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O CONTROLE JURISDICIONAL DO MÉRITO ADMINISTRATIVO GIULIANO RUBIM Bacharel em Administração de Empresas pela Faculdade de Ciências Humanas de Vitória - FCHV; Bacharel em Direito pela Universidade de Vila Velha – UVV; Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Vitória – FDV. Muito se discute hoje acerca daquilo que se denomina ”crise de identidade” do homem pós-moderno, sua essência valorativa moral, ética e cultural, bem como as novas relações desse mesmo indivíduo com sua coletividade. A sociedade hodierna atravessa um processo agonizante de um certo torpor generalizado, que culmina por castrar os razoáveis parâmetros de um convívio social minimamente salutar e nos lança em um covil de famigeradas e perniciosas bestas, que nada mais são do que nós mesmos. Não podemos mais justificar pequenos e isolados focos de organismos doentes condenados, repugnantes e distantes de nós, mas apenas constatar que o desconforto sui generis com que nos deparamos atualmente é fruto de nossa própria contribuição para um incontrolável processo autodestrutivo de valores éticos, morais e culturais. Poderíamos até cogitar certo grau de previsibilidade a partir do ponto em que partimos ao que chegamos a enfrentar hoje, desde aquela concepção iluminista do homem individualizado, passando pela faceta socialista do ser coletivo, mas jamais seria possível prevenir o mundo de tamanha disfunção social e política, dada a sua essência invariavelmente mutante. O resultado desse verdadeiro pandemônio degenerativo de valores é o que podemos chamar de “crise de identidade”, que fragmenta o homem moderno e abala as estruturas sociais em nível global, sem precedentes na história da humanidade.1 O Estado atual, especificamente no que se refere ao judiciário, como não poderia deixar de ser, também convive com essa angustiante evidência: de que precisa, assim como acontece na panacéia dos jurisdicionados, rever, repensar, reformular conceitos. Evidentemente, não estamos aqui defendendo a necessidade de uma “desconstrução” estrutural irrestrita do Estado, a teor do discurso pós-moderno essencial. Mais urgente do que isso, o que devemos buscar é uma readaptação das estruturas existentes, adequando-as às exigências do mundo atual, pois, diante das transformações da sociedade e do próprio Estado, torna-se imprescindível realizar uma espécie de controle de validade das concepções tradicionais.2 A propósito, existe uma questão extremamente instigante, que inflama discussões e debates atualmente, qual seja, a possibilidade de se controlar, por via judicial, atos pertinentes à conveniência e oportunidade, ou seja, ao mérito administrativo. Sabe-se que, estando o agente público subordinado à lei, o controle jurisdicional da administração pública é cabível, mas apenas se o ato discricionário por ele praticado estiver eivado de vício ou ilícito, implícito ou explícito, posto que, por conseqüência óbvia, estaria violando algum direito. 1HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Ed. DP & A, 2003 2MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003. p. 265-266. 1 Como a Carta Republicana de 1988 prevê, em seu art. 5º, XXXV, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, não há que se discutir o cabimento do controle jurisdicional do ato administrativo tido como ilegal. Além disso, a súmula nº 473, do STF, enfatiza que a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial. (grifo nosso) Até aqui, nenhuma novidade. O problema surge quando vislumbramos a possibilidade do Poder Judiciário controlar o mérito administrativo. De início, restringiu-se o controle judicial à legalidade estrita (conformação do ato à lei). Hoje, discute-se sobre quase tudo além da legalidade: que atos jurídicos da Administração o Judiciário deve ou não controlar (só os vinculados ou também os discricionários; em que medida os discricionários; os parâmetros do controle confinam-se aos elementos estruturais do ato – competência, forma, objeto, motivo e finalidade – ou incluem o mérito, a eficiência, o resultado?) Para alguns, tal procedimento implica necessariamente em violação da independência dos poderes e macula o modelo de tripartição idealizado pelo Barão de Montesquieu e instituído a cerca de 200 anos. Para outros, entretanto, o controle jurisdicional do mérito administrativo é perfeitamente justificável, com base em argumentos que refletem as alterações paradigmáticas que hoje vivenciamos. É bem verdade que para aqueles que insistem em dispensar ao Direito um enfoque estritamente positivo e formal, tal possibilidade inexiste. Mas devemos expandir esses horizontes. A parte final do referido art. 5º, XXXV, da CF, diz, expressamente, lesão ou ameaça a direito. Então, temos que, inicialmente, compreender no que consiste a idéia de direito. Como dissemos alhures, o mundo passa por uma significativa transformação valorativa em todos os setores e com o Direito não poderia ter sido diferente. Assim aconteceu que a vertente dogmática do positivismo kelsiano atingiu um limite e passou a declinar, diante do excesso do formalismo e juridicidade que ostentava. A partir daí, uma corrente doutrinária de interpretação e aplicação mais ampla do Direito ganha cada vez mais adeptos. A princípio, coube a Theodor Viehweg a retomada de um caminho cognitivo no campo jurídico. Era o ressurgimento da tópica argumentativa de Aristóteles, agora como corrente restauradora, voltada para a interpretação aplicada ao Direito, que teve entre outros precursores, pensadores como Friedrich Muller, Peter Häberle, Konrad Hesse e Josef Esser.3 Trata-se de uma nova concepção hermenêutica que não estanca, em absoluto, a problemática jurídica. Ao contrário, fornece ao jurista a possibilidade de expandir a visão do problema, alcançado toda a complexidade dos conflitos sociais sem se restringir à limitação da teoria pura da norma. O concretismo de Müller, por exemplo, compreende a norma jurídica como algo 3 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996 2 mais que o texto de uma regra normativa. Para ele, o texto não é a lei, mas, tão somente a forma da lei.4 Essa frase de Müller identifica bem o momento que vivenciamos hoje, em que a aplicação do Direito, visto apenas como regra, fria e inanimada, transforma-se no chamado Direito livre, superador da lei, que já não é só integração de lacunas, mas, desenvolve-se em consonância com os princípios directivos da ordem jurídica no seu conjunto; mais; muitas vezes será motivado precisamente pela aspiração a fazer valer estes princípios em maior escala do que aconteceu na lei. (sic)5 Em recente publicação, Célia Barbosa Abreu revela, em texto intitulado “A Perspectiva Histórica e a Evolução dos Princípios no Direito”, uma argumentação extremamente relevante de Luis Roberto Barroso, a saber: Do ponto de vista filosófico, o direito constitucional vive, igualmente, um momento de elevação, que tem sido identificado como pós-positivismo. A expressão identifica um conjunto difuso de idéias que ultrapassam o legalismo estrito do positivismo normativista, sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo. Sua marca é a ascensão dos valores, o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dosdireitos fundamentais. O pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Não se trata do abandono da lei, mas da reintrodução de idéias como justiça e legitimidade. A volta da discussão ética ao Direito.6 Aliados a toda essa metamorfose pela qual atravessa a ciência do direito, o alemão Robert Alexy e americano Ronald Dworking nos oferecem sua contemporânea técnica interpretativa, caracterizada pela proporcionalidade e razoabilidade, em que a hierarquização de princípios e a ponderação enfrentam conflitos à luz da chamada lógica do razoável, uma vez que não existem, ou pelo menos não deverão mais existir, valores únicos, absolutos. Essa é apenas uma das chaves para que o controle judicial da Administração, além de ser técnico-jurídico, busque o justo, o legítimo e o viável, do ponto de vista da relação custo-benefício.7 Em breve síntese, podemos constatar que a idéia de direito que temos hoje já não espelha mais aquela limitada concepção formalista de outrora. Atualmente, estamos voltados para a perspectiva do Direito composto por regras e princípios. Ou seja, os princípios encontram-se efetivamente equiparados às regras e constituem, portanto, juntamente com estas, espécies do gênero norma. Esclarecida, pois, a concepção que temos de Direito, voltemo-nos para o problema proposto. Se entendermos o Direito como sendo um sistema de regras e princípios e, mais do que isso, admitirmos a possibilidade destes princípios adquirirem pesos superiores aos das normas, então, teremos que aceitar o fato de que, em nenhuma hipótese, será afastada a apreciação por parte do Poder Judiciário, de lesão ou ameaça a direito. 4 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 1996. p. 463 5 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. 6 MELLO, Cleyson M., FRAGA, Thelma. Novos Direitos: Os Paradigmas da Pós-Modernidade. Niterói: Ed. Impetus, 2004. p. 9-10. 7 PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Controle Judicial da Administração Pública: Da Legalidade Estrita à Lógica do Razoável. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2005. p. 49. 3 Inclusive no que se refere a conveniência e oportunidade do mérito administrativo. É evidente que essa discussão não se encerra assim, pura e simplesmente, pois, no momento em que tomamos este posicionamento, inicia-se, no mesmo instante, uma enorme tensão entre princípios e normas constitucionais conflitantes. De um lado, encontra-se o sedimentado conceito que forja a máquina estatal nas premissas de separação e independência dos poderes. Sob este viés, não há que se falar em controle do mérito administrativo por parte do judiciário. De outro lado, a constatação de que a administração pública está vinculada à legalidade, portanto, todos os atos administrativos, inclusive no que diz respeito ao mérito administrativo, devem ser submetidos à apreciação jurisdicional. Ora, aceitar que ao Poder Judiciário é vedado apreciar questões referentes ao mérito administrativo é o mesmo que ler o referido inciso XXXV, do art. 5º da CF, como se nele estivesse escrito, e não está, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, excetuando-se os casos em que estiverem envolvidas questões de matéria de mérito administrativo. Por via reflexa, o que é pior, restaria subentendido que a administração pública estaria autorizada, pelo legislador originário, a praticar atos de mérito administrativo e/ou de interna corpore eivados de vício e ilegalidade, posto estes jamais poderiam ser apreciados pelo Poder Judiciário. Ao contrário, com o advento da Emenda Constitucional nº 19, os atos administrativos, inclusive aqueles concernentes à oportunidade e conveniência do mérito administrativo, estão adstritos a princípios explicitamente descritos no caput do artigo 37, vide: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...] Nesse aspecto, não se pode cogitar a possibilidade de se afastar da apreciação do Poder Judiciário, qualquer ato que venha a lesar ou ameaçar direito, entendendo-se como ameaça a direito não apenas violação à lei, mas, sobretudo, a princípios como o da eficiência, da moralidade, impessoalidade, etc. [...]a simples menção de que o poder discricionário atua de acordo com o princípio da legalidade vem substituída pela afirmação da necessária observância da Constituição, da lei, dos princípios gerais de direito[...] Nessa linha coloca-se a tendência à ampliação do controle jurisdicional a aspectos que roçam a conveniência e oportunidade dos atos administrativos.8 Ao aplicar, portanto, essa tendência principiológica de aplicação do Direito ao caso concreto, qual seja, a possibilidade de apreciação por parte do Poder Judiciário, deve ser privilegiado o princípio da legalidade, em detrimento dos demais, o que, por mais contraditório que possa parecer, garante a segurança jurídica necessária à ordem institucional deste Estado Democrático de Direito em crise. O controle jurisdicional sobre atos da Administração é exclusivamente de legalidade. Significa dizer que o Judiciário tem o poder de controlar qualquer ato administrativo com a lei ou com a Constituição e verificar se há ou não compatibilidade normativa. Se o ato for contrário à lei ou à 8 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003. p. 198-199. 4 Constituição, o Judiciário declarará a sua invalidação de modo a não permitir que continue produzindo efeitos ilícitos.9 (grifo do autor) Mais adiante, em nota de rodapé, o referenciado doutrinador José dos Santos Carvalho Filho ressalta que: É bom salientar que o controle abrange tanto os atos vinculados como os discricionários, já que todos têm que obedecer aos requisitos de validade. Um vício de competência, por exemplo, tanto pode estar num ato vinculado como discricionário. O mesmo ocorre com vícios na finalidade, no motivo, etc.10 Para tanto, deu-se ao Poder Judiciário maior atribuição para imiscuir-se no âmago do ato administrativo, a fim de, mesmo nesse íntimo campo, exercer o juízo de legalidade, coibindo abusos ou vulnerações aos princípios constitucionais, as dimensão globalizada ddo orçamento.[...] Dentro desse novo paradigma, não se pode simplesmente dizer que, em matéria de conveniência e oportunidade, não pode o Judiciário examiná- las. 11 E esse controle exercido pelo Poder Judiciário não implica, de forma alguma, em mácula ao sistema de tripartição estatal. Na verdade, o que estamos presenciando é tão somente o ajuste de um sistema organizacional de Estado idealizado na época iluminista, e que passa pelas mesmas transformações a que o indivíduo e a sociedade que o compõe atravessam. Há que se compreender e redimensionar a harmonia que deve existir entre os poderes constitutivos do Estado, ante a época de globalização em que vivemos e às novas situações que nos são apresentadas de uma forma menos estática e dogmática, levando-se em consideração um aspecto mais efetivo, teleológico mesmo, das políticas públicas. Além do mais, a realidade político-institucional e social de fins do século XX e início do século XXI apresenta-se muito mais complexa em relação à época de Montesquieu; muitas instituições, que hoje existem em grande parte dos ordenamentos ocidentais, são dificilmente enquadráveis,quanto à vinculação estrutural e hierárquica, em algum dos três clássicos poderes, como é o caso do Ministério Público, dos Tribunais de Contas e dos Tribunais Constitucionais.[...] Por conseguinte, a trindade de poderes tornou-se muito simples para explicar os múltiplos poderes do Estado contemporâneo e uma sociedade muito complexa.12 Quanto a essa possível violação à hierarquia e independência entre os poderes, Jean Rivero cita Otto Mayer e nos lembra que não é apenas pela lei que o Executivo está ligado, mas ainda por regras de Direito que não são obra do legislador: jurisprudência, princípios gerais do direito e costume.13 Enfim, é certo que, quando nos dispomos a enfrentar problemas como o que hora propusemos, ou seja, o fato de que o Poder Judiciário pode e deve controlar o mérito administrativo, estamos simplesmente constatando que temos que nos adequar a uma nova realidade de Estado diversa daquela instituída até então. 9 Idem. P. 785. 10CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 13. ed. Rio de Janeiro. Ed. Lúmen Júris, 2005. p. 785. 11STJ - RESP 429570/GO – Rel. Min. Eliana Calmon – Segunda Turma - 11/11/2003 – DJ: 22.03.2004, p. 277 12MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 2003. p. 122 13RIVERO, Jean. Curso de Direito Administrativo Comparado. Trad. J. Cretella Jr. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 2004. p. 177 5 É igualmente certo que isso fatalmente irá de encontro com uma parede dogmática extremamente difícil de se transpor. Contudo, mais uma vez devemos frisar que não vislumbramos a necessidade de uma destruição do sistema vigente, mas, tão somente, uma alteração significativa quanto à sua forma e, sobretudo, quanto a sua essência. Devemos, portanto, mudar a nós mesmos e nos adaptar ao novo que se apresenta. REFERÊNCIAS BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 13. ed. Rio de Janeiro. Ed. Lúmen Júris, 2005. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Ed. DP & A, 2003. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. São Paulo: Ed. RT, 2003. MELLO, Cleyson M.; FRAGA, Thelma. Novos Direitos: os Paradigmas da Pós-Modernidade. Niterói: Ed. Impetus. 2004. PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Controle Judicial da Administração Pública: Da Legalidade Estrita à Lógica do Razoável. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2005. RESP 429570 / GO ; Relatora Ministra ELIANA CALMON - https://ww2.stj.gov.br/ revistaeletronica/ita.asp?registro=200200461108&dt_publicacao=22/03/2004. Acessado em 21/06/2005. RIVERO, Jean. Curso de Direito Administrativo Comparado. Trad. J. Cretella Jr. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004. 6
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