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VOLPI, M. - CAP. 13 - p. 477 a 499 - Interfaces da ed. com o sistema de ed. especial

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PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
Fernando Henrique Cardoso
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Paulo Renato Souza
MINISTRO DE ESTADO DA EDUCAÇÃO
Iara Glória Areias Prado
SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL/MEC
Antônio Emílio Sendim Marques
DIRETOR GERAL DO FUNDESCOLA/MEC
Maristela Marques Rodrigues
COORDENADORA DE DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL DO
 FUNDESCOLA/MEC
COORDENAÇÃO GERAL
Antonio Emílio Sendim Marques
Leoberto Narciso Brancher
PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
FUNDESCOLA/MEC
Brasília, 2000
COORDENAÇÃO
Afonso Armando Konzen
Alessandra Vieira
Marisa Sari
Maristela Marques Rodrigues
Munir Cury
(ordem alfabética)
Ó 2000 Fundo de Fortalecimento da Escola - FUNDESCOLA/MEC
Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude - ABMP
Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida desde
que citada a fonte e obtida autorização do FUNDESCOLA/MEC
PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
COORDENAÇÃO TÉCNICA
Afonso Armando Konzen
Alessandra Vieira
Leoberto Narciso Brancher
Marisa Timm Sari
Maristela Marques Rodrigues
Munir Cury
COLABORAÇÃO
Cândido Gomes
Rui Rodrigues Aguiar
Wilson Donizeti Liberati
IMPRESSO NO BRASIL
Pela Justiça na Educação/coordenação geral Afonso
Armando Konzen ...[et al.]. - Brasília: MEC. FUNDESCOLA,
2000.
735 p.
1. Educação. 2. Aspectos jurídicos. 3. Aspectos Sociais.
I. Konzen, Afonso Armando. II. Brasil. Ministério da
Educação. Fundo de Fortalecimento da Escola.
E56 370.19
APRESENTAÇÃO
 Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação e a regulamentação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
do Ensino e de Valorização do Magistério – FUNDEF abriram as portas da transformação
sócio-jurídica na área dos direitos da criança e do adolescente e, especialmente, da
educação. Esses instrumentos legais materializam, com a força imperativa da vontade
estatal, os anseios da sociedade brasileira por justiça na educação.
Justiça na educação significa alunos matriculados em escolas equipadas, com professores
qualificados, com materiais didático-pedagógicos suficientes, com currículo escolar
apropriado à realidade do aluno, com recursos disponíveis e mecanismos de controle
social instituídos, com a participação dos pais e da comunidade na gestão escolar, em
ambiente construído para o sucesso do aluno. Em outras palavras, justiça na educação
significa igualdade de oportunidades, que possibilitam transformações sociais, concretizadas
na adoção de novos comportamentos e valores, na reorganização da sociedade, no pleno
desenvolvimento humano e na perspectiva de mudança do presente e do futuro.
Nessa ótica as oportunidades propiciadas pela educação de qualidade abre novos
horizontes no campo da justiça social, justificando-se assim o engajamento de juízes e
promotores de Justiça que, mais do que representam, operam a eficácia legal e a exigibilidade
do direito à educação.
Com o objetivo de fortalecer a aliança entre o Sistema de Justiça e os Sistemas de
Ensino, o Ministério da Educação, por meio do Fundo de Fortalecimento da Escola –
FUNDESCOLA, e a Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e
da Adolescência - ABMP vêm desenvolvendo o Programa pela Justiça na Educação.
Abordando o direito à educação a partir da ótica do Sistema de Garantias dos Direitos da
Criança e do Adolescente, o Programa visa ao aperfeiçoamento técnico-profissional dos
magistrados e promotores de Justiça das Varas da Infância e da Juventude para atuação
em defesa e promoção desses direitos como estratégia jurídica e política de prevenção e
promoção social.
Estruturado em três eixos de implementação – articulação política, qualificação técnica e
mobilização social –, o Programa sugere o engajamento funcional e comunitário dos
profissionais do Poder Judiciário e do Ministério Público para que, de forma integrada com as
mais diversas instituições e movimentos sociais, selem compromissos e promovam iniciativas
voltadas á efetivação dos mecanismos legais de proteção à criança e ao adolescente, com
foco na família e na escola.
A
O Programa conta com o imprescindível apoio institucional de parceiros estratégicos
que integram as instituições do Sistema de Justiça, Poder Executivo e outros segmentos
institucionais. Esses parceiros vêm colaborando para a construção de uma rede articulada
de serviços e competências, para a mobilização dos operadores de Justiça e para a
otimização de iniciativas existentes e a deflagração de novas ações que garantam a
continuidade e a sustentabilidade do Programa.
Com o lançamento desta publicação, o FUNDESCOLA/MEC e a ABMP iniciam um nova etapa
do Programa, que operacionaliza o eixo da qualificação técnica por meio da realização
dos “Encontros pela Justiça na Educação” em todo o território nacional. Para se chegar a
essa nova etapa, o Programa contou com a importante contribuição dos operadores do
Direito no Estado do Maranhão, onde se realizou, em junho deste ano, um encontro-
piloto objetivando a validação da proposta técnico-pedagógica.
Esta publicação, organizada em nove módulos que correspondem aos eixos temáticos
constantes do conteúdo programático dos “Encontros pela Justiça na Educação”, constitui
uma coletânea de textos utilizados como material de suporte para esses encontros, e
preparados a partir da orientação técnica de equipe especializada nas áreas do Direito e
da Educação. Os textos e informações aqui contidos representam valiosa contribuição
para maior compreensão do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente,
e especialmente do direito à educação, que fundamenta o engajamento dos operadores
do Direito e de todos nós no Movimento pela Justiça na Educação.
Na oportunidade da publicação deste documento, o FUNDESCOLA, em nome do Ministério
da Educação, e a ABMP agradecem a todos que, movidos pela busca de justiça na educação,
contribuíram para a produção dos textos aqui inseridos. Ficam registradas a nossa estima e
agradecimento aos parceiros estratégicos cujas iniciativas já representam importante
contribuição para o sucesso do Programa. Nossos agradecimentos especiais para a equipe
de coordenação técnica, que não mediu esforços para a realização deste trabalho.
Leoberto Narciso Brancher Antônio Emílio Sendim Marques
PRESIDENTE DA ABMP DIRETOR GERAL DO FUNDESCOLA
PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
sumário geral
MÓDULO I
JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 14
CAP. 1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÂNCIA E JUVENTUDE ..... 17
Luis Henrique Beust
CAP. 2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS E JUSTIÇA - UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA ..... 71
José Luis Bolzan de Morais
MÓDULO II
ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 114
CAP. 3 ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SISTEMA DE
GARANTIA DE DIREITOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE ..... 121
Leoberto Narciso Brancher
CAP. 4 CONSELHO TUTELAR, ESCOLA E FAMÍLIA -
PARCERIAS EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO .... 159
Afonso Armando Konzen
CAP. 5 O MINISTÉRIO PÚBLICO ..... 193
Paulo Afonso Garrido de Paula
CAP. 6 PODER JUDICIÁRIO E REDE DE ATENDIMENTO ..... 209
Antônio Fernando do Amaral e Silva
CAP. 7 O PAPEL ARTICULADOR DOS CONSELHOS
DE DIREITOS E DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO ..... 255
Públio Caio Bessa Cyrino
MÓDULO III
A EDUCAÇÃO COMO POLÍTICA SOCIAL BÁSICA
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 286
CAP. 8 ESTATUTO E LDB: DIREITO À EDUCAÇÃO ..... 289
Antonio Carlos Gomes da Costa
Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima
MÓDULO IV
A GESTÃO PÚBLICA DA EDUCAÇÃO
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 314
CAP. 9 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO –
QUAL EDUCAÇÃO? DIREITO DE QUEM? DEVER DE QUEM? ..... 321
Marisa Timm Sari
Maria Beatriz Luce
CAP. 10 O DIREITO DE APRENDER DIREITO:
GARANTINDO A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 349
AdéliaLuiza Portela
Esmeralda Moura
Eni Santana Barretto Bastos
CAP. 11 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA BÁSICA NO BRASIL ..... 397
Maria Eudes Bezerra Veras
Ricardo Chaves de Rezende Martins
CAP. 12 O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EDUCAÇÃO ..... 441
José Carlos Polo
MÓDULO V
INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 476
CAP. 13 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO ESPECIAL ..... 477
Mário Volpi
CAP. 14 FICAI – UM INSTRUMENTO DE REDE DE ATENÇÃO PELA INCLUSÃO ESCOLAR ..... 495
Simone Mariano da Rocha
MÓDULO VI
 INTERFACES DA EDUCAÇÃO COM O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 508
CAP. 15 ATO INFRACIONAL, MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS
E O PAPEL DO SISTEMA DE JUSTIÇA NA DISCIPLINA ESCOLAR ..... 511
 Olympio de Sá Sotto Maior Neto
CAP. 16 A AUTORIDADE PEDAGÓGICA, O PAPEL INTERDITÓRIO
DA FUNÇÃO NORMATIVA E SEU EXERCÍCIO EFETIVO E SIMBÓLICO ..... 531
Mário Fleig
PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
CAP. 17 ATO INFRACIONAL PRATICADO NO
AMBIENTE ESCOLAR E AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS ..... 557
Paulo Sérgio Frota e Silva
CAP. 18 CÂMARAS RESTAURATIVAS: A JUSTIÇA COMO
INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS ..... 601
Pedro Scuro Neto
MÓDULO VII
DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 640
CAP. 19 DISCIPLINA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO ..... 643
Paulo Afonso Garrido de Paula
CAP. 20 O DIREITO À EDUCAÇÃO ..... 659
Afonso Armando Konzen
MÓDULO VIII
GARANTIA JURÍDICA DO DIREITO À EDUCAÇÃO
SUMÁRIO EXECUTIVO ..... 670
CAP. 21 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E
SEUS INSTRUMENTOS DE EXIGIBILIDADE ..... 673
Munir Cury
CAP. 22 OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS –
SUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL ..... 683
Hugo Nigro Mazzilli
MÓDULO IX
MOBILIZAÇÃO SOCIAL
CAP. 23 TECENDO O AMANHÃ – PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO ..... 715
Nisia Werneck
PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
NOTA DA COORDENAÇÃO GERAL
Até imprimir-se a presente edição, além de parcerias em negociação como com o Supremo Tribunal
Federal e o Superior Tribunal de Justiça, o Programa pela Justiça na Educação já conta formalmente com o
apoio institucional dos seguintes parceiros:
Ministério da Justiça
Procuradoria-Geral da República – Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão
Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil
Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça do Brasil
Associação de Magistrados Brasileiros – AMB
Confederação Nacional da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP
Colégio Nacional de Corregedores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União
Colégio de Diretores das Escolas Superiores dos Ministérios Públicos
Fundo da Nações Unidas para a Infância – UNICEF
Instituto Ayrton Senna
Fundação Banco do Brasil
MÓDULO I
JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E
VALORES FUNDAMENTAIS
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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1 4
SUMÁRIO EXECUTIVO
DESDE O INÍCIO DA CIVILIZAÇÃO, os estudiosos e pesquisadores estiveram preocupados com
a educação, ao ponto de concluir que sem educação não haveria humanidade.
A educação é vital para o homem como o próprio ato de sobreviver, no sentido de preservar
sua frágil existência e assegurar sua evolução. Com a educação, o homem adapta-se ao meio
em que vive, a ponto de ser ela tão importante e fundamental quanto o ato de procriar ou de
desenvolver-se na vida social. Neste sentido, a educação é a própria humanidade.
O homem, integrado com o meio-ambiente, constitui uma unidade biológica que busca
permanente equilíbrio entre o próprio organismo (o ser humano) e o meio. Dessa adaptação,
surge a aprendizagem, atividade fundamental da vida, também conhecida por educação,
expressão da própria condição humana.A saúde surge, também, como fruto da educação. Sua
definição, conferida pela Organização Mundial de Saúde – OMS, é o “estado dinâmico de bem-
estar físico, psíquico, social e espiritual”.
Para o homem viver bem é necessário suprir as necessidades físicas, emocionais, psicológicas
e espirituais, que dão equilíbrio à existência humana. A educação interage com a saúde do ser
humano quando ele precisa aprender a melhorar a vida, por meio de cuidados com o corpo
(adequada alimentação, repouso, higiene etc.), do atendimento às suas necessidades emocionais
(pelo amor, simpatia etc.); necessidades psicológicas (de realização, de autonomia, expressão,
lazer e comunicação etc.), e espirituais (virtudes, propósito de vida, transcendência etc.).
Enfim, a educação não é necessária somente para a sobrevivência do ser humano, mas,
também, para dar-lhe qualidade de vida, com plenitude e felicidade.
A educação, percebida como um dos maiores dons e deveres da humanidade, já foi
considerada propriedade exclusiva dos deuses. Pelo conhecimento, o homem imaginou que
podia ser independente da divindade, mas afinal descobriu que isso não o libertou de sua
condição humana.
Ao longo da história, a educação emerge como modelo e arquétipo da redenção humana
de sua própria condição humana que está num constante devir. A educação, além de garantir
a sobrevivência e a saúde da espécie humana, permitiu construir um padrão de existência,
conhecido por civilização. A educação sempre foi o elemento catalizador da garantia da
continuidade das conquistas humanas.
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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1 5
A educação é muito mais antiga e ampla do que as instituições chamadas escolas. A maior
parte da educação humana dá-se de maneira não formal, por meio da convivência, da orientação
e da imitação. Hoje em dia, outros meios de comunicação, como a televisão, o computador e a
Internet, alimentam o conteúdo educacional de maneira informal.
A escola pública, como estrutura formalizada da educação, é a criação do século passado,
que objetivava socializar o conhecimento, num exercício de justiça e igualdade na distribuição
de seus beneficiários, independentemente da condição social dos educandos.
Durante a Idade Média, as regras básicas de existência do ser humano eram baseadas na
religião e a sociedade dominava o homem; sua obrigação era crer e obedecer.
Com a evolução do conhecimento, a modernidade propôs a tarefa fundamental do ser humano
como a de raciocinar e criar.
Após um processo progressivo de materialização, racionalização e mecanização do universo
do homem e da sociedade, a cultura moderna retirou a importância do ser humano e de seus
ideais. Esses paradigmas levaram à desumanização do ser humano.
Pode-se dizer que os paradigmas do Iluminismo, do Racionalismo e da Revolução Industrial
ainda contribuem para a inércia da resolução dos problemas humanos, baseados que estavam
em ações desprovidas de sentimentos.
Os princípios orientadores dos valores humanos valorizam uma redescoberta dos princípios
eternos e universais proclamados pelas grandes tradições espirituais e sapienciais da
humanidade.
O século XX foi profícuo em produzir leis que garantissem os direitos da criança e do
adolescente, tanto no âmbito interno quanto no internacional.
Esse ordenamento jurídico é exemplificado pela Declaração Universal dos Direitos do
Homem (1948), a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), a Convenção sobre os
Direitos da Criança (1989), o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (1996), além dos princípios constitucionais gravados na Carta
Política de 1988.
A abordagem sobre direitos humanos induz todos os operadores do direito a pensar na
possibilidade de abrir novos horizontes e de dar condições àqueles que se preocupam com o
futuro das liberdades públicas, de atuar buscando respostas eficientes aos anseios da cidadania,
concretizadas na vida do Direito.
Os direitos de liberdade, de igualdade e solidariedade entraram no rol de garantiasconstitucionais dos cidadãos após hercúlea batalha contra o absolutismo de governos e de
governantes. Somente a inclusão desses direitos na ordem jurídica não basta para a garantia
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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da cidadania; é preciso dar-lhes efetividade prática, ou seja, instigar os agentes políticos –
jurídicos – sociais para que assumam a tarefa de garantir que todos possam usufruí-los em
benefício próprio e comum ao mesmo tempo.
Na análise dos direitos humanos, aparece, em destaque, a transformação dos interesses
em individuais (direito subjetivo), coletivos (quando um interesse comum afetar uma coletividade
inteira de individuais reunidos em torno de vínculos jurídicos) e difusos (indeterminação
subjetiva de sua titularidade).
Esses direitos não poderiam ficar desconectados da vontade popular; portanto, assumiram
o caráter formal das normas constitucionais carregando, em si mesmas, a hierarquia e a
estabilidade das normas superiores. A constitucionalidade dos direitos humanos fundamentais
teve garantia, entre nós, desde a Constituição Imperial (1824), renovada nas demais Cartas, até
a atual, que referenda todas as gerações supostas de direitos humanos.
Aliados aos direitos humanos fundamentais, também conhecidos por liberdades públicas
de primeira geração, surgem, a partir do final da primeira guerra mundial, os direitos sociais
considerados de segunda geração, que enfatizaram os direitos relacionados às relações do
trabalho, à previdência, à saúde, e, particularmente, à educação.
Essa nova ordem social, também garantida no texto constitucional, traz com um perfil
diferenciado uma também nova maneira de garantir um direito: o da prioridade absoluta. Somente
os direitos infanto-juvenis receberam esse plus constitucional, ou seja, os direitos das crianças e
dos adolescentes deverão ser garantidos com prioridade sobre todos os demais direitos.
E o direito constitucionalizado da educação apareceu no rol daqueles que devem ser erigidos
como prioritários, pois hodiernamente esse direito representa importante relevância social na
medida em que a detenção do conhecimento importa na apropriação de poder e de votar.
Para a garantia desses direitos, a Constituição Federal instrumentaliza a sociedade,
atribuindo-se-lhe legitimidade para demandar, com os instrumentos jurídicos próprios, ágeis e
eficazes na satisfação de suas pretensões. Esses instrumentos, no seu contexto operacional
próprio, são de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção.
Por fim, não existiria ambiente ideal para consolidação das pretensões democráticas de
cidadania, incluindo aqui, especialmente, direito constitucional à educação, que o locus privilegiado
da Constituição. Aqui, os operadores do Direito poderão buscar a fonte garantista dos direitos
humanos fundamentais das crianças e a adolescentes como sujeitos de direitos que são.
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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1 7
1CAPÍTULO
ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÂNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust*
SUMÁRIO
1 PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS PARA A DEFESA DOS DIREITOS
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE À EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 18
1.1 EDUCAÇÃO E HUMANIDADE ..... 18
1.2 EDUCAÇÃO E SAÚDE ..... 20
1.3 EDUCAÇÃO E ARQUÉTIPOS ..... 21
1.4 EDUCAÇÃO E AUTO-REALIZAÇÃO ..... 24
1.5 EDUCAÇÃO E ESCOLARIDADE ..... 26
2 VALORES HUMANOS E MOTIVAÇÃO PARA A AÇÃO TRANSFORMADORA ..... 30
2.1 PARADIGMAS DOMINANTES E DESUMANIZAÇÃO ..... 30
2.2 A PERMANÊNCIA DOS VALORES “DESUMANOS” ..... 34
2.3 A INÉRCIA DOS MODELOS MENTAIS E A AÇÃO TRANSFORMADORA ..... 37
2.4 RECONSTRUIR MODELOS MENTAIS E PARADIGMAS EM PROL DA HUMANIZAÇÃO ..... 40
2.5 A ORIGEM E FONTE DOS VALORES HUMANOS ..... 41
3 A FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO ÉTICO ..... 44
3.1 AS TRÊS FORMAS DE EDUCAÇÃO E A EDUCAÇÃO MORAL ..... 44
3.2 A NATUREZA HUMANA, AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS E A MORAL ..... 49
3.3 UNIVERSAIS MORAIS E JANELAS DE OPORTUNIDADE PARA A FORMAÇÃO ÉTICA ..... 50
3.4 A EDUCAÇÃO DA VONTADE E A SOCIEDADE ÉTICA ..... 53
3.5 OS PRINCÍPIOS ESPIRITUAIS UNIVERSAIS ..... 58
4 A FUNDAMENTAÇÃO DO SISTEMA DE GARANTIAS LEGAIS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE ..... 61
4.1 UM SÉCULO DE LEIS ..... 61
4.2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH) ..... 62
4.3 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA (DUDC) ..... 62
4.4 CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA (CIDC) ..... 63
4.5 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA) ..... 64
4.6 LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO (LDB) ..... 64
5 COMPROMISSO HISTÓRICO E POLÍTICO ..... 64
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..... 65
* Diretor do Centro Educacional Bahá’í Soltanieh. Coordenador do Conselho de Educação Global na América
Latina. Consultor internacional em Educação para a Paz.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
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1 8
O texto ressalta a importância da educação para a vida e o progresso humanos,
apresentando-a como elemento fundamental para a sobrevivência da espécie, o
desenvolvimento da civilização e a plenitude de vida individual. Mostra como, durante a
Modernidade (século XVI até o presente), os paradigmas de cientificismo, racionalidade,
objetividade e materialismo destruíram o equilíbrio dos valores humanos e princípios espirituais
que sempre deram sustento à civilização e à realização humanas. Tal radicalismo deu-se em
antítese ao teocentrismo dogmático e obscurantista dos mil anos da Idade Média da cristandade
européia (século V ao XV), e acabou por minar os fundamentos da eticidade e da moral, que
são fundamentalmente espirituais por natureza. Argumenta-se que o período pós-moderno
em que vivemos oferece a necessidade e a possibilidade de uma síntese entre a razão e os
valores humanos, entre a ciência e a espiritualidade, apresentando os postulados de grandes
pensadores clássicos, modernos e contemporâneos. Estabelece-se a necessidade dos grandes
princípios e valores morais universais, dentro de um contexto pluralista e transecumênico,
para que se possa fundamentar uma educação libertadora e garantir a formação do indivíduo
e da sociedade éticos, em que valores como o Amor e a Justiça conduzam o fazer social.
1 PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS PARA A DEFESA DOS DIREITOS
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE À EDUCAÇÃO ESCOLAR
1.1 EDUCAÇÃO E HUMANIDADE
Sem educação não haveria humanidade. A frase pode soar como um exagero, mas, no
tocante à educação, esse é o grande tema e a justa conclusão apresentados nos escritos dos
grandes pensadores, religiosos ou laicos, homens da ciência ou das humanidades, em todas as
culturas, ao longo dos cinco ou seis mil anos de civilização.
E não é para menos: ao contrário dos animais, os seres humanos dependem da educação
para sobreviver. Com um arsenal de instintos menos elaborado e menor repertório de respostas
automáticas para a vida, homens e mulheres dependem do aprendizado para assegurar que
suas existências transcorrerão de forma segura e satisfatória. Diferentemente dos animais, a
vida humana inicia-se de maneira extremamente frágil. Um recém-nascido é incapaz de prover
seu próprio sustento ou sobreviver sem o amparo constante de adultos, senão depois de
passados longos anos de amadurecimento.
A educação, passada pelos adultos às novas gerações, sempre foi, assim, não apenas a
ferramenta essencial da construção da cultura e da civilização, mas o instrumento supremo da
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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1 9
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
própria sobrevivência humana e de sua evolução. A educação, como instrumento que permitiu
aos homens uma cada vez mais elaborada adaptação ao meio ambiente, ao longo de incontáveis
eras, foi o grande diferencial na história evolutiva da humanidade.
As pesquisas científicas realizadasdurante o século XX, em áreas como a Psicologia, a
Antropologia e a Sociologia, consolidaram uma enorme gama de dados sobre a necessidade
da educação, a ponto de se poder afirmar que o ato de aprender e de ensinar é tão fundamental
para a raça humana quanto a procriação ou a vida social. A educação, mais do que qualquer
outro elemento tomado em separado, garantiu a sobrevivência e a evolução da humanidade.
Nesse sentido, educação é humanidade.
Jean Piaget, Noam Chomsky e outros descreveram estruturas (de pensamento e de
linguagem, entre outras) relacionadas à mente humana, as quais exigem um desenvolvimento
tão natural e vital quanto o crescimento do corpo ou a associação grupal.1 A aprendizagem,
nesse contexto, é vista como uma função vital, por meio da qual cada aprendiz (todos os seres
humanos) está ativa e permanentemente formando estruturas mentais novas na sua interação
com o meio ambiente; ou seja, está permanentemente aprendendo.
O enfoque biológico, adotado por Piaget para entender e explicar a apendizagem/educação,
ressalta que cada ser humano, como ser vivo, é um organismo em constante interação com o meio
ambiente. Na verdade, o organismo (o ser humano), o meio e a interação entre eles constituem
uma unidade biológica na qual os três elementos estão inseparavelmente conectados. O processo
de aprendizagem, nesse contexto, é desencadeado por uma perturbação do equilíbrio
experimentado entre o organismo e o meio. O organismo procura superar essa perturbação, e o
sentimento subjetivo de tensão ou necessidade que emerge dela, por meio de uma adaptação.
Quando essa mudança no ambiente é enfrentada por adaptação do organismo, houve aprendizagem.
Nesse sentido, pois, poder-se-ia dizer não apenas que a educação (ensino/aprendizagem)
é uma atividade fundamental da vida, mas sim que a própria vida é aprendizagem, ou educação.
A vida, individual ou social, nada mais é do que uma cadeia única de processos de aprendizagem.
Piaget chega a falar de uma “epistemologia genética” e da organização biológica como uma
“estrutura cognitiva” que interage com o meio ambiente.
Essa base biológica do processo de aprendizagem demonstra, pois, o quanto a educação
é vital para o próprio processo de existir. É claro, porém, que a vida especificamente humana
não se esgota no nível biológico; antes, desenvolve-se num plano sociocultural. A educação
humana, portanto, não ocorre apenas ao nível de uma ação recíproca biológica, mas, bem
1 Ver notas e referências bibliográficas a partir da página 65.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
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2 0
mais do que isso, numa ação sociocultural recíproca do sujeito e seu meio, entre o indivíduo
e aqueles que o rodeiam.
Esse enfoque sociocultural ressalta o fato de que o processo de educação de cada ser
humano não se dá no vazio, nem de forma isolada, mas sempre no seio de um grupo humano,
no qual cada pessoa deve viver e aprender. É fácil perceber, nessa situação, que o aprendizado
se dá não apenas pela necessidade intelectual ou cognitiva que o indivíduo tem daquilo que
está aprendendo, mas de uma plêiade de fatores emocionais, sociais e existenciais. Ou seja,
como seres humanos, aprendemos não apenas porque temos necessidade de aprender num
sentido intelectual, mas porque temos necessidades de amar e ser amados, de ser aceitos,
respeitados e benquistos; necessitamos encontrar um propósito para nossas vidas e respostas
adequadas para questões como o sofrimento e a morte.
Embora seja bastante comum falar de educação para referir-se simplesmente ao
desenvolvimento cognitivo, ou tão somente à transmissão de instrução, o fato é que, como
vimos, educação é bem mais do que isso. Howard Gardner, da Universidade de Harvard, o
destacado descobridor das inteligências múltiplas, afirma que a educação precisa ser vista
como “um empreendimento muito mais amplo, envolvendo motivação, emoções, práticas e
valores sociais e morais.”2 A educação, assim vista, é a própria expressão da condição humana.
1.2 EDUCAÇÃO E SAÚDE
A Organização Mundial da Saúde, OMS, define saúde como o “estado dinâmico de bem-
estar físico, psíquico, social e espiritual”. Nessa concepção contemporânea de saúde, identificam-
se também as quatro áreas nas quais uma pessoa pode estar enferma. Podemos sofrer de
enfermidades físicas (bursite, alergia, câncer), enfermidades psíquicas (neuroses, psicoses),
enfermidades sociais (violência, miséria, desemprego), ou enfermidades espirituais (anomia,
ódio, falta de sentido na vida, desesperança).
Essas áreas de saúde/doença definem também aqueles campos da existência humana que
precisam ser adequadamente atendidos para podermos viver bem. Ou seja, nossa vida depende
de que sejam supridas as necessidades físicas, emocionais, psicológicas e espirituais (também
chamadas existenciais) que nos constituem como seres. O suprimento dessas necessidades
vitais se dá por meio do processo de ensino/aprendizagem, de forma que podemos, agora,
associar a educação não apenas com nossa sobrevivência (o que não seria pouco!), mas também
com nossa saúde plena.
No campo físico, necessitamos aprender como sustentar e melhorar nossa vida com adequada
alimentação, repouso, atividade, higiene e proteção.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
·
2 1
CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
No campo emocional, nossas necessidades são supridas pelo aprendizado do amor, da
simpatia, da atenção, da estima, do aconchego, da auto-estima e da auto-aceitação, sem os
quais não podemos nos desenvolver de forma plena e feliz. Na verdade, a própria sobrevivência
física fica comprometida quando tais necessidades emocionais são desatendidas.
Nossas necessidades psicológicas de realização, autonomia, lazer, expressão e comunicação,
entre outras, também são supridas por meio do aprendizado adequado de capacidades pessoais
e sociais que as viabilizam e desenvolvem.
Da mesma forma, é a educação o instrumento supremo que permite a cada nova geração
de homens desenvolver aqueles conhecimentos, habilidades, atitudes e qualidades de natureza
espiritual ou existencial que lhe permitem satisfazer suas necessidades de transcendência,
beleza, virtude e propósito para a vida.
Educação, portanto, tem a ver não apenas com sobrevivência, mas com qualidade de vida,
com plenitude, com felicidade.
1.3 EDUCAÇÃO E ARQUÉTIPOS
Os homens sempre perceberam, ainda que inconscientemente, que o conhecimento, e sua
transmissão, tinha algo de supremo, de vital, de divino – que estava relacionado com sua
própria sobrevivência e plenitude de vida.
A educação, assim, sempre foi percebida como um dos maiores dons e deveres da
humanidade, quer ante Deus (ou deuses) quer ante os próprios homens. Para as percepções
mais aguçadas, ao longo dos séculos, tão relevante tem sido a educação – e seu fruto, o
conhecimento – que sua natureza - e processo - chegou a ser descrita como limitada ao domínio
celestial, sem acesso aos homens, ou como algo sobrenatural, ou como uma porta para a
eternidade. Os vários mitos relacionados à Criação e os textos sagrados dos primórdios da
História refletem essa importância vital atribuída ao conhecimento.
Na mitologia grega, Prometeu, que era um dos Titãs e, portanto, primo de Zeus, é
representado como um especial amigo da humanidade. Segundo as mais antigas tradições do
mito, é Prometeu quem cria o homem, a partir do barro. Depois disso, desejando dar à nova
criatura acesso ao que somente pertencia aos deuses, Prometeu rouba de Zeus o conhecimento
do fogo (ele próprio símbolo do conhecimento) e o entrega à humanidade.
Zeus, enfurecido por não mais deter a exclusividade do conhecimento, castiga a humanidade
com toda espécie da pragas e sofrimentos. Tal castigo chega através de uma bela mulher,
Pandora, que fôra criada pelos deuses e dada de companheira ao irmão de Prometeu, Epimeteu.Apesar de bela, Pandora tinha o engano e a trapaça no coração, e é por meio de suas mãos que
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se abre a caixa ou jarra de onde saem todos os males que afligem a humanidade. Mas, apesar
de agora sofridos, os homens detinham o conhecimento que antes era somente dos deuses. E,
assim, resta a esperança...
No Antigo Testamento, o Gênesis faz um relato similar do “ciúme” divino quanto ao
conhecimento, e do castigo imposto à humanidade como preço por ter comido da “árvore do
conhecimento do bem e do mal”.3 Ao comer o fruto proibido, Adão e Eva se apropriam de algo
que era restrito aos céus, e se tornam “como deuses”,4 com seus olhos abertos pelo conhecimento.
O próprio Deus exclama: “Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal”.5 Para
que essa usurpação de posições não prossiga, e o homem se torne, além de conhecedor,
imortal, Deus expulsa Adão e Eva do jardim do Éden, para que “não estenda sua mão e tome
também da árvore da vida e coma e viva eternamente.”6
Uma vez expulsos do Paraíso por causa do conhecimento, Adão e Eva concebem dois
filhos, mas Caim mata Abel, dando continuidade aos sofrimentos humanos. Porém, é também
da descendência deles, através do terceiro filho, chamado Sete, que nascem Abraão e Isaque e
Jacó, e todos os profetas de Israel, inclusive Jesus, dando ao final do relato também uma sobra
de esperança para a redenção humana, como na caixa de Pandora.
Claro que tais relatos são símbolos antigos e riquíssimos que explicam a condição humana.
Tanto Pandora como Eva podem ser entendidas como representações da mente humana primitiva,
em seu estado bruto e selvagem, cheia de curiosidade e beleza, mas também de todos os vícios
que apenas a educação pode remediar. Essa mente pressente que conhecimento é poder, que
pode inclusive aproximá-la do divino.
Ambos os relatos podem ser tomados, assim, com o seguinte sentido: o conhecimento é
luz, é sustento (fogo) e tão elevado que é propriedade exclusiva da divindade. Por meio do
conhecimento o homem crê tornar-se independente da divindade. Porém, ele só se apossa do
conhecimento pelo sofrimento; por meio dele percebe a complexidade da vida, assim perdendo
a inocência do paraíso (infantil). O simples conhecimento do mundo, portanto, não liberta o
homem de sua condição humana. Ele precisa de um conhecimento ainda mais elevado para
isso, um conhecimento das coisas transcendentes, divinas: precisa conhecer a esperança, a
obediência, o arrependimento, a perseverança, a honestidade, o amor...
Tais mitos e relatos indicam, nessa formulação primitiva, um dos grandes temas relacionados
à educação: o conhecimento, por si só, pode ser perigoso. Se for imperfeito, ou incompleto,
será causa de sofrimento, e melhor seria não tê-lo. Mas isso será tratado mais adiante, quando
abordarmos a formação do indivíduo ético.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
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Vê-se, pois, como a simbologia é completa: apesar dessa associação entre o conhecimento
e o sofrimento, que pode ser encontrada em praticamente todos os mitos e textos primevos, os
relatos indicam que o conhecimento, se aprimorado pelas coisas “da alma”, aproxima realmente
os homens da condição divina; não mais pela competição, mas pela humildade, não pela
usurpação, mas pelo descobrimento de sua verdadeira condição.
Seja por meio da esperança, como em Pandora, ou do arrependimento e da misericórdia
de Deus, como na Bíblia, a idéia é que o mal do conhecimento imperfeito pode ser superado
pela educação verdadeira, que incorpora ao conhecimento das coisas visíveis também o
conhecimento das invisíveis, ou seja, o domínio da moral, do bem e do mal, das virtudes.
A origem dessa educação suprema, completa, segundo as grandes tradições espirituais do
mundo, é divina, concedida à humanidade como um ato de graça dos céus. Como diz São
Paulo a Timóteo:
“Toda a Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir,
para instruir em justiça. Para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instruído para
toda a boa obra”.7
Seguramente, entre as escrituras “divinamente inspiradas” apontadas por São Paulo como
proveitosas para que o homem “seja perfeito” estão aquelas provindas de outros horizontes e
climas, nascidas tanto antes quanto depois do cristianismo. Nelas, o conhecimento também é
apresentado como algo sagrado, redentor, e a educação, como um ato divino.
Buda, por exemplo, exortando seus discípulos há mais de 2500 anos, apresenta a educação
verdadeira, que edifica o caráter, como o único remédio contra o sofrimento:
“Não vos desconcerteis com a universalidade do sofrimento. Segui os meus ensinamentos,
mesmo depois de minha morte, e estareis livres do sofrimento. Fazei isso e sereis verdadeiramente
meus discípulos... Se seguirdes estes ensinamentos, sereis sempre felizes.”8
Para que os homens possam desfrutar dessa felicidade, porém, Buda diz que “eles devem
estar ansiosos por aprender”.9
Os Upanishades, parte da antiqüíssima tradição sagrada hindu, nascida há mais de 5000
anos, nos primórdios da vida sedentária da humanidade, também associam esse valor sagrado
à educação, afirmando que “pelo conhecimento obtemos imortalidade”.10
No Alcorão, revelado aos árabes no século VII, o conhecimento é outra vez apresentado
como de origem divina, concedido ao homem pela Revelação de Deus no Alcorão e nos demais
escritos sagrados, como o Evangelho cristão e a Tora judaica. Falando através de Maomé, é o
próprio Deus quem explica:
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
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“Revelamos a Tora, que encerra Direção e Luz ... e depois dos outros profetas enviamos Jesus,
filho de Maria, corroborando a Tora que O precedeu; e Lhe concedemos o Evangelho que encerra
Direção e Luz, o qual confirma a Tora, e é guia e exortação para os tementes.”11
Maomé afirma que Deus é o “Mais Bondoso” porque “ensinou ao homem o uso da pena [a
escrita] e aquilo que ele desconhecia”.12
Na mesma linha de argumentação, Bahá’u’lláh, no século XIX, renova essa mensagem das
grandes tradições espirituais, outra vez exaltando o papel do conhecimento na vida humana:
“O conhecimento é como asas para a vida do homem e uma escada para sua ascensão. A
todos incumbe sua aquisição... Em verdade, o conhecimento é um autêntico tesouro para o homem
e uma fonte de glória e bênção, de contentamento, de exaltação, de alegria e de felicidade. Feliz
é o homem que a ele se apega, e desafortunado o desatento.”13
Mas ele também observa que “Deve ser adquirido, contudo, o conhecimento de tais ciências
que possam beneficiar aos povos da terra, e não daquelas que começam e terminam com palavras.”14
Todos esses textos, reverenciados pela humanidade há milênios, não apenas refletem o
respeito e fascínio antigo e elevado que os homens nutrem pelo conhecimento e por sua
ferramenta, a educação, mas também têm servido, ao longo de incontáveis eras e gerações,
para dar a ela o caráter de processo arquetípico para a salvação dos homens.
É a educação que emerge, ao longo da História, como o arquétipo da redenção humana de
sua própria condição humana. Uma educação que é um constante devir, pois que nunca está
acabada. Como coloca Paulo Freire:
“[Os homens] descobrem que pouco sabem de si, de seu posto no cosmos, e se inquietam por
saber mais. Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões desta procura.
... Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas.”15
1.4 EDUCAÇÃO E AUTO-REALIZAÇÃO
Além de a educação garantir a sobrevivência e a saúde da espécie, ela nos permitiu construir
um padrão de existência único sobre o planeta: aquilo que chamamos de civilização. Ciência,
arte, auto-realização,fé, ordem, desenvolvimento, prosperidade e cultura têm sido alguns dos
temas e conquistas desenvolvidos e aprimorados ao longo dos milênios. E a educação sempre
foi o elemento que, sozinho, serviu de veículo e garantia para a continuidade das conquistas
humanas.
Como já vimos, profetas, filósofos e pensadores sempre atribuíram à educação o mais alto
valor social e moral, acima de tudo pelo fato de a considerarem o único instrumento capaz de
elevar o homem acima do nível dos animais, colocando-o numa esfera especial da natureza,
num patamar todo seu.
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
Luis Henrique Beust
Entretanto, ao longo dos séculos, a educação não tem sido vista apenas como a fonte de
todo bem social e coletivo dos homens, mas também como a ferramenta que permite a cada
indivíduo elevar-se ao seu verdadeiro destino e cumprir seu potencial inato.
“A direção na qual a educação encaminha um homem determina sua vida futura”, é a
afirmação de Platão em A República.16 Dois grandes poetas ingleses também expressaram isso
de forma belíssima. William Wordsworth afirma:
“A criança é pai do homem.” (The child is father of the man.) 17
E John Milton reflete:
“A infância revela o homem,” (The childhood shows the man,)
Como a manhã revela o dia.” (As morning shows the day.)”18
Isso significa que, mais do que o destino da espécie, o destino pessoal de cada ser humano
está na dependência da educação. Ela determina o grau no qual os potenciais inatos de cada
um serão explorados e utilizados para o seu próprio proveito e para o benefício da sociedade.
Ou seja, a medida da auto-realização de cada indivíduo está ligada indissoluvelmente à educação
que lhe é concedida.
Abraham Maslow, um dos maiores nomes da Psicologia neste século, afirma a respeito
desse potencial individual inexplorado:
“Freud supunha que o nosso superego ou a nossa consciência era, primordialmente, a
internalização dos desejos, exigências e ideais do pai e da mãe, quem quer que eles fossem.... Essa
consciência existe – Freud estava certo. Mas existe também outro elemento na consciência, que
todos nós possuímos, seja ela débil ou vigorosa. Trata-se da consciência intrínseca. Esta baseia-se na
percepção inconsciente ou pré-consciente da nossa própria natureza, do nosso próprio destino ou
das nossas próprias capacidades, da nossa própria vocação na vida. Ela insiste em que devemos ser
fiéis à nossa natureza íntima e em que não a neguemos, por fraqueza, por vantagem ou qualquer
outra razão...”19
Além disso, Maslow afirma que “Se esse núcleo essencial da pessoa for negado ou suprimido,
ela adoece, por vezes de maneira óbvia, outras vezes de uma forma sutil, às vezes imediatamente,
algumas vezes mais tarde.”20
É claro que este “adoecer” deve ser entendido naquele sentido amplo da definição da OMS
apresentado acima. O fato é que a vida plenamente realizada, com um sentimento de dinâmico
bem-estar, depende da auto-realização.
Por essa razão, a educação humana precisa despertar em cada indivíduo não apenas aqueles
comportamentos e características que sejam necessários e adequados à sociedade em que vive,
mas também à expressão daqueles imponderáveis potenciais inatos que lhe permitam sentir-se
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MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
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em paz com sua “consciência intrínseca”. Isso não pode ser alcançado senão por meio de uma
educação que encoraje a criatividade e a auto-expressão, mais do que a imitação e o conformismo.
Nas palavras de Jean Piaget:
“A meta principal da educação é criar homens capazes de fazer coisas novas e não apenas
repetir o que outras gerações fizeram – homens criativos, inventivos, e descobridores. A segunda
meta da educação é formar mentes que possam ser críticas, que possam verificar e que não
aceitem tudo o que lhes é oferecido.”21
Tais observações encaixam-se na tradição dos grandes pensadores do passado,
independentemente dos enfoques específicos que adotaram em outros aspectos, na medida
em que foram unânimes ao relacionar a educação com a vocação de cada homem, preparando-
o em pensamento e ação para cumprir seu propósito e posição na vida.
O contrário dessa educação que liberta e realiza seria a educação dos animais domesticados
ou dos escravos, que aprendem para o benefício dos outros, não do seu próprio.
Tal educação “liberal”, um termo cunhado por Aristóteles para definir a educação de homens
livres – ao contrário da educação “iliberal”, fornecida aos animais domesticados e aos escravos
–, destina-se a redimir e viabilizar a expressão do potencial inato de cada pessoa. É seu objetivo
garantir que cada ser humano viva bem, e não que tão-somente seja capaz de ganhar a vida,
para si ou para os demais.
Aristóteles afirma que a educação de um homem só é liberal “se ele faz ou aprende algo
por causa dele mesmo ou de seus amigos, ou com vistas à excelência”.22 Em outras palavras,
ela deve tratar o homem como seu fim, e não como um meio a ser usado por outros homens,
ou pelo Estado.
“Concepção bancária da educação” é como Paulo Freire denomina o processo de ensino/
aprendizagem que não objetiva o homem livre para pensar e repensar o mundo, para entendê-
lo e recriá-lo. Tal educação, denunciada por Aristóteles como “baixa e servil”,23 é, segundo
Freire, a própria antítese do saber:
“Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação,
não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção,
na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com
os outros. Busca esperançosa também.”24
1.5 EDUCAÇÃO E ESCOLARIDADE
Obviamente, até aqui se falou de educação num sentido bem mais amplo do que
simplesmente escolaridade. A maior parte da educação humana ocorre de maneira não formal,
por intermédio da convivência, da orientação, da imitação, da diferenciação. A educação,
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CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
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portanto, é muito mais antiga e ampla do que essas instituições formais chamadas escolas. Na
verdade, como vimos acima, a educação é tão antiga quanto a própria humanidade. Mesmo em
nossos dias, muitos outros veículos educacionais, além das escolas (a mídia, por exemplo),
atuam permanentemente sobre todos os seres humanos.
Ao longo da História humana, com exceção do século XX, a educação se deu pelo
aprendizado contextualizado, ou seja, as lições eram transmitidas no âmbito do contexto em
que deveriam ser aplicadas. Em outras palavras, aprendia-se fazendo. Por meio da observação
informal e da prática orientada no lar, nos campos, nos templos ou nos artesanatos, as crianças
e os jovens aprendiam, não apenas a fazer coisas e a entender as coisas, mas a ser.
Toda a cosmovisão, os valores, os modelos de papéis adultos, as possibilidades e as
limitações que uma cultura possui foram transmitidos, ao longo de milhões de anos, dessa
forma pouco sistematizada e espontânea. Mesmo na vida contemporânea, esta ainda é a principal
forma de educação, mas, em todo o mundo, as crianças passam hoje grande parte do seu
tempo dentro de salas de aula.
A escola pública elementar, como a conhecemos atualmente, foi concebida somente no
século passado, pela primeira vez nos Estados Unidos da América. Como observa Howard
Gardner, “A instrução pública em massa é distintamente um fenômeno do século XX.”25
Há uma grande diferença entre a educação tradicional e a escolar, tanto no que diz respeito
aos objetivos educacionais, quanto ao processo educativo. É Gardner, novamente, quem comenta:
“Pois enquanto a educação no mundo inteiro se caracteriza desde longa data pela transmissão
de papéis e valores em ambientes apropriados, as escolas descontextualizadasforam criadas,
primordialmente, com dois objetivos específicos : a aquisição de instrução com notações e o domínio
de disciplinas.”26
Por que, então, deveríamos nos preocupar tanto com o acesso das crianças às escolas, e
buscar, de todos os meios, que elas possam desfrutar de tal conhecimento “descontextualizado”
e com ênfase mais na instrução e nas disciplinas do que nos valores e nos papéis adultos? Há
várias razões.
Até a Revolução Industrial, no século XIX, a maioria dos seres humanos dependia da
educação informal (proveniente do convívio com os pais, a família e a sociedade) ou contextual
(aprendizado in loco, como numa carpintaria, num mosteiro ou no campo) para construir
aquele conhecimento que lhe seria necessário para a vida em sociedade. Esse conhecimento,
em geral, privilegiava a estagnação e o imobilismo sociais: nobres aprendiam coisas de nobres,
camponeses aprendiam coisas de camponeses, artesãos, de artesãos, etc. Ou seja, o panorama
educacional e social era “Filho de peixe, peixinho é.”
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
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Na sociedade contemporânea, porém, as profissões e ocupações humanas estão cada vez
mais voltadas e abertas para as capacidades inatas de cada ser humano, independentemente
de sua origem. Nesse contexto, a educação escolar tornou-se o melhor instrumento educacional
que permite acesso ao mundo para além da família. As escolas, no mundo inteiro, passaram a
representar, em seu estado ideal, é claro, um belo exercício de justiça e igualdade humanas, na
medida em que oferecem a todas as crianças os benefícios do conhecimento, independentemente
de sua condição social.
Obviamente, ainda há uma enorme e injusta diferenciação na qualidade de ensino oferecido
a diferentes classes sociais, mas o fato é que, se compararmos a educação de hoje, em termos
de possibilidade de crescimento e realização pessoal, com aquela que dominou a História
humana, é impossível negar os grandes avanços ocorridos. Hoje as escolas são, em todo o
mundo, talvez o principal instrumento de socialização, de integração comunitária, de
possibilidade de auto-realização. Assim, no contexto da civilização contemporânea, negar acesso
à escola é negar acesso à auto-realização. à cidadania, à vida.
Além disso, com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho e com as transformações
ocorridas na estrutura do dia-a-dia de indivíduos e famílias, especialmente no que diz respeito
ao tempo e à qualidade do convívio diário, muito daquilo que antes era aprendido no lar
agora precisa ser aprendido na escola. Regras básicas de convivência, noções de certo e errado,
entendimento do mundo e de si mesmo estão entre aqueles aprendizados fundamentais que,
de maneira crescente, ocorrem, numa medida cada vez maior, fora dos lares.
Em muitíssimos casos até, as escolas oferecem o melhor ambiente possível para o
desenvolvimento das crianças, quer no sentido mais elementar de uma refeição adequada,
quer nas dimensões mais sutis e determinantes de um ambiente emocional e socialmente
saudável. Para os filhos de tantos lares desfeitos ou sujeitos ao álcool, à violência, à miséria e
à degradação, muitos professores são, hoje, os mais importantes adultos e os melhores modelos.
Muitas dessas crianças contam com eles como os mais saudáveis exemplos pelos quais irão
modelar suas possibilidades de crescimento e sucesso, sua auto-estima e respeito, seus padrões
de paternidade e felicidade... Para outros tantos, as melhores lembranças de carinho, amor e
ternura estarão para sempre relacionadas aos bancos escolares.
Além disso, no contexto de um mundo sujeito aos impulsos preconceituosos, fanáticos e
etnocêntricos relacionados a religião, raça, ideologia, origem e classe, as escolas oferecem,
idealmente, e também, em geral, na prática, um ambiente neutro e democrático para a convivência
e a aprendizagem da convivência pacífica e respeitosa. Enquanto não se tornarem quintais das
igrejas e partidos, oxalá isso nunca ocorra, as escolas representam um baluarte fundamental
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CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
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da sociedade pluralista, livre e democrática. Bastaria isso para fazer delas um elemento essencial
no processo de educação do qual estivemos falando.
Barbara Freitag, um dos grandes nomes na área do pensamento da eticidade, realizou em
1981 e 1984 um estudo piagetiano em escolas e favelas da Grande São Paulo, concentrando-se
em crianças e adolescentes entre 6 e 16 anos provindos de diferentes origens socioeconômicas,
com o fim de identificar o perfil de desenvolvimento moral nesta população. No estudo foram
empregados os testes de moralidade sugeridos por Piaget e por Lowrence Kohlberg. Como em
outros estudos realizados em outras partes do mundo, a pesquisa confirmou a existência de
estágios de desenvolvimento moral, conforme postulados tanto por Piaget quanto por Kohlberg
(algo de que trataremos mais adiante, quando falarmos da construção do indivíduo ético).
Mais importante para nossa consideração, aqui, foi outra conclusão da pesquisa, no que diz
respeito ao desenvolvimento moral diferenciado para adolescentes escolarizados e não
escolarizados. Segundo Freitag:
“Essa segunda hipótese foi inteiramente confirmada, favorecendo os adolescentes escolarizados.
Entre estes, registraram-se os estágios mais elevados de moralidade. A decalagem [diferenciação]
vertical constatada entre jovens favelados (sem experiência escolar) com relação aos jovens
escolarizados de diferentes origens socioeconômicas mas de mesma faixa etária (de 12 a 16 anos
de idade) era enorme.”27
Essas experiências, como outras em diferentes contextos socioculturais, demonstram, como
ressalta Freitag, que a “educação geral e a educação moral tornam-se necessárias para evitar o
atraso (cumulativo) no alcance dos estágios adequados do desenvolvimento [moral].”28
Na base de teoria da moralidade de Kohlberg está o postulado de que a genuína
compreensão moral depende de o indivíduo ter alcançado o estágio cognitivo do pensamento
operacional formal, como descrito por Piaget, o que teria relação estreita com a escolaridade.
Embora a comprovação de tal relação direta ainda permaneça inconclusiva, e a distinção daquilo
que é puramente lógico daquilo que é puramente moral ainda não tenha sido definida pelas
pesquisas contemporâneas,29 permanece a clara indicação de que a educação ampliada, seja
formal ou informal, oferece maiores condições de desenvolvimento moral ao indivíduo, se as
demais variáveis forem idênticas.
A escola, nos dias atuais, e a escola pública em particular, apesar de todas as grandes e
urgentes necessidades de aprimoramento e transformação, representa, assim, uma tábua de
salvação para milhões de crianças que, de outra maneira, estariam fadadas à ignorância e à
marginalidade. O acesso à escola representa, portanto, o acesso à própria vida, à possibilidade
de vida. É uma promessa, humilde que seja, de um mundo melhor para cada criança, e a
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MÓDULO I JUSTIÇA, EDUCAÇÃO E VALORES FUNDAMENTAIS
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promessa da construção de um ser que possa mesmo transcender suas origens, e que se construa
conforme seus mais elevados potenciais.
2 VALORES HUMANOS E MOTIVAÇÃO PARA A AÇÃO TRANSFORMADORA
“Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não
podem ser dicotomizadas.”30
2.1 PARADIGMAS DOMINANTES E DESUMANIZAÇÃO
Durante a maior parte da História humana, em todas as culturas, era relativamente fácil
entender o universo e o papel do homem dentro dele. Deus era o Criador supremo e os
homens, suas criaturas supremas. Os governantes o eram por direito divino e a missão de
todos os homens era obedecer a Deus, ao rei, e tratar de salvar suas almas pela fé. As regras
básicas da existência eram de naturezareligiosa e a sociedade dominava sobre o indivíduo. A
tarefa humana fundamental era crer e obedecer.
Essa visão teocêntrica do mundo e de seu funcionamento foi questionada crescentemente,
a partir da Europa do século XVII, dando lugar a um paradigma antitético: Deus existia, é
verdade, mas distante. O homem passou a ser o centro do universo, e a ciência era sua criatura
suprema. Os governantes derivavam sua autoridade do poder concedido a eles pelo povo. As
regras da vida eram de natureza científica e o indivíduo estava acima do todo da sociedade. A
tarefa fundamental dos homens passou a ser raciocinar e criar.
É claro que esse paradigma, nascido com a Revolução Científica, o Iluminismo e o
Racionalismo dos séculos XVI ao XVIII, representou uma antítese aos milênios de domínio
cultural e social da religião sobre os homens.
Ao longo dos últimos dois ou três séculos, o antropocentrismo substituiu o teocentrismo
como paradigma dominante. A razão substituiu a fé. O objetivo substituiu o subjetivo. A certeza
substituiu o mistério. Essa mudança de Weltanschauung da civilização ocidental difundiu-se
para o mundo inteiro, através do processo de industrialização e globalização que se lhe seguiu.
Desde então, a ciência e a razão são dotadas de força de lei, de forma tão categórica quanto
haviam sido, no passado, a doutrina e a fé.
Fritjof Capra, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, um dos mais destacados físicos
e pensadores contemporâneos, comenta:
“A crença na certeza do conhecimento científico jaz na própria base da filosofia cartesiana e na
cosmovisão que dela nasceu; e foi aqui, nas próprias origens, que Descartes se equivocou. A Física
do século XX nos convenceu, de maneira forçosa, que não há verdade absoluta na Ciência, que
todos os nossos conceitos e teorias são limitados e aproximados. A crença cartesiana na verdade
ENCONTROS PELA JUSTIÇA NA EDUCAÇÃO
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CAP.1 ÉTICA, VALORES HUMANOS E PROTEÇÃO À INFÃNCIA E JUVENTUDE
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científica é ainda muito disseminada hoje em dia e se reflete no cientificismo que se tornou típico
de nossa cultura Ocidental.”31
Porém, como antítese que é, o paradigma científico-racional contemporâneo ainda não
está completo. Na verdade, nenhum paradigma jamais poderá ser considerado completo. Dar-
se conta dessa limitação é fundamental para se poder ir além dos limites criados por ele. Capra
observa:
“O método de pensamento de Descartes e sua visão da natureza influenciaram todos os ramos
da Ciência moderna e podem ainda ser muito úteis hoje em dia. Mas serão úteis somente se suas
limitações forem reconhecidas. A aceitação da visão cartesiana como verdade absoluta, e do método
de Descartes como a única forma de conhecimento válida desempenharam um papel importante
na geração de nosso desequilíbrio cultural contemporâneo.”32
O grande sucessor de Descartes na busca do conhecimento objetivo da natureza foi Isaac
Newton. Seu êxito em desenvolver todo um modelo matemático para a visão mecanicista da
natureza levou o paradigma do universo-máquina ainda mais longe. Além da certeza no
conhecimento científico e no primado da razão, Newton difundiu o paradigma da realidade
composta de partes isoladas e independentes, os átomos, e da possibilidade de compreender
o todo a partir apenas do estudo das partes. Essa visão atomista e reducionista agiria
sinergicamente com os postulados cartesianos para criar todo um paradigma cada vez mais
“objetivo” e “realista”, em que as sutilezas das percepções desenvolvidas por épocas anteriores
se perderam. Capra segue sua análise:
“O extraordinário sucesso da física newtoniana e da crença cartesiana na certeza do conhecimento
científico conduziram diretamente à ênfase que nossa cultura atribuiu à ciência pura e à tecnologia
pura. Somente em meados do século XX é que se tornou claro que a idéia de uma ciência pura era
parte de um paradigma cartesiano-newtoniano, um paradigma que seria então superado.”33
Embora não tenha sido esta a intenção de Descartes, ou de seu grande sucessor, o fato é
que os pensadores que os sucederam, quer nas ciências da natureza, quer nas humanidades,
estenderam a outros domínios do conhecimento um visão crescentemente materialista e
mecanicista, buscando tratar a natureza, o homem e a sociedade como máquinas. Houve, num
sentido cada vez mais intenso e geral, um processo de dessacralização da vida e de suas metas.
“Os pensadores do século XVIII” – continua Capra – “levaram este programa mais longe, ao
aplicarem os princípios da mecânica newtoniana às ciências que estudavam a natureza humana e a
sociedade. As ciências sociais recentemente criadas geraram grande entusiasmo, e alguns de seus
expositores chegaram mesmo a reivindicar a descoberta de uma Física social.”34
Eventualmente, nessa caminhada obsessiva pela realidade objetiva, todos os fenômenos
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subjetivos e todos os valores espirituais foram descartados como inúteis. A famosa postulação
de Marx em A Ideologia Alemã cria escola e se impõe no mundo:
“O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político
e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser
social que determina suas consciências.”35
Apesar de tal interpretação da realidade ter deixado de ser verdade absoluta ao ser
cabalmente desmentida por Max Weber, em seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo,
o fato é que o conteúdo revolucionário e político da práxis marxista dominou o cenário cultural
de grande parte do mundo, sendo força incontestável na difusão de uma postura e interpretação
puramente materialista da realidade. Como se não bastasse, em 1882, Nietzsche, proclama que
“Deus está morto!”36
Esse paradigma atomista, materialista, reducionista e mecanicista está nas raízes da crescente
desumanização do ser humano ao longo dos últimos 300 anos. Eric Fromm descreve vivamente
o que se passa na consciência e no comportamento das pessoas quando passam a tratar o
universo como se fosse uma grande máquina, pessoas que ele denomina de “necrófilos”, ou
seja, amantes das coisas mortas.
“... o indivíduo necrófilo ama tudo o que não cresce, tudo o que é mecânico. A pessoa necrófila
é movida por um desejo de converter o orgânico em inorgânico, de observar a vida mecanicamente,
como se todas as pessoas viventes fossem coisas. Todos os processos, sentimentos e pensamentos
de vida se transformam em coisas. A memória e não a experiência; ter, não ser, é o que conta. O
indivíduo necrófilo somente pode se realizar com um objeto – seja uma flor ou uma pessoa – se o
possuir. Em conseqüência, a ameaça à posse é uma ameaça a ele mesmo. Se perde a posse, perde
contato com o mundo.”37
Outro grande nome da Psiquiatria do pós-guerra, Victor Frankl, criador da terceira escola
de Psiquiatria de Viena (depois de Sigmund Freud e Alfred Adler), e uma das mais
extraordinárias vidas e mentes do século, descreve as conseqüências nefastas do materialismo
e do tecnicismo na sociedade contemporânea:
“... a evidência clínica sugere que a atrofia do sentido religioso na pessoa humana resulta numa
distorção de seus conceitos religiosos. Ou, falando em termos menos clínicos: uma vez reprimido o
anjo dentro de nós, ele vira um demônio. Existe um paralelo inclusive em nível sociocultural, pois
repetidas vezes observamos e somos testemunhas de como a religião reprimida acaba degenerando
em superstição. Em nosso século, o endeusamento da razão e uma tecnologia megalomaníaca
constituem as estruturas repressivas em prol das quais é sacrificado o sentimento religioso. Este fato
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explica grande parte da atual condição humana, a qual realmente pareceuma neurose compulsiva
universal da humanidade, para citar Freud.”38
Ken Wilber, um dos maiores filósofos da atualidade, comenta sobre a ruptura da cultura
contemporânea a partir da dissociação ocorrida entre os “Três Grandes”, como ele chama o
Belo, o Bom e o Verdadeiro. Essas três dimensões de valores, identificadas por Platão, seguiram
sendo os referenciais de grandes pensadores ao longo dos séculos, como Tomás de Aquino,
Kant, Popper e Habermas.
Wilber, numa análise fascinante, identifica como esses três domínios se relacionaram ao
fazer humano de formas bem distintas, mas complementares, até interdependentes, ao longo
da maior parte da História de todas as culturas e civilizações, com exceção da Modernidade39
na cultura ocidental. Ele também identifica os “Três Grandes” com outras dimensões
epistemológicas e ontológicas. Senão, vejamos:
O Belo tem a ver com a consciência, a subjetividade, a identidade pessoal, a auto-expressão
(inclusive arte e estética), a veracidade, a sinceridade, a consciência vivida irredutível e imediata,
os “relatos na primeira pessoa”. O Belo é o domínio da arte e do eu.
O Bom diz respeito à ética e à moral, às visões de mundo, ao contexto compartilhado, à
cultura, aos significados intersubjetivos, à compreensão mútua, ao apropriado, à justeza, aos
“relatos em segunda pessoa” (tu, você; vós, vocês). O Bom é o domínio da moral e do nós.
O Verdadeiro se relaciona com o domínio da ciência e da tecnologia, com a natureza
objetiva, com as formas empíricas, com a verdade propositiva, com as exterioridades objetivas
tanto de indivíduos quanto de sistemas, e aos “relatos na terceira pessoa” (ele, ela, eles, elas).
O Verdadeiro é fundamentalmente o domínio da ciência e das coisas.
Wilber descreve como o projeto da Modernidade tratou de separar essas três grandes
esferas que sempre haviam andado mescladas ao longo da História. Isso, de certa forma, foi
bom, pois permitiu que cada uma delas pudesse se desenvolver sem os freios que as demais
poderiam inadequadamente impor-se mutuamente. Mas ele também mostra como, mais do que
diferenciação, a cultura moderna ocidental dissociou uma esfera da outra, criando barreiras
(aparentemente) intransponíveis entre o eu e o nós e o eles, entre a razão e a emoção e a
intuição, entre a ciência e a arte e a religião... Comenta Wilber:
“[...] a diferenciação entre os Três Grandes [o Belo, o Bom e o Verdadeiro] (e essa foi a dignidade
da modernidade) degenerou em dissociação dos Três Grandes (o que representou o desastre da
modernidade). Essa dissociação permitiu que uma ciência empírica explosiva, associada a formas
florescentes de produção industrial – sendo que ambas enfatizavam somente o conhecimento das
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coisas e a tecnologia das coisas – dominasse e colonizasse as outras esferas de valor [o Belo e o
Bom] efetivamente destruindo-as em seus termos próprios.
“Assim, as [...] dimensões interiores foram reduzidas às suas [...] correspondentes exteriores, o
que significou o colapso do Grande Encadeamento do Ser,40 e com ele, dos postulados centrais das
grandes tradições sapienciais.
“[...] Aí está, precisamente, o desastre da modernidade, o desastre que foi o ‘desencantamento
do mundo’ (Weber),41 a ‘colonização da esfera dos valores pela ciência’ (Habermas), o ‘surgimento
da terra desolada’42 (T.S.Eliot), o nascimento do ‘homem unidimensional’ (Marcuse), a ‘dessacralização
do mundo’ (Schuon), o ‘universo desqualificado’ (Mumford).
“Por qualquer outro nome que seja, trata-se do desastre conhecido como terra plana”.43
Assim, o fato é que, via um processo progressivo de materialização, racionalização e
mecanização do universo, do indivíduo e da sociedade, a cultura moderna acabou por coisificar
o mundo, o ser humano e seus ideais. Os paradigmas dominantes da Modernidade levaram à
desumanização do ser humano e de seu mundo.
2.2 A PERMANÊNCIA DOS VALORES “DESUMANOS”
Há, ainda hoje, em todo o mundo, uma inércia – herança tardia da Renascença, do
Iluminismo, do Racionalismo e da Revolução Industrial – de se conceber as soluções dos
problemas humanos, inclusive sociais, em termos meramente técnicos e materialistas. Tal
abordagem dá ênfase aos recursos, especialmente econômicos, não às pessoas; à transferência
de conhecimento e tecnologia, não à educação e à capacitação; às normas e regulamentos, não
ao diálogo; às exigências técnicas e financeiras, não às espirituais.
Arnold Toynbee, para muitos o maior historiador do século, comentava, já nos anos 50,
sobre esta falácia das soluções técnicas, ao discorrer sobre a integração mundial que viemos a
chamar de globalização:
“Desde o começo a humanidade tem estado dividida - hoje nos unimos finalmente. ... Mas
nosso andaime, armado no Ocidente, é constituído por materiais menos duráveis. Seu elemento
mais notório é a técnica e o homem não pode viver somente da técnica”.44
Toynbee ressaltava a necessidade urgente de a interdependência mundial passar também
pelo enriquecimento cultural mútuo, pelos valores humanos, por aqueles princípios espirituais,
universais e atemporais como a Justiça, a Liberdade e o Amor. Para que a aldeia global que se
estava formando não se transformasse numa aldeia de dominadores e dominados, de
possuidores e excluídos.
Paulo Freire, da mesma forma, não se sentia tolhido de falar em Amor quando falava de
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transformação social. Para não parecer piegas, entretanto, (devemos lembrar que corriam os
anos 60!) sentiu ser necessário apoiar-se em Che Guevara que afirmava que “o verdadeiro
revolucionário está guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar em um
revolucionário autêntico sem esta qualidade.”45
A ideologia da desumanização, da racionalidade crua e mecânica e das ações “isentas” de
sentimentos, baseadas apenas em dados “científicos”, dominou grande parte do último século,
ao ponto de muitos não conseguirem perceber outra alternativa para a realidade. Essa miopia
de visão social caracterizou aquilo que viemos a reconhecer como Modernidade. Sua difusão
pelo mundo, e as conseqüências disso, é descrita por Ervin Laszlo, um dos cientistas fundadores
do Clube de Roma e consultor científico da UNESCO:
“A reunião do conhecimento científico e dos ofícios práticos sinalizou o nascimento da ciência
aplicada, ou tecnologia. Seu surgimento na Europa, em estados-nações que dominavam os sete
mares e se consideravam plenamente soberanos, pavimentou o caminho para a industrialização e
todas as suas bem conhecidas conseqüências. Os valores da civilização industrial foram difundidos
para o resto do mundo através do mercantilismo e da busca por novas matérias-primas, assim como
(num estágio posterior) por novos mercados. (...)
“Os valores e aspirações associados com o modernismo espalharam-se de forma pouco sábia, na
medida em que povos dominados pela tradição buscavam os confortos e o poder concedidos pela
tecnologia, mas se achavam também expostos à sua mentalidade subjacente. Assim se espalharam
pelos quatro cantos do mundo o materialismo, o egoísmo, o chauvinismo, o ateísmo e a intolerância
ao subdesenvolvimento. Se para algumas pessoas tais atitudes parecem hoje ser expressões da própria
natureza humana, isso é porque adotaram-nas de modo tão completo que nada mais parece concebível.”46
Laszlo então denuncia a falácia de se imaginar que os valores e padrões da sociedade
moderna contemporânea sejam finais ou ideais:
“Ao contrário do que muitos crêem piamente, o modernismo não é a expressão final da
natureza humana, mas apenas uma fase da evolução humana e sociocultural. ... Muitos grandes
pensadores hoje vêem nossa civilização a trilhar o caminho errado, tanto material quanto
espiritualmente. Elesbuscam uma mudança espiritual através da educação e da religião, que conduza
a um redespertar de nosso senso de compaixão por toda a humanidade.”
É importante ter em consideração que tais palavras sobre a premência de nosso redespertar
espiritual têm sido, cada vez mais, pronunciadas por cientistas, como Toynbee e Laszlo, e não
apenas por teólogos ou espiritualistas. A necessidade de se redimir a verdadeira natureza
humana não tem escapado às mentes mais perspicazes, qualquer que seja o domínio do
conhecimento ao qual se dedicam.
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Paulo Freire também reforça essa visão de que os ideais desumanizados do materialismo
não podem ser tidos como vocação ou necessidade, como finais ou como única alternativa
humana. É dele a seguinte expressão lúcida, comovente e inspiradora:
“Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são
possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão.
“Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos
homens. Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na
exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça,
de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada.
“A desumanização ... é distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se
admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos de fazer,
a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho
livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como seres para si, não teria
significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na
história, não é porém, destino dado...47
No que toca especificamente à educação e à sua potencial ação libertária e humanizadora,
Paulo Freire ressalta que esta precisa ser dialógica, pois, se não houver diálogo, o que há é
dominação. E aponta para o fato de que tais meta, postura e método humanizadores só podem
existir se fundados nos valores espirituais humanos:
“Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível
a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a infunda.
“Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente
tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia
de amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é um ato de
coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens.”48
Esta percepção de que os valores humanos, ou espirituais, estão na base da motivação e
da mobilização para a ação transformadora é uma grande redescoberta da segunda metade do
século XX. As teorias contemporâneas sobre motivação humana apontam para o fato de que as
consciências dos homens não podem ser mobilizadas se seu coração não for tocado. Os grandes
valores espirituais da Verdade, do Belo, do Bem, da Justiça, do Amor etc. são elementos
indeléveis da natureza humana, e sua negação ou menosprezo estão na raiz da maior parte dos
problemas globais contemporâneos.
Por que, então, tais princípios espirituais são negados ou menosprezados?
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2.3 A INÉRCIA DOS MODELOS MENTAIS E A AÇÃO TRANSFORMADORA
É Ervin Laszlo, novamente, como uma das vozes mais notáveis do século em prol da
humanização das ações governamentais e sociais, quem nos pode ajudar a começar a entender
as razões pelas quais, apesar de os valores humanos existirem e serem conhecidos, não são
utilizados como instrumento de mudança social.
Laszlo aponta para o que chama de “limites internos” da humanidade, que identifica com
a inércia em revermos criticamente a Weltanschauung, a cosmovisão da qual derivamos a
lógica (ou a falta dela) para nossa intervenção no mundo. Ele comenta:
“Esquece-se que não nosso mundo, mas nós seres humanos é que somos a causa de nossos
problemas, e que apenas redesenhando nosso pensamento e ação, e não o mundo ao nosso redor,
é que os poderemos solucionar. ...”
“Não há praticamente nenhum problema mundial cuja causa não possa ser vinculada à ação
humana e que não possa ser superado por mudanças adequadas no comportamento humano. As
causas que estão na raiz mesmo dos problemas físicos e ecológicos são as limitações internas de
nossa visão e nossos valores.” 49
O fato é que a razão, a emoção e as ações concretas humanas são reflexo da visão, das
crenças e valores que são nutridos subjetivamente, aquilo que pesquisadores como Howard
Gardner e Peter Senge, ambos da Universidade de Harvard, chamam de “modelos mentais”, ou
“representações mentais”, e que Thomas Kuhn batizou de “paradigmas”.
Os modelos ou representações mentais, os paradigmas, são imagens mentais arraigadas
dentro de nosso ser, que usamos (individual e coletivamente) para compreender como funciona
o mundo. Como a mente humana não pode lidar muito bem com dados detalhados relacionados
à complexidade do mundo, ela tende a construir modelos mentais compostos de generalizações.
Essas generalizações se baseiam em imagens, idéias, suposições, relatos, estereótipos e várias
linguagens nutridas dentro da mente-cérebro. Como coloca Gardner, “essas representações
são reais e importantes”.50
Mas o mais importante é que os paradigmas-modelos-representações mentais determinam
nosso comportamento, seja individual, seja coletivo. Gardner aponta para o fato de que os
comportamentos humanos objetivos podem melhor ser entendidos como “epifenômenos, isto
é, as sombras de nossas representações mentais determinantes”.51 Ou seja, agimos conforme
cremos e sentimos, sejam tais crenças ou sentimentos justificados ou não. Vemos e agimos de
acordo com nossos paradigmas pessoais e coletivos, sejam eles válidos ou não.
Segundo Senge:
“... o mais importante é saber que os modelos mentais são ativos - eles modelam nosso modo
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de agir. Se achamos que as pessoas não são dignas de confiança, agimos de maneira diferente da
que agiríamos se achássemos que elas eram confiáveis. ...
“Por que os modelos mentais têm esse poder de influenciar o que fazemos? Em parte, porque
eles influenciam o que vemos. Duas pessoas com diferentes modelos mentais podem observar o
mesmo acontecimento e descrevê-lo de maneira diferente, porque olharam para detalhes
diferentes.”52
Thomas Kuhn, da Universidade de Chicago, o brilhante fundador da epistemologia
contemporânea, já ressaltava em sua obra seminal A Estrutura das Revoluções Científicas:
“[...] algo como um paradigma é um pré-requisito para a própria percepção das coisas. Aquilo
que um homem vê depende tanto daquilo para o qual ele olha quanto do que sua experiência
visual-conceitual anterior ensinou-lhe a ver.”53
Podemos comparar os paradigmas e modelos mentais dominantes de uma civilização ou
cultura a um navio transatlântico que cruza o oceano. Dentro dele, milhares de pessoas se
deslocam para cima e para baixo, entram e saem, de acordo com suas vontades: vão ao cinema,
à piscina, ao jantar, ao baile, à sauna, ao camarote... Entretanto, todo esse movimento se dá
dentro de um movimento maior, que é o deslocamento do navio de um continente ao outro.
Esse macromovimento, dentro do qual se dão todos os infinitos micromovimentos, quase que
não é percebido, já que todos se preocupam não com o deslocamento do navio, mas com suas
vontades e necessidades dentro do navio. Todos se consideram livres para tudo fazer dentro
do navio. Mas exatamente aí está

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