sirve de base ai concepto de interés. Por interés en sentido jurídico entendemos, concretamente, la diferencia entre el monto deZ patrimonio de una persona en uno momento dado y el que tendría se no haberse producido la irrupción de un determinado suceso danoso." 265 Com essa expressão, quer-se fazer referência à extraordinária dedi- cação de Savigny (1779-1861) à renovação da ciência jurídica, salientan- do a presença marcante de sua "atitude científica" diante do Direito. De fato, segundo afirma F. WIEACKER, História do direito privado moderno, 2. ed., Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 435-455, espec. p. 437- 438: "Os escritos programáticos de Savigny não constituem investigações 143 separação nítida entre a pessoa e seus bens - propriedade e obrigação, integrando esses últimos sob um conceito unitá- ri0266 a fim de construir um "objeto" que pudesse ser protegi- do contra os atos ilícitos267 . F oi a partir de então que o Direito Patrimonial foi alçado à categoria de esfera de poder ju.ridica- mente consolidada, de uma pessoa sobre o seu meio, "proje- tando-se o seu poder ao externo, para além das fronteiras naturais de seu ser"268. Muitas são as teorias a conceituar o dano como pressupos- to inafastável da responsabilidade civil. De fato, quando se trata do direito da responsabilidade civil, usualmente se pon- tua: se não há dano, não há o que indenizar269 . histórico-filosóficas, mas manifestos de política jurídica e cultural. Eles são importantes do ponto de vista da renovação da ciência jurídica do direito comum que Savigny tinha desde o início conscientemente em vista." Wieacker anota a intenção de Savigny de tornar-se um reforma- dor, um "Kant da ciência do direito", "propósito admiravelmente tornado realidade" (p. 438). 266 Para esta concepção, v. B. WINDSCHEID, Diritto delle Pandette (1886), trad. C. Fadda e P. Bensa, Torino: Unione Tipografico, 1902, v. 1, Parte Prima, parágrafos 10 e 42, respectivamente p. 1 e p. 181, em que define patrimônio como uma unidade juridicamente relevante, não re- presentando a soma de suas partes mas a unidade delas, o "todo" como coisa em si, contraposta às suas partes. 267 H. HATTENHAUER, Conceptos fundamentales del derecho civil, cit., p. 103, afirma que, se os conceitos de pessoa e de ato ilícito já haviam sido suficientemente elaborados, faltava ainda encontrar um conceito co- mum, a unir os bens violáveis por atos ilícitos. 268 F.-C. VON SAVIGNY, System, 1, apud H. HATTENHAUER, Conceptos fundamentales del derecho civil, cit., p. 103. 269 Christian VON BAR, professor da Universidade de Osnabrück foi coordenador, de 1993 a 1996, de um grupo de estudos com vis;as à elaboração de um código civil europeu. Daí resultou, entre outros, um documento intitulado A common european law of torts, cit., disponível em .. http://www.cnr.it/CRDCSlframes19.htm ... acesso em 20 jul. 2000. Sobre esse trabalho, o Professor comentou: "One area which as a result of 144 Aquele que sofre um dano moral deve ter direito a uma\ satisfação de cunho compensatório. Diz-se compensação, I pois o dano moral não é propriamente indenizável; "indeni-I zar" é palavra que provém do latim, "in dene", que significa I devolver ( o patrimônio) ao estado anterior, ou seja, eliminar ~ o prejuízo e suas conseqüências -- o que, evidenteme~te, ~ão ( é possível no caso de uma lesão de ordem extrapatnmomal. \ Prefere-se, assim, dizer que o dano moral é compensável, em- \ bora o próprio texto constitucional, em seu artigo 5°, X, se ) refira à indenização do dano moral. ' Até relativamente pouco tempo atrás, entendia-se como contrário à moral e, portanto, ao Direito, todo e qualquer pagamento indenizatório em caso de lesão de natureza extra- patrimonial se esta se delineava unicamente como sofrimen- to. O chamado pretium doloris (preço da dor) era inadmissí- vel nos ordenamentos de tradição romano-germânica, com my inadequacies almost drove us to despair was that of the law relating to 'loss' and 'damage'. I appreciated only very late that even the term 'Scha- den' ('danno', 'dommage' and 'damageJ is not susceptible to a useable general definition but is rather a term which fulfils a multitude of different roles in different circumstances, and which may have a different meaning in each. It affects both the fact and.extent of liability; as 'restitutionary damage' it plays a role in the distinction between unjust enrichment and the negotiorum gestio; itcan relate primarily to compensation of value or in naturalis and even these may be seen as being opposites. In England a distinction is drawn between 'damage' and 'damages', in other systems, between 'Entschadigung and Schadensersatz'. That which some systems treat as a part of 'non-material loss', others see as the wholly separate 'danno biologico'. The same factual circumstances may in one system be treated as physicalloss, in another as pure economic loss - a distinction which yet other systems do not even recognize. Imagine the relief therefore, when amongst all this confusion, the English lawyer in the group introduces his account by explaining that whilst it may be difficult to describe an elephant, anyone who sees one will instantly recognize it. " 145 exceção dos casos expressamente previstos pelo legislador civiPo. Para além da "imoralidade" em se atribuir um valor pecu- niário a bens que não são "objeto", mas sim "sujeito", ou dele são parte integrante, as motivações para tal posicionamento apresentavam uma aparência de substancialidade, a começar pela dificuldade em se verificar a existência e a extensão do dano sofrido. Como seria possível mensurar os sentimentos de alguém? Relevava ainda, então, a transitoriedade do dano, pois as dores da alma, o tempo (e só ele) se encarregaria de curar. Além disso, objetivamente, pensava-se ser obstáculo também a indeterminação do número de vítimas do evento danoso, pois todo aquele que sofrera estaria, em princípio, legitimado. O dano não era passível de medida, e a fronteira que separava o universo de lesados daqueles que nada haviam sofrido, se é que existia, era tênue demais para ser enxergada. A regra lógica subjacente, e que se fazia valer, era a de que aquilo que não se pode medir, não se pode indenizar: a inde- nização é, justamente, a "medida" do dano. Assim, tanto do ponto de vista moral quanto do ponto de vista dos instrumen- tos jurídicos disponíveis, a reparação do dano moral parecia impraticável. 270 No Código Civil de 1916,norrnalmente são indicados os artigos 1537 e ss, A Alemanha manteve-se fiel a essa tradição, indenizando apenas os casos expressos nas leis, como determina o parágrafo 253 do BGR No entanto, todos os países de tradição romano-germânica que promulgaram constituições no século XX, e nas quais se inscreveu o princípio da dignidade humana, têm utilizado tal princípio como o funda- mento para determinar a indenização pelo dano moral. A propósito do caso al,~mão, F. WIEACKER, História do direito privado moderno, cit., p. 600-610, espec. p. 606, sustenta: "[.,,] passou-se a extrair dos direitos fundamentais da dignidade humana (artigo 1 o da Lei Fundamental) a norma implícita de que esta dignidade exige, por necessidade lógica, a indenização do dano moral." 146 o que fez com que aqueles argumentos, que ainda hoje, podem ser considerados coerentes, ao menos sob o aspecto lógico-racional, se tornassem completamente irrelevantes em relativamente curto espaço de tempo? Não ficou mais fácil solucionar os empecilhos indicados, nem mais simples aceitar que um sentimento de dor possa gerar dinheiro. As controvérsias no direito da responsabilidade civil têm essa marcante característica: antes de serem técnicas, elas são decorrentes das diferentes concepções acerca do princípio de responsabilidade, princípio estrutural da vida em sociedade e que, como tantas vezes repetido, se consubstancia em concei- to mais filosófico-político do que jurídico271 . O princípio de- corre diretamente da idéia de justiça que tem a sociedade na qual incide. E o que mudou neste caso foi exatamente a cons- ciência coletiva acerca do conceito de justiça: o que antes era tido como inconcebível passou a ser aceitávet e, de aceitável, passou a evidente. Se era difícil dimensionar o dano, em questão de poucos anos tornou-se impossível ignorá-lo, Se era imoral receber alguma remuneração pela dor sofrida, não era a dor que estava sendo paga, mas sim a vítima} lesada em sua esfera extrapatrimonial, quem merecia ser (re)compensada pecuniariamente, para assim desfrutar de alegrias e outros estados de bem-estar psicofísico, contrabalançando (rectius, abrandando) os efeitos que o dano causara em seu espírito. Apesar do reconhecido aspecto não-patrimonial dos da- nos morais, a partir de determinado momento tornou-se in- sustentável tolerar que, ao ter um direito personalíssimo seu atingido, ficasse a vítima irressarcida, criando-se um desequi- líbrio na ordem jurídica, na medida em que estariam presen- 271 F. EWALD, A culpa civil, direito e filosofia, cit., p. 171, 147 tes o ato ilícito e a lesão a um direito (da personalidade), por um lado, e a impunidade, por outrom . Veio a Constituição de 1988 consolidar tal posição, já então majoritária, acerca do pleno ressarcimento do chamado dano moral puro273 . A radical mudança de perspectiva aqui apenas reflete, e não poderia ser diferente, a metamorfose dos papéis do lesan- te e do lesado no sistema da responsabilidade civil em geral. Se antes a vítima era obrigada a suportar, corriqueiramente, o dano sofrido - dano cuja causa, na maior parte das vezes, se atribuía não a seu autor, mas ao destino, à fatalidade, ou à vontade de Deus -, já em meados de século XX passaria ela, a vítima, a desempenhar a função de protagonista da relação jurídica instaurada a partir do evento danoso, conseguindo garantir de forma cada vez mais eficaz o seu crédito, isto é, a reparação. A mudança foi feita suavemente, logrando-se assegurar primeiramente indenização por morte de filho menor que 272 Nas palavras de W. MELO DA SILVA, O dano moral e sua reparação, Rio de Janeiro: Forense, 1955, p. 561, "Na ocorrência de uma lesão, manda o direito ou a eqüidade que se não deixe o lesado ao desamparo de sua própria sorte." 273 A legislação brasileira - e isto já vinha sendo sustentado por nume- rosos autores muito antes do advento da Constituição de 1988 - ampa- rava o dano moral em diversos dispositivos de lei. No Código Civil, encontram-se o artigo 76 (interesse moral); o artigo 159 (reparação do dano); o artigo 1.538 (lucros cessantes, multa equivalente à diária peitaI); o artigo 1.542 (arbitramento judicial); o artigo 1.543 (preço afetivo); o artigo 1.550 (cálculo da indenização); o artigo 1.553 (fixação da indeni- zação por arbitramento). Na legislação especial, pode-se destacar as se- guintes leis, hoje já revogadas: a) Lei nO 5.250/67, que assegura a liberda- de de pensamento e a integridade moral; b) Lei nO 4.737/65, que dispõe sobre o Código Eleitoral; c) Lei nO 4.117/62, Código Brasileiro de Tele- comunicações; d) Lei nO 5.988/73, Lei dos Direitos Autorais. 148 não contribuía para a economia doméstica. As razões alegadas para o descabimento anterior eram no sentido de q~e o me- nor não sendo fonte de receita, representava matenalmente um~ despesa a mais na família, e a mera conjectura de au:ílio futuro não configurava ganho certo e efetivo. Na evoluçao, o Recurso Extraordinário nO 59940, relatado pelo Ministro Aliomar Baleeiro e julgado em 26 de abril de 1966, repre- sentou o paradigma da transição da irresponsabilidade à res- ponsabilização, embora ainda através de um fundamento p~ trimonial para a indenização274 . Assim se expressou o M1- nistro: o homem normal, que constitui família, não obedece apenas ao princípio fisiológico do sexo, mas busca satisfaçõ.es espiri- tuais e psicológicas, que o lar e os filhos proporciOnam ao longo da vida e até pela impressão que se perpetua nel~s [ ... ] Se o responsável pelo homicídio lhe frustra a expectatIva e a satisfação atual, deve repar~ção, ainda que seja a indenização de tudo quanto despenderam para um fim lícito maLogrado pelo dolo ou culpa do ofensor. Perderam, no mínimo, tudo quanto investiram na criação e educação dos filhos, e que se converteu em frustração pela culpa do réu. Sucessivamente, o Supremo Tribunal considerou que a perda do filho representava uma frustração do investiment? dos pais, que teriam a expectativa de ser amp~ar~dos na Vel~l ce o que significava atribuir um valor economlCO potenCIal , d h ~. f t 275 para a família ou a expectativa e gan o economlCO u uro . 274 Para a análise percuciente deste julgado, cf. C. E. DO RÊGO ~ONTEI RO FILHO, Elementos de responsabilidade civil por dano moral, Clt., p. 10 e ss. d . I ' . 275 Para o percurso histórico desta evolução jurispru enCla, v. as pagl- 149 Tratava-se, na verdade, de construir o conceito jurídico de dano moral indenizável no Direito brasileiro. Em nossa época - é voz corrente - há muitíssimas mais ocasiões de risco, de perigo, em decorrência, não só mas tam- bém, do acentuado desenvolvimento tecnológico; neste sen- tido, conclui-se ter havido um real incremento das possibili- dades de causação de danos. A esta constatação deve acres- centar-se uma outra, mais relevante nesta sede: numerosas são as situações danosas antes ignoradas, seja pelo ordena- mento jurídico, seja pela própria vítima, e hoje tuteladas com fundamento no princípio da dignidade humana, suscitando a imprescindível reparação. Se a noção de risco serve a explicitar a historicidade do conceito de responsabilidade civil - através, por exemplo, da perda completa de valor jurídico, já referida, do princípio da ideologia liberal segundo o qual "nenhuma responsabilida- de sem culpa" -, tal característica, a da historicidade, se estende também a seu elemento ineliminável, o dano, fazen- do com que se tenha que reconhecer que cada época tem os seus danos indenizáveis e, portanto, cada época cria o instru- mental, teórico e prático, além dos meios de prova necessá- rios para repará-los. Mas, para tanto, como já se indicou, será preciso, também, fazer a escolha acerca de quem deverá in- denizar276 . Recentemente, este processo ocorreu com a reparação de vítima de objeto lançado ou caído em lugar indevido - hipó- nas de S. RODRIGUES, Direito Civil. Responsabilidade civil, 13. ed., São Paulo: Saraiva, 1993, p. 207-220. 276 Ver, no Capo 1, as referências aS. RODOTÀ, Il problema della respon- sabilità civile, cit., p. 74. Segundo Rodotà, o dano, em si e por si,não é nem ressarcível nem irressarcível; será a sucessiva ligação a um sujeito determinado que vai servir a torná-lo ressarcível. ISO tese prevista no artigo 1.529 do Código Civil. Também aqui se tratou de buscar um meio melhor de proteger a vítima de danos injustamente sofridos, embora se tivesse, neste caso, de se desviar, de maneira significativa, da letra do dispositivo do Código Civil. Novamente, quem solucionou a difícil pro- blemática foi a jurisprudência, encarregada da aplicação da lei no seu cotidiano. O princípio maior da responsabilidade civil contemporânea estava presente: a vítima não pode ficar irres- sarcida. Em julgamento de Recurso Especial, o STJ teve a oportu- nidade de, ao se manifestar em caso de ferimento a pessoa que exercia a profissão de modelo, ensejando também dano estético, estabelecer a "responsabilidade social" do condomí- nio, com base no entendimento de que "impõe-se ter em vista que o zelo permanente da comunidade condominial no sentido de impedir, evitar ou desencorajar semelhantes ocor- rências é o que se há de exigir do próprio condomínio", de modo que a agressão anônima deve ser por ele suportada277 . Esta tese contraria o expresso teor do artigo 1.529 do Código, segundo o qual "aquele que habitar uma casa, ou parte dela, responde pelo dano proveniente das coisas, que dela caírem ou forem lançadas em lugar indevido". Como se sabe, o condomínio, isto é, a assembléia dos con- dôminos, é composta pelos proprietários dos apartamentos (as unidades habitacionais, como as designa o artigo 9° da Lei 277 STJ, REsp. 64.682, 4" Turma, ReI. Min. Bueno de Souza, julgo em 10.11.1998, publ. no Dl de 29.03.1999 e na Revista dos Tribunais n. 767, p. 194. Eis a ementa do acórdão: "Reponsabilidade Civil. Reparação de danos. Lançamento ou queda de objeto, a partir de janela de unidade condominial, situada em edifício de apartamentos, que atingiu transeun- te nas proximidades do local. Impossibilidade da identificação do autor do ilícito - Reparação devida pelo condomínio, conforme interpretação do artigo 1529 do Código civil." 151 na 4.591/64), enquanto a responsabilidade, segundo a estipu- lação legal, diz respeito aos moradores, isto é, às pessoas. q~e efetivamente habitam as unidades, que podem ser propneta- rios, locatários, comodatários, usufrutuários etc. Em acórdão de agosto de 1988, relatado pelo Desembar- gador José Carlos Barbosa Moreira, a 5a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidira que "o condo- mínio não tem legitimidade passiva ad causam" J por caber a responsabilidade" aos moradores das unidades de que se pos- sa cogitar a origem" do projétil, mormente quando não entra qualquer consideração de culpa in vigilando. Havia, então, três teses, sustentadas em casos desta espé- cie. A primeira, capitaneada por C. M. DA SILVA PEREIRA, afirmava, em síntese, que "cumpre, nesse caso, apurar de onde veio o objeto causador do dano", porque cada unidade autônoma é tratada como objeto de propriedade exclusiva. Assim, "de exclusão em exclusão, é necessário assentar que, se de um edifício coletivo cai ou é lançada uma coisa, a inte- ligência racional do artigo 1.529 não autoriza condenar todos os moradores, rateando a indenização ou impondo-lhes soli- dariedade. "278 A segunda tese, sustentada, entre outros, por J. DE AGUIAR DIAS, atribuía, inicialmente, responsabilidade soli- dária aos moradores, para, em seguida, esclarecer: "é eviden- te que todos os moradores corresponde a todos os habitantes a cuja responsabilidade seja possível atribuir o dano. Nos grandes edifícios de apartamentos, o morador da ala oposta às em que se deu a queda ou lançamento do objeto ou líquido d . , I I d "279 não pode, ecerto, presumIr-se responsave pe o ano. 278 C. M. DA SILVA PEREIRA, Responsabilidade civil, cit., p. 113 e ss. 279 J. DE AGUIAR DIAS, Da responsabilidade civil, cit., v. II, p. 440 e ss. 152 Esta foi a teoria esposada pelo Desembargador Barbosa Mo- reira no acórdão de 1988. Ambas as teses descritas têm em comum a preocupação, então corrente, de cuidar para que a vítima fosse ressarcida, desde que a responsabilidade pudesse ser, de alguma manei- ra, atribuída ao "morador", segundo o disposto no Código Civil. Nos anos 90, porém, a própria 5a Câmara Cível do Tribu- nal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu que objetos que repe- tidamente caem de edifício de apartamentos geram a obriga- ção de indenizar, ao argumento de que "os condôminos têm transgredido :tais regras de comportamento habitacional, le- sando terceiros que se encontram na calçada do edifício, com evidente culpa do Réu que tem se descuidado da vigilância que lhe é inerente"280. A opção jurisprudencial de responsabilizar o condomínio, se não obedece à literalidade da norma contida no artigo 1.529 do Código Civil, gerando maiores encargos aos condô- minos, vem em socorro da vítima, para quem qualquer outra solução, embora mais fiel à letra da lei, seria de difícil realiza- ção. Imagine-se aquele que, nos tempos atuais, atingido por um projétil oriundo de edifício de numerosos andares e apar- tamentos, tivesse que proceder à citação judicial de todos os moradores, ou mesmo de uma ou mais colunas de onde pre- sumivelmente teria partido o objeto: a hipótese é implau- sível. A jurisprudência brasileira aderiu maciçamente, ao longo da última década, à terceira tese, entendendo que eventual 280 Ap. Cív. 1.904/90, ReI. Des. Hélvio Tavares, em 07.08.1990. O Desembargador Barbosa Moreira presidiu, sem no entanto proferir voto, o julgamento, que foi unânime. 153 rateio entre os moradores das colunas mais propícias ao lan- çamento constitui tarefa interna corporis, posterior, da as- sembléia condominial, sob pena de deixar a vítima irressarci- da281 .Por outro lado, a "responsabilidade social" do condomí- nio, referida pela decisão do STJ, tem escopo mais amplo, somente encontrando fundamento, conforme já aludido, no dever de solidariedade social consagrado na Constituição Fe- deral. O que se quis demonstrar com este exemplo - prove- niente, aliás, de um tipo de responsabilidade objetiva cuja matriz desponta no Direito romano (a actío effusis et dejectis) _ é que o problema da responsabilidade civil não consiste na investigação ou na descoberta do "verdadeiro" autor do fato danoso. Ele diz respeito, apenas, "à fixação do critério graças ao qual se pode substituir a atribuição automática do dano por um critério jurídico"282; isto é, trata-se de estabelecer quem, em que condições e no âmbito de que limites deve suportar o dano. 281 Neste sentido decisão da 3" Câmara do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, ReI. Juiz Carvalho Viana, no julgamento da Ap. Cív. 571.287- 2, julgo em 25.10.1994 e pubI. na Revista dos Tribunais n. 714, p. ~5~. Este trecho merece destaque: "A repartição dos prejuízos pelos condoml- nos é questão de economia interna do condomínio apelante, que poderá se ressarcir de todos os condôminos, ou exclusivamente daqueles de cujas unidades foram lançados os objetos, ou apenas das unidades de final '2', e '4'. O que não é razoável é que o apelado haja de investigar de qual unidade partiu a agressão ao seu imóvel, se toda a massa condominial é responsável pelo dano proveniente das coisas. que caírem ou forem lança- das do prédio em que habitam e quem a representa é o condomínio." 282 S. RODOTÀ, Ilproblema della responsabilità civile, cito V. tb. Capo I, supra. 154 3.2. Danos patrimoniais e danos extrapatrimoniais C umpre delinear o que vem sendo incluído no conceito de dano moraF83. Os indivíduos são titulares de direitos per- sonalíssimos que integram suas personalidades e não detêm qualquer conotação econômica. Os danos a esses direitos fo- ram chamados de morais, pois "atingem atributos valorativos, ou virtudes, da pessoa como ente social, ou seja, integrada à sociedade". Desta forma, considerou-se que o dano moral dizia respeito exclusivamente à reparação de violações causa- das a direitos da personalidade284. Foram, então, os danos morais conceituados como as lesões sofridas pela pessoa hu- mana em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patrimô- nio ideal o conjunto de tudo o que não é suscetível de valora- ção econômica28S . 283 Como é notório, a reparação do dano moral teve início por meio de condenações a valores simbólicos por força da concepção então dominan- te acerca dá imoralidade contida no pretium doloris. Não há lugar, atual- mente, para controvérsias quanto à ressarcibilidade do dano moral, em face do que consta da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, incisos Ve X, onde se lê claramente que é assegurado o direito à indeni- zação por danos morais. Todas as objeções quanto à ressarcibilidade do dano moral, portanto, parecem hoje interessantes somente do ponto de vista de sua evolução histórica, pois a reparabilidade dos danos morais não somente é matéria constitucionalmente prevista, mas configura-se ali através de cláusula pétrea. 284 Neste sentido, entre outros, O. GOMES, Obrigações, 11. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 271, segundo o qual "dano moral é [ ... ] o constrangimento que alguém experimenta em conseqüência de lesão em direito personalíssimo, ilicitamente produzida por outrem." Para PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito civil, São Paulo: Borsoi, 1968, t. 22, p. 181, "sempre que há dano, isto é, desvantagem no corpo, na psique, na vida, na saúde, na honra, ao nome, no crédito, no bem-estar, ou no patrimônio, nasce o direito à indenização." 285 W. MELO DA SILVA, O dano moral e sua reparação, cit., p. 561. 155 Ilustre doutrina, em posição divergente, afirmou: A distinção entre dano patrimonial e dano moral não decorre da natureza do direito, bem ou interesse lesado, mas do efei- to da lesão, do caráter de sua repercussão sobre o lesado286 . Tanto é possível ocorrer dano patrimonial em conseqüência de lesão a bem não patrimonial, como dano moral por efeito da ofensa a bem materiaU87 Esta opinião, diversamente da primeira, conceitua o dano moral como o efeito não-patrimonial da lesão - já não o restringindo, portanto, aos direitos da personalidade - e vem sendo seguida pela maioria dos autores que se ocupam do tema, assim como pela jurisprudência majoritária288 . Modernamente, no entanto, sustentou-se que cumpre distinguir entre danos morais subjetivos e danos morais obje- tivos. Estes últimos seriam os que se refeririam, propriamen- te, aos direitos da personalidade. Aqueles outros "se correla- cionariam com o mal sofrido pela pessoa em sua subjetivida- de, em sua intimidade psíquica, sujeita a dor ou sofrimento intransferíveis [ ... ]"289. Dessa maneira, acabaram interligan- 286 Dano moral é, para esta doutrina, "a reação psicológica à injúria, são as dores físicas e morais que o homem experimenta em face da lesão" (J. DE AGUIAR DIAS, Da responsabilidade civil, cit., v. II, p. 741). 287 J. DE AGUIAR DIAS, Da responsabilidade civil, cit., v. II, p. 740 e ss.: "O dano moral é o efeito não patrimonial da lesão de direito e não a própria lesão, abstratamente considerada." O entendimento do autor baseia-se na doutrina de Alfredo MINOZZI, Studio sul danno non patrímo- niale (danno morale), Milano: Soe. Ed. Libraria, 1901. . . . . 288 V, entre tantos, S. RODRIGUES, Direito civil: Responsabdldade cwd, cit., e M. H. DINIZ, Responsabilidade civil, 18. ed., São Paulo: Saraiva, 1997. 289 M. REALE, O dano moral no direito brasileiro, in Temas de direito 156 do-se as duas teorias antes referidas: tanto será dano moral reparável o efeito não-patrimonial de lesão a direito subjetivo patrimonial (hipótese de dano moral subjetivo), quanto a- afronta a direito da personalidade (dano moral objetivo) I sen- do ambos os tipos admitidos no ordenamento jurídico brasi- leiro. Assim, no momento atual, doutrina e jurisprudência do- "' ~inantes têm como adquirido que o dano moral é aquele que, \1 mdependentemente de prejuízo material, fere direitos perso- ' nalíssimos, isto é, todo e qualquer atributo que individualiza cada pessoa, tal como a liberdade, a honra, a atividade profis- (> sional, a reputação, as manifestações culturais e intelectuais, entre outros. O dano é ainda considerado moral quando os efeitos da ação, embora não repercutam na órbita de seu pa- trimônio material, originam angústia, dor, sofrimento, triste.:. za ou humilhação à vítima, trazendo-lhe sensações e emoções negativas29o . Neste último caso, diz-se necessário outrossim , , que o constrangimento, a tristeza, a humilhação, sejam inten- sos a ponto de poderem facilmente distinguir-se dos aborre- positivo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 23. A distinção é trazida à baila por L. R. FERREIRA DA SILVA, Da legitimidade para postular indenização por danos morais, Ajurís, v. 70, p. 186-189. 290 A propósito, afirma Y. S. CAHALI, Dano moral, 2. ed., rev. atualizo e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 20-21: "Na realidade, multifacetário o ser anímico, tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado, qualifica-se, em linha de princípio, como dano moral; não há como enu- merá-los exaustivamente, evidenciando-se na dor, na angústia, no sofri- mento, na tristeza pela ausência de um ente querido falecido; no despres- tígio, na desconsideração social, no descrédito à reputação, na humilha- ção pública, no devassamento da privacidade; no desequilíbrio da norma- lidade psíquica, nos traumatismos emocionais, na depressão ou no desgas- te psicológico, nas situações de constrangimento moral." 157 cimentos e dissabores do dia-a-dia, situações comuns a que todos se sujeitam, como aspectos normais da vida cotidia- na291 . Em contribuição à imprescindível tarefa de sistematiza- ção do dano moral como conceito jurídico a ser diferenciado do dano patrimonial, cabe assinalar os seguintes aspectos, considerados majoritariamente como distintivos entre as duas espécies de danos: i) a identificação, ií) os critérios de ~ reparação, iii) a forma de liquidação. No que tange à i) identificação do dano, enquanto o dano patrimonial exige a prova concreta do prejuízo sofrido pela vítima292 , no dano moral não é necessária a prova para a con- 291 Assim, por exemplo, o bloqueio de cartão de crédito, a demora na aceitação de cheque por ocasião de compra, a exaltação de ânimos em reunião de condomínio e a ofensa que se configura em "dar a língua" a alguém foram hipóteses descartadas pela jurisprudência como configura- doras de dano moral, porque este há de ser significativo o bastante para gerar real sofrimento ao ofendido (5 a Cc. TJRJ, Ap. Cív. 1.577/97, DO de 26.06.1997, v. u.; IV Grupo de cc. TJRJ, Em. Inf. Ap. Cív. 4.414/94, reg. em 11.04.1996, fls. 1.051; 8a Cc. TJRJ, Ap. Cív. 6.550/95, reg. em 06.03.1996, fls. 5.736; P Cc. TJRJ, Ap. Cív. 5.078/95, reg. em 15.03.1996, fls 7.509). Citando acórdão de sua pró- pria lavra, o Desembargador S. CAVALlERI, Programa de responsabilidade civil, cit., p. 104, aduz: "Destarte, estão fora da órbita do dano moral aquelas situações que, não obstante desagradáveis, são necessárias ao exercício regular de determinadas atividades, como a revista de passagei- ros nos aeroportos, o exame das malas e bagagens na alfândega, ou a inspeção pessoal de empregados que trabalhem em setores de valores." Mais recentemente, o STJ, no REsp. 215.666, 4a Turma, ReI. Min. Cesar Asfor Rocha,julg. em 21.06.2001 e pubI. no DJ de 29.10.2001, assentou: "O mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano moral, mas somente aquela agressão que exacerba a naturalidade dos fatos da vida, causando fundadas aflições ou angústias no espírito de quem ela se diri- ge." 292 STJ, REsp. 143.974, 3a Turma, ReI. Min. Eduardo Ribeiro, pubI. no 158 figuração da responsabilização civil, bastando a própria viola- ção à personalidade da vítima:293 . Em conseqüência, depois de restar superada a máxima segundo a qual "não há responsabi- lidade sem culpa", tendo-se encontrado na teoria do risco um novo e diverso fundamento de responsabilidade, desmentido se vê hoje, também, o axioma segundo o qual não haveria responsabilidade sem a prova do dan0294, substituída que foi a comprovação antes exigida pela presunção hominis de que a DJ de 23.08.1999: "o ressarcimento das despesas de luto e funeral são indeferidas, à míngua de qualquer comprovação do efetivo desembolso." No REsp. 194.395, 3a Turma, ReI. Min. Aldir Passarinho, julgo em' 11.09.2001 e pubI. no DJ de 04.02.2002, acerca das despesas com luto, funeral e jazigo perpétuo, o relator observa: "Muito embora previsível a ocorrência de gastos dessa natureza, imprescindível a sua comprovação e se a Corte a quo entendeu que a mesma inexiste, desapareceu, por conseguinte, o direito respectivo, não se podendo verificar, em sede especial, se estão ou não presentes nos autos os elementos fáticos atinen- tes à espécie." 293 STJ, Resp. 85.019, 4a Turma, ReI. Min. Sálvio de Figueiredo Teixei- ra, julgo em 10.03.1998 e pubI. no DJ de 18.12.1998: "Dispensa-se a prova do prejuízo para demonstrar a ofensa ao moral humano, já que o dano moral, tido como lesão à personalidade, ao âmago e à honra da pessoa, por sua vez é de difícil constatação, haja vista os reflexos atingi- rem parte muito própria do indivíduo - o seu interior. De qualquer forma, a indenização não surge somente nos casos de prejuízo, mas tam- bém pela violação de um direito" (grifou-se.) 294 No entanto, v. o excelente artigo de J. MOSSET ITURRASPE, La prue- ba en los juicios de danos. Revista de Derecho Privado y Comunitario, v. 14, Prueba - II, p. 33 e ss, segundo o qual "la víctima dei dano injusto debe accionar y debe probar. El debate sobre qué debe provar - si todos los extremos o pressupostos o sólo algunos de ellos; si la carga pesa exclusi- vamente sobre ella, la víctima, o es compartidà por él agente danador - es el tema actual y la cuestión más apasionante." E o autor conclui: "Colocar toda la carga sobre el danado es una manera idónea de quitar o aI menos limitar el derecho aI resarcimiento, por las dificultades y comple- jidades que la prueba acarrea. Repartir la carga es, además de una solución lógica, de toda justicia y equidad" (p. 34-35). 159 lesão a qualquer dos aspectos que compõem a dignidade hu- mana gera dano moral. Com efeito, esta é a tendência de nossos tribunais e da jurisprudência já consolidada no STJ295. Se até há alguns anos ainda era relativamente freqüente a exigência da comprova- ção, chegando a haver julgados, em sede de dano moral; esti- pulando que tia prova da ofensa deve ser muito clara, extreme de dúvida, para fácil compreensão de sua extensão pelo julga- dor, e quando tal tipificação não ocorre, não pode resultar em qualquer indenização [ ... ]"296, hoje o pensamento dominante vai no sentido oposto e pode ser assim resumido, como faz S. CAVALIERI: Neste ponto a razão se coloca ao lado daqueles que enten- dem que o dano moral está ínsito na própria ofensa, decorre da gravidade do ilícito em si. Se a ofensa é grave e de reper- cussão, por si só justifica a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado. Em outras palavras, o dano mo- ral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato. ofensivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natu- ral, uma presunção hominis ou facti, que decorre das regras de experiência comum; provado que a vítima teve o seu nome aviltado, ou a sua imagem vilipendiada, nada mais ser- 295 "Na concepção moderna da reparação do dano moral, prevalece a orientação de que a responsabilidade do agente se opera por força do simples fato da violação, de modo a tornar-se desnecessária a prova do prejuízo em concreto" - assim no REsp. 173.124, 4a Turma, ReI. Min. Cesar Asfor Rocha, julgo em 11.09.2001 e pubI. no Dl de 19.11.200l. 296 TlRJ, V Grupo de Câmaras Cíveis, Emb. Inf. na Ap. Cív. 2.098/95, ReI. Des. Luiz Carlos Perlingeiro, v. u., julgo em 21.03.1996 e pubI. no DO de 29.08.1996, p. 158. O caso em questão versou sobre pedido de reparação em razão de divulgação, pela imprensa, de fatos tidos como desabonadores. 160 lhe-á exigido provar, por isso que o dano moral está in re ípsa; decorre inexoravelmente da gravidade do próprio fato ofensivo, de sorte que, provado o fato, provado está o dano moral. 297 Esta ilação, porém, tem tido como conseqüência lógica, a ser oportunamente criticada, o entendimento subjacente de que o dano moral sofrido pela vítima seria idêntico a qualquer evento danoso semelhante sofrido por qualquer vítima, por- que a medida, nesse caso, é, unicamente, a da sensibilidade do juiz, que bem sabe, por fazer parte do gênero humano, quanto mal lhe causaria um dano daquela mesma natureza. Agindo desta forma, porém, ignora-se, em última análise, a individualidade daquela vítima, cujo dano, evidentemente, é diferente do dano sofrido por qualquer outra vítima, por mais que os eventos danosos sejam iguais, porque as condiç?es pessoais de cada vítima diferem e, justamente porque d1fe- rem, devem ser levadas em conta298. Na primeira perspectiva, seria razoável (porque talvez mais justo) defender a criação de uma tabela, um rol no qual seriam especificadas todas as espécies de danos morais consi- deradas merecedoras de tutela pelo ordenamento jurídico, ao , d d 1 299 J' lado das quantias a serem pagas por ca a um e es . a na segunda perspectiva, ao contrário, será preciso ajustar a inde- ·d d d ,. 300 ' t nização em conforml a e com a pessoa a v1tIma ,e e es e, 297 S. CAVALlERI, Programa de responsabilidade civil, cit., p. 80. 298 Cf. a opinião de L. DIÉZ-PICAZO, Derecho de danos, cit., p. 329, para quem o dano moral não pode ser "simplemente presumido por los tribuna- les como consecuencia de lesiones determinadas", aduzindo ainda que ele "se suponga, asimismo, que es igual para todos. Por el contrario, entende- mos que debería ser objeto de algún tipo de prueba." 299 Sobre um tabelamento do gênero, v., infra, Capo 5.2. 300 Sobre esta conseqüência, V. Capo 5.4. 161 justamente, o problema maior da reparação do dano moral na atualidade: quais são os critérios que devem servir a compor a indenização? No que se refere aos ii) critérios de reparação, a indeniza- ção no dano patrimonial sempre abrangeu a extensão do dano, não importando o grau de culpa do agente30I . Quanto aos danos morais, os critérios de reparação têm sido basica- mente a reprovação da conduta, isto é, a gravidade ou inten- sidade da culpa do agente, a repercussão social do dano, as condições socioeconômicas da vítima e do ofensor, critérios estes a serem examinados posteriormente302 . Freqüente, ain- da, é a advertência no sentido de que, embora a indenização pelo dano moral deva ser a mais ampla possível, não deve chegar ao extremo de gerar um enriquecimento sem causa ou constituir fonte de lucro para a vítitna303 . Enfim, quanto à iii) liquidação, se, para o dano patrimo- nial, permanece válida a expressão das "perdas e danos", que está a significar os danos emergentes e os lucros cessantes304, para o dano moral, a liquidação fica exclusivamente ao arbí- trio do juiz, não estando ele adstrito a qualquer limite legal ou tarifa pré-fixada. Com efeito, a amplitude do dispositivo 301 Ainda hoje, para os danos patrimoniais, vigora o princípio de que a indenização abrange a extensão do dano, independentemente do grau de culpa, de modo que uma culpa levíssima pode dar causa a elevada repara- ção. O parágrafo único do artigo 944 do novo Código Civil de 2002, todavia, estabelece que o juiz poderá, se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, reduzir equitativamente a indeniza- ção. 302 Para o exame desses critérios, v. Capo 5. 303 Entre os tantos, v., mais recentemente, o Resp. 254.073, 4a Turma, ReI. Min. Aldir Passarinho, publ. no DJ de 10.08.2002. 304 V. artigo 1.059 do Código Civil de 1916 e o correspondente artigo 402 do Código Civil de 2002. 162 constitucional acerca da indenização por dano moral fez com que, tanto em doutrina como na jurisprudência, viessem a ser considerados inconstitucionais todos os limites previstos em lei para tal reparaçã0305 . A ratío jurís das mencionadas distinções não deve ser en- tendida em termos conseqüenciais, ou a posteriori, e sim em termos de princípios: com efeito, à luz dos valores constitu- cionais em vigor, o dano causado a bens materiais há de ser, em tudo e por tudo, diferenciado e de menor importância do que o dano (injusto) causado à pessoa humana306, cuja digni- dade foi posta no ápice do ordenamento jurídico, merecendo a mais ampla proteção e tutela. O direito da responsabilidade civil, neste particular, encontra-se em perfeita coerência com a normativa constitucional. Dá causa o inadimplemento de obrigação assumida con- tratualmente à compensação de dano moral? De fato, não há quem não se aborreça, seriamente inclusive, por ocasião da quebra de expectativa na relação contratual, cuja culpa, aliás, é presumida como sendo do devedor inadimplente. No en- tanto, e estranhamente - dado o seu posicionamento já his- tórico em relação ao progressivo alargamento das hipóteses de ressarcimento -, não tem o STJ considerado, em regra, esse tipo de desgosto como gerador de dano extrapatrimo- nial. 305 V., por todos, S. CAVALIERI, Programa de responsabilidade civil, cit., p. 78. 306 Bem expressou esta idéia o Min. Menezes Direito, da 3a Turma do STJ, por ocasião do julgamento do Agravo de Instrumento 270042, julgo em 03.12.1999 e publ. no DJ de 17.12.1999, p. 693, a respeito de apresentação de cheques que haviam sido extraviados de agência bancá- ria: "O atentado aos direitos relacionados à personalidade, provocado pela inscrição em banco de dados, é mais grave e mais relevante do que a lesão a interesses materiais." 163 o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, ao relatar tal hipótese, ponderou: Embora a inobservância das cláusulas contratuais por uma das partes possa trazer desconforto ao outro contratante - e normalmente o traz - trata-se, em princípio, de descon- forto a que todos podem estar sujeitos, pela própria vida em sociedade. Adificuldade financeira ou a quebra de expecta- tiva de receber valores contratados não toma a dimensão de constranger a honra ou a intimidade, ressalvadas situações excepcionais.307 Mais condizente com a definição de dano moral -. como sentimento da dor - assumida por nossos tribunais, no en- tanto, estaria a posição que sustenta não haver qualquer razão jurídica para se restringir a reparação do dano moral às hipó- teses de culpa aquiliana: 307 STJ, REsp. 202.564, 43 Turma, ReI. Min. Sálvio de Figueiredo Tei- xeira, julgo em 02.08.2001 e publ. no DJ de 01.10.2001. Os tribunais estaduais oscilam, ora aceitando, ora rejeitando o dano moral na chamada "culpa contratual". O TJly, Ap. Cív. 8.845/98, 23 CC, publ. no DO de 18.02.1999, já decidiu: "E incabível dano moral quando se trata de dis- cussão sobre validade de cláusulas contratuais ou mesmo inadimplemen- to delas ou mora no seu cumprimento." Na doutrina, reforçando a tese da admissibilidade, Y. S. CAHALI, Dano moral, cit., p. 460, afirma: "Estamos em que com a absorção contínua das informações concernentes à ratio jurídica do dano moral a jurisprudência tenda a se afirmar no seu cabi- mento em caso de inadimplência, aferindo-se caso a caso a oneração psíquica decorrente da frustração de um ajuste que, como suposto em todo contrato, nasce para ser cumprido." Do mesmo. modo, H. e L. MAZEAUD; J. MAZEAUD; F. CHABAS, Leçons de droit civil: obligations, cit., p. 410: "se fondant sur une opinion qui avait cours dans notre ancien droit, quelques auteurs ont refusé toute réparation du préjudice moral au créancier qui se plaint de l'inexécution d'un contrato Cette opinion est aujourd'hui abandonnée en doctrine." 164 [ ... ] Assentado por suposto que um contrato; uma relação obrigacional convencionada nasce para ser cumprida, e cria compreensivelmente a expectativa psicológica desse cum- primento, não há porque negar, em princípio, que a frustra- ção do ajuste inadimplido cause ou possa causar sentimentos angustiantes ou psicologicamente sensíveis à parte inocen- te. 308 Se se tem do dano moral, porém, o entendimento de que só a lesão à dignidade humana - em seus principais substra- tos, isto é, a liberdade, a igualdade, a integridade psicofísica e a solidariedade -, pode a ele dar ensej 0 309, resolve-se trivial- mente a questão. Dificilmente um contrato não cumprido chega a atingir tal profundidade. Se, porém, a alcançar, have- rá direito à indenização. 3.3. Novas espécies de dano Seja pelo significativo desenvolvimento dos direitos da personalidade31O, seja pelas vicissitudes inerentes a um insti- tuto que só recentemente tem recebido aplicação mais inten- sa, a doutrina vem apontando uma extensa ampliação do rol de hipóteses de dano moral reconhecidas jurisprudencial- mente3!!. 308 J. L. COELHO DA ROCHA, O dano moral e a culpa contratual, in Doutrina Adcoas (1015158), p. 126-127. 309 V. Capo 2.5, supra, e, neste Cap., o item 5. 3!0 V., por todos, G. TEPEDINO, A tutela da personalidade no ordena- mento civil-constitucional brasileiro, ora in Temas de direito civil, cit., p. 23-54. 311 Neste sentido, L. ROLDÃO DE FREITAS GOMES, Elementos de respon- sabilidade civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 425, que observa 165 Na verdade, ampliando-se desmesuradamente o rol dos direitos da personalidade ou adotando-se a tese que vê na personalidade um valor e reconhecendo, em conseqüência, tutela às suas manifestações, independentemente de serem ou não consideradas direitos subjetivos, todas as vezes que se tentar enumerar as novas espécies de danos, a empreitada não pode senão falhar: sempre haverá uma nova hipótese sendo criada. Este não é, contudo, um movimento que se dá em uma única direção. Ao contrário, concomitantemente à ampliação das possibilidades de dano moral, verifica-se também a mul- tiplicação de julgados que impedem a criação de novas hipó- teses, precedentes que poderiam inspirar uma infinidade de novas demandas, abarrotando o Judiciário e correndo o risco de banalizar a reparação das lesões de cunho extrapatrimo- nial. Nem sempre, todavia, os tribunais logram êxito em reali- zar esse duplo movimento de modo harmonioso - nem po- deria ser diferente, tendo em vista a imensa massa de julga- dos e q pouco tempo de difusão do instituto. A intenção deste item é, então, pinçar algumas decisões que demonstram tal impasse, que já foi chamado - na Itália, mas em situação que em tudo é semelhante à que enfrentamos - "a comédia da responsabilidade civil"312. "certa tendência, depois da Constituição, para esse alargamento excessi- vo, sobretudo em matérias de competência dos Juizados Especiais". 312 A. PROCIDA MlRABELLI DI LAURO, La riparazione dei danni alla persona, cit., p. 91: "La commedia della responsabilità civile (La felice metaforae di F. Galgano r .. }) si arrichisce di inedite vicende che modifi- cano la struttura e la funzione dell'illecito e, grazie anche alle nuove fattispecie di imputazione dei danni alia persona, e alla ri cerca di un piu equilibrato assetto sistematico. " 166 Como exemplo de novas situações que passaram a ser consideradas como aptas a gerar dano moral, emblemática é a decisão do STJ, que, por maioria, condenou empresa do ramo de seguros a pagar 50 salários mínimos a um segurado pelas dificuldades que ele encontrou para consertar seu carro aci- dentado. Nas palavras do relator, "sofreu o apelante cons- trangimentos de toda a natureza, obrigado que ficou a recla- mar, persistentemente, para que seu veículo fosse consertado convenientemente, bem como pela não utilização dele duran- te aquele longo período. "313 Outra decisão do STJ determinou - desta feita, por una- nimidade - que, "com base em juízo da experiência co- mum", uma instituição médica fosse condenada a indenizar uma paciente, não só pelo fato de ter produzido um diagnós- tico equivocado, mas também por tê-lo comunicado "sem a sensibilidade necessária antes de se fazer consignar laconica- mente o diagnóstico", como alude o acórdão, fazendo refe- rência aos autos. A própria ementa da decisão traz à baila esse aspecto, considerando-o componente do dano moral sofrido: Responsabilidade Civil. Exame Laboratorial. Câncer. Dano Moral. Reconhecida no laudo fornecido pelo laboratório a existência de câncer, o que foi comunicado de modo inade- quado para as circunstâncias, a paciente tem o direito de ser indenizada pelo dano moral que sofreu até a comprovação do equívoco do primeiro resultado, no qual não se fez ne- nhuma ressalva ou indicação da necessidade de novos exa- mes.314 313 STJ, REsp. 257.036, 4a Turma, ReI. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgo em 12.09.2000 e pubI. no DJ de 12.02.200l. 314 STJ. REsp. 241.373, 4a Turma, ReI. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgo em 14.03.2000 e pubI. no DJ de 15.05.2000. 167 Em caso de disparo de alarme antifurto, mesmo que o pedido (feito no valor de R$ 864.000,00) tenha visado, à evidência, o fácil enriquecimento, mesmo que a simples ale- gação de que já ocorrera outras duas vezes - sem que a con- sumidora tivesse tomado qualquer providência - seja levada, sem outras comprovações, a sério, mesmo que os empregados do estabelecimento abordem a pessoa suspeita com a delica- deza necessária e suficiente, ainda assim o STJ considera que a empresa deve indenizar. Nesse caso, o valor da indenização ficou em 50 salários mínimos e o fundamento da decisão para a reparação do dano moral sofrido foi o puro e simples soar do alarme: Também não é motivo de escusa da ré (o Wal-Mart) o fato de os seguranças terem tido comportamento adequado para as circunstâncias: ainda que gentis, a agressão já estava no alarme falso. 315 o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por sua vez, con- firmou sentença que determinara indenização por danos ma- teriais e morais em decorrência do rompimento imotivado do casamento pelo noivo, às vésperas da realização da cerimônia, com "conduta que infringiu o princípio da boa-fé". A autora da ação comprovou que, após marcada a data do casamento religioso, teve gastos com enxoval, cerimonial do matrimô- 315 STJ, REsp. 327.679, 4a Turma, ReI. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgo em 04. 12.2001 e publ. no Dl de 08.04.2002. A ementa diz: "Res- ponsabilidade Civil. Loja. Dispositivo de segurança. Mercadoria furtada. Alarme. O soar falso do alarme magnetizado na saída da loja, a indicar o furto de mercadorias do estabelecimento comercial, causa constrangi- mento ao consumidor, vítima da atenção pública e forçado a mostrar os seus pertences para comprovar o equívoco. Dano moral que deve ser indenizado. Recurso conhecido e provido." 168 nio, aparelhos eletrodomésticos, além de despesas com mate- rial de construção para levantamento da casa, sendo obrigada a desfazer-se de seu carro para fazer frente a tais gastos. Ale- gou, por fim, que, de uma hora para outra, o noivo, sem qual- quer motivo justificado, rompeu o compromisso - reque- rendo e obtendo, portanto, a reparação pelos danos material e morapl6. Em doutrina, a este respeito, observou-se ser devida a reparação: [ ... ] também na hipótese de um dos noivos romper a pro- messa de casamento semanas antes da cerimônia, quando os convites para a boda já foram encaminhados aos convidados, ou então, quando um deles simplesmente desaparece após haver assumido o compromisso sério de contrair núpcias, desconsiderando em absoluto o sentimento dooutro}17 E no entanto, é preciso logo destacar, não há ato que o ordenamento repute mais livre, mais dependente, exclusiva- mente, da vontade de ambos e de cada um dos contraentes, do que o casament0318. Por outro lado, o que significa "rom- pimento imotivado", além do fato de que não mais se tem a vontade Quridicamente protegida) de casar? Enfim, por que 316 TlRJ, Ap. Cív. 00.117.643, ReI. Des. Humberto Manes, julgo em 17.10.2001. 317 M. OTERO, A quebra dos esponsais e o dever de indenizar. Dano material e dano moral, publicado em Revista dos Tribunais n. 766, p. 103, segundo o qual, ainda, "as circunstâncias em que o compromisso foi quebrado é que faz emergir a dor, a mãgoa e, em conseqüência, o dever de indenizar". E traz como exemplo para o pedido de indenização pbr danos morais a circunstância de um dos noivos abandonar o outro no dia da cerimônia, causando-lhe enorme constrangimento. 318 V. o teor do artigo 194 do Código de 1916 e dos artigos 1.514 e 1.535 do Código de 2002. 169 razão seria necessário estar "de casamento marcado" para ob- ter a indenização? A dor e o sofrimento causados por uma separação não desejada são intensos e profundos em qualquer momento em que isso venha a ocorrer. Não se vê, de fato, como possa o pleno exercício do prin- cípio da liberdade de casar, corolário do princípio fundamen- tal de liberdade, ser ponderado desfavoravelmente em rela- ção à quebra do compromisso pré-nupcial. Na ponderação desses interesses contrapostos, não há como fazer surgir o dever de indenizar, a não ser, eventualmente, pelo prejuízo material acarretado. Outro exemplo encontra-se na determinação de repara- ção de danos decorrentes de uma disputa de bola em partida de futebol realizada em condomíni0319. O réu fora atingido por trás, provocando-lhe o autor fratura óssea e rompimento de ligamentos. A decisão da primeira instância considerou que o acidente ocorrido na disputa pela bola foi resultado da normal prática do esporte. Para o Tribunal, no entanto, em- bora não tenha havido dolo por parte do lesante, houve "des- vio da conduta esperada dos partícipes de um jogo de futebol recreativo, comprovando-se, desta forma, a imprudência do autor"320. Como já referido, contudo, a esta movimentação corres- ponde alguma reação, com os tribunais buscando também conter o aumento dos casos de dano moral. Retornando à jurisprudência do STJ, vislumbra-se exemplo paradigmático desta outra tendência em decisão que negou indenização por dano moral ao consumidor que recebeu, em sua casa, diante 319 TJRJ, Ap. Cív. 7.074, I a CC, ReI. Des. Maria Augusta Vaz M. Figueiredo, julgo em 10.07.200l. 320 A decisão está no site ''http://cartamaior.uol.com.br'', acesso em] 3 mar. 2002. 170 de vizinhos, a visita de uma equipe da companhia de energia elétrica, solicitando a apresentação da "conta de luz" devida- mente quitada321 . Em outra recente decisão - agora em primeira instância -, negou-se o pedido de indenização que um casal movera em face de rede de televisão, requerendo o pagamento de 500 salários mínimos pela exibição, durante o noticiário de maior audiência do País, de cenas do parto da autora. De acordo com a sentença, [ ... ] o que se vê das imagens veiculadas [ ... ] é, em boa verda- de, um momento feliz, do qual os autores deveriam se orgu- lhar, mercê do instante de rara beleza que viveram, privilé- gio de poucos, e não dele se utilizar para obter compensação econômica. [ ... ] Os danos de que afirmam eles terem sido vítimas [ ... ] não somente não são indenizáveis, por não se- rem ofensivos à honra pessoal de nenhum deles, como tam- bém devem ser entendidos como mera conseqüência de te- rem os autores aparecido num programa televisivo de grande repercussão e em horário nobre. 322 321 STJ, Agravo de Instrumento 305018, ReI. Min. Aldir Passarinho Júnior, julg. em 28.06.2001, ainda não publicado. No mesmo diapasão, cita-se a decisão da 3a Turma, REsp. 409907, ReI. Min. Ari Pargendler, julgo em 30.04.2002 e pubI. no DJ de 19.08.2002, segundo o qual "o débito levado a efeito em conta corrente, sem a autorização do respectivo titular, para o pagamento de conta de luz, não induz, por si só, o reconhe- cimento de dano moral, a despeito do aborrecimento que isso possa ter provocado; o dano moral apenas se caracterizaria se o lançamento do débito tivesse conseqüências externas, v.g., devolução de cheques por falta de provisão de fundos ou inscrição do nome do correntista em cadastro de proteção ao crédito." 322 Mais detalhes acerca desta decisão, proferida em 21.06.2001 pelo juiz da 273 Vara Cível Central da Comarca da Capital de São Paulo, podem ser obtidos no site da revista Consultor Jurídico, disponível em .. http://www.conjur.com.br ... acesso em 21 juI. 2001. 171 Em linhas gerais, pode-se dizer que os tribunais, já de algum tempo, vêm tentando impedir que meros aborreci- mentos do cotidiano passem a ser catalogados como gerado- res de dano moral, principalmente quando facilmente con- tornáveis por vias patrimoniais. Assim, e à guisa de exemplo, já em 1995 o Tribunal de Alçada Cível do Rio de Janeiro buscava afastar a hipótese de se indenizar, a título de dano moral, o proprietário de veículo que tivesse sofrido uma sim- ples avaria: Colisão de Veículos. Dano Moral. Inocorrência. Diárias de Locomoção. Pedido de reparação por alegado dano moral que, sem dúvida, inocorreu, já que um mero amassamento na saia traseira de um automóvel jamais poderia representar uma reparação consistente em 4 (quatro) salários mínimos, diários, em favor do autor, em período contado desde dia "anterior" ao acidente até o trânsito em julgado da sentença, como expressamente postulado pelo autor. 323 Por fim, é de se frisar que estas tendências antagônicas - ampliação e redução dos casos de dano moral- comumente entram em conflito, às vezes apresentando soluções radical- mente diferentes para casos extremamente semelhantes. A este respeito, cumpre citar o ca.so exemplar do concurso pro- movido pela emissora de rádio Eldorado, que concedeu a um famoso político o "Troféu Cara:-de-Pau", na injuriosa catego- ria Capo di tutti i capi. Pouco tempo antes, a mesma rádio outorgara a outro político o epíteto de "mentecapto do sécu- lo", chamando-o para concorrer ao mesmo troféu "Cara-de- 323 3a Câmara, Ap. Cív. 5.340/95, ReI. Des. Dauro Inácio da Silva, julgo em 27.11.1995 e publ. no DO de 03.03.1996, p. 152. 172 Pau". Enquanto este último conseguiu, na primeira instância da Justiça gaúcha, fazer condenar a emissora ao pagamento de 200 salários mínimos por danos morais324, o primeiro, cerca de dois meses depois, não obteve êxito em vara cível da capi- tal paulista325. Parece interessante, desde já, indicar, por razões de opor- tunidade, um aspecto a ser examinado no Capítulo 5, sobre os critérios adotados para compensar o dano moral. De fato, enquanto a juíza paulista considerou ausentes "o dano e a culpa"326, não havendo então o que ressarcir, a juíza gaúcha esmerou-se na condenação: 324 Porto Alegre. 33 a Vara Cível Central - Capital. Processo 00099063777-8. A sentença proferida pela Juíza Vivian Wepfli Zanelli, em 27.05.2001, diz: "Lançar a 'candidatura' do autor ao título de mente- capto do século atinge, sem margem de discussão, a sua honra subjetiva. Atribuir-lhe o troféu 'Cara-de-pau', o 'Oscar da Baixaria', é jogá-lo na vala comum com outros políticos, investigados por corrupção, por desvio de verbas, pelo cometimento de atos ilegais, fraudulentos, pelo simples fato de o jornalista não comungar de sua opinião política a respeito de deter- minado caso." A causa da premiação com o troféu teria sido a defesa pública que fez Tarso Genro à renúncia do atual Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, ao seu segundo mandato. 325 Ambos os feitos encontram-se em grau recursal. Para mais detalhes, v. o site da revista Consultor Jurídico, disponível em ''http://www.con- jur.com.br". 326 São Paulo: Capital. I oa Vara Cível Central. Processo 00099054841- 4. Na sentença da juíza Claudia Longobardi Campana, datada de 13.07.2001, lê-se: 'l .. ] o autor como personalidade pública tem suas atividades e vida pública expostas à apreciação de todos, não podendo reclamar dano moral por crítica, inclusive aquela formulada jocosamente. [ ... ] Tratando-se de matéria de cunho humorístico e crítico, não se pode imputar à ré o animus juríandi, mas tão somente a vontade de expressar manifestação crítica através da utilização do anímus jocandí. O humor tem como base o exagero de uma situação e a manifestação de pensamen- to, tem como ponto de partida a liberdade que só pode ser mitigada no 173 Posto isto, na liquidação do dano moral recorre-se ao Código Brasileiro de Telecomunicações e à Lei de Imprensa, que elegem determinados fatores a serem valorados para a justa compensação, de tal sorte que a verba encontrada repr~ sente ao autor uma satisfação tal capaz de minimizar o sofn- mento passado. Também não se pode olvidar do caráter re- pressivo da indenização e o seu objetivo desestimulador, evi- tando-se a recidiva. A intensidade do sofrimento do ofendido foi de alto grau, pois viu maculada a sua imagem perante o público ouvinte da rádio, com desprestígio inconteste; a posição social e política do ofendido também se evidenciou não apenas pelos docu- mentos acostados como também pelos depoimentos colhi- dos na fase instrutória elogiosos à sua pessoa; a empresa, de outro lado, se houve com dolo, ela que revelou inequívoca intenção de desabonar ao ratificar o seu desprezo pelo autor, chamando-o, inclusive de imbecil, na carta remetida a uma das ouvintes também retratação inocorreu. Considerando esses aspectos e mais, a capacidade econômica das partes, entendo razoável a condenação da Ré ao pagamento de 200 salários mínimos no valor vigente nesta data, com correção b ' d t 327 monetária e juros de mora a contar tam em a presen e. caso de ofensa pessoal direta, o que não ocorre no caso dos autos. A tradução feita pelo autor da expressão "Capo de Tutti I Capi" não e.rrc0.rr- tra relação com a degravação efetuada e as conclusões postas na InICIal não foram diretamente veiculadas no programa radiofônico, que em ne- nhum momento classificou o autor como chefe de mafiosos, ou atrelou o nome do autor a condutas criminosas." . _ 327 Id., ibid. Na sentença, pode-se ler ainda: "O pedido para veIculaça? de mensagem também merece acolhimento e, com efeIto, somada a indenização pecuniária, poderá melhor reparar os dan~s .ca~sados. O texto sugerido deverá ser retificado para exclUlr a palavra c.nmmosam~n te', porquanto a prática de crime só poderá ser reconheClda pelo JUlzO Criminal. Permanece no mais o texto original, que ora transcrevo para constar da presente: 'E atenção! A Rádio Eldorado ofendeu a dignidade, 174 3.4. A "injustiça" do dano o desenvolvimento de atividades cotidianas com fre- qüência causa danos a terceiros, pelo próprio e normal agir humano. A prática comercial bem sucedida tem como conse- qüência a diminuição do número de clientes e do próprio lucro daqueles que atuam no mesmo ramo, ainda que a con- corrência não ofenda os parâmetros legais. A construção de um novo edifício, sem nenhuma intenção emulativa e em to- tal consonância com as normas edilícias pertinentes, pode acarretar o fim da vista panorâmica, da incidência de luz solar ou da brisa que refrescava o vizinho. O patrão que, encon- trando-se em dificuldades financeiras, se vê obrigado a des- pedir o funcionário, ainda que o indenize nos termos legal- mente exigidos, provocar-Ihe-á um dano, se se entender este conceito como uma "idéia genérica que engloba quaisquer quebrantos econômicos, perdas patrimoniais ou gastos que se impõem a um sujeito sem que lhe tenha sido dada a oportu- nidade de decidir acerca de sua efetivação"328. Essas situações, ainda que causadoras de danos, são auto- rizadas pelo ordenamento jurídico; os danos que aí se produ- zem são, portanto, lícitos, não importando em responsabiliza- ção daquele que, apesar de ter dado causa aos prejuízos, não se afastou dos limites impostos pelo ordenamento jurídico ao pautar sua atuação. Para além da conduta irrepreensível do agente causador, porém, está a consideração, hoje igualmente a honra e a imagem de Tarso Genro, ex-prefeito de Porto Alegre, advogado e membro da Executiva Nacional do PT, frente ao público em geral e, em virtude disto, foi condenada a ressarcir os danos morais provados, e divulga esta nota como forma legal de expressar respeito a toda pessoa, e, de maneira particular, aos admiradores de Tarso Genro'." 328 Assim, L. DíEz-PrCAZO, Derecho de danos, cit., p. 294. 175 relevante, de que, nesses casos, é razoável que a vítima supor- te tais prejuízos. Por isso tais danos são também ditos, além de lícitos, não-"injustos". De outro lado, como se sabe, em situações cada vez mais numerosas, o mesmo ordenamento determina que, se forem causados danos, não obstante a liceidade da ação ou da ativi- dade, a vítima não deve ficar irressarcida. Aqui também, à primeira vista, os danos seriam "lícitos"; geram, no entanto, por determinação legal, a obrigação de indenizar. Neste caso se enquadram as hipóteses de responsabilidade objetiva, em que se inclui a própria atividade estatal, expressada nesta de- cisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em sede de Recurso Extraordinário relatado pelo Ministro Carlos Velloso e julgado em 1992: A consideração no sentido da ilicitude da ação administrati- va é irrelevante, pois o que interessa é isto: sofrendo o parti- cular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, é devida a indeniza- ção, que se assenta no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais. 329 Um exemplo da aplicação desta teoria é o caso de obra pública que interdita determinada via, provocando diminui- ção nos lucros dos comerciantes afetados pela queda do mo- vimento: os tribunais brasileiros, em alguns julgados, já deci- diram pela responsabilização do Estado, sem prejuízo da lici- tude da empreitada330. 329 Publicado na Revista dos Tribunais n. 682, p. 239. 330 Neste sentido, em sede de Apelação, a seguinte decisão da 2a CC do TJSP, ReI. Des. Cezar Peluso, julgo em 28.08.1990, in R. STOCO, Respon- sabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial, 3. ed., rev. e ampI., 176 Daí porque, há mais de duas décadas, O. GOMES qualifi- cava como "a mais interessante mudança" na teoria da res- ponsabilidade civil o que ele chamou de "giro conceitual do ato ilícito para o dano injusto", que permite" detectar outros danos ressarcíveis que não apenas aqueles que resultam da prática de um ato ilícito. Substitui-se, em síntese, a noção de ato ilícito pela de dano injusto, mais amplo e mais social"331. Cumpre, pois, identificar em que consiste a injustiça do dano, que faz nascer a exigência da indenização. Ou, em ou- tras palavras, será necessário "circunscrever a área dos danos ressarcíveis", de modo a evitar uma "propagação irracional dos mecanismos de tutela indenizatória"332. Inicialmente, é necessário precisar que a expressão é pro- veniente, não por acaso, da doutrina italiana da responsabili- dade civil. É que o artigo 2.043 do Código Civil italiano de 1942 estabelece: Art. 2.043. Qualunque fatto doloso o colposo, che cagiona ad altri un danno ingiusto, obbliga colui che ha commesso il fatio a risarcire il danno. 333 Segundo C. M. BIANCA, o debate acerca da noção de in- justiça do dano cindiu-se em duas correntes: de um lado, os São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 486: "Indenização - Respon- sabilidade Civil- Obras do Metrô - Queda do movimento de pacientes em hospital particular durante o período trienal das obras - Irrelevância de que o dano tenha origem em atividades lícitas - Verba devida - Ação Procedente - Recurso provido" (grifou-se). 331 O. GOMES, Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil, cit., p. 293 e 295. 332 L. DÍEZ-PICAZO, Derecho de danos, cit., p. 296. 333 "Qualquer fato doloso ou culposo que cause a outros um dano injus- to obriga quem cometeu o fato a ressarcir o dano." 177 que a identificavam com a antijuridicidade, ou seja, com a violação de um direito ou de uma norma, e, de outro, os que a associavam à lesão de um interesse merecedor de tutela334 . No âmbito das teses ligadas à antijuridicidade, a posição mais tradicional definia a injustiça do dano como a lesão aos direitos absolutos (oponíveis erga omnes), tais como os direi- tos reais e os direitos da personalidade. Posteriormente j essa opinião receberia crítica, influenciada pela doutrina da tutela aquiliana (ou externa) do crédito, no sentido de que o termo "injusto" indicaria a lesão a qualquer direito, absoluto ou re- lativ0335. Modernamente, contudo, buscou-se desvincular a idéia de injustiça da idéia de antijuridicidade, procurando critérios mais amplos, que englobassem também "interesses que são dignos da tutela jurídica e que, por isso, quando são lesiona- dos, façam nascer ações indenizatórias"336 para reparar os pre- juízos sofridos. Nessa ótica, vários critérios foram propostos: para Piero SCHLESINGER, os danos seriam indenizáveis quando provo- cados por um ato não-autorizado por uma norma; para Stefa- no RODOTÀ, só caberia indenização nos casos em que o inte- resse atingido fosse suscetível de tutela segundo o princípio 334 C. M. BIANCA, Dírítto cívíle, Milano: Giuffre, 1995, v. 5, p. 584. 335 C. M. BrANCA, Dírítto cívíle, cit., p. 584. Adota este posicionamen- to, entre outros, A. TRABUCCHr, Istítuzíoní dí dírítto cívíle, 27. ed., Padova: Cedam, 1985, p. 205, n. 1: "La formula che lega la nozíone dí danno íngíusto alta lesíone dí un dírítto assoluto va modernamente altar- gata oltre alta víolazione di un diritto reale o dí un dírítto delta personali- tà estendendosí la tutela aquílíana alta píu larga categoría dí ínteressí gí~rídícamente rílevantí erga omnes. Típíca e la tutela esterna del credíto, mas ví sono altrí casi." 336 L. DÍEz-PrCAZO, Derecho de danõs, cit., p. 296. 178 da solidariedade social; para Guido ALPA, seria indenizável o dano relevante, segundo uma ponderação dos interesses em jogo à luz dos princípios constitucionais337. A conceituação mais consistente, tudo indica, está nesta última consideração. O dano será injusto quando, ainda que decorrente de conduta lícita, afetando aspecto fundamental da dignidade humana, não for razoável, ponderados os inte- resses contrapostos, que a vítima dele permaneça irressarci- da. Esta parece ser a posição de M. MOACYR PORTO: Objeta-se, habitualmente, que seria antijurídico e moral- mente reprovável condenar alguém ao pagamento de um prejuízo para o qual não concorrera com a sua culpa. [Po- rém] é justo, razoável, eqüitativo impor à vítima do dano, igualmente inocente, o ônus de suportar sozinha as conse- qüências do dano causado por outrem? Em que princípio moral ou regra jurídica se apoiaria a opção favorável ao autor do dano?338 De fato, não parece razoável, na legalidade constitucional, estando a pessoa humana posta na cimeira do sistema jurídi- co, que a vítima suporte agressões, ainda que causadas sem intenção nem culpa, isto é, sem negligência, imperícia ou im- prudência. O que impede que se proteja o autor do dano em detrimento da vítima, como se fazia outrora, ou, melhor, o 337 Esta sistematização, mais detalhada, é exposta por C. M. BrANCA, Dírítto cívíle, cit., p. 585. 338 M. MOACYR PORTO, O ocaso da culpa como fundamento de respon- sabílidade cívil, disponível em .. http://www.jurinforma.com.br/arti- gos/0393", acesso em 7 jun. 2002. O autor sugere que os diversos artigos sobre o ilícito e as hipóteses em que ocorreria o dever de indenizar deveriam ser substituídos ou subsumidos num único e conciso dispositi- vo: "aquele que causar um dano injusto é obrigado a repará-lo." 179 que torna hoje preferível proteger a vítima em lugar do lesan- te, é justamente o entendimento (ou, talvez, o sentimento) da consciência de nossa coletividade de que a vítima sofreu injustamente; por isso, merece ser reparada339 . No Capítulo 1, fez-se referência à decisão da Terceira Turma do STJ, que, por 3 votos a 2, entendeu ter havido dano à imagem de famosa atriz pelo simples fato de sua divulgação não-autorizada340 . Em caso em tudo e por tudo semelhante, julgado alguns meses depois pela mesma Turma, as posições se inverteram, e, também por 3 votos a 2, assim se conside- rou: [ ... ] a imagem da autora foi reproduzida absolutamente den- tro do contexto da atividade a que se dedica, como modelo profissional. Assim, ela apenas foi vítima de danos materiais, posto não ter sofrido nenhuma lesão em sua honra ou inva- são em sua privacidade. [ ... ] Diferente poderia ser o enfoque do problema se a ima- gem da autora tivesse sido veiculada de forma grotesca ou vexatória. 341 339 Para um exemplo, o artigo 496, 1 do Código Civil português. 340 REsp. 270.730, 3" Turma, Rel pl o acórdão Min. Nancy Andrighi, julgo em 20.12.2000 e publ. no Dl de 07.05.2001, v. m. Enquanto os Ministros Menezes Direito e Pádua Ribeiro entenderam incabível a inde- nização pelo dano moral, sob o argumento de que a publicação violentara apenas o direito patrimonial à exploração da própria imagem, a Min. Nancy Andrighi e o Min. Zveiter consideraram que o jornal carioca deveria indenizar a atriz também pelo dano moral, porque ela, com o só fato da publicação não-autorizada, fora violentada em seu crédito como pessoa. O Min. Ari Pargendler desempatou a questão. 341 STl, REsp. 230.268, 3" Turma, ReI. Min. Pádua Ribeiro, julgo em 13.03.2001 e publ. no Dl de 12.07.2001, v. m., vencidos os Min. Nancy Andrighi e Waldemar Zweiter. A decisão ficou assim ementada: "Dano moral. Dano à Imagem. Fotografias usadas em publicação comercial não autorizada. I - O uso da imagem para fins publicitários, sem autorização, pode caracterizar dano moral se a exposição é feita de forma vexatória, 180 Em junho de 2002, no julgamento do Recurso Extraordi- nário 215984, o STF, reiterando posição anteriormente to- mada, reformou acórdão do STJ, ao decidir, por unanimida- de, que, sendo a Constituição expressa ao afirmar serem in- violáveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, o Tribunal a quo "emprestou ao dano moral caráter restritivo, o que não se coaduna com a forma como a Consti- tuição o trata". O Ministro Carlos Velloso, relator do recurso, afirmou: o que precisa ser dito é que, de regra, a publicação da foto- grafia de alguém, com intuito comercial ou não, causa des- conforto, aborrecimento ou constrangimento ao fotografa- do, não importando o tamanho desse desconforto, desse aborrecimento ou desse constrangimento. Desde que ele exista, há o dano moral, que deve ser reparado, manda a Constituição (art. 5°, X). 342 Aqui importa ressaltar que a injustiça do dano, que o tor- na indenizável, não pode estar juridicamente vinculada a su- postos sentimentos negativos, grandes ou pequenos, da víti- ma. A lesão causadora do dano injusto refere-se, diretamen- te, ao bem jurídico tutelado, ao interesse ou direito da pessoa humana, merecedor de tutela jurídica. É o que se tentará detalhar a seguir. ridícula ou ofensiva ao decoro da pessoa retratada. A publicação das fotografias depois do prazo contratado e a vinculação em encartes publi- citários e em revistas estrangeiras sem autorização não enseja danos mo- rais, mas danos materiais." 342 STF, RE 215984, 2" Turma, ReI. Min. Carlos Velloso, julgo em 04.06.2002. O inteiro teor do voto encontra-se transcrito, sob o título "Dano Moral e Direito à Imagem", no Informativo 273 do STF, datado de 17 a 21 jun. de 2002, disponível em .. http://www.stf.gov.br/noticias/in- formativos!", acesso em 01 ago. 2002. 181 3.5. O dano moral segundo a metodologia civil-constitucional Na impossibilidack de expor nesta sede, com riqueza de detalhes, a metodologia "civil-constitucional", a qual tem como característica predominante a aplicação dos princípios e das regras constitucionais às relações intersubjetivas de Di- reito Civil e a conseqüente defesa da unidade do ordenamen- to jurídico, através da superação da dicotomia
Compartilhar