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As Origens Medievais do Estado Moderno Joseph R. Strayer

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COLECÇÃO «CONSTRUIR O PASSADO» JOSEPH R. STRAYER
E. H. Carr
Que é a História
Jacques Le GolT
Mercadores e Banqueiros da Idade Média
Jacques Le Goff
Os Intelectuais na Idade Média As Origens Medievais
do Estado Moderno
R. Hooykaas
o Humanismo e os Descobrimentos
na Ciência e nas Letras Portuguesas
do Século XVI
Pierre Deyon
O Mercantilismo
H. E. S. Fisher
De Methuen a Pombal - O ComércioAnglo-Português
de 1700 a 1770
Tradução de
CARLOS DA VEIGA FERREIRA
Régine Pemoud
A Mulher no Tempo das Catedrais
François Furet
A Oficina da História
J. Strayer
As OrigensMedievais do Estado Moderno
A PUBLICAR
Georges Duby
Guilherme, o Maréchal
gradiva
I
I
Actualmente aceitamos o estado como um dado adquirido
e fora de questão. Queixamo-nos das suas exigências, lamen-
tamos o facto de ele se imiscuir cada vez mais em assuntos que
costumávamos considerar privados, mas dificilmente concebe-
mos a vida sem a sua existência. No mundo de hoje, o pior que
o destino pode reservar a um ser humano é reduzi-lo à condição
de apátrida. As antigas formas de identificação social já não
são de todo em todo necessárias. Um homem pode levar uma
vida razoavelmente satisfatória sem família, sem um local fixo
de residência, sem confissão religiosa; sem o estado, porém, não
é nada. Carece de direitos e de segurança e as suas oportunida-
des de desenvolver uma actividade útil são escassas. Não há
salvação na Terra fora do quadro de um estado organizado.
Nem sempre foi assim. Épocas houve, não muito remotas,
de acordo com o conceito de medição do tempo partilhado
pelos historiadores, em que o estado não existia e em que nin-
guém se preocupava com isso.Nesses tempos era o homem sem
família ou sem senhor, sem vinculação a uma comunidade local
ou a um grupo religioso dominante, que não tinha segurança
nem oportunidades, que só podia sobreviver covertendo-se em
servo ou escravo. Os valores desse tipo de sociedade eram dife-
rentes dos nossos; os supremos sacrifícios da propriedade e da
vida faziam-se pela família, pelo senhor, pela comunidade ou
pela religião, e não pelo estado. A capacidade de organização
dessas sociedades era menor que a nossa; era difícil conseguir
9
II
que um número considerável de pessoas trabalhasse em con-
junto durante algum tempo. Havia um forte sentimento da
existência de obrigações recíprocas entre os que se conheciam
pessoalmente, mas a distância rapidamente fazia desaparecer
esse sentimento. O carácter imperfeito e limitado no espaço
desses tipos de organização traduzia-se mi-incapacidade da--
sociedade para extrair o melhor proveito dos seus recursos
humanos e naturais, no baixo nível de vida e no facto de os
indivíduos capazes se verem impossibilitados de desenvolver
plenamente as suas potencialidades. O desenvolvimento do
estado moderno, por outro lado, tornou possível uma tal con-
centração da utilização dos recursos humanos que nenhum
outro tipo de organização social pode evitar ser relegado para
um papel secundário. Pagamos um preço - um preço por vezes
perigosamente alto - por essa concentração de poder. Teo-
ricamente, é possível conservar os benefícios de tão complexa
organização, limitando simultaneamente o papel que cabe ao
estado no enquadramento da mesma; na prática, porém, nunca
ninguém conseguiu realizar essa façanha. Só os povos mais re-
motos e primitivos podem prescindir do estado. No entanto,
logo que o mundo moderno entra em contacto com uma
dessas áreas remotas, os seus habitantes vêem-se forçados a
constituir um estado ou a acolherem-se à sombra de algum
outro já existente.
Uma vez que não podemos escapar ao estado, tem uma
certa importância procurarmos compreendê-lo. Uma das for-
mas de o compreender consiste em estudar a sua história: ver
como e quando surgiu esta forma de organização, quais as
neccessidades que veio satisfazer, quais os princípios em que se
baseou. O estudo das origens do moderno estado europeu pode
fazer alguma luz sobre as características e os problemas do
estado actual e será, com certeza, particularmente útil para es-
clarecer as diferenças entre diversos tipos de estado e explicar
as razões pelas quais o tipo de organização de alguns desses es-
tados é mais equilibrado e eficaz do que o de outros.
I,
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10
,
ç
"
,.,
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Deveríamos talvez começar por uma definição de estado,
mas a maioria das tentativas feitas nesse sentido revelou-se
pouco satisfatória. Um estado existe sobretudo no coração e
no espírito do seu povo; se este não acreditar na existência do
estado, nenhum exercício de lógica lhe poderá dar a vida. Tem
havido alguns estadcs, e florescentes, que não satisfazem ne-
nhum dos critérios estabelecidos pelos especialistas das ciências
políticas; é o caso, por exemplo, dos Países Baixos no século
XVII. Assim, em lugar de nos preocuparmos com definições,
vamos procurar identificar alguns dos sinais que revelam o
nascimento de um estado. Tais sinais serão particularmente
úteis para o nosso trabalho, uma vez que estão relacionados
com as origens dos estados, e não com a sua forma definitiva.
O primeiro desses sinais é fácil de reconhecer devido às
suas características puramente externas. É necessária uma certa
permanência no espaço e no tempo para que uma comunidade
humana se transforme num estado. Um grupo de pessoas só
pode desenvolver os modelos de organização essenciais ~ara a
construção de um estado se viver e trabalhar em conjunto,
numa dada região, ao longo de muitas gerações. As coligações
temporárias de grupos unidos por alguns interesses comun~ n~o
costumam ser núcleos de estados, a menos que a emergencia
que deu origem a essa união se prolongue durante o tempo
necessário, ou se repita com a frequência suficiente, para que a
coligação se torne, pouco a pouco, permanente, como acon-
teceu, por exemplo, no caso dos Francos. Mesmo os encontros
regulares e as repetidas alianças entre grupos que se reconhe-
cem uma origem comum não bastam para constituir um estado;
os contactos devem ser contínuos, e não intermitentes. A histó-
ria da Grécia antiga é um exemplo destes dois pontos: nem as
coligações contra a Pérsia, nem os Jogos Olímpicos foram
suficientes para reunir num estado único as cidades gregas.
Geograficamente, tem de existir uma zona central no interior
da qual o grupo possa construir o seu sistema político, embora
uma certa flutuação das fronteiras seja aceitável. Os estados
11
requerem instituições permanentes e é difícil estabelecer tais
instituições se o território em que devem vigorar se alterar
constantemente, ou se a coesão do grupo variar conforme as
estações do ano. É por isso que os verdadeiros nómadas não
criam estados 1 ; é necessário que uma boa parte desses nóma-
das se torne sedentária para que seja possível um grau elevado
de organização política. Mesmo os povos não nómadas perdem,
em geral, parte da sua coesão política, quando - voluntária ou
involuntariatnente - abandonam o seu território e têm de reto-
mar, a partir do zero, o processo de construção do estado,
como o demonstra a história do Oeste americano.
Estabelecida a continuidade no espaço e no tempo, surge
o sinal seguinte da possível emergência de um estado: a forma-
ção de instituições políticas impessoais relativamente perma-
nentes. Os agrupamentos políticos primitivos ou temporários
podem funcionar através de relações pessoais não estruturadas,
tais como as reuniões de homens preeminentes ou as assem-
bleias de vizinhos; mas, mesmo a este nível, estabelecem-se
certas formas consuetudinárias de tratar os assuntos de carác-
ter geral; haverá processos para resolver disputas internas e
para organizar grupos armados em caso de guerra. Contudo, só
isso não chega para a comunidade poder perdurar no tempo e
manter o seu domínio sobre uma dada área geográfica, para os
débeis laços de vizinhança se converterem numa efectiva uni-
dadepolítica e para que seja possível uma utilização mais
eficaz dos variados recursos e potencialidades do povo. Terá de
haver instituições capazes de sobreviver às alterações da lide-
rança e às flutuações do grau de cooperação entre os vários
subgrupos, instituições que permitam um certo grau de especia-
lização nas questões políticas, aumentando assim a eficiência
do processo político, instituições que fortaleçam o sentimento
I Ver Philip C. SaIzman, «PoliticaI Organization among Nomadic Peoples».
in Proceedings of the American Philosophical Society, III, 1967, pp. 115·131, e
as referências citadas na sua bibliografia.
12
de identidade política do grupo. Quando tais instituições sur-
gem, atingiu-se um ponto-chave na constituição do estado.
Por outro lado, o aparecimento de instituições especiali-
zadas não conduz inevitavelmente à criação de um estado.
As instituições podem desenvolver-se simplesmente, para pro-
teger os interesses privados dos ricos e dos poderosos. Um
chefe tribal, por exemplo, pode pretender ter uma contabili-
dade regular da renda das suas terras e rebanhos, como qual-
quer proprietário. Uma contabilidade desse tipo não estabe-
lece necessariamente as bases de um Ministério das Finanças.
Um grupo de terratenentes aristocráticos, desejando resolver
antigas disputas que prejudicam as suas propriedades ou dizi-
mam os seus homens, pode ser levado a constituir um sistema
de tribunais. Como o demonstra, porém, a história antiga da
Islândia, a existência desses tribunais não conduz forçosamente
à aceitação da supremacia da lei, nem ao aparecimento de uma
autoridade que a faça cumprir. Os tribunais podem ser apenas
um instrumento cómodo, susceptível de ser utilizado ou não,
conforme as circunstâncias.
No entanto, precisamente porque, na época anterior ao
aparecimento do estado, não é possível traçar uma distinção
clara entre público e privado, qualquer instituição duradoura
pode, com o tempo, vir a tomar-se parte de uma estrutura
estatal, ainda que originalmente não tenha sido criada para
desempenhar essa função. Assistimos a um processo semelhante
em tempos relativamente recentes. A Commonwealth de Mas-
sachusetts e o Império Britânico da Índia tiveram origem em
instituições estabelecidas por corporações privadas. Actual-
mente, um dos cargos públicos mais antigos do mundo é o de
xerife (oficial de justiça): os primeiros xerifes, porém, mais não
eram do que simples administradores das propriedades dos reis
anglo-saxónicos.
Uma objecção de peso à tendência para exagerar a impor-
tância das instituições permanentes consiste no facto de essas
instituições poderem ser apenas instrumentos puramente exter-
13
nos, graças aos quais um governante (ou uma classe governante)
domina um povo subjugado. A existência de instituições per-
manentes não prova que os indivíduos tenham aceite a sua
necessidade, nem que tais instituições tenham dado origem ao
clima de opinião que é essencial para a existência do estado.
As instituições duradouras provocarão, porém, naturalmente
u.na modificação gradual das estruturas e podem vir a servir de
suporte ao desenvolvimento da ideia de estado. Mesmo as insti-
tuições coloniais que não criaram raízes profundas nas popula-
ções subjugadas podem ser, e têm sido, utilizadas como esque-
leto da estrutura de um novo estado.
Mais importante do que a simples existência de instituições
estáveis é o facto de estas irem crescendo em prestígio e auto-
ridade. Por exemplo: existem tribunais capazes de tomar
decisões definitivas que obriguem todos os habitantes de uma
dada região e não possam ser revogadas por nenhuma outra
autoridade? Os papas medievais proclamavam o seu poder de
«julgar toda a gente e não serem julgados por ninguém» 2 ;
quando se encontraram certas autoridades seculares em condi-
ções de fazer semelhante afirmação? Em termos mais gerais:
quando começou a surgir a ideia de soberania? É mais difícil
provar a existência de uma ideia do que a existência de uma
instituição, e a essa dificuldade vem juntar-se o carácter inade-
quado do vocabulário político europeu dos primeiros tempos.
A soberania existia, de facto, muito antes de se poder descre-
14
2 Esta é a doutrina básica do Dictatus Papae de 1075, artigos 18-21.
Veja-se a tradução inglesa de Ewart Lewis,Medieval Politicalldeas, Nova Ior-
que, 1954, II, p. 381: «[...] that his decision ought to be reviewed by no one,
and that he alone can review the decisions of everyone; that he ought to be
judged by no one» (sque a sua decisão não deve ser revista por ninguém e que
só ele pode rever as decisões de todos; que ele não deve ser julgado por nin-
guém»~ Inocêncio III utiliza uma fórmula mais concisa: ele é aquele «qui de
omnibus judicat et a nemine judicatur». Ver R. W. e A. J. Carly,A History of
MediaevalPoliticaI Theory, Edimburgo, 1928, IV, 153.
vê-la em teoria (1300 e 1550, respectivamente) 3 • Também é
certo que nem sempre os governantes que reivindicavam o que
na realidade era o poder soberano foram capazes de impor
essa reivindicação. Mas a etapa decisiva foi o reconhecimento
da necessidade de uma autoridade suprema, e não a existên-
cia de um «monopólio do poder». A partir do momento em
que a maior parte da população politicamente activa passou a
admitir que devia haver uma autoridade capaz de tomar deci-
sões de carácter definitivo foi possível, na prática, tolerar
muitas violações desse princípio.
Tudo isto nos conduz ao último dos nossos critérios, que
é simultaneamente o mais importante e nebuloso: a substitui-
ção dos laços de lealdade à família, à comunidade local ou à
organização religiosa por idênticos laços, agora em relação ao
estado, e a aquisição por parte deste de uma autoridade-moral
capaz de servir de suporte à sua estrutura organizativa e à sua
teórica supremacia legal. No fmal de todo este processo, os
súbditos passam a aceitar a ideia de que os interesses do estado
devem prevalecer sobre todos os outros e a considerar que a
preservação do estado é o maior dos bens sociais. Porém, essa
mudança é, em regra, tão gradual que se torna difícil documen-
tar as suas sucessivas fases; é impossível afirmar que, num deter-
minado momento, a lealdade ao estado se tornou dominante.
O problema complica-se pelo facto de a lealdade ao estado não
ser o mesmo que nacionalismo; na realidade, nalgumas zonas, o
3 Sobre este problema verGaines Post, Studies inMedieval Legal Thought,
Princeton, 1964,caps. 5,8 e lO, e especialmente pp. 280-289,301-309,445-453
e 463-478; E. H. Kantorowicz, The King's Two Bodies, Princeton, 1957, cap. 5,
especialmente pp. 236-258. Convém notar que o Estatuto de Westminster I
(1275), cap. 17, especifica que, mesmo no País de Gales, onde os mandatos do
rei não eram válidos,este, como soberano, podia administrarjustiça a todos. Em
França, mais ou menos na mesma época, Beaumanoir afirma na sua obra Cou-
tumes de Beauvaisis,parágrafo 1043, que o rei é o supremo soberano, que pode
fazer tantas leis (establissemens) quantas lhe pareçam necessárias para o bem
comum e que todos estão sujeitos à sua justiça.
15
nacionalismo opôs-se tenazmente à lealdade aos estados exis-
tentes. Mesmo nos países afortunados, em que o nacionalismo
veio reforçar a lealdade ao estado, esta já existia anteriormente
e suscitava sentimentos muito mais frios. Tais sentimentos
eram semelhantes aos que, em regra, andam ligados à ideia de
humanitarismo, e, de certa forma, essa lealdade era uma espécie ..
de humanitarismo. O estado vinha proporcionar uma paz e
uma segurança maiores e melhores oportunidades de uma vida
desafogada do que as frágeis associações de comunidades; por
isso, devia ser apoiado.
Para resumir esta primeira parte, diremos que os nossos
critérios são os seguintes: o aparecimento de unidades políticas
persistentes no tempo e geograficamente estáveis, o desenvol-
vimento de instituições permanentes e impessoais, o consensoem relação à necessidade de uma autoridade suprema e a acei-
tação da ideia de que esta autoridade deve ser objecto da
lealdade básica dos seus súbditos. Vamos agora percorrer o
período que medeia entre os anos de 1100 e 1600, em busca
de sinais dessas transformações na Europa ocidental. Não
porque não existissem estados em épocas anteriores ou no
mundo não europeu - a polis grega era, incontestavelmente,
um estado, tal como o Império Han, na China, e o Império
Romano. Mas o objecto do nosso estudo centra-se nas origens
do estado moderno e este não teve origem directa em nenhum
desses exemplos primitivos. Os homens que lançaram as bases
dos primeiros estados europeus nada sabiam do Extremo
Oriente e estavam muito longe, no tempo, da Grécia e de Roma.
Embora conhecessem alguma coisa acerca de Roma, graças ao
estudo do Direito Romano, e da Grécia, através dos tratados
aristotélicos, tiveram de reinventar o estado pelos seus próprios
meios e, no final de contas, o tipo de estado que criaram acabou
por funcionar melhor do que a maioria dos antigos modelos.
No mundo antigo, os estados dividiam-se, de um modo geral,
em duas categorias: os impérios grandes, mas deficientemente
integrados, e as unidades pequenas, mas com um elevado grau
16
de coesão, como as cidades-estado gregas.Qualquer desse tipos
de estado tinha os seus pontos fracos. Os impérios eram militar-
mente fortes, mas apenas uma pequena parte dos seus habitan-
tes podia participar no processo político ou em qualquer outra
actividade que transcendesse os imediatos interesses locais. Isso
representava um considerável desperdício de recursos humanos
e não permitia a existência de um forte sentimento de lealdade
ao estado. Para a grande maioria dos súbditos de um império, a
preservação do estado não constituía o supremo bem social;
em inúmeros casos, as populações assistiram serenamente à
queda dos impérios e ou passaram a fazer parte de unidades
políticas de menor dimensão, ou aceitaram, sem protestar, a
sua integração num novo império dirigido por uma nova élite.
A cidade-estado utilizava muito melhor os seus habitantes do
que o império; todos os cidadãos participavam activamente na
vida política e nas actividades comunitárias que lhe estavam
associadas. O sentimento de lealdade ao estado era forte e
atingia, por vezes, a intensidade do moderno nacionalismo.
Mas nenhuma cidade-estado resolveu jamais o problema de
incorporar novos territórios e novas populações na sua estru-
tura, nem conseguiu fazer participar na vida política um nú-
mero realmente elevado de pessoas. A cidade-estado ou se
converteu no núcleo de um império (como no caso de Roma),
tomando-se assim vítima de todos os males do império, ou
se manteve pequena e militarmente fraca, acabando, mais
tarde ou mais cedo, por ser vítima de uma conquista.
Os estados europeus surgidos depois de 1100 combinaram,
em certa medida, as virtudes quer dos impérios, quer das cida-
des-estado. Eram suficientemente vastos e poderosos para
terem excelentes possibilidades de sobrevivência - alguns deles
estão prestes a atingir os 1000 anos, o que é uma idade respei-
tável para qualquer organização humana. Simultaneamente,
conseguiram integrar ou, pelo menos, envolver no processo
político uma boa parte dos seus habitantes e criar nas comuni-
dades locais um certo sentimento de identidade comum. Conse-
17
guiram mais dos seus povos, quer no que diz respeito à activi-
dade política e social, quer no tocante à lealdade, do que os
antigos impérios, sem contudo terem alcançado a participação
total que caracterizava uma cidade como Atenas.
A distinção que fizemos atrás entre os grandes e pouco
integrados impérios e as pequenas, mas coesas, unidades políti- .
cas aplica-se perfeitamente ao Médio Oriente, à Asia central e
à Indía, Já o mesmo não acontece nos casos da China e, mais
tarde, do Japão. Mas a capacidade do estado de tipo europeu
para alcançar a superioridade económica e política demonstrou
ser tão grande que acabou por fazer parecer irrelevantes a expe-
riência chinesa e outras experiências não europeias de estado.
O modelo europeu tornou-se o modelo da moda. Nenhum
estado europeu imitou um modelo não europeu; os estados
não europeus, porém, ou adoptaram o modelo europeu para
sobreviver, ou então atravessaram uma experiência colonial
que neles introduziu importantes elementos do sistema euro-
peu. O estado moderno, tal como o conhecemos actualmente, .
tem sempre por base o modelo surgido na Europa, no período
que vai de 1100 a 1600.
Os europeus, como já foi dito, viram-se forçados a reinven-
tar o estado à sua própria custa e durante muitos séculos, após
a queda do Império Romano do Ocidente, nada fazia pensar
que viessem a ter êxito nessa tarefa. A ideia romana de estado
não tardou a cair no esquecimento, no turbulento período das
invasões e migrações; os próprios dirigentes da Igreja, que pre-
servaram muitas das tradições romanas, não foram capazes de
transmitir esse conceito com suficiente clareza. Na alta Idade
Média, a forma dominante de organização política na Europa
ocidental foi o reino germânico, que, nalguns aspectos, repre-
sentava a perfeita antítese daquilo que é um estado moderno.
Baseava-se num sistema de lealdade a pessoas, e não a conceitos
abstractos ou a instituições impessoais. Um reino era cons-
tituído por todos aqueles que aceitavam um determinado
homem como rei, ou que, nas sociedades mais estáveis, reco-
18
nheciam o direito hereditário de uma determinada família a
reinar. Esses reinos careciam de continuidade no tempo e de
estabilidade geográfica. Alguns deles eram tão efémeros que
apenas os conseguimos identifícar pelo nome de um soberano,
como, por exemplo, o «reino de Sarno», que floresceu durante
um breve período na Alemanha Oríental ". Outros, embora
tenham durado mais algum tempo, foram-se deslocando geo-
graficamente de uma forma fantástica; em poucas gerações, o
reino dos Visigodos passou da região do Báltico para a do mar
Negro e daí para o golfo da Biscaia. Não é possível encontrar-
mos, em tais sociedades, instituições que funcionem de uma
forma regular, nem sinais de soberania. O rei existia para resol-
ver casos de emergência, e não para dirigir um sistema legal ou
administrativo. Falava em nome do seu povo com os deuses,
conduzia-o na batalha com outros reis, mas cada comunidade
resolvia os seus próprios assuntos internos. A segurança provi-
nha da família, da vizinhança e do senhor, não do rei.
O reino franco dos séculos vm e IX e o reino anglo-saxó-
nico dos séculos X e XI atingiram um nível ligeiramente supe-
rior. Ambos se tinham estabelecido numa zona fixa e mantido
durante um respeitável período de tempo. Nos dois casos, o
rei tinha aceitado a responsabilidade geral de preservar a paz
e administrar justiça, criando um sistema uniforme de tribunais
locais para este último fím S • No entanto, esses passos rumo à
constituição do estado foram prematuros; as estruturas sociais
e económicas básicas não conseguiam suportar o peso de insti-
tuições políticas minimamente centralizadas. Os interesses e
as lealdades eram, em primeiro lugar, locais e limitados à famí-
4 Acerca de SamoverJ, Peisker, inCambridgeMedievalHistory;Cambridge,
Inglaterra, 1926, II,pp. 451-452.
5 No que respeita a Inglaterra, ver F. M, Stenton, Anglo-Saxon England,
Oxford, 1943, pp. 289·296, 389, 485 -495 e 538·539, e J. E. A. Joliffe, Cons-
titutional History of Medieval England, Londres, 1937, pp. 57-74 e 107·127;
para o caso da França ver F. L. Ganshof, Frankisk Institutions under Charle-
magne, Providence, 1968,pp. 71-97.
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lia, à vizinhança, ao condado. Os funcionários do rei - duques,
condes {counts} e vassidominici em território franco, condes
(earls) e thegns* em Inglaterra - tinham uma maior tendênciapara se converter em senhores de comunidades locais autóno-
mas do que para se limitar ao papel de agentes da autoridade
central. Entre os Francos, os condes e duques, por volta de.
900, tinham-se já tornado praticamente independentes, mas a
sua própria autoridade viu-se, por seu turno, desgastada pela
acção de viscondes, castelãos e outros senhores de comuni-
dades mais pequenas. Esta fragmentação do poder político é
uma das características do primeiro feudalismo. De facto, o
feudalismo aparece, em regra, sempre que o esforço necessá-
rio para a preservaçso de uma unidade relativamente vasta
está para além dos recursos económicos e psíquicos da socie-
dade. E o primeiro feudalismo só conseguiu reduzir esse
esforço recorrendo à Simplificação das instituições e à perso-
nalização das lealdades; tem de começar por actuar contra a
consolidação do estado, ainda que acabe por se transformar
num dos seus fundamentos.
A fragmentação do poder processou-se a um ritmo dife-
rente e atingiu graus diversos em cada uma das partes do antigo
reino franco, mas chegou a um ponto tal que, por volta do ano
1000, seria difícil encontrar qualquer coisa parecida com um
estado em todo o continente europeu (com excepção do Impé-
rio Bizantino). A Inglaterra, cuja unificação foi posterior à do
reino franco, s6 mais tarde, naturalmente, começou a apresentar
sinais de deSintegração. Entregue à sua própria sorte, a Ingla-
terra do século XII poderia ter acabado por se dividir, como a
França do século XI, mas a conquista nonnanda, ao aniquilar a
velha a~strocacia anglo-sax6nica, eliminou uma das forças que
conduzIam à fragmentação. Fizeram-se, e hão-de continuar a
* Thegn ou thane, membro do séguito de um senhor; vassalodo rei ou de
um senhor. Estetítulo conservou-sedurante muito tempo na Escócia.(N. do T.)
20
fim acerca dos efeitos dessa con-
fazer-se, especulaçõ~s ~m . introduzir uma nova classe
quista; mas uma COisae certa. aoeio reduzir em grande parte
dirigente de ori~ntação francesa, :0 continente e na Inglaterra.
a diferença do ntmo da evolução no continente, favore-
A partir do ano de 1066, as f°nhrçasque, parecimento do estado
,. e opu amaoaciam ou, pelo contrano, s . I glaterraígual eficáCiaem n .
passaram a exercer-se coI_DI .' os acontecimentos que
É difícil dizer qUaIS as lde~as.e_ do estado na Europa
de constltUlçao
relançaram o pro~esso, I Xl É incontestável que a difusão
ocidental nos fínaís do secu o. A ícos ainda pagãos ou
. povos germam
do cristiamsmo entre os . ão da Igreja constituíram fac-
heterodoxos e a melhor orgamzaç ti' assou a ser realmente
tores importantes. AEuropa OCid_;:;,a ~~:omuitos cristãos de
cristã nos finais do sécu~o X. co~e a Iw'eja e um dos grupos
nome poucos contactos tínham d _ nem sequer era
. f t s os Norman os
germânicos mais or e - . iã tinha muitos dos atributos
nominalmente cristão. A Igreja J d por exemplo _ e es-
. titui ões dura ouras,de um estado - ms I UlÇ I uma teoria da sobe-
I t os - por exemp o,tava a desenvo ver ou r d Igreja se encontrarem
. 6 O f t de os homens a J
rama papal. ac o . olítica secular e de nenhum
profundamente envolvidos na p f ões sem o seu conselho
governante poder exceder as .suas ~~~as e as técnicas adminis-
e apoio demonstra que as teor~a~p~ I ~directa sobre o governo
trativas da Igreja tinham uma l~ uencI~s governantes tinham o
laico. A Igreja ensinava também que übditos 7 doutrina
. .ustiça aos seus su ,
dever de garantir a paz e a J. _ d vas instituições judiciais
que exigia logicamente a cnaçao e.no. ais fácil adrni-
. sso fOlIento, era me admínístratívas. Mas o proce . itã las era mais fácilI . d que um a- ,
rar as instituições da greja ~ I dministração da justiça
admitir a responsabilidade dos reis pe a a
6 W.Ullman, The Growth 01 Papal Govemment tn the Middle Ages, Lon-
dres, 1955,pp. 276-299 e 414-~37. .u 93-97' Carlyle,History 01
7 Kantorowicz, The King's two BD res, pp. ,
Politicai Theory, II, parte n, caps. 3, 5 e 8.
21
do q~e organizar um sistema judicial. A influência da Igreja, só
por SI, não era suficiente para criar estados.
Outro factor de importância quase idêntica foi a gradual
estabil~ação da Europa, o fim de um longo período de migra-
ç~s, Invasões e conquistas. Os primeiros reis germânicos
tinham acabado com o Império do Ocidente, mas em seguida-
~omeçaram a destruir-se uns aos outros com a ajuda de novos
Invasores. Os Francos conquistaram reinos rívaís; na Gália e
na Germânia, apenas para se encontrarem eles próprios dividi-
dos pela guerra civile debilitados pelos ataques dosNormandos.
Os Ostrogodos e os Vândalos foram varridos pelo Império
Romano do Oriente e os Visigodos por uma invasão muçul-
mana. Os Dinamarqueses acabaram com a maioria dos reinos
anglo-saxônicos. Só no século x, o único reino sobrevivente, o
de Wessex, estabeleceu a sua hegemonia sobre a maior parte
da Inglaterra. Mas, a partir do ano 1000, modificações dessa
en~ergadura tornaram-se raras. Os principais reinos que conse-
guiram sobreviver - o de Inglaterra, o dos Francos ocidentais
(a futura França) e o dos Francos orientais (o núcleo da Ale-
manha - conservaram-se, de uma forma ou de outra até aos
nosso~ dias. A mesma coisa aconteceu ao nível local; a; grandes
famílías nobres ganharam raízes em determinadas zonas dei-
xando de vaguear em busca de poder ou de despojos. Já não
era possível um conde da Renânia tornar-se senhor de França,
como fizera o antepassado dos Capetos;já não era possível um
chefe víquingue dominar uma província francesa, como fez
Rollon na Normandia.
E~ta crescente estabilidade política veio dar lugar ao
ap:uecImento de uma das condições essenciais para a consti-
t~IÇão do estado, a continuidade no espaço e no tempo. Pelo
SImples facto de se manterem de pé, alguns reinos e principados
c~meçaram a adquirir solidez. Certos povos, ocupando deter-
minadas áreas, permaneceram, durante séculos, integrados num
m~s~o cónju.nto político. Era de esperar que um reino que
extsna há vánas gerações continuasse a existir; tal reino tinha
i,,.
I
22
passado a fazer parte do panorama político. E os governantes
de reinos e principados que se mantinham no espaço e no tempo
tinham oportunidades e incentivos para desenvolver instituições
permanentes. Ainda que apenas por interesses próprios e egoís-
tas, esses governantes desejavam assegurar a segurança interna
e a existência de laços organizados entre as comunidades locais
e as suas cortes. Uma segurança maior e formas de controlo
mais rígidas viriam incrementar, quase de certeza, os rendimen-
tos do soberano, aumentar o seu prestígio e ampliar as suas
possibilidades de transmitir o poder e as suas possessões aos
seus herdeiros. As ambições dos governantes coincidiam com
as necessidades dos seus súbditos. Numa época de violência,
a maioria dos homens desejava, acima de tudo, a paz e a
segurança. Verificavam-se pressões a todos os níveis para for-
talecer governos débeis, de forma a permitir-lhes cumprir os
seus deveres mínimos de defesa, perante os perturbadores,
internos e externos, da paz. Assim, em qualquer unidade polí-
tica em que houvesse alguma estabilidade e continuidade era
natural esperar que se fizessem esforços no sentido de criar
instituições judiciais, para consolidar a segurança interna, e
instituições financeiras capazes de fornecer os rendimentos ne-
cessários para a defesa contra inimigos externos.
Curiosamente, este movimento a favor de instituições
judiciais e fínanceíras mais eficazes foi especialmente forte
nalguns dos maiores senhorios feudais. O feudalismo tinha
destruído o Império Franco, mas não acabara com todas as
instituições sociopolíticas a ele devidas, e até o mais atrasado
dos senhorios feudais constituía uma unidade política mais
sofisticada do que uma primitiva tribo germânica. Aqueles
que desempenhavam papéis políticos encontravam-se clara-
mente separados do resto da comunidade.A estrutura política
era uma criação artificial - por exemplo, o condado, o cargo
de conde, o tribunal condal- e podia ser alterada através de
actos deliberadamente premeditados - por exemplo, a trans-
ferência de um tribunal, ou de parte da sua jurisdição, de um
23
senhor para outro. O governo era uma coisa distinta dos cos-
tumes da comunidade e a consciência dessa diferença foi
essencial para a constituição do estado. Para além disso, o
feudalismo veio eliminar o esforço que representava preservar
unidades políticas inviáveis, criando assim um clima de opinião
mais propício à experimentação política. A_efectiva unidade _.
do governo feudal adequava-se bastante bem à unidade econó-
mica e social que já existia; os súbditos de um mesmo senhor
tinham geralmente muita coisa em comum. Em numerosos
principados feudais desenvolveu-se um forte sentimento de
lealdade em relação ao senhor, coisa que tinha faltado quer no
Baixo Império Romano, quer em muitos dos reinos germânicos.
Por fim, o senhor feudal, como outros soberanos, contava com
um forte estimulo para tentar melhorar os seus métodos de
governo: o desejo de obter maiores rendimentos e maior segu-
rança, para si próprio e para os seus herdeiros. Assim, nalgumas
zonas, nomeadamente no Norte da França, os senhores feudais
mais capazes deram alguns dos primeiros passos para a consti-
tuição do estado.
Segundo os critérios modernos, não parece possível afirmar
que tenha havido um notável incremento de estabilidade e de
segurança no período que se seguiu ao ano 1000. No entanto,
em comparação com as condições anteriores, o progresso foi
inegável e suficiente para permitir um impressionante ressur-
gimento na maior parte da Europa ocidental. A produção
agrícola aumentou; o comércio entre zonas distantes aumentou;
a população cresceu; os homens passaram a interessar-se mais
pela religião e pela política. Nem sempre foi fácil harmonizar
todos esses interesses; foi particularmente difícil conciliar o
desejo de ter um governo mais forte e melhor com o desejo de
reformar a Igreja e de viver de uma forma mais cristã. Um
exemplo da primeira época serve-nos para ilustrar este ponto.
A Paz de Deus começou a impor-se nas conflituosas regiões
da França central, no século x, como uma tentativa feita pela
Igreja no sentido de organizar os camponeses e outros não
I:
24
combatentes numa espécie de associação de vigilância, com o
objectivo de reprimir a violência e as pilhagens praticadas pelos
senhores feudais". Não teve muito sucesso porque os senhores
eram, em geral, militarmente superiores aos exércitos, mal
treinados emal equipados, das associações de paz. Esse projecto
foi também encarado com alguma desconfiança pelos leigos, e
até pelo clero mais conservador, porque vinha envolver a Igreja
em assuntos tão seculares como a guerra e a justiça criminal.
Mas, quando a ideia foi abraçada por senhores poderosos, como
o duque da Normandia, quando a Igreja acedeu a representar
um papel secundário e a limitar-se a sancionar os esforços de
um governante laico, a Paz de Deus demonstrou a sua utilidade.
Veio dar a duques e condes um pretexto para intervirem em
assuntos locais e reprimirem os actos de violência que ameaça-
vam a estabilidade política 9•
A longo prazo, os homens da Igreja e os leigos chegaram
geralmente a acordo acerca dos métodos a usar para diminuir
a incidência dos actos de violência. Mas, ao longo do século XI,
o seu desacordo quanto a uma questão muito mais fundamen-
tal - as relações entre a autoridade secular e a autoridade reli-
giosa - foi-se tornando cada vez maior. Ambas tinham estado
profundamente interligadas nos séculos anteriores. Os reis eram
considerados personagens semi-religiosas e tinham uma pro-
funda influência nos assuntos da Igreja. Designavam os abades,
8 L Hubert, Studien zur Rechtsgeschichte der Gottesfrieden und Landes-
frieden, Ansbach, 1892; Georges Molinié,L 'organizationiudiciaire, militaire et
financiêre des assoctations de la paix, Toulouse, 1912; L. C. Mackinney, «The
People and Public Opinion in the Eleventh Century Peace Movement», in
Speculum, v, 1930, pp. 181-206; Hartrunt Hoffman, Gottesfried und Truga
Dei, Estugarda, 1964.
9 No que diz respeito à Normandia, ver H. Prentont, «La trêve de Dieu en
Normandie», in Mémolres de l'Académie de Caen, n. s. VI, 1931, pp. 1-32;
J. Yver, «L'interdiction de la guerre privée en Normandie», in Travaux de la
semained'histoire de droit normand 1927, Caen, 1928,pp. 307 -348.
25
os bispos e, muitas vezes, os papas; chegavam a intervir (como
fez Carlos Magno) em questões de doutrina 10. Os dirigentes
religiosos, por outro lado, desempenhavam um importante
papel nos assuntos seculares como conselheiros dos reis; admi-
nistradores e soberanos dos principados eclesiásticos. A nova
orientação que surgiu na Igreja no século XI limitou-se de início ..
a procurar reformar o clero. Mas, gradualmente, tornou-se
evidente que, para reformar o clero, a Igreja precisava de ser
mais independente da autoridade secular e que, para conseguir
preservar a sua independência, a Igreja tinha de estar centra-
lizada sob a égide do papa. Uma Igreja reformada e fortemente
centralizada estava destinada a ter uma larga influência nos
assuntos seculares. Alguns reformadores pensavam até que a
Igreja deveria deter a autoridade suprema sobre todas as ques-
tões de relação social e política. Se se pretendia que a Europa
fosse realmente cristã, era necessário que ela estivesse sob a
autoridade dos dirigentes da cristandade 11.
Este programa, muito energicamente enunciado pelo papa
Gregório VII (1073-85), vinha destruir partes essenciais da
anterior estrutura política da Europa. Os soberanos laicos
negaram-se a satisfazer as exigências da Igreja e o conflito que
daí resultou (a Questão das Investiduras) prolongou-se por
quase meio século. Essa luta enfraqueceu consideravelmente
a antiga simbiose que existia entre as autoridades religiosas e
seculares. Os reis perderam o carácter semieclesiástico que
tinham e parte da sua influência sobre a nomeação dos cargos
eclesiásticos. A Igreja obteve a liderança, se não o domínio
absoluto, da sociedade europeia. A Igreja tinha-se separado
10 Kantorowicz, The King's Two Bodies, cap. 3; J. W.Thompson,Feudal
Germany,Chicago,1928, caps. 1 e 2; E. Amann e A. Dumas,L 'Église'aupouvoir
des kúques, 888-1057, Paris, 1984, liv. I, cap. 2, liv. II,caps. 2 e 3, liv.III,cap. 1.
11 Gerd Tellenbach,Church,State and ChristianSociety at the Investiture
Conflict, Oxford, 1940, pp. 147-161; Ullmann, GrowthofPapalGovernment,
pp. 272-299; A. Fliche,La réforme grégorienne,Paris, 1946,pp, 55-64 e 76-83.
26
nitidamente das autoridades políticas seculares; totalmente
independente ao mais alto nível, pode assim garantir um con-
siderável grau de autonomia nos níveis mais baixos. Os refor-
madores gregorianos tinham conseguido uma vitória, ainda que
parcial 12•
Como todas as vitórias, a vitória da Igreja na Questão das
Investiduras teve consequências imprevistas. Ao afirmar o seu
carácter singular, ao separar-se tão claramente dos governos
seculares, a Igreja veio aperfeiçoar, inconscientemente, os con-
ceitos acerca da natureza da autoridade secular. As definições
e os argumentos podiam variar, mas mesmo os mais fervorosos
gregorianos tinham de admitir que a Igreja não podia desem-
penhar todas as funções políticas. e que os soberanos laicos
eram necessários, havendo uma esfera de acção que lhes estava
reservada. Podiam estar submetidos à condução e às repreensões
da Igreja, mas não faziam parte da estrutura administrativa da
mesma. Estavam à cabeça de outro tipo de organização, para o
qual não se tinha criado ainda um termo que genericamente o
identificasse. Em resumo, o conceito gregoriano de Igreja quase
exigia a invenção do conceito de estado; e exigia-a com tal
intensidade que é extremamente difícil para os modernos auto-
resevitarem descrever a Questão das Investiduras como uma
luta entre a Igreja e o estado.
Ceder a essa tentação seria errado, mas a reorganização da
estrutura política da Europa, durante e após esse conflito,
preparou de facto o caminho para o aparecimento do estado.
Por alguma coisa deixou de ser possível levar a sério as aspira-
ções do ressuscitado Império Romano do Ocidente a exercer
o domínio universal. Quando a Igreja e o Império colaboravam
intimamente, como aconteceu no tempo de Carlos Magno e
12 Para além das obras mencionadas na nota 11,ver G. Barraclough,The
Originsof Modem Germany,Oxford, 1949,pp. 127-155, e N. Cantor,Church,
Kingship and Lay Investiture in England,Princeton, 1958,caps. I e 5.
27
dos vários Otãos da dinastia de Otão-o-Grande, a supremacia
imperial podia ser admitida, pelo menos em teoria; mas a Ques-
tão das Investiduras debilitou mais o Império do que qualquer
outra organização política secular. Outros soberanos consegui-
ram resolver as suas disputas com os reformadores de uma
forma independente e em melhores termos do.que o imperador. :
A Europa ocidental formava talvez uma unidade religiosa, mas
na-o era claramente uma unidade política. Cada reino ou prin-
cipado tinha de ser tratado como uma entidade separada; as
bases para a criação de um sistema pluriestatal acabavam de ser
lançadas.
Ao mesmo tempo, a Questão das Investiduras veio reforçar
uma tendência que já existia antes: a tendência para considerar
o senhor laico, antes do mais, o garante e distribuidor da justiça.
Os reformadores gregorianos acreditavam que à Igreja competia
definir a justiça, mas até eles admitiam que, em condições
normais, era dever dos senhores seculares velar para que os seus .
súbditos tivessem garantido o acesso à justiça. Para .os reis era
ainda mais importante destacarem essa função. Se já não parti-
lhavam a responsabilidade pela condução e pelo governo da
Igreja, se tinham deixado de ser «bispos para os assuntos exter-
nos», então a única desculpa para a sua existência era a neces-
sidade de fazerem respeitar a justiça. Mas, se era seu dever faze-
rem respeitar a justiça, então tinham de desenvolver os códigos
de leis e melhorar as instituições judiciais. Estas medidas são,
sem dúvida, úteis para a constituição do estado, mas nem sem-
pre surgem tão cedo nem têm tanta importância como aconte-
ceu na Europa ocidental.
O facto de, logo desde as origens dos estados da Europa
ocidental, se atribuir uma tal importância à lei ia ter uma pro-
funda influência no seu desenvolvimento futuro. O estado
baseava-se na lei e existia para a fazer cumprir. O soberano
estava obrigado moralmente (e, muitas vezes, politicamente)
pela lei e o direito europeu não era meramente penal, como em
muitas outras regiões; regulava as relações farniliares e comer-
28
ciais e a posse e o uso da propriedade. Em nenhum outro sis-
tema político a lei era tão importante; em nenhuma outra
sociedade os juristas iriam desempenhar um papel tão funda-
mental. Os estados europeus nem sempre conseguiam atingir o
seu ideal, que consistia em serem basicamente estados de direito,
mas o facto de possuírem tal ideal representou um importante
factor para conseguirem a lealdade e o apoio dos seus súbditos.
Talvez o mais tardio dos estímulos que conduziram ao
aparecimento do estado europeu tenha sido o rápido aumento
do número de homens instruídos durante o século XU 13.
É difícil criar instituições impessoais permanentes sem se poder
dispor de arquivos escritos e de documentos oficiais, De facto,
o documento escrito constitui a melhor garantia de perdura-
bilidade e o melhor isolador entre um administrador e as pres-
sões pessoais; é precisamente por isso que os cidadãos que pre-
tendem fazer inclinar a lei a seu favor se escudam sempre num
documento escrito quando se dirigem à pessoa que vai aplicar
essa lei. Nos princípios do século XU, o número de homens
capazes de manter arquivos e elaborar documentos era muito
reduzido e, por isso, o desenvolvimento das instituições era
também limitado. Porém, o ressurgimento europeu flcou a
dever-se, em parte, a um espantoso incremento do desejo de
aprender. Milhares de jovens afluíram às escolas e, depois de
formados, entraram ao serviço de funcionários eclesiásticos
seculares. No final do século XU, a falta de escriturários e
contabilistas estava praticamente superada; cem anos mais
tarde já havia provavelmente excedentes de pessoal capaz de
realizar esse tipo de tarefas.
Há um tipo de educação que merece uma menção especial:
o estudo do Direito. A maior parte dos jovens limitava-se a
13 C. H. Haskins,Renaissance 01 the Twelth Century, Cambridge, Mass.,
1927; G. Paré, A. Brunet e P. Tremblay, La renaissancedu XI/e siêcte , Paris,
1933; D. Knowles, The Evolution 01 Medieval Thought, Londres, 1962, pp.
71-171; R. W.Southem, TheMaking 01 the Middle Ages, cap. 4.
29
estudar Artes, em que a maior ênfase era dada ao uso correcto
da linguagem e da lógica. Daqueles que prosseguiam os estudos
e frequentavam cursos superiores, a maior parte matriculava-se
nas escolas de Leis. Aprendiam Direito Canónico, Direito
Romano (segundo o Corpus Iuris Civilis, de Justiniano), ou
ambos. Os professores dessas escolas eram famosos em toda a.- - .. - -,
Europa e os seus alunos atingiam posições elevadas, especial-
mente na Igreja. No entanto, a influência do estudo académico
do Direito não deve ser exagerada. As primeiras instituições
de carácter estatal já existiam antes de as escolas de Leis terem
começado a funcionar e o direito romano era de fraca utilidade
imediata na maioria da Europa a norte dos Alpes. A Inglaterra,
a Alemanha e o Norte da França regiam-se pelo direito consue-
tudinário, que não se ensinava nas escolas; os especialistas nesse
tipo de direito, com poucos ou nenhuns conhecimentos de
direito romano, conseguiam resultados notáveis. A importância
do estudo do Direito Romano radicava no facto de esse estudo
fornecer um conjunto de categorias, em que era possível inte-
grar as novas ideias e vocabulário para as definir. Assim, a dis-
tinção feita pelos Romanos entre lei civil e lei penal foi muito
útil para os juízes ingleses, que então estavam a tentar reduzir
a escrito o rápido desenvolvimento do direito consuetudinário
do seu país!4. A ideia de bem comum e o dever que o soberano
tinha de velar por esse bem serviram para justificar inovações
como a tributação universal! s. Os Romanos não tinham uma
palavra que fosse exactamente equivalente a «estado», mas os
termos res publica, ou «coisa pública», aproximavam-se-lhe
bastante e formavam um núcleo em redor do qual a ideia de
"
li
14 Glanvill,De Legibus et Consuetudines Regni Angliae, ed. de G. E.Wood.
bine, New Haven, 1932; nesta obra, escrita em 1187,Glanvill inicia a sua sólida
argumentação com esta afirmação: «Placitorum aliud criminale aliud civile»
(p.42).
15 Post, Studies, pp. 258.290.
30
estado podia cristalizar. Porém, nada disso teria passado de
uma mera abstracção se na Europa ocidental não se tivesse
iniciado já o processo de criação de instituições legais. Foi
devido ao facto de já possuírem normas de direito civil, impos-
tos e até uma vaga ideia de estado que os Europeus do século
xm puderam utilizar e entender conceitos romanos paralelos,
cuja existência contribuiu, por certo, para aperfeiçoar as defi-
nições e clarificar o pensamento de juízes e administradores.
A prática de as discussões de teoria política utilizarem frequen-
temente termos de direito romano veio reforçar a tendência,
que já existia antes, para utilizar o direito como base e justifi-
cação da criação dos estados. Mas, se é verdade que o renascer
do direito romano facilitou e acelerou, talvez, o processo de
constituição do estado, esse renascimento não constitui decerto
a sua causa primeira, nem representou provavelmente uma con-
díção necessária para esse processo.
Estas consideraçõesacerca da influência do direito romano
afastaram-nos do nosso ponto de partida. Voltemos aos come-
ços do século xn e passemos a analisar as estruturas políticas
que então surgiram. Podemos começar por uma importante
generalização: as primeiras instituições permanentes que exis-
tiram na Europa ocidental ocupavam-se de assuntos internos,
e não de questões internacionais. Os Supremos Tribunais de
Justiça e os Departamentos do Tesouro surgiram muito antes
dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa. A prio-
ridade concedida às instituições de carácter interno foi, em
muitos sentidos, benéfica. Essa prioridade era a que correspon-
dia melhor aos ideais seculares dominantes da justiça e império
da lei, fáceis de aplicar aos problemas internos, mas que s6
com muita dificuldade se podiam aplicar às questões externas.
A constituição de um sistema de tribunais eficaz trazia vanta-
gens evidentes para todos; tornava-se, porém, mais difícil
demonstrar os benefícios provenientes da existência de um
exército regular. Finalmente, permitindo que os funcionários
mais competentes e inteligentes se especializassem, na sua
31
maioria, em assuntos internos, conseguia-se reduzir a pressão
sobre os escassos recursos humanos. A título de comparação,
basta pensarmos na inquietante situação dos estados contem-
porâneos recentemente criados, que se vêem forçados a empre-
gar os seus quadros mais capazes na diplomacia ou no exército.
As razões pelas quais se concedeu prioridade aos assuntos:
internos são óbvias. A fragmentação da Europa e a debilidade
das unidades políticas que as constituíam não permitiam qual-
quer acção continuada, ou a longo prazo, em matéria de assun- .
tos externos. Nenhum soberano era capaz de levantar um
exército de mais de alguns milhares de homens, nem de manter
esse exército para além de uns meses. A existência de exércitos
regulares, ou de um corpo permanente de oficiais, era impen-
sável. Na sua maioria, os soberanos preocupavam-se apenas
com as relações com os seus vizinhos mais próximos. A Ingla-
terra tinha muito pouco a ver com Aragão, tal como a França
com a Suécia. Mesmo entre vizinhos, havia uma tendência
maior para resolver conflitos através de incursões armadas e
de acções de represálias do que pela via diplomática; as tréguas
e as pazes eram estabelecidas por acordos adhoc.Numa Europa
sem estados nem fronteiras, o conceito de «negócios estrangei-
ros» não tinha qualquer significado e, portanto, não havia
necessidade de uma máquina burocrática para tratar dessas
questões.
Pelo contrário, precisamente pelo facto de o sistema polí-
tico europeu ser tão fraco e fragmentário, os soberanos que
pretendiam preservar a sua posição e transmiti-la aos filhos
tinham de fazer algum esforço no sentido de constituir unida-
des políticas coerentes a partir das terras dispersas e dos direi-
tos de governo que possuíam. Isso implicava, primeiro e antes
de mais nada, o aperfeiçoamento da arte de governarem os seus
domínios. Uma vez que a tributação universal era praticamente
desconhecida, os rendimentos dos reis e dos príncipes provi-
nham, na quase totalidade, das suas terras, dos direitos de por-
tagem e de mercado e da parte que lhes cabia das multas apli-
32
cadas por determinados tribunais por certos delitos 16. Porém,
visto que as terras que possuíam nunca eram contíguas e os
proventos dos direitos de portagem e de justiça tinham de ser
partilhados com membros da aristocracia, os reis sentiam
grande dificuldade em conhecer com exactidão o montante
dos seus rendimentos e, quando o conheciam, enfrentavam
dificuldades quase idênticas para cobrar esses rendimentos.
Os primeiros funcionários permanentes foram os administra-
dores das terras senhoriais: os reeves e shire-reeves (sheriffs),
em Inglaterra, os prévôts, em França, os ministeriais, na
Alemanha. Esses funcionários centralizavam as rendas dispersas
dos seus territórios e colocavam-nas à dísposíção dos seus
amos. Para isso tinham de registar de alguma forma essas
operações e submeter-se a um sistema qualquer de controlo
contabilístico. Esta evolução foi muito mais rápida em Ingla-
terra do que em qualquer outro sítio, mas, na maioria dos
países, as instituições financeiras centrais tiveram origem no
trabalho desses administradores.
Os proventos da justiça constituíam uma parte apreciável
dos rendimentos locais (uma vez que a pena aplicada à maioria
dos delitos consistia numa multa) e fazia parte das atribuições
dos agentes locais do governo presidir aos tribunais que geravam
tais rendimentos. Este sistema revelou-se satisfatório, enquanto
os tribunais se limitavam a julgar fundamentalmente conflitos
entre camponeses, e as multas impostas erru:n'fixas e represen-
16 Mesmono séculoXII, numa época emque já se tinha iniciado o processo
de constituição do estado, e até nas unidades políticas mais avançadas, como a
Inglaterra, a Normandia e a Flandres, os rendimentos eram,na sua maioria, desse
tipo. Ver, para o que diz respeito aos rendimentos reaisna Inglaterra em 1130:
B. Lyon e A. E. Verhulst, Medieval Finances, Providence, 1967; L. Delisle,
«Des revenus publics en Nonnandie au xne et XIIle síêcles», in Bibliothêque
de l'École des Chartes, x, XI, XII (1848-1849, 1852); Magnum rotu/um. 31
Henry I. ed. por J. Hunter, Londres, 1833. A França encontrava·se ainda nessa
situação em 1202; ver F. Lot e R. Fawtier,Le premier budget de la monarchie
française:Le compte généralde 1202-1203, Paris, 1932.
33
34
II
I
,I
I
tavam, em geral, quantias pequenas. A relação entre a adminis-
tração da justiça e a colecta dos rendimentos foi muito estreita
durante toda a Idade Média e, mesmo quando surgiram grupos
de juízes especializados, essesjuízes foram muitas vezes utiliza-
dos como cobradores de rendas 17, e os antigos funcionários
que se dedicavam a essa tarefa (sheriffs, prévõts e similares)-
continuaram a julgar pequenos delitos. No entanto, os sobera-
nos começaram gradualmente a perceber que a justiça não era
só uma fonte de rendimentos, era também uma forma de afír-
mar a autoridade e de aumentar o poder do rei e dos grandes
senhores. Por conseguinte, os soberanos mais capazes trataram
de alargar a competência dos seus tribunais.
Vários recursos podiam ser utilizados para ampliar a juris-
dição de um tribunal. O julgamento de crimes graves, como o
assassinato, podia ser reservado para o tribunal do rei ( ou de
um duque, ou de um conde} A reserva do julgamento desses
casos - chamados casos da coroa (pleas of the crown) ou casos
da espada (pleas of the sword) - permitia ao soberano intervir
em territórios nos quais não possuía terras, nem direitos locais
de justiça 18. Em casos de direito civil era possível instituir
processos especiais que permitissem às partes em litígio ultra-
passar o tribunal do senhor local e apresentar-se directamente
perante um tribunal real (ou ducal, ou condal). Tais processos
baseavam-se, em geral, em duas ideias que andavam ligadas:
manter a paz e proteger a propriedade. Uma vez que as altera-
ções da propriedade, sem o devido processo legal, provocavam
geralmente desordem, a instância superior podia intervir,
I
',i
I
17 W. Stubbs, Select Charters, Oxford, 1921, pp. 251-257. Os juízes
itinerantes ingleses tinham por função ouvir todas as causas e também inquirir
acerca de heranças que devessemreverter para o tesouro, tutelas e demais direi-
tos reais, e cobrar impostos nas cidades do rei.
18 Glanvill, De Legibus, p. 42, caps. 1 e 2; Le Ires ancien coutumier de
Normandie, texte Latin, ed. por E. J. Tardif, Ruão, 1881, p. 43, cap. 53:
«[...] de placitis ensis ad Ducem pertinentibus»; E. Perrot, Les cas royaux, Paris,
1910.
emitindo uma ordem judicial, para manter ou restabelecer o
statu quo 19. Teoricamente, os tribunais inferiores (dos barões)
conservavam a sua jurisdição; na prática, era uma decisão do
tribunal superior que geralmente resolviao caso. Assim, os
vassalos de nível mais baixo podiam ser protegidos do seu suse-
rano imediato pelo rei, pelo duque ou pelo conde e a sua leal-
dade acabava por ir para o homem que os protegia. Finalmente,
era dever de um rei velar por que se fizesse justiça em todo o
seu reino. Se um tribunal inferior tomava uma decisão injusta,
a única forma de remediar a injustiça era a possibilidade de
interpor recurso para o tribunal do suserano. Um senhor cujas
decisões podiam ser revogadasera um senhor que tinha perdido
uma boa parte da sua autoridade 20.
Todos estes processos foram utilizados, em maior ou
menor grau, pelos homens que edífícaram estados nos séculos
xn e xm. A intervenção directa do rei foi mais frequente em
Inglaterra do que em França; os recursos das decisões dos tri-
bunais menores para o tribunal do rei foram porém muito
mais comuns em França do que na Inglaterra. Mas, em maior
ou menor grau, a supremacia teórica do rei foi-se impondo,
em todos os países, década após década e a distinção entre
jurisdição directa de soberano e a dos barões foi-se atenuando.
Quando este processo atingiu a sua conclusão natural, a geo-
19 Trata-se da protecção da posse, conceito fundamental do direito consue-
tudinário inglês; ver F. Pollock e F. W.Maitland,History of EnglishLaw, Cam-
bridge, Inglaterra, 1923, I, pp_ 145-149. Esseconceito era também importante
em França; ver L. Buisson,Kônig Ludwig IX, der Heilige, und dasRecht, Fri-
burgo, 1954, pp. 10-19 e 99-118.
20 O direito de apelar para uma instância superior foi especialmente impor-
tante no processo de desenvolvimentodo estado francês; ver F. Lot e R. Fawtier
His~oiredes institutions françaises au Moyen Age, vol. II, Institutions Royates,
Pans, 1958, pp. 296-323. Um jurista do século XIII, Philippe de Beaurnanoir,
estabeleceu claramente esse princípio na obra Coutumes de Beauvaisis,ed. por
A. Salmon, Paris, 1899, parágrafo n!>1043: «Et si n'i a nul si grant dessous li
~o rei] qui ne puist estre tres en sa court pour defaute -de droit ou pour faus
jugement et pour tous les cas qui touchent le roí.»
35
1'1
,
grafia política de um reino (ou de um principado) tinha sofrido
drásticas alterações. As ilhas dispersas de poder político, cada
uma delas praticamente isolada das outras, tinham sido suplan-
tadas pelo aparecimento de um sólido bloco territorial em que
um soberano único detinha a autoridade suprema. Chegar a
esse resultado levou séculos, mas os primeiros passos para a
edificação de um sistema judicial contribuíram imenso para
melhorar a posição daqueles que estavam â frente dos estados
em formação. Os senhores que pretendiam conquistar a inde-
pendência só podiam alcançá-la através do aumento dos seus
recursos militares e económicos, e esse aumento só podia, em
geral, ser conseguido graças à utilização da violência contra os
seus vizinhos e a exigências sem precedentes feitas aos seus
subordinados. Existindo um tribunal superior com condições
para evitar as guerras locais, impondo soluções pacíficas aos
conflitos, e para impedir que um senhor explorasse indevida-
mente os seus súbditos, então o estabelecimento de um novo
principado autónomo tornar-se-ia mais difícil.
Em geral, a opinião pública era favorável ao estabeleci-
mento de tribunais com uma efectiva autoridade. Como já
vimos, a Igreja insistia em que a justiça era o atributo essencial
dos soberanos seculares. No acto da sua coroação, os reis jura-
vam fazer justiça e os teóricos políticos sustentavam que um
rei injusto não era um rei, mas um tiran021• Os reis estavam
perfeitamente dispostos a aceitar a ideia de que a justiça era
importantíssima, já que esta representava um sinal da sua
autoridade e uma arma graças â qual podiam alcançar a supre-
macia nos seus reinos. Para o povo, e mesmo para muitos mem-
u
.1
I"
21 Carlyle, History o/Politicai Theory, II,pp. 125-140. Sobre os juramen-
tos proferidos no acto da coroação ver os artigos de P. E. Schramm, que se
encontram reunidos, com o título Kaiser; Kõnige und Piipste. O vol. II (Estu-
garda, 1968), pp. 99-257, contém os seus estudos sobre as cerimónias de
coroação até aos princípios do século X; o volume III (Estugarda, 1969~ pp.
33-131, 181-189 e 390-394, inclui alguns outros.
36
bros da baixa nobreza, a justiça significava uma protecção
contra a violência e a possibilidade de perderem as suas terras.
Por isso, os soberanos que se esforçavam por criar tribunais
que funcionassem com regularidade tinham a certeza de receber
uma aprovação quase universal. Os mais belicosos barões não
podiam opor-se à existência dos tribunais, ainda que só acatas-
sem as suas decisões com uma certa lentidão.
Por todas essasrazões, as instituições judiciais permanentes
desenvolveram-se quase tão cedo como as instituições fínancei-
ras permanentes. As instituições eram um pouco mais especia-
lizadas do que o seu pessoal. O mesmo homem podia ser
simultaneamente juiz e cobrador de rendas; porém, quando
actuava como juiz, utilizava determinados procedimentos e
formalidades que não era obrigado a respeitar quando recebia
as rendas. E, àmedida que o tempo foi passando, as leis aplica-
das nos tribunais foram-se tornando mais precisas, mais com-
plexas e mais difíceis de interpretar sem uma preparação
específica. Por volta de 1200 foram escritos os primeiros tra-
tados sobre o direito consuetudinário da Inglaterra e da Nor-
mandia 22; a partir de 1250, os juízes começaram a basear-se
na jurisprudência para tomar as suas decisões 23. A competên-
cia e a tramitação dos processos nos tribunais foram-se defi-
nindo com maior precisão, graças a sucessivas gerações de
especialistas em leis. Por volta de 13,OP já havia homens que'
dedicavam quase todo o seu tempo ao direito; os juízes dos .
tribunais centrais ingleses, no tempo de Eduardo I, conheciam
tão bem o Direito Consuetudinário inglês como um professor
de Bolonha conhecia o Direito Romano. Os dois pilares em
22 Glanvill em Inglaterra; ver nota 14. O autor anónimo de Três ancien
coutumier, na Normandia; ver nota 18.
23 Bracton's Note Book, ed. por F. W. Maitland, 3 vols., Londres, 1887.
Trata-se de uma colecção de notas sobre os primeiros casos apreciados por um
famoso juiz inglêsdo séculoXIII, que escreveu um importante tratado de direito
inglês.
37
q~e assentava o estado medieval eram o Tesouro e o Supremo
Tnb~nal; nos finais do século xru, ambas as instituições esta-
vam Já. nas mãos de funcionéríos experientes e com espírito
profissIOnal.
Os governos dos séculos XII ou XIII não utilizavam todos
osseus .fil:nciOI:áriosexclusivamente na administração de terras, .:
na.a~nllfllstraçao local e na administração da justiça. Tinha de
existír também um' Iorganismo centra que coordenasse o traba-
~o ~os funçionários encarregados de funções especiais, que
dIstnbuísse ordens aos cobradores de rendimentos e juízes e
que pu.desse tr~tar directamente com os prelados e os barões,
os q~als mant,mham consideráveis responsabilidades no que
respeita quer a manutenção da ordem interna quer à defesa
contra as ameaças externas. Esse organismo, a Chancelaria,
encarregava-se também de executar todas as tarefas que ainda
não tinham sido confiadas a departamentos organizados como
a correspondência com o papa e com os soberanos estrangeíros,
O homem que dirigia esse organismo, o chanceler era no dizer
de Stubbs,ministro de todas as pastas 24 . Era sempre um clérigo
de elevada hi .. erarquía -geralmente um bispo, no século XUI-
mUltas vezes com 'A.. '. expenencla anterior de governo em cargos
;;enos Importantes. Mesmo nos casos em que o ch~celer não
lspunha dessa experiência, os homens que trabalhavam sob
as suas ordens eram am. anuenses competentes que souberam
~nar e manter pro~ssos burocráticos e administrativos regu-
ares e fórmulas epístoíares precisas e adequadas. Esses funcio-
nários das chancel . dd . anas esempenharam um papel essencial no
esenalvolvunentodos estados medievais. A administração
centr dependia d dilO A .balh a igencia com que realizavam o seu tra-
• st o e da precisã'o com que formulavam as suas ordens e
lnf ruI ções, O século XII assistiu a um notável progresso do
n ve de qualifi 1'1' fi'rceçao pro íssional do pessoal da maioria das
24 W
. Stubbs, Constitutional History 01England, Oxford, 1891, I,p. 381.
38
chancelarias. As frases vagas e genéricas foram substituídas
por fórmulas específicas que não pudessem ser mal interpre-
tadas. A Chancelaria do papa estava muito mais avançada do
que as outras e, em certa medida, serviu-lhes de modelo;
porém, na época de Henrique II (1154-89) a chancelaria
inglesa não lhe ficava muito atrás. A França, que manifestava
um certo atraso, neste aspecto, em relação à Inglaterra, come-
çava a evidenciar inconfundíveis sinais de melhoria da sua
situação 2S. Pelo século XIII, quase todos os governos europeus
dispunham de uma chancelaria eficiente.
Assim, nos séculos que decorreram entre 1000 e 1300
começaram a surgir alguns dos elementos essenciais do estado
moderno. As entidades políticas, cada uma das quais com o
seu núcleo básico de gentes e de terras, adquiriram legitimidade
pelo facto de se manterem ao longo de muitas gerações. Esta-
beleceram-se instituições permanentes para os assuntos flnan-
ceiros e jurídicos. Surgiram grupos de administradores profis-
sionais. Tinha nascido um organismo central de coordenação,
a chancelaria, com uma equipa de funcionários extremamente
qualificados. Esses administradores profissionais não eram
ainda muito numerosos e, por isso, não podiam ser altamente
especializados. Tinham de ser auxiliados por funcionários
eventuais ou em tempo parcial- homens que seguiam funda-
mentalmente uma carreira eclesiástica, barões de menor cate-
goria, cavaleiros e burgueses ricos. Muitos deles estavam
dispostos a trabalhar alguns anos, ou uma parte do ano, como
administradores de terras, agentes financeiros, administradores
locais ou juízes. Dessa forma podiam ganhar os favores reais e
2S A. Giry,Manuel de âiplomatique,Paris, 1925,pp. 661-704 e 731-764,
para o que diz respeito às chancelarias do papa e dos Capetos. No que se refere
à Inglaterra ver a «Introdução» de L. Delisle à sua obra Recueil des ac~esde
Henri II, Paris, 1916, especialmente pp. I e 151. Embora essa obra Inclua
apenas actas relacionadas com as possessões francesasde Henrique II, as obser-
vações referentes à chancelaria aplicam-se igualmerte à Inglaterra.
39
I
I
I
I
I
I
I
,
aumentar os seus rendimentos, ainda que não estivesse nos
seus planos ficarem ao serviço do governo toda a vida. Porém,
em todo o lado havia homens que consagravam a maior parte
da sua existência à profissão de administrador e o seu número
aumentou consideravelmente no século xm.
Os elementos básicos do estado apareceram, em quase .:
toda a Europa ocidental, durante os séculos xn e xm, mas o
seu nível de desenvolvimento não foi o mesmo em todas as
regiões. Esse. desenvolvimento foi mais rápido em Inglaterra,
na França e nos reinos hispânicos, muito mais lento na Alema-
nha e rápido, mas com distorções, na Itália. Os reinos hispâni-
cos, ocupados com o seu problema muito específico da con-
~Uis~ e assimilação dos territórios mouros, tiveram pouca
mfluencia sobre as instituições do resto da Europa até fínaís
do século xv. Os Alemães não conseguiram constituir estados
vastos e duradouros; a sua unidade política típica foi o princi-
pado, em cujas instituições imitaram mais do que inovaram.
Na Itãlía, a brilhante promessa que, no século xn, constituía
o remo da Sícflia não conseguiu sobreviver às catástrofes e
erros políticos do século xm. As organizações políticas que
em Itália tiveram mais êxito, a partir de 1300, foram as cidades-
-estado; porém, estas não tiveram de enfrentar os mesmos pro-
blemas que os grandes reinos e muita da sua experiência não
encontrava possibilidade de aplicação a norte dos Alpes. Assim,
a Inglaterra e a França desenvolveram, sem dúvida, os modelos
de ~~tado europeu mais influentes; as suas ideias e instituições
poh tícas foram mais largamente imitadas do que as de qualquer
outro país europeu. O seu exemplo foi particularmente impor-
tante no período crucial de finais do século xm e princípios
do século XIV, época em que surgiu o conceito de soberania
(se não mesmo a própria palavra), época em que o sentimento
de lealdade em relação â Igreja, â comunidade e â família foi
def'mitivamente ultrapassado pelo sentimento de lealdade
a um estado que começava a surgir. Por conseguinte temostod . ,
o o mteresse em analisar com algum pormenor o processo
40
de constituição do estado em Inglaterra e em França, entre
1100 e 1300.
Os soberanos ingleses tiveram menos dificuldades do que
os seus primos franceses para alcançar a soberania interna.
A Inglaterra era um reino pequeno, pouco maior do que alguns
dos grandes ducados da França ou da Alemanha. Um rei activo
podia visitar a maior parte do seu reino com alguma regulari-
dade. Para além disso, uma vasta série de conquistas tinha
impedido o aparecimento de senhores fortes ao nível das pro-
víncias, ou o desenvolvimento de instituições provinciais
profundamente enraizadas. As invasões dinamarquesas tinham
acabado com todas as antigas dinastias anglo-saxónicas, com
excepção da Casa de Wessex. A lenta reconquista da Inglaterra
central e do Norte, levada a cabo pelos reis da Casa de Wessex,
eliminou, por seu turno, as famílias reinantes dinamarquesas.
Cada região continuava a manter os seus costumes próprios,
mas tinha deixado de haver um rei de Kent, de Mercia ou de
Danelaw*, que, com base nesses diferentes costumes, pudesse
construir instituições duradouras. As instituições existentes
eram idênticas em todo o país - o tribunal do condado [shire-
court), o tribunal de cantão [hundred-court], o tribunal do
município (borough-court]. Os funcionários locais - nobres
(condes) e magistrados (reeves) - representavam mais os inte-
resses do rei do que o das comunidades locais. E, quando,
como resultado da segunda conquista dinamarquesa, no século
XI, algumas grandes famílias começaram a ganhar raízes em
certos condados, tais famílias acabaram por ser rapidamente
desalojadas por Guilherme-o-Conquistador. Embora Guilherme
concedesse extensos poderes aos condes de certos condados
fronteiriços, esses homens não foram capazes de criar dinastias
provinciais poderosas; de resto, a maioria deles não receberam
*Parte da Inglaterra submetida à jurisdição dinamarquesa a partir do Tra-
tado de Wedmore (878). (N. do T.)
41
unidades territoriais compactas, mas apenas feudos e direitos
de governo muito dispersos. A partir de 1100 tomou-se claro
que nenhum conde nem nenhum barão dispunham da con-
centração de terras ou do poder necessários para criar uma
administração provincial autónoma. Se a Inglaterra devia
ter instituições permanentes, essas instituições seriam insti- .
tuições reais.
Também nisso a Inglaterra teve sorte. Devido ao facto de
nenhuma zona ter sido monopolizada por nenhuma dinastia
provincial, o rei conservava ainda terras e direitos de justiça
em todas as partes do reino. Uma vez que as suas terras e direi-
tos se encontravam tão dispersos, o rei tinha de ter represen-
tantes em toda a parte - xerifes e bailios, alcaides e adminis-
tradores florestais. A necessidade de um departamento finan-
ceiro central, que permitisse seguir a pista de rendimentos
provenientes de centenas de fontes diferentes, tomava-se
evidente. Verificar a existência de uma carência e empreender
qualquer acção para a resolver são evidentemente duas coisas
muito diferentes, mas os últimos reis anglo-saxónícos tinham
já implementado importantes elementos de um sistema de
contabilidade central. Guilherme e os seus sucessores desen-
volveram muito esse sistema e no princípio do século xn surgiu
em Inglaterra a Tesouraria do Reino (Exchequer),instituição
que desempenhava funções várias, mas que tinha como atri-
buição fundamental e mais organizada a responsabilidade de
verificar as contas apresentadas pelos funcionários reais de
todas as partes do reino. O Exchequer mantinha registos
meticulosamente pormenorizados e os seus funcionários pos-
suíam um elevado nível profissional. Tornou-se uma institui-
ção tão sólida que conseguia funcionar mesmo em períodos de
guerra civil. Essa solidez terá sido, provavelmente, um pouco
prematura. O Exchequer estava demasiado preso pelas suas
próprias regras, que o podiam levar a gastar 10 libras para
cobrar uma dívida de 10 pence, mas foi, sem dúvida alguma,
uma instituição unificadora e duradoura, cuja acção veio
42
afectar, directa ou indirectamente, todos os habitantes do
país 26.
Asmesmas circunstâncias históricas contribuem para expli-
car o aparecimento de um sistema de tribunais reais que cobria
todo o país. Guilherme não só herdou extensos direitos de
justiça dos seus antecessores anglo-saxónicos, como aumentou
imenso quer os seus problemas, quer os seus poderes, ao con-
fiscar e redistribuir grande parte das terras do reino. Uma vez
que todos os títulos eram outorgados ou confirmados pelo rei,
era natural que este e a sua corte fossem chamados a resolver
os conflitos que se levantavam a propósito da posse da terra e
dos direitos que lhe estavam ligados. «Corte» é evidentemente
um termo ambíguo. Originalmente designava apenas o con-
junto dos homens de elevada posição - bispos, barões e fun-
cionários da casa real- que faziam parte do séquito do rei.
Mas, já no século XI, alguns desses homens, pela sua competên-
cia, eram chamados, com maior frequência do que outros, a
resolver questões legais e, no século XII, um grupo de juízes
reais fez a sua aparição. O tribunal do soberano inglês era um
tribunal muito ocupado - muito mais do que a maioria dos
tribunais idênticos seus contemporâneos - e, por isso, come-
çou a fixar regras e normas processuais para tratar dos casos
mais frequentes. Essas normas tornaram o tribunal bastante
mais eficiente e popular. Por volta de 1215, a opínião dos
barões ingleses era favorável à existência de um tribunal cen-
tral e permanente, o qual consideravam necessário ao bom
governo da Inglaterra 2 7 •
O tribunal central, porém, destinava-se, de início, a jul-
gar apenas os grandes senhores e os casos mais importantes.
26 Acerca do Exchequer ver R. L. Poole, The Exchequer in the Twelfth
Century, Oxford, 1912; C. Johnson, Dialogus de Scaccario:The Course01 the
Exchequer, Londres, 1950; Lyon e Verhulst, MedievalFinance,pp. 57· 71.
27 Magna Carta, artigo 17: «[...] communia rlacita non sequantur curiam
nostram sed teneantur in aliquo loco certo.»
43
44
Nilo podia resolver todas as questões relacionadas com a posse
de terras e ainda menos encarregar-se dos casos de crime - as-
sassinato, fogo posto, violação, roubo -, que, em quase todo o
país, eram da exclusiva competência do tribunal do rei. No
entanto, a justiça era uma fonte de rendimentos e constituía
um sinal de poder; por isso, convinha ao rei.que o seu tribunal:
ouvisse o maior número de casos possível. A solução desse
problema consistia em enviar juízes - delegados do tribunal
central- munidos de processos de actuação novos e eficazes.
Esses juízes podiam aliviar os xerifes que estivessem sobre-
carregados de trabalho de grande parte das suas obrigações
judiciais, podendo encarregar-se também das causas que não
fossem da competência dos tribunais dos barões feudais. Estes
tribunais eram débeis e ineficazes; em geral, procuravam chegar
a uma solução de compromisso e raramente conseguiam reme-
diar com rapidez os casos de espoliação. Os juízes do rei não
competiam exactamente com os tribunais dos barões; em geral,
tomavam a seu cargo áreas em que estes não actuavam. As
novas normas processuais dos tribunais do rei visavam encurtar
os prazos e tomar decisões, rápidas e facilmente aplicáveis, em
casos difíceis. Tratava-se de uma tentativa deliberada de reduzir
problemas complexos a perguntas simples, que pudessem ser
respondidas por homens que tinham um escasso conhecimento
da lei ou de acontecimentos remotos. Assim, em casos que
envolviam a posse de terras, a pergunta mais frequente era:
«Quem foi o seu último ocupante pacífico?», e não: «Quem
possui o melhor título de propriedade?» Essa pergunta era res-
pondida por um grupo de vizinhos escolhidos entre as pessoas
respeitadoras da lei do distrito em que estivesse situada a pro-
priedade. Davam uma resposta colectiva com base nos seus
próprios conhecimentos e observações; não havia necessidade
de testemunhas e as oportunidades para polémicas legais eram
escassas. Este sistema rapidamente conduziu aos julgamentos
feitos por um júri; as questões postas ao júri tornaram-se mais
variadas e complexas, até que, por fun, quase todos os litígios
relacionados com a terra ou com os direitos a ela ligados
passaram a ser resolvidos pelo veredicto de um júri.
Os júris eram também utilizados para reunir as acusações
de crime. As gentes da vizinhança davam conhecimento dos
crimes às autoridades, através do seu júri de acusação (grand
jury); os implicados eram presos e julgados pelos juízes da cir-
cunscrição. Os funcionários reais manifestavam maiores reti-
cências em aceitar o veredicto de um júri em casos de crime do
que em questões de direito civil, o que era perfeitamente
natural, já que um erro acerca da propriedade de uma terra
podia sempre ser remediado, o que não acontecia com uma
condenação à morte. No entanto, a partir de meados do século
xm, a maior parte dos casos de crime eram abertos com uma
acusação formulada por um grand jury e concluídos com um
julgamento levado a cabo por um júri.
A existência de júris compostos por jurados tornou possí-
vel que os juízes ouvissem vários casos no mesmo dia. Como
raramente havia mais de vinte juízes, essa era a única forma de
enfrentar o aumento contínuo do trabalho dos tribunais. Além
disso, os jurados contribuíam para tornar popular a justiça do
rei. Dadas as características das comunidades rurais, em geral
muito unidas, um júri constituído por vizinhos conhecia
normalmente os factos; isso representava um progresso em
. relação a processos irracionais anteriormente utilizàdos, 'como
os juízos de Deus, ou ordálias. Uma vez que o júri falava em
nome de toda a comunidade e proferia colectivamente o seu
veredicto, estava menos sujeito a pressões do que as testemu-
nhas. Teoricamente, o sistema utilizado pela Igreja (posterior-
mente adoptado pelos juízes franceses), e que consistia em
interrogar as testemunhas uma a uma, era mais imparcial. Na
realidade, porém, o homem medieval encarava os processos
judiciais como uma mera continuação do combate por outros
meios e as testemunhas eram geralmente tão parciais que se
tornava duvidoso que o seu testemunho se aproximasse mais
da verdade do que um julgamento colectivo efectuado por um
45
,i
lii!:J
júri constituído por elementos da vizinhança. Em qualquer
caso, os cavaleiros, os pequenos terratenentes e os homens
livres da Inglaterra consideravam que o júri lhes proporcionava
alguma protecção contra os ricos e os poderosos. Todos eles
acorriam em massa aos tribunais do rei; no século XIII, todos os
casos com alguma importância e muitos outros sem importân-
cia nenhuma eram levados aos tribunais reais. O governo do rei
tinha conseguido envolver quase todos os homens livres do
país na actividade dos tribunais, quer na qualidade de litigan-
tes, quer na qualidade de jurados 28.
O desenvolvimento do Exchequer e dos tribunais reais
teve como consequência secundária o desenvolvimento da
Chancelaria. Uma contabilidade precisa exigia não só relató-
rios correctos dos xerifes, mas também um registo meticuloso
e uma formulação precisa das ordens que os autorizavam a
pagar certas somas, ou a receber outras, em troca

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