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PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO Fernando Henrique Cardoso PRESIDENTE DA REPÚBLICA Paulo Renato Souza MINISTRO DE ESTADO DA EDUCAÇÃO Iara Glória Areias Prado SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL/MEC Antônio Emílio Sendim Marques DIRETOR GERAL DO FUNDESCOLA/MEC Maristela Marques Rodrigues COORDENADORA DE DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL DO FUNDESCOLA/MEC COORDENAÇÃO GERAL Antonio Emílio Sendim Marques Leoberto Narciso Brancher PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO FUNDESCOLA/MEC Brasília, 2000 COORDENAÇÃO Afonso Armando Konzen Alessandra Vieira Marisa Sari Maristela Marques Rodrigues Munir Cury (ordem alfabética) Ó 2000 Fundo de Fortalecimento da Escola - FUNDESCOLA/MEC Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude - ABMP Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida desde que citada a fonte e obtida autorização do FUNDESCOLA/MEC PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO COORDENAÇÃO TÉCNICA Afonso Armando Konzen Alessandra Vieira Leoberto Narciso Brancher Marisa Timm Sari Maristela Marques Rodrigues Munir Cury COLABORAÇÃO Cândido Gomes Rui Rodrigues Aguiar Wilson Donizeti Liberati IMPRESSO NO BRASIL Pela Justiça na Educação/coordenação geral Afonso Armando Konzen ...[et al.]. - Brasília: MEC. FUNDESCOLA, 2000. 735 p. 1. Educação. 2. Aspectos jurídicos. 3. Aspectos Sociais. I. Konzen, Afonso Armando. II. Brasil. Ministério da Educação. Fundo de Fortalecimento da Escola. E56 370.19 APRESENTAÇÃO Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e a regulamentação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino e de Valorização do Magistério – FUNDEF abriram as portas da transformação sócio-jurídica na área dos direitos da criança e do adolescente e, especialmente, da educação. Esses instrumentos legais materializam, com a força imperativa da vontade estatal, os anseios da sociedade brasileira por justiça na educação. Justiça na educação significa alunos matriculados em escolas equipadas, com professores qualificados, com materiais didático-pedagógicos suficientes, com currículo escolar apropriado à realidade do aluno, com recursos disponíveis e mecanismos de controle social instituídos, com a participação dos pais e da comunidade na gestão escolar, em ambiente construído para o sucesso do aluno. Em outras palavras, justiça na educação significa igualdade de oportunidades, que possibilitam transformações sociais, concretizadas na adoção de novos comportamentos e valores, na reorganização da sociedade, no pleno desenvolvimento humano e na perspectiva de mudança do presente e do futuro. Nessa ótica as oportunidades propiciadas pela educação de qualidade abre novos horizontes no campo da justiça social, justificando-se assim o engajamento de juízes e promotores de Justiça que, mais do que representam, operam a eficácia legal e a exigibilidade do direito à educação. Com o objetivo de fortalecer a aliança entre o Sistema de Justiça e os Sistemas de Ensino, o Ministério da Educação, por meio do Fundo de Fortalecimento da Escola – FUNDESCOLA, e a Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Adolescência - ABMP vêm desenvolvendo o Programa pela Justiça na Educação. Abordando o direito à educação a partir da ótica do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Programa visa ao aperfeiçoamento técnico-profissional dos magistrados e promotores de Justiça das Varas da Infância e da Juventude para atuação em defesa e promoção desses direitos como estratégia jurídica e política de prevenção e promoção social. Estruturado em três eixos de implementação – articulação política, qualificação técnica e mobilização social –, o Programa sugere o engajamento funcional e comunitário dos profissionais do Poder Judiciário e do Ministério Público para que, de forma integrada com as mais diversas instituições e movimentos sociais, selem compromissos e promovam iniciativas voltadas á efetivação dos mecanismos legais de proteção à criança e ao adolescente, com foco na família e na escola. A O Programa conta com o imprescindível apoio institucional de parceiros estratégicos que integram as instituições do Sistema de Justiça, Poder Executivo e outros segmentos institucionais. Esses parceiros vêm colaborando para a construção de uma rede articulada de serviços e competências, para a mobilização dos operadores de Justiça e para a otimização de iniciativas existentes e a deflagração de novas ações que garantam a continuidade e a sustentabilidade do Programa. Com o lançamento desta publicação, o FUNDESCOLA/MEC e a ABMP iniciam um nova etapa do Programa, que operacionaliza o eixo da qualificação técnica por meio da realização dos “Encontros pela Justiça na Educação” em todo o território nacional. Para se chegar a essa nova etapa, o Programa contou com a importante contribuição dos operadores do Direito no Estado do Maranhão, onde se realizou, em junho deste ano, um encontro- piloto objetivando a validação da proposta técnico-pedagógica. Esta publicação, organizada em nove módulos que correspondem aos eixos temáticos constantes do conteúdo programático dos “Encontros pela Justiça na Educação”, constitui uma coletânea de textos utilizados como material de suporte para esses encontros, e preparados a partir da orientação técnica de equipe especializada nas áreas do Direito e da Educação. Os textos e informações aqui contidos representam valiosa contribuição para maior compreensão do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente, e especialmente do direito à educação, que fundamenta o engajamento dos operadores do Direito e de todos nós no Movimento pela Justiça na Educação. Na oportunidade da publicação deste documento, o FUNDESCOLA, em nome do Ministério da Educação, e a ABMP agradecem a todos que, movidos pela busca de justiça na educação, contribuíram para a produção dos textos aqui inseridos. Ficam registradas a nossa estima e agradecimento aos parceiros estratégicos cujas iniciativas já representam importante contribuição para o sucesso do Programa. Nossos agradecimentos especiais para a equipe de coordenação técnica, que não mediu esforços para a realização deste trabalho. Leoberto Narciso Brancher Antônio Emílio Sendim Marques PRESIDENTE DA ABMP DIRETOR GERAL DO FUNDESCOLA PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO sumário geral MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 14 CAP. 1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÂNCIA E JUVENTUDE ..... 17 Luis Henrique Beust CAP. 2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA - UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA ..... 71 José Luis Bolzan de Morais MÓDULO II ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 114 CAP. 3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE ..... 121 Leoberto Narciso Brancher CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA - PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO .... 159 Afonso Armando Konzen CAP. 5 O MINISTÉRIO PÚBLICO ..... 193 Paulo Afonso Garrido de Paula CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO ..... 209 Antônio Fernando do Amaral e Silva CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO ..... 255 Públio Caio Bessa Cyrino MÓDULO III A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 286 CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO ..... 289 Antonio Carlos Gomes da Costa Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima MÓDULO IV A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 314 CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO – QUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM? ..... 321 Marisa Timm Sari Maria Beatriz Luce CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO: GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 349 AdéliaLuiza Portela Esmeralda Moura Eni Santana Barretto Bastos CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL ..... 397 Maria Eudes Bezerra Veras Ricardo Chaves de Rezende Martins CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO ..... 441 José Carlos Polo MÓDULO V INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 476 CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL ..... 477 Mário Volpi CAP. 14 FICAI – UM INSTRUMENTO DE REDE DE ATENÇÃO PELA INCLUSÃO ESCOLAR ..... 495 Simone Mariano da Rocha MÓDULO VI INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 508 CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR ..... 511 Olympio de Sá Sotto Maior Neto CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO ..... 531 Mário Fleig PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS ..... 557 Paulo Sérgio Frota e Silva CAP. 18 CÂMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS ..... 601 Pedro Scuro Neto MÓDULO VII DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 640 CAP. 19 DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO ..... 643 Paulo Afonso Garrido de Paula CAP. 20 O DIREITO À EDUCAÇÃO ..... 659 Afonso Armando Konzen MÓDULO VIII GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 670 CAP. 21 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E SEUS INSTRUMENTOS DE EXIGIBILIDADE ..... 673 Munir Cury CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS – SUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL ..... 683 Hugo Nigro Mazzilli MÓDULO IX MOBILIZAÇÃO SOCIAL CAP. 23 TECENDO O AMANHÃ – PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO ..... 715 Nisia Werneck PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO NOTA DA COORDENAÇÃO GERAL Até imprimir-se a presente edição, além de parcerias em negociação como com o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, o Programa pela Justiça na Educação já conta formalmente com o apoio institucional dos seguintes parceiros: Ministério da Justiça Procuradoria-Geral da República – Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça do Brasil Associação de Magistrados Brasileiros – AMB Confederação Nacional da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP Colégio Nacional de Corregedores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União Colégio de Diretores das Escolas Superiores dos Ministérios Públicos Fundo da Nações Unidas para a Infância – UNICEF Instituto Ayrton Senna Fundação Banco do Brasil MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 1 4 SUMÁRIO EXECUTIVO DESDE O INÍCIO DA CIVILIZAÇÃO, os estudiosos e pesquisadores estiveram preocupados com a educação, ao ponto de concluir que sem educação não haveria humanidade. A educação é vital para o homem como o próprio ato de sobreviver, no sentido de preservar sua frágil existência e assegurar sua evolução. Com a educação, o homem adapta-se ao meio em que vive, a ponto de ser ela tão importante e fundamental quanto o ato de procriar ou de desenvolver-se na vida social. Neste sentido, a educação é a própria humanidade. O homem, integrado com o meio-ambiente, constitui uma unidade biológica que busca permanente equilíbrio entre o próprio organismo (o ser humano) e o meio. Dessa adaptação, surge a aprendizagem, atividade fundamental da vida, também conhecida por educação, expressão da própria condição humana.A saúde surge, também, como fruto da educação. Sua definição, conferida pela Organização Mundial de Saúde – OMS, é o “estado dinâmico de bem- estar físico, psíquico, social e espiritual”. Para o homem viver bem é necessário suprir as necessidades físicas, emocionais, psicológicas e espirituais, que dão equilíbrio à existência humana. A educação interage com a saúde do ser humano quando ele precisa aprender a melhorar a vida, por meio de cuidados com o corpo (adequada alimentação, repouso, higiene etc.), do atendimento às suas necessidades emocionais (pelo amor, simpatia etc.); necessidades psicológicas (de realização, de autonomia, expressão, lazer e comunicação etc.), e espirituais (virtudes, propósito de vida, transcendência etc.). Enfim, a educação não é necessária somente para a sobrevivência do ser humano, mas, também, para dar-lhe qualidade de vida, com plenitude e felicidade. A educação, percebida como um dos maiores dons e deveres da humanidade, já foi considerada propriedade exclusiva dos deuses. Pelo conhecimento, o homem imaginou que podia ser independente da divindade, mas afinal descobriu que isso não o libertou de sua condição humana. Ao longo da história, a educação emerge como modelo e arquétipo da redenção humana de sua própria condição humana que está num constante devir. A educação, além de garantir a sobrevivência e a saúde da espécie humana, permitiu construir um padrão de existência, conhecido por civilização. A educação sempre foi o elemento catalizador da garantia da continuidade das conquistas humanas. MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 1 5 A educação é muito mais antiga e ampla do que as instituições chamadas escolas. A maior parte da educação humana dá-se de maneira não formal, por meio da convivência, da orientação e da imitação. Hoje em dia, outros meios de comunicação, como a televisão, o computador e a Internet, alimentam o conteúdo educacional de maneira informal. A escola pública, como estrutura formalizada da educação, é a criação do século passado, que objetivava socializar o conhecimento, num exercício de justiça e igualdade na distribuição de seus beneficiários, independentemente da condição social dos educandos. Durante a Idade Média, as regras básicas de existência do ser humano eram baseadas na religião e a sociedade dominava o homem; sua obrigação era crer e obedecer. Com a evolução do conhecimento, a modernidade propôs a tarefa fundamental do ser humano como a de raciocinar e criar. Após um processo progressivo de materialização, racionalização e mecanização do universo do homem e da sociedade, a cultura moderna retirou a importância do ser humano e de seus ideais. Esses paradigmas levaram à desumanização do ser humano. Pode-se dizer que os paradigmas do Iluminismo, do Racionalismo e da Revolução Industrial ainda contribuem para a inércia da resolução dos problemas humanos, baseados que estavam em ações desprovidas de sentimentos. Os princípios orientadores dos valores humanos valorizam uma redescoberta dos princípios eternos e universais proclamados pelas grandes tradições espirituais e sapienciais da humanidade. O século XX foi profícuo em produzir leis que garantissem os direitos da criança e do adolescente, tanto no âmbito interno quanto no internacional. Esse ordenamento jurídico é exemplificado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), além dos princípios constitucionais gravados na Carta Política de 1988. A abordagem sobre direitos humanos induz todos os operadores do direito a pensar na possibilidade de abrir novos horizontes e de dar condições àqueles que se preocupam com o futuro das liberdades públicas, de atuar buscando respostas eficientes aos anseios da cidadania, concretizadas na vida do Direito. Os direitos de liberdade, de igualdade e solidariedade entraram no rol de garantiasconstitucionais dos cidadãos após hercúlea batalha contra o absolutismo de governos e de governantes. Somente a inclusão desses direitos na ordem jurídica não basta para a garantia MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 1 6 da cidadania; é preciso dar-lhes efetividade prática, ou seja, instigar os agentes políticos – jurídicos – sociais para que assumam a tarefa de garantir que todos possam usufruí-los em benefício próprio e comum ao mesmo tempo. Na análise dos direitos humanos, aparece, em destaque, a transformação dos interesses em individuais (direito subjetivo), coletivos (quando um interesse comum afetar uma coletividade inteira de individuais reunidos em torno de vínculos jurídicos) e difusos (indeterminação subjetiva de sua titularidade). Esses direitos não poderiam ficar desconectados da vontade popular; portanto, assumiram o caráter formal das normas constitucionais carregando, em si mesmas, a hierarquia e a estabilidade das normas superiores. A constitucionalidade dos direitos humanos fundamentais teve garantia, entre nós, desde a Constituição Imperial (1824), renovada nas demais Cartas, até a atual, que referenda todas as gerações supostas de direitos humanos. Aliados aos direitos humanos fundamentais, também conhecidos por liberdades públicas de primeira geração, surgem, a partir do final da primeira guerra mundial, os direitos sociais considerados de segunda geração, que enfatizaram os direitos relacionados às relações do trabalho, à previdência, à saúde, e, particularmente, à educação. Essa nova ordem social, também garantida no texto constitucional, traz com um perfil diferenciado uma também nova maneira de garantir um direito: o da prioridade absoluta. Somente os direitos infanto-juvenis receberam esse plus constitucional, ou seja, os direitos das crianças e dos adolescentes deverão ser garantidos com prioridade sobre todos os demais direitos. E o direito constitucionalizado da educação apareceu no rol daqueles que devem ser erigidos como prioritários, pois hodiernamente esse direito representa importante relevância social na medida em que a detenção do conhecimento importa na apropriação de poder e de votar. Para a garantia desses direitos, a Constituição Federal instrumentaliza a sociedade, atribuindo-se-lhe legitimidade para demandar, com os instrumentos jurídicos próprios, ágeis e eficazes na satisfação de suas pretensões. Esses instrumentos, no seu contexto operacional próprio, são de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. Por fim, não existiria ambiente ideal para consolidação das pretensões democráticas de cidadania, incluindo aqui, especialmente, direito constitucional à educação, que o locus privilegiado da Constituição. Aqui, os operadores do Direito poderão buscar a fonte garantista dos direitos humanos fundamentais das crianças e a adolescentes como sujeitos de direitos que são. MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 1 7 1CAPÍTULO ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÂNCIA E JUVENTUDE Luis Henrique Beust* SUMÁRIO 1 PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS PARA A DEFESA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE À EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 18 1.1 EDUCAÇÃO E HUMANIDADE ..... 18 1.2 EDUCAÇÃO E SAÚDE ..... 20 1.3 EDUCAÇÃO E ARQUÉTIPOS ..... 21 1.4 EDUCAÇÃO E AUTO-REALIZAÇÃO ..... 24 1.5 EDUCAÇÃO E ESCOLARIDADE ..... 26 2 VALORES HUMANOS E MOTIVAÇÃO PARA A AÇÃO TRANSFORMADORA ..... 30 2.1 PARADIGMAS DOMINANTES E DESUMANIZAÇÃO ..... 30 2.2 A PERMANÊNCIA DOS VALORES “DESUMANOS” ..... 34 2.3 A INÉRCIA DOS MODELOS MENTAIS E A AÇÃO TRANSFORMADORA ..... 37 2.4 RECONSTRUIR MODELOS MENTAIS E PARADIGMAS EM PROL DA HUMANIZAÇÃO ..... 40 2.5 A ORIGEM E FONTE DOS VALORES HUMANOS ..... 41 3 A FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO ÉTICO ..... 44 3.1 AS TRÊS FORMAS DE EDUCAÇÃO E A EDUCAÇÃO MORAL ..... 44 3.2 A NATUREZA HUMANA, AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS E A MORAL ..... 49 3.3 UNIVERSAIS MORAIS E JANELAS DE OPORTUNIDADE PARA A FORMAÇÃO ÉTICA ..... 50 3.4 A EDUCAÇÃO DA VONTADE E A SOCIEDADE ÉTICA ..... 53 3.5 OS PRINCÍPIOS ESPIRITUAIS UNIVERSAIS ..... 58 4 A FUNDAMENTAÇÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS LEGAIS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE ..... 61 4.1 UM SÉCULO DE LEIS ..... 61 4.2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH) ..... 62 4.3 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA (DUDC) ..... 62 4.4 CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA (CIDC) ..... 63 4.5 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA) ..... 64 4.6 LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO (LDB) ..... 64 5 COMPROMISSO HISTÓRICO E POLÍTICO ..... 64 NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 65 * Diretor do Centro Educacional Bahá’í Soltanieh. Coordenador do Conselho de Educação Global na América Latina. Consultor internacional em Educação para a Paz. ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS · 1 8 O texto ressalta a importância da educação para a vida e o progresso humanos, apresentando-a como elemento fundamental para a sobrevivência da espécie, o desenvolvimento da civilização e a plenitude de vida individual. Mostra como, durante a Modernidade (século XVI até o presente), os paradigmas de cientificismo, racionalidade, objetividade e materialismo destruíram o equilíbrio dos valores humanos e princípios espirituais que sempre deram sustento à civilização e à realização humanas. Tal radicalismo deu-se em antítese ao teocentrismo dogmático e obscurantista dos mil anos da Idade Média da cristandade européia (século V ao XV), e acabou por minar os fundamentos da eticidade e da moral, que são fundamentalmente espirituais por natureza. Argumenta-se que o período pós-moderno em que vivemos oferece a necessidade e a possibilidade de uma síntese entre a razão e os valores humanos, entre a ciência e a espiritualidade, apresentando os postulados de grandes pensadores clássicos, modernos e contemporâneos. Estabelece-se a necessidade dos grandes princípios e valores morais universais, dentro de um contexto pluralista e transecumênico, para que se possa fundamentar uma educação libertadora e garantir a formação do indivíduo e da sociedade éticos, em que valores como o Amor e a Justiça conduzam o fazer social. 1 PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS PARA A DEFESA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE À EDUCAÇÃO ESCOLAR 1.1 EDUCAÇÃO E HUMANIDADE Sem educação não haveria humanidade. A frase pode soar como um exagero, mas, no tocante à educação, esse é o grande tema e a justa conclusão apresentados nos escritos dos grandes pensadores, religiosos ou laicos, homens da ciência ou das humanidades, em todas as culturas, ao longo dos cinco ou seis mil anos de civilização. E não é para menos: ao contrário dos animais, os seres humanos dependem da educação para sobreviver. Com um arsenal de instintos menos elaborado e menor repertório de respostas automáticas para a vida, homens e mulheres dependem do aprendizado para assegurar que suas existências transcorrerão de forma segura e satisfatória. Diferentemente dos animais, a vida humana inicia-se de maneira extremamente frágil. Um recém-nascido é incapaz de prover seu próprio sustento ou sobreviver sem o amparo constante de adultos, senão depois de passados longos anos de amadurecimento. A educação, passada pelos adultos às novas gerações, sempre foi, assim, não apenas a ferramenta essencial da construção da cultura e da civilização, mas o instrumento supremo da ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 1 9 CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE Luis Henrique Beust própria sobrevivência humana e de sua evolução. A educação, como instrumento que permitiu aos homens uma cada vez mais elaborada adaptação ao meio ambiente, ao longo de incontáveis eras, foi o grande diferencial na história evolutiva da humanidade. As pesquisas científicas realizadasdurante o século XX, em áreas como a Psicologia, a Antropologia e a Sociologia, consolidaram uma enorme gama de dados sobre a necessidade da educação, a ponto de se poder afirmar que o ato de aprender e de ensinar é tão fundamental para a raça humana quanto a procriação ou a vida social. A educação, mais do que qualquer outro elemento tomado em separado, garantiu a sobrevivência e a evolução da humanidade. Nesse sentido, educação é humanidade. Jean Piaget, Noam Chomsky e outros descreveram estruturas (de pensamento e de linguagem, entre outras) relacionadas à mente humana, as quais exigem um desenvolvimento tão natural e vital quanto o crescimento do corpo ou a associação grupal.1 A aprendizagem, nesse contexto, é vista como uma função vital, por meio da qual cada aprendiz (todos os seres humanos) está ativa e permanentemente formando estruturas mentais novas na sua interação com o meio ambiente; ou seja, está permanentemente aprendendo. O enfoque biológico, adotado por Piaget para entender e explicar a apendizagem/educação, ressalta que cada ser humano, como ser vivo, é um organismo em constante interação com o meio ambiente. Na verdade, o organismo (o ser humano), o meio e a interação entre eles constituem uma unidade biológica na qual os três elementos estão inseparavelmente conectados. O processo de aprendizagem, nesse contexto, é desencadeado por uma perturbação do equilíbrio experimentado entre o organismo e o meio. O organismo procura superar essa perturbação, e o sentimento subjetivo de tensão ou necessidade que emerge dela, por meio de uma adaptação. Quando essa mudança no ambiente é enfrentada por adaptação do organismo, houve aprendizagem. Nesse sentido, pois, poder-se-ia dizer não apenas que a educação (ensino/aprendizagem) é uma atividade fundamental da vida, mas sim que a própria vida é aprendizagem, ou educação. A vida, individual ou social, nada mais é do que uma cadeia única de processos de aprendizagem. Piaget chega a falar de uma “epistemologia genética” e da organização biológica como uma “estrutura cognitiva” que interage com o meio ambiente. Essa base biológica do processo de aprendizagem demonstra, pois, o quanto a educação é vital para o próprio processo de existir. É claro, porém, que a vida especificamente humana não se esgota no nível biológico; antes, desenvolve-se num plano sociocultural. A educação humana, portanto, não ocorre apenas ao nível de uma ação recíproca biológica, mas, bem 1 Ver notas e referências bibliográficas a partir da página 65. ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS · 2 0 mais do que isso, numa ação sociocultural recíproca do sujeito e seu meio, entre o indivíduo e aqueles que o rodeiam. Esse enfoque sociocultural ressalta o fato de que o processo de educação de cada ser humano não se dá no vazio, nem de forma isolada, mas sempre no seio de um grupo humano, no qual cada pessoa deve viver e aprender. É fácil perceber, nessa situação, que o aprendizado se dá não apenas pela necessidade intelectual ou cognitiva que o indivíduo tem daquilo que está aprendendo, mas de uma plêiade de fatores emocionais, sociais e existenciais. Ou seja, como seres humanos, aprendemos não apenas porque temos necessidade de aprender num sentido intelectual, mas porque temos necessidades de amar e ser amados, de ser aceitos, respeitados e benquistos; necessitamos encontrar um propósito para nossas vidas e respostas adequadas para questões como o sofrimento e a morte. Embora seja bastante comum falar de educação para referir-se simplesmente ao desenvolvimento cognitivo, ou tão somente à transmissão de instrução, o fato é que, como vimos, educação é bem mais do que isso. Howard Gardner, da Universidade de Harvard, o destacado descobridor das inteligências múltiplas, afirma que a educação precisa ser vista como “um empreendimento muito mais amplo, envolvendo motivação, emoções, práticas e valores sociais e morais.”2 A educação, assim vista, é a própria expressão da condição humana. 1.2 EDUCAÇÃO E SAÚDE A Organização Mundial da Saúde, OMS, define saúde como o “estado dinâmico de bem- estar físico, psíquico, social e espiritual”. Nessa concepção contemporânea de saúde, identificam- se também as quatro áreas nas quais uma pessoa pode estar enferma. Podemos sofrer de enfermidades físicas (bursite, alergia, câncer), enfermidades psíquicas (neuroses, psicoses), enfermidades sociais (violência, miséria, desemprego), ou enfermidades espirituais (anomia, ódio, falta de sentido na vida, desesperança). Essas áreas de saúde/doença definem também aqueles campos da existência humana que precisam ser adequadamente atendidos para podermos viver bem. Ou seja, nossa vida depende de que sejam supridas as necessidades físicas, emocionais, psicológicas e espirituais (também chamadas existenciais) que nos constituem como seres. O suprimento dessas necessidades vitais se dá por meio do processo de ensino/aprendizagem, de forma que podemos, agora, associar a educação não apenas com nossa sobrevivência (o que não seria pouco!), mas também com nossa saúde plena. No campo físico, necessitamos aprender como sustentar e melhorar nossa vida com adequada alimentação, repouso, atividade, higiene e proteção. ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 2 1 CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE Luis Henrique Beust No campo emocional, nossas necessidades são supridas pelo aprendizado do amor, da simpatia, da atenção, da estima, do aconchego, da auto-estima e da auto-aceitação, sem os quais não podemos nos desenvolver de forma plena e feliz. Na verdade, a própria sobrevivência física fica comprometida quando tais necessidades emocionais são desatendidas. Nossas necessidades psicológicas de realização, autonomia, lazer, expressão e comunicação, entre outras, também são supridas por meio do aprendizado adequado de capacidades pessoais e sociais que as viabilizam e desenvolvem. Da mesma forma, é a educação o instrumento supremo que permite a cada nova geração de homens desenvolver aqueles conhecimentos, habilidades, atitudes e qualidades de natureza espiritual ou existencial que lhe permitem satisfazer suas necessidades de transcendência, beleza, virtude e propósito para a vida. Educação, portanto, tem a ver não apenas com sobrevivência, mas com qualidade de vida, com plenitude, com felicidade. 1.3 EDUCAÇÃO E ARQUÉTIPOS Os homens sempre perceberam, ainda que inconscientemente, que o conhecimento, e sua transmissão, tinha algo de supremo, de vital, de divino – que estava relacionado com sua própria sobrevivência e plenitude de vida. A educação, assim, sempre foi percebida como um dos maiores dons e deveres da humanidade, quer ante Deus (ou deuses) quer ante os próprios homens. Para as percepções mais aguçadas, ao longo dos séculos, tão relevante tem sido a educação – e seu fruto, o conhecimento – que sua natureza - e processo - chegou a ser descrita como limitada ao domínio celestial, sem acesso aos homens, ou como algo sobrenatural, ou como uma porta para a eternidade. Os vários mitos relacionados à Criação e os textos sagrados dos primórdios da História refletem essa importância vital atribuída ao conhecimento. Na mitologia grega, Prometeu, que era um dos Titãs e, portanto, primo de Zeus, é representado como um especial amigo da humanidade. Segundo as mais antigas tradições do mito, é Prometeu quem cria o homem, a partir do barro. Depois disso, desejando dar à nova criatura acesso ao que somente pertencia aos deuses, Prometeu rouba de Zeus o conhecimento do fogo (ele próprio símbolo do conhecimento) e o entrega à humanidade. Zeus, enfurecido por não mais deter a exclusividade do conhecimento, castiga a humanidade com toda espécie da pragas e sofrimentos. Tal castigo chega através de uma bela mulher, Pandora, que fôra criada pelos deuses e dada de companheira ao irmão de Prometeu, Epimeteu.Apesar de bela, Pandora tinha o engano e a trapaça no coração, e é por meio de suas mãos que ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS · 2 2 se abre a caixa ou jarra de onde saem todos os males que afligem a humanidade. Mas, apesar de agora sofridos, os homens detinham o conhecimento que antes era somente dos deuses. E, assim, resta a esperança... No Antigo Testamento, o Gênesis faz um relato similar do “ciúme” divino quanto ao conhecimento, e do castigo imposto à humanidade como preço por ter comido da “árvore do conhecimento do bem e do mal”.3 Ao comer o fruto proibido, Adão e Eva se apropriam de algo que era restrito aos céus, e se tornam “como deuses”,4 com seus olhos abertos pelo conhecimento. O próprio Deus exclama: “Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal”.5 Para que essa usurpação de posições não prossiga, e o homem se torne, além de conhecedor, imortal, Deus expulsa Adão e Eva do jardim do Éden, para que “não estenda sua mão e tome também da árvore da vida e coma e viva eternamente.”6 Uma vez expulsos do Paraíso por causa do conhecimento, Adão e Eva concebem dois filhos, mas Caim mata Abel, dando continuidade aos sofrimentos humanos. Porém, é também da descendência deles, através do terceiro filho, chamado Sete, que nascem Abraão e Isaque e Jacó, e todos os profetas de Israel, inclusive Jesus, dando ao final do relato também uma sobra de esperança para a redenção humana, como na caixa de Pandora. Claro que tais relatos são símbolos antigos e riquíssimos que explicam a condição humana. Tanto Pandora como Eva podem ser entendidas como representações da mente humana primitiva, em seu estado bruto e selvagem, cheia de curiosidade e beleza, mas também de todos os vícios que apenas a educação pode remediar. Essa mente pressente que conhecimento é poder, que pode inclusive aproximá-la do divino. Ambos os relatos podem ser tomados, assim, com o seguinte sentido: o conhecimento é luz, é sustento (fogo) e tão elevado que é propriedade exclusiva da divindade. Por meio do conhecimento o homem crê tornar-se independente da divindade. Porém, ele só se apossa do conhecimento pelo sofrimento; por meio dele percebe a complexidade da vida, assim perdendo a inocência do paraíso (infantil). O simples conhecimento do mundo, portanto, não liberta o homem de sua condição humana. Ele precisa de um conhecimento ainda mais elevado para isso, um conhecimento das coisas transcendentes, divinas: precisa conhecer a esperança, a obediência, o arrependimento, a perseverança, a honestidade, o amor... Tais mitos e relatos indicam, nessa formulação primitiva, um dos grandes temas relacionados à educação: o conhecimento, por si só, pode ser perigoso. Se for imperfeito, ou incompleto, será causa de sofrimento, e melhor seria não tê-lo. Mas isso será tratado mais adiante, quando abordarmos a formação do indivíduo ético. ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 2 3 CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE Luis Henrique Beust Vê-se, pois, como a simbologia é completa: apesar dessa associação entre o conhecimento e o sofrimento, que pode ser encontrada em praticamente todos os mitos e textos primevos, os relatos indicam que o conhecimento, se aprimorado pelas coisas “da alma”, aproxima realmente os homens da condição divina; não mais pela competição, mas pela humildade, não pela usurpação, mas pelo descobrimento de sua verdadeira condição. Seja por meio da esperança, como em Pandora, ou do arrependimento e da misericórdia de Deus, como na Bíblia, a idéia é que o mal do conhecimento imperfeito pode ser superado pela educação verdadeira, que incorpora ao conhecimento das coisas visíveis também o conhecimento das invisíveis, ou seja, o domínio da moral, do bem e do mal, das virtudes. A origem dessa educação suprema, completa, segundo as grandes tradições espirituais do mundo, é divina, concedida à humanidade como um ato de graça dos céus. Como diz São Paulo a Timóteo: “Toda a Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça. Para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instruído para toda a boa obra”.7 Seguramente, entre as escrituras “divinamente inspiradas” apontadas por São Paulo como proveitosas para que o homem “seja perfeito” estão aquelas provindas de outros horizontes e climas, nascidas tanto antes quanto depois do cristianismo. Nelas, o conhecimento também é apresentado como algo sagrado, redentor, e a educação, como um ato divino. Buda, por exemplo, exortando seus discípulos há mais de 2500 anos, apresenta a educação verdadeira, que edifica o caráter, como o único remédio contra o sofrimento: “Não vos desconcerteis com a universalidade do sofrimento. Segui os meus ensinamentos, mesmo depois de minha morte, e estareis livres do sofrimento. Fazei isso e sereis verdadeiramente meus discípulos... Se seguirdes estes ensinamentos, sereis sempre felizes.”8 Para que os homens possam desfrutar dessa felicidade, porém, Buda diz que “eles devem estar ansiosos por aprender”.9 Os Upanishades, parte da antiqüíssima tradição sagrada hindu, nascida há mais de 5000 anos, nos primórdios da vida sedentária da humanidade, também associam esse valor sagrado à educação, afirmando que “pelo conhecimento obtemos imortalidade”.10 No Alcorão, revelado aos árabes no século VII, o conhecimento é outra vez apresentado como de origem divina, concedido ao homem pela Revelação de Deus no Alcorão e nos demais escritos sagrados, como o Evangelho cristão e a Tora judaica. Falando através de Maomé, é o próprio Deus quem explica: ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS · 2 4 “Revelamos a Tora, que encerra Direção e Luz ... e depois dos outros profetas enviamos Jesus, filho de Maria, corroborando a Tora que O precedeu; e Lhe concedemos o Evangelho que encerra Direção e Luz, o qual confirma a Tora, e é guia e exortação para os tementes.”11 Maomé afirma que Deus é o “Mais Bondoso” porque “ensinou ao homem o uso da pena [a escrita] e aquilo que ele desconhecia”.12 Na mesma linha de argumentação, Bahá’u’lláh, no século XIX, renova essa mensagem das grandes tradições espirituais, outra vez exaltando o papel do conhecimento na vida humana: “O conhecimento é como asas para a vida do homem e uma escada para sua ascensão. A todos incumbe sua aquisição... Em verdade, o conhecimento é um autêntico tesouro para o homem e uma fonte de glória e bênção, de contentamento, de exaltação, de alegria e de felicidade. Feliz é o homem que a ele se apega, e desafortunado o desatento.”13 Mas ele também observa que “Deve ser adquirido, contudo, o conhecimento de tais ciências que possam beneficiar aos povos da terra, e não daquelas que começam e terminam com palavras.”14 Todos esses textos, reverenciados pela humanidade há milênios, não apenas refletem o respeito e fascínio antigo e elevado que os homens nutrem pelo conhecimento e por sua ferramenta, a educação, mas também têm servido, ao longo de incontáveis eras e gerações, para dar a ela o caráter de processo arquetípico para a salvação dos homens. É a educação que emerge, ao longo da História, como o arquétipo da redenção humana de sua própria condição humana. Uma educação que é um constante devir, pois que nunca está acabada. Como coloca Paulo Freire: “[Os homens] descobrem que pouco sabem de si, de seu posto no cosmos, e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões desta procura. ... Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas.”15 1.4 EDUCAÇÃO E AUTO-REALIZAÇÃO Além de a educação garantir a sobrevivência e a saúde da espécie, ela nos permitiu construir um padrão de existência único sobre o planeta: aquilo que chamamos de civilização. Ciência, arte, auto-realização,fé, ordem, desenvolvimento, prosperidade e cultura têm sido alguns dos temas e conquistas desenvolvidos e aprimorados ao longo dos milênios. E a educação sempre foi o elemento que, sozinho, serviu de veículo e garantia para a continuidade das conquistas humanas. Como já vimos, profetas, filósofos e pensadores sempre atribuíram à educação o mais alto valor social e moral, acima de tudo pelo fato de a considerarem o único instrumento capaz de elevar o homem acima do nível dos animais, colocando-o numa esfera especial da natureza, num patamar todo seu. ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 2 5 CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE Luis Henrique Beust Entretanto, ao longo dos séculos, a educação não tem sido vista apenas como a fonte de todo bem social e coletivo dos homens, mas também como a ferramenta que permite a cada indivíduo elevar-se ao seu verdadeiro destino e cumprir seu potencial inato. “A direção na qual a educação encaminha um homem determina sua vida futura”, é a afirmação de Platão em A República.16 Dois grandes poetas ingleses também expressaram isso de forma belíssima. William Wordsworth afirma: “A criança é pai do homem.” (The child is father of the man.) 17 E John Milton reflete: “A infância revela o homem,” (The childhood shows the man,) Como a manhã revela o dia.” (As morning shows the day.)”18 Isso significa que, mais do que o destino da espécie, o destino pessoal de cada ser humano está na dependência da educação. Ela determina o grau no qual os potenciais inatos de cada um serão explorados e utilizados para o seu próprio proveito e para o benefício da sociedade. Ou seja, a medida da auto-realização de cada indivíduo está ligada indissoluvelmente à educação que lhe é concedida. Abraham Maslow, um dos maiores nomes da Psicologia neste século, afirma a respeito desse potencial individual inexplorado: “Freud supunha que o nosso superego ou a nossa consciência era, primordialmente, a internalização dos desejos, exigências e ideais do pai e da mãe, quem quer que eles fossem.... Essa consciência existe – Freud estava certo. Mas existe também outro elemento na consciência, que todos nós possuímos, seja ela débil ou vigorosa. Trata-se da consciência intrínseca. Esta baseia-se na percepção inconsciente ou pré-consciente da nossa própria natureza, do nosso próprio destino ou das nossas próprias capacidades, da nossa própria vocação na vida. Ela insiste em que devemos ser fiéis à nossa natureza íntima e em que não a neguemos, por fraqueza, por vantagem ou qualquer outra razão...”19 Além disso, Maslow afirma que “Se esse núcleo essencial da pessoa for negado ou suprimido, ela adoece, por vezes de maneira óbvia, outras vezes de uma forma sutil, às vezes imediatamente, algumas vezes mais tarde.”20 É claro que este “adoecer” deve ser entendido naquele sentido amplo da definição da OMS apresentado acima. O fato é que a vida plenamente realizada, com um sentimento de dinâmico bem-estar, depende da auto-realização. Por essa razão, a educação humana precisa despertar em cada indivíduo não apenas aqueles comportamentos e características que sejam necessários e adequados à sociedade em que vive, mas também à expressão daqueles imponderáveis potenciais inatos que lhe permitam sentir-se ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS · 2 6 em paz com sua “consciência intrínseca”. Isso não pode ser alcançado senão por meio de uma educação que encoraje a criatividade e a auto-expressão, mais do que a imitação e o conformismo. Nas palavras de Jean Piaget: “A meta principal da educação é criar homens capazes de fazer coisas novas e não apenas repetir o que outras gerações fizeram – homens criativos, inventivos, e descobridores. A segunda meta da educação é formar mentes que possam ser críticas, que possam verificar e que não aceitem tudo o que lhes é oferecido.”21 Tais observações encaixam-se na tradição dos grandes pensadores do passado, independentemente dos enfoques específicos que adotaram em outros aspectos, na medida em que foram unânimes ao relacionar a educação com a vocação de cada homem, preparando- o em pensamento e ação para cumprir seu propósito e posição na vida. O contrário dessa educação que liberta e realiza seria a educação dos animais domesticados ou dos escravos, que aprendem para o benefício dos outros, não do seu próprio. Tal educação “liberal”, um termo cunhado por Aristóteles para definir a educação de homens livres – ao contrário da educação “iliberal”, fornecida aos animais domesticados e aos escravos –, destina-se a redimir e viabilizar a expressão do potencial inato de cada pessoa. É seu objetivo garantir que cada ser humano viva bem, e não que tão-somente seja capaz de ganhar a vida, para si ou para os demais. Aristóteles afirma que a educação de um homem só é liberal “se ele faz ou aprende algo por causa dele mesmo ou de seus amigos, ou com vistas à excelência”.22 Em outras palavras, ela deve tratar o homem como seu fim, e não como um meio a ser usado por outros homens, ou pelo Estado. “Concepção bancária da educação” é como Paulo Freire denomina o processo de ensino/ aprendizagem que não objetiva o homem livre para pensar e repensar o mundo, para entendê- lo e recriá-lo. Tal educação, denunciada por Aristóteles como “baixa e servil”,23 é, segundo Freire, a própria antítese do saber: “Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.”24 1.5 EDUCAÇÃO E ESCOLARIDADE Obviamente, até aqui se falou de educação num sentido bem mais amplo do que simplesmente escolaridade. A maior parte da educação humana ocorre de maneira não formal, por intermédio da convivência, da orientação, da imitação, da diferenciação. A educação, ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 2 7 CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE Luis Henrique Beust portanto, é muito mais antiga e ampla do que essas instituições formais chamadas escolas. Na verdade, como vimos acima, a educação é tão antiga quanto a própria humanidade. Mesmo em nossos dias, muitos outros veículos educacionais, além das escolas (a mídia, por exemplo), atuam permanentemente sobre todos os seres humanos. Ao longo da História humana, com exceção do século XX, a educação se deu pelo aprendizado contextualizado, ou seja, as lições eram transmitidas no âmbito do contexto em que deveriam ser aplicadas. Em outras palavras, aprendia-se fazendo. Por meio da observação informal e da prática orientada no lar, nos campos, nos templos ou nos artesanatos, as crianças e os jovens aprendiam, não apenas a fazer coisas e a entender as coisas, mas a ser. Toda a cosmovisão, os valores, os modelos de papéis adultos, as possibilidades e as limitações que uma cultura possui foram transmitidos, ao longo de milhões de anos, dessa forma pouco sistematizada e espontânea. Mesmo na vida contemporânea, esta ainda é a principal forma de educação, mas, em todo o mundo, as crianças passam hoje grande parte do seu tempo dentro de salas de aula. A escola pública elementar, como a conhecemos atualmente, foi concebida somente no século passado, pela primeira vez nos Estados Unidos da América. Como observa Howard Gardner, “A instrução pública em massa é distintamente um fenômeno do século XX.”25 Há uma grande diferença entre a educação tradicional e a escolar, tanto no que diz respeito aos objetivos educacionais, quanto ao processo educativo. É Gardner, novamente, quem comenta: “Pois enquanto a educação no mundo inteiro se caracteriza desde longa data pela transmissão de papéis e valores em ambientes apropriados, as escolas descontextualizadasforam criadas, primordialmente, com dois objetivos específicos : a aquisição de instrução com notações e o domínio de disciplinas.”26 Por que, então, deveríamos nos preocupar tanto com o acesso das crianças às escolas, e buscar, de todos os meios, que elas possam desfrutar de tal conhecimento “descontextualizado” e com ênfase mais na instrução e nas disciplinas do que nos valores e nos papéis adultos? Há várias razões. Até a Revolução Industrial, no século XIX, a maioria dos seres humanos dependia da educação informal (proveniente do convívio com os pais, a família e a sociedade) ou contextual (aprendizado in loco, como numa carpintaria, num mosteiro ou no campo) para construir aquele conhecimento que lhe seria necessário para a vida em sociedade. Esse conhecimento, em geral, privilegiava a estagnação e o imobilismo sociais: nobres aprendiam coisas de nobres, camponeses aprendiam coisas de camponeses, artesãos, de artesãos, etc. Ou seja, o panorama educacional e social era “Filho de peixe, peixinho é.” ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS · 2 8 Na sociedade contemporânea, porém, as profissões e ocupações humanas estão cada vez mais voltadas e abertas para as capacidades inatas de cada ser humano, independentemente de sua origem. Nesse contexto, a educação escolar tornou-se o melhor instrumento educacional que permite acesso ao mundo para além da família. As escolas, no mundo inteiro, passaram a representar, em seu estado ideal, é claro, um belo exercício de justiça e igualdade humanas, na medida em que oferecem a todas as crianças os benefícios do conhecimento, independentemente de sua condição social. Obviamente, ainda há uma enorme e injusta diferenciação na qualidade de ensino oferecido a diferentes classes sociais, mas o fato é que, se compararmos a educação de hoje, em termos de possibilidade de crescimento e realização pessoal, com aquela que dominou a História humana, é impossível negar os grandes avanços ocorridos. Hoje as escolas são, em todo o mundo, talvez o principal instrumento de socialização, de integração comunitária, de possibilidade de auto-realização. Assim, no contexto da civilização contemporânea, negar acesso à escola é negar acesso à auto-realização. à cidadania, à vida. Além disso, com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho e com as transformações ocorridas na estrutura do dia-a-dia de indivíduos e famílias, especialmente no que diz respeito ao tempo e à qualidade do convívio diário, muito daquilo que antes era aprendido no lar agora precisa ser aprendido na escola. Regras básicas de convivência, noções de certo e errado, entendimento do mundo e de si mesmo estão entre aqueles aprendizados fundamentais que, de maneira crescente, ocorrem, numa medida cada vez maior, fora dos lares. Em muitíssimos casos até, as escolas oferecem o melhor ambiente possível para o desenvolvimento das crianças, quer no sentido mais elementar de uma refeição adequada, quer nas dimensões mais sutis e determinantes de um ambiente emocional e socialmente saudável. Para os filhos de tantos lares desfeitos ou sujeitos ao álcool, à violência, à miséria e à degradação, muitos professores são, hoje, os mais importantes adultos e os melhores modelos. Muitas dessas crianças contam com eles como os mais saudáveis exemplos pelos quais irão modelar suas possibilidades de crescimento e sucesso, sua auto-estima e respeito, seus padrões de paternidade e felicidade... Para outros tantos, as melhores lembranças de carinho, amor e ternura estarão para sempre relacionadas aos bancos escolares. Além disso, no contexto de um mundo sujeito aos impulsos preconceituosos, fanáticos e etnocêntricos relacionados a religião, raça, ideologia, origem e classe, as escolas oferecem, idealmente, e também, em geral, na prática, um ambiente neutro e democrático para a convivência e a aprendizagem da convivência pacífica e respeitosa. Enquanto não se tornarem quintais das igrejas e partidos, oxalá isso nunca ocorra, as escolas representam um baluarte fundamental ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 2 9 CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE Luis Henrique Beust da sociedade pluralista, livre e democrática. Bastaria isso para fazer delas um elemento essencial no processo de educação do qual estivemos falando. Barbara Freitag, um dos grandes nomes na área do pensamento da eticidade, realizou em 1981 e 1984 um estudo piagetiano em escolas e favelas da Grande São Paulo, concentrando-se em crianças e adolescentes entre 6 e 16 anos provindos de diferentes origens socioeconômicas, com o fim de identificar o perfil de desenvolvimento moral nesta população. No estudo foram empregados os testes de moralidade sugeridos por Piaget e por Lowrence Kohlberg. Como em outros estudos realizados em outras partes do mundo, a pesquisa confirmou a existência de estágios de desenvolvimento moral, conforme postulados tanto por Piaget quanto por Kohlberg (algo de que trataremos mais adiante, quando falarmos da construção do indivíduo ético). Mais importante para nossa consideração, aqui, foi outra conclusão da pesquisa, no que diz respeito ao desenvolvimento moral diferenciado para adolescentes escolarizados e não escolarizados. Segundo Freitag: “Essa segunda hipótese foi inteiramente confirmada, favorecendo os adolescentes escolarizados. Entre estes, registraram-se os estágios mais elevados de moralidade. A decalagem [diferenciação] vertical constatada entre jovens favelados (sem experiência escolar) com relação aos jovens escolarizados de diferentes origens socioeconômicas mas de mesma faixa etária (de 12 a 16 anos de idade) era enorme.”27 Essas experiências, como outras em diferentes contextos socioculturais, demonstram, como ressalta Freitag, que a “educação geral e a educação moral tornam-se necessárias para evitar o atraso (cumulativo) no alcance dos estágios adequados do desenvolvimento [moral].”28 Na base de teoria da moralidade de Kohlberg está o postulado de que a genuína compreensão moral depende de o indivíduo ter alcançado o estágio cognitivo do pensamento operacional formal, como descrito por Piaget, o que teria relação estreita com a escolaridade. Embora a comprovação de tal relação direta ainda permaneça inconclusiva, e a distinção daquilo que é puramente lógico daquilo que é puramente moral ainda não tenha sido definida pelas pesquisas contemporâneas,29 permanece a clara indicação de que a educação ampliada, seja formal ou informal, oferece maiores condições de desenvolvimento moral ao indivíduo, se as demais variáveis forem idênticas. A escola, nos dias atuais, e a escola pública em particular, apesar de todas as grandes e urgentes necessidades de aprimoramento e transformação, representa, assim, uma tábua de salvação para milhões de crianças que, de outra maneira, estariam fadadas à ignorância e à marginalidade. O acesso à escola representa, portanto, o acesso à própria vida, à possibilidade de vida. É uma promessa, humilde que seja, de um mundo melhor para cada criança, e a ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS · 3 0 promessa da construção de um ser que possa mesmo transcender suas origens, e que se construa conforme seus mais elevados potenciais. 2 VALORES HUMANOS E MOTIVAÇÃO PARA A AÇÃO TRANSFORMADORA “Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não podem ser dicotomizadas.”30 2.1 PARADIGMAS DOMINANTES E DESUMANIZAÇÃO Durante a maior parte da História humana, em todas as culturas, era relativamente fácil entender o universo e o papel do homem dentro dele. Deus era o Criador supremo e os homens, suas criaturas supremas. Os governantes o eram por direito divino e a missão de todos os homens era obedecer a Deus, ao rei, e tratar de salvar suas almas pela fé. As regras básicas da existência eram de naturezareligiosa e a sociedade dominava sobre o indivíduo. A tarefa humana fundamental era crer e obedecer. Essa visão teocêntrica do mundo e de seu funcionamento foi questionada crescentemente, a partir da Europa do século XVII, dando lugar a um paradigma antitético: Deus existia, é verdade, mas distante. O homem passou a ser o centro do universo, e a ciência era sua criatura suprema. Os governantes derivavam sua autoridade do poder concedido a eles pelo povo. As regras da vida eram de natureza científica e o indivíduo estava acima do todo da sociedade. A tarefa fundamental dos homens passou a ser raciocinar e criar. É claro que esse paradigma, nascido com a Revolução Científica, o Iluminismo e o Racionalismo dos séculos XVI ao XVIII, representou uma antítese aos milênios de domínio cultural e social da religião sobre os homens. Ao longo dos últimos dois ou três séculos, o antropocentrismo substituiu o teocentrismo como paradigma dominante. A razão substituiu a fé. O objetivo substituiu o subjetivo. A certeza substituiu o mistério. Essa mudança de Weltanschauung da civilização ocidental difundiu-se para o mundo inteiro, através do processo de industrialização e globalização que se lhe seguiu. Desde então, a ciência e a razão são dotadas de força de lei, de forma tão categórica quanto haviam sido, no passado, a doutrina e a fé. Fritjof Capra, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, um dos mais destacados físicos e pensadores contemporâneos, comenta: “A crença na certeza do conhecimento científico jaz na própria base da filosofia cartesiana e na cosmovisão que dela nasceu; e foi aqui, nas próprias origens, que Descartes se equivocou. A Física do século XX nos convenceu, de maneira forçosa, que não há verdade absoluta na Ciência, que todos os nossos conceitos e teorias são limitados e aproximados. A crença cartesiana na verdade ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 3 1 CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE Luis Henrique Beust científica é ainda muito disseminada hoje em dia e se reflete no cientificismo que se tornou típico de nossa cultura Ocidental.”31 Porém, como antítese que é, o paradigma científico-racional contemporâneo ainda não está completo. Na verdade, nenhum paradigma jamais poderá ser considerado completo. Dar- se conta dessa limitação é fundamental para se poder ir além dos limites criados por ele. Capra observa: “O método de pensamento de Descartes e sua visão da natureza influenciaram todos os ramos da Ciência moderna e podem ainda ser muito úteis hoje em dia. Mas serão úteis somente se suas limitações forem reconhecidas. A aceitação da visão cartesiana como verdade absoluta, e do método de Descartes como a única forma de conhecimento válida desempenharam um papel importante na geração de nosso desequilíbrio cultural contemporâneo.”32 O grande sucessor de Descartes na busca do conhecimento objetivo da natureza foi Isaac Newton. Seu êxito em desenvolver todo um modelo matemático para a visão mecanicista da natureza levou o paradigma do universo-máquina ainda mais longe. Além da certeza no conhecimento científico e no primado da razão, Newton difundiu o paradigma da realidade composta de partes isoladas e independentes, os átomos, e da possibilidade de compreender o todo a partir apenas do estudo das partes. Essa visão atomista e reducionista agiria sinergicamente com os postulados cartesianos para criar todo um paradigma cada vez mais “objetivo” e “realista”, em que as sutilezas das percepções desenvolvidas por épocas anteriores se perderam. Capra segue sua análise: “O extraordinário sucesso da física newtoniana e da crença cartesiana na certeza do conhecimento científico conduziram diretamente à ênfase que nossa cultura atribuiu à ciência pura e à tecnologia pura. Somente em meados do século XX é que se tornou claro que a idéia de uma ciência pura era parte de um paradigma cartesiano-newtoniano, um paradigma que seria então superado.”33 Embora não tenha sido esta a intenção de Descartes, ou de seu grande sucessor, o fato é que os pensadores que os sucederam, quer nas ciências da natureza, quer nas humanidades, estenderam a outros domínios do conhecimento um visão crescentemente materialista e mecanicista, buscando tratar a natureza, o homem e a sociedade como máquinas. Houve, num sentido cada vez mais intenso e geral, um processo de dessacralização da vida e de suas metas. “Os pensadores do século XVIII” – continua Capra – “levaram este programa mais longe, ao aplicarem os princípios da mecânica newtoniana às ciências que estudavam a natureza humana e a sociedade. As ciências sociais recentemente criadas geraram grande entusiasmo, e alguns de seus expositores chegaram mesmo a reivindicar a descoberta de uma Física social.”34 Eventualmente, nessa caminhada obsessiva pela realidade objetiva, todos os fenômenos ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS · 3 2 subjetivos e todos os valores espirituais foram descartados como inúteis. A famosa postulação de Marx em A Ideologia Alemã cria escola e se impõe no mundo: “O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina suas consciências.”35 Apesar de tal interpretação da realidade ter deixado de ser verdade absoluta ao ser cabalmente desmentida por Max Weber, em seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, o fato é que o conteúdo revolucionário e político da práxis marxista dominou o cenário cultural de grande parte do mundo, sendo força incontestável na difusão de uma postura e interpretação puramente materialista da realidade. Como se não bastasse, em 1882, Nietzsche, proclama que “Deus está morto!”36 Esse paradigma atomista, materialista, reducionista e mecanicista está nas raízes da crescente desumanização do ser humano ao longo dos últimos 300 anos. Eric Fromm descreve vivamente o que se passa na consciência e no comportamento das pessoas quando passam a tratar o universo como se fosse uma grande máquina, pessoas que ele denomina de “necrófilos”, ou seja, amantes das coisas mortas. “... o indivíduo necrófilo ama tudo o que não cresce, tudo o que é mecânico. A pessoa necrófila é movida por um desejo de converter o orgânico em inorgânico, de observar a vida mecanicamente, como se todas as pessoas viventes fossem coisas. Todos os processos, sentimentos e pensamentos de vida se transformam em coisas. A memória e não a experiência; ter, não ser, é o que conta. O indivíduo necrófilo somente pode se realizar com um objeto – seja uma flor ou uma pessoa – se o possuir. Em conseqüência, a ameaça à posse é uma ameaça a ele mesmo. Se perde a posse, perde contato com o mundo.”37 Outro grande nome da Psiquiatria do pós-guerra, Victor Frankl, criador da terceira escola de Psiquiatria de Viena (depois de Sigmund Freud e Alfred Adler), e uma das mais extraordinárias vidas e mentes do século, descreve as conseqüências nefastas do materialismo e do tecnicismo na sociedade contemporânea: “... a evidência clínica sugere que a atrofia do sentido religioso na pessoa humana resulta numa distorção de seus conceitos religiosos. Ou, falando em termos menos clínicos: uma vez reprimido o anjo dentro de nós, ele vira um demônio. Existe um paralelo inclusive em nível sociocultural, pois repetidas vezes observamos e somos testemunhas de como a religião reprimida acaba degenerando em superstição. Em nosso século, o endeusamento da razão e uma tecnologia megalomaníaca constituem as estruturas repressivas em prol das quais é sacrificado o sentimento religioso. Este fato ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 3 3 CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE Luis Henrique Beust explica grande parte da atual condição humana, a qual realmente pareceuma neurose compulsiva universal da humanidade, para citar Freud.”38 Ken Wilber, um dos maiores filósofos da atualidade, comenta sobre a ruptura da cultura contemporânea a partir da dissociação ocorrida entre os “Três Grandes”, como ele chama o Belo, o Bom e o Verdadeiro. Essas três dimensões de valores, identificadas por Platão, seguiram sendo os referenciais de grandes pensadores ao longo dos séculos, como Tomás de Aquino, Kant, Popper e Habermas. Wilber, numa análise fascinante, identifica como esses três domínios se relacionaram ao fazer humano de formas bem distintas, mas complementares, até interdependentes, ao longo da maior parte da História de todas as culturas e civilizações, com exceção da Modernidade39 na cultura ocidental. Ele também identifica os “Três Grandes” com outras dimensões epistemológicas e ontológicas. Senão, vejamos: O Belo tem a ver com a consciência, a subjetividade, a identidade pessoal, a auto-expressão (inclusive arte e estética), a veracidade, a sinceridade, a consciência vivida irredutível e imediata, os “relatos na primeira pessoa”. O Belo é o domínio da arte e do eu. O Bom diz respeito à ética e à moral, às visões de mundo, ao contexto compartilhado, à cultura, aos significados intersubjetivos, à compreensão mútua, ao apropriado, à justeza, aos “relatos em segunda pessoa” (tu, você; vós, vocês). O Bom é o domínio da moral e do nós. O Verdadeiro se relaciona com o domínio da ciência e da tecnologia, com a natureza objetiva, com as formas empíricas, com a verdade propositiva, com as exterioridades objetivas tanto de indivíduos quanto de sistemas, e aos “relatos na terceira pessoa” (ele, ela, eles, elas). O Verdadeiro é fundamentalmente o domínio da ciência e das coisas. Wilber descreve como o projeto da Modernidade tratou de separar essas três grandes esferas que sempre haviam andado mescladas ao longo da História. Isso, de certa forma, foi bom, pois permitiu que cada uma delas pudesse se desenvolver sem os freios que as demais poderiam inadequadamente impor-se mutuamente. Mas ele também mostra como, mais do que diferenciação, a cultura moderna ocidental dissociou uma esfera da outra, criando barreiras (aparentemente) intransponíveis entre o eu e o nós e o eles, entre a razão e a emoção e a intuição, entre a ciência e a arte e a religião... Comenta Wilber: “[...] a diferenciação entre os Três Grandes [o Belo, o Bom e o Verdadeiro] (e essa foi a dignidade da modernidade) degenerou em dissociação dos Três Grandes (o que representou o desastre da modernidade). Essa dissociação permitiu que uma ciência empírica explosiva, associada a formas florescentes de produção industrial – sendo que ambas enfatizavam somente o conhecimento das ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS · 3 4 coisas e a tecnologia das coisas – dominasse e colonizasse as outras esferas de valor [o Belo e o Bom] efetivamente destruindo-as em seus termos próprios. “Assim, as [...] dimensões interiores foram reduzidas às suas [...] correspondentes exteriores, o que significou o colapso do Grande Encadeamento do Ser,40 e com ele, dos postulados centrais das grandes tradições sapienciais. “[...] Aí está, precisamente, o desastre da modernidade, o desastre que foi o ‘desencantamento do mundo’ (Weber),41 a ‘colonização da esfera dos valores pela ciência’ (Habermas), o ‘surgimento da terra desolada’42 (T.S.Eliot), o nascimento do ‘homem unidimensional’ (Marcuse), a ‘dessacralização do mundo’ (Schuon), o ‘universo desqualificado’ (Mumford). “Por qualquer outro nome que seja, trata-se do desastre conhecido como terra plana”.43 Assim, o fato é que, via um processo progressivo de materialização, racionalização e mecanização do universo, do indivíduo e da sociedade, a cultura moderna acabou por coisificar o mundo, o ser humano e seus ideais. Os paradigmas dominantes da Modernidade levaram à desumanização do ser humano e de seu mundo. 2.2 A PERMANÊNCIA DOS VALORES “DESUMANOS” Há, ainda hoje, em todo o mundo, uma inércia – herança tardia da Renascença, do Iluminismo, do Racionalismo e da Revolução Industrial – de se conceber as soluções dos problemas humanos, inclusive sociais, em termos meramente técnicos e materialistas. Tal abordagem dá ênfase aos recursos, especialmente econômicos, não às pessoas; à transferência de conhecimento e tecnologia, não à educação e à capacitação; às normas e regulamentos, não ao diálogo; às exigências técnicas e financeiras, não às espirituais. Arnold Toynbee, para muitos o maior historiador do século, comentava, já nos anos 50, sobre esta falácia das soluções técnicas, ao discorrer sobre a integração mundial que viemos a chamar de globalização: “Desde o começo a humanidade tem estado dividida - hoje nos unimos finalmente. ... Mas nosso andaime, armado no Ocidente, é constituído por materiais menos duráveis. Seu elemento mais notório é a técnica e o homem não pode viver somente da técnica”.44 Toynbee ressaltava a necessidade urgente de a interdependência mundial passar também pelo enriquecimento cultural mútuo, pelos valores humanos, por aqueles princípios espirituais, universais e atemporais como a Justiça, a Liberdade e o Amor. Para que a aldeia global que se estava formando não se transformasse numa aldeia de dominadores e dominados, de possuidores e excluídos. Paulo Freire, da mesma forma, não se sentia tolhido de falar em Amor quando falava de ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 3 5 CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE Luis Henrique Beust transformação social. Para não parecer piegas, entretanto, (devemos lembrar que corriam os anos 60!) sentiu ser necessário apoiar-se em Che Guevara que afirmava que “o verdadeiro revolucionário está guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem esta qualidade.”45 A ideologia da desumanização, da racionalidade crua e mecânica e das ações “isentas” de sentimentos, baseadas apenas em dados “científicos”, dominou grande parte do último século, ao ponto de muitos não conseguirem perceber outra alternativa para a realidade. Essa miopia de visão social caracterizou aquilo que viemos a reconhecer como Modernidade. Sua difusão pelo mundo, e as conseqüências disso, é descrita por Ervin Laszlo, um dos cientistas fundadores do Clube de Roma e consultor científico da UNESCO: “A reunião do conhecimento científico e dos ofícios práticos sinalizou o nascimento da ciência aplicada, ou tecnologia. Seu surgimento na Europa, em estados-nações que dominavam os sete mares e se consideravam plenamente soberanos, pavimentou o caminho para a industrialização e todas as suas bem conhecidas conseqüências. Os valores da civilização industrial foram difundidos para o resto do mundo através do mercantilismo e da busca por novas matérias-primas, assim como (num estágio posterior) por novos mercados. (...) “Os valores e aspirações associados com o modernismo espalharam-se de forma pouco sábia, na medida em que povos dominados pela tradição buscavam os confortos e o poder concedidos pela tecnologia, mas se achavam também expostos à sua mentalidade subjacente. Assim se espalharam pelos quatro cantos do mundo o materialismo, o egoísmo, o chauvinismo, o ateísmo e a intolerância ao subdesenvolvimento. Se para algumas pessoas tais atitudes parecem hoje ser expressões da própria natureza humana, isso é porque adotaram-nas de modo tão completo que nada mais parece concebível.”46 Laszlo então denuncia a falácia de se imaginar que os valores e padrões da sociedade moderna contemporânea sejam finais ou ideais: “Ao contrário do que muitos crêem piamente, o modernismo não é a expressão final da natureza humana, mas apenas uma fase da evolução humana e sociocultural. ... Muitos grandes pensadores hoje vêem nossa civilização a trilhar o caminho errado, tanto material quanto espiritualmente. Elesbuscam uma mudança espiritual através da educação e da religião, que conduza a um redespertar de nosso senso de compaixão por toda a humanidade.” É importante ter em consideração que tais palavras sobre a premência de nosso redespertar espiritual têm sido, cada vez mais, pronunciadas por cientistas, como Toynbee e Laszlo, e não apenas por teólogos ou espiritualistas. A necessidade de se redimir a verdadeira natureza humana não tem escapado às mentes mais perspicazes, qualquer que seja o domínio do conhecimento ao qual se dedicam. ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS · 3 6 Paulo Freire também reforça essa visão de que os ideais desumanizados do materialismo não podem ser tidos como vocação ou necessidade, como finais ou como única alternativa humana. É dele a seguinte expressão lúcida, comovente e inspiradora: “Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão. “Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada. “A desumanização ... é distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos de fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como seres para si, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é porém, destino dado...47 No que toca especificamente à educação e à sua potencial ação libertária e humanizadora, Paulo Freire ressalta que esta precisa ser dialógica, pois, se não houver diálogo, o que há é dominação. E aponta para o fato de que tais meta, postura e método humanizadores só podem existir se fundados nos valores espirituais humanos: “Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a infunda. “Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia de amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens.”48 Esta percepção de que os valores humanos, ou espirituais, estão na base da motivação e da mobilização para a ação transformadora é uma grande redescoberta da segunda metade do século XX. As teorias contemporâneas sobre motivação humana apontam para o fato de que as consciências dos homens não podem ser mobilizadas se seu coração não for tocado. Os grandes valores espirituais da Verdade, do Belo, do Bem, da Justiça, do Amor etc. são elementos indeléveis da natureza humana, e sua negação ou menosprezo estão na raiz da maior parte dos problemas globais contemporâneos. Por que, então, tais princípios espirituais são negados ou menosprezados? ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO · 3 7 CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE Luis Henrique Beust 2.3 A INÉRCIA DOS MODELOS MENTAIS E A AÇÃO TRANSFORMADORA É Ervin Laszlo, novamente, como uma das vozes mais notáveis do século em prol da humanização das ações governamentais e sociais, quem nos pode ajudar a começar a entender as razões pelas quais, apesar de os valores humanos existirem e serem conhecidos, não são utilizados como instrumento de mudança social. Laszlo aponta para o que chama de “limites internos” da humanidade, que identifica com a inércia em revermos criticamente a Weltanschauung, a cosmovisão da qual derivamos a lógica (ou a falta dela) para nossa intervenção no mundo. Ele comenta: “Esquece-se que não nosso mundo, mas nós seres humanos é que somos a causa de nossos problemas, e que apenas redesenhando nosso pensamento e ação, e não o mundo ao nosso redor, é que os poderemos solucionar. ...” “Não há praticamente nenhum problema mundial cuja causa não possa ser vinculada à ação humana e que não possa ser superado por mudanças adequadas no comportamento humano. As causas que estão na raiz mesmo dos problemas físicos e ecológicos são as limitações internas de nossa visão e nossos valores.” 49 O fato é que a razão, a emoção e as ações concretas humanas são reflexo da visão, das crenças e valores que são nutridos subjetivamente, aquilo que pesquisadores como Howard Gardner e Peter Senge, ambos da Universidade de Harvard, chamam de “modelos mentais”, ou “representações mentais”, e que Thomas Kuhn batizou de “paradigmas”. Os modelos ou representações mentais, os paradigmas, são imagens mentais arraigadas dentro de nosso ser, que usamos (individual e coletivamente) para compreender como funciona o mundo. Como a mente humana não pode lidar muito bem com dados detalhados relacionados à complexidade do mundo, ela tende a construir modelos mentais compostos de generalizações. Essas generalizações se baseiam em imagens, idéias, suposições, relatos, estereótipos e várias linguagens nutridas dentro da mente-cérebro. Como coloca Gardner, “essas representações são reais e importantes”.50 Mas o mais importante é que os paradigmas-modelos-representações mentais determinam nosso comportamento, seja individual, seja coletivo. Gardner aponta para o fato de que os comportamentos humanos objetivos podem melhor ser entendidos como “epifenômenos, isto é, as sombras de nossas representações mentais determinantes”.51 Ou seja, agimos conforme cremos e sentimos, sejam tais crenças ou sentimentos justificados ou não. Vemos e agimos de acordo com nossos paradigmas pessoais e coletivos, sejam eles válidos ou não. Segundo Senge: “... o mais importante é saber que os modelos mentais são ativos - eles modelam nosso modo ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS · 3 8 de agir. Se achamos que as pessoas não são dignas de confiança, agimos de maneira diferente da que agiríamos se achássemos que elas eram confiáveis. ... “Por que os modelos mentais têm esse poder de influenciar o que fazemos? Em parte, porque eles influenciam o que vemos. Duas pessoas com diferentes modelos mentais podem observar o mesmo acontecimento e descrevê-lo de maneira diferente, porque olharam para detalhes diferentes.”52 Thomas Kuhn, da Universidade de Chicago, o brilhante fundador da epistemologia contemporânea, já ressaltava em sua obra seminal A Estrutura das Revoluções Científicas: “[...] algo como um paradigma é um pré-requisito para a própria percepção das coisas. Aquilo que um homem vê depende tanto daquilo para o qual ele olha quanto do que sua experiência visual-conceitual anterior ensinou-lhe a ver.”53 Podemos comparar os paradigmas e modelos mentais dominantes de uma civilização ou cultura a um navio transatlântico que cruza o oceano. Dentro dele, milhares de pessoas se deslocam para cima e para baixo, entram e saem, de acordo com suas vontades: vão ao cinema, à piscina, ao jantar, ao baile, à sauna, ao camarote... Entretanto, todo esse movimento se dá dentro de um movimento maior, que é o deslocamento do navio de um continente ao outro. Esse macromovimento, dentro do qual se dão todos os infinitos micromovimentos, quase que não é percebido, já que todos se preocupam não com o deslocamento do navio, mas com suas vontades e necessidades dentro do navio. Todos se consideram livres para tudo fazer dentro do navio. Mas exatamente aí está
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