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O QUE É ENSINAR LÍNGUA PORTUGUESA

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O QUE É ENSINAR LÍNGUA PORTUGUESA?
	A questão mais fundamental do ensino de língua portuguesa é obviamente a seguinte: o que é ensinar português para pessoas que já sabem falar português? Por que não se ensina português no Brasil como se ensinaria para falantes nativos de outras línguas? 
	Ensinar português para falantes nativos como se fosse uma língua estrangeira é de fato um absurdo. A questão assim colocada tem uma resposta pronta e fácil, mas, na prática escolar, pode-se constatar que muitas das atividades que a escola realiza com os alunos revelam uma atitude perante a linguagem semelhante à que teria se estivesse ensinando uma língua estrangeira. 
	Mas, se o aluno já sabe português, vamos ensinar o quê? Em primeiro lugar, não é bem verdade que o aluno já sabe português. Ele sabe algumas coisas e não sabe outras. Mas há muita coisa a se fazer de novo e interessante no ensino da língua materna e isso não se restringe à alfabetização, apesar de este período ser, na verdade, muito especial.
	O objetivo mais geral do ensino de língua portuguesa para todos os anos da escola é mostrar como funciona a linguagem humana e, de modo particular, o português; quais os usos que tem, e como os alunos devem fazer para estenderem ao máximo, ou abrangendo metas específicas, esses usos nas suas modalidades escrita e oral, em diferentes situações de vida. Em outras palavras, o professor de língua portuguesa deve ensinar aos alunos o que é uma língua, quais as propriedades e usos que ela realmente tem, qual o comportamento da sociedade e dos indivíduos com relação aos usos linguísticos, nas mais variadas situações de sua vida. 
	A escola, tradicionalmente, tem se apegado a umas tantas coisas a respeito da língua e julgado que isso é tudo. Mais especificamente, tem se apegado ao que diz nossa gramática normativa e à metodologia de exigir redações e fichas de leitura, na melhor das hipóteses. O aluno que passa pelo ensino fundamental e pelo ensino médio é treinado nesses moldes. Os vestibulares, concursos etc. só levam isso em consideração. 
	Ao aluno não se ensina adequadamente como ele fala, qual o valor funcional dos segmentos fônicos de sua língua, como se compõe a morfologia desta, a sintaxe, a semântica etc. O aluno fez centenas de redações e não sabe o que está realmente fazendo, como deve elaborar um texto escrito ou dizer um texto oral em situações diferentes. 
	A criança que se inicia na alfabetização já é um falante capaz de entender e falar a língua portuguesa com desembaraço e precisão nas circunstâncias de sua vida em que precisa usar a linguagem. Mas não sabe escrever nem ler. Esses são usos novos da linguagem para ela, e é sobretudo isso que ela espera da escola. Em muitos casos, há ainda o interesse em aprender uma variedade do português de maior prestígio.
	Essa criança não só sabe falar o português, como sabe também refletir sobre a sua própria língua. De fato, as crianças se divertem manipulando a linguagem:compõem palavras novas, a partir da análise dos processos de formação de palavras, às vezes criando formas surpreendentes; adoram traduzir a sua própria língua em códigos, como a língua do P, e falar invertendo as sílabas, substituindo certos segmentos por outros, com uma destreza que o adulto dificilmente consegue acompanhar. 
	As respostas que as crianças dão às perguntas que lhes são feitas revelam a incrível capacidade que têm de manipular fatos semânticos de alta complexidade, como a pressuposição, a argumentação lógica, sem contar com a expressão de metáforas e o poder de abstração e generalização claramente revelados numa análise de seu comportamento linguístico. Além disso, elas contam ainda com uma capacidade enorme de análise da linguagem oral, o que irão perder logo que entrarem na escola, sufocadas pelo modo como se ensina a língua portuguesa, tomando-se a escrita ortográfica como base para tudo. Na análise de muitos erros encontrados em provas e nas avaliações feitas na alfabetização, é fácil observar que, em muitos casos, a criança revela um apego às formas fonéticas da língua, em lugar das formas ortográficas, não raramente deixando o professor perplexo com a "burrice do aluno", devido a sua incapacidade de analisar a fala com a mesma competência que a criança apresenta. 
	A escola não parte do conhecimento que a criança tem de sua fala e da fala de seus colegas para a partir daí ensinar o que deve. A escola parte de um abecedário e de uma fala (típica de "professora primária") completamente estranha à criança. Talvez isso até sirva de motivação para as crianças considerarem a escola um desafio a sua capacidade de realização, o "diferente" que esperavam ali encontrar. Mas, sem duvida alguma, essa não me parece uma maneira correta de tratar a linguagem na alfabetização. 
O que é a linguagem.	No ensino de língua portuguesa é fundamental, essencial e imprescindível distinguir três tipos de atividades ligadas respectivamente aos fenômenos da fala, da escrita e da leitura. São três realidades diferentes da vida de uma língua, que estão intimamente ligadas em sua essência, mas que têm uma realização própria e independente nos usos de uma língua. 
	 A linguagem existe porque se uniu um pensamento a uma forma de expressão, um significado a um significante, como dizem os linguistas. Essa unidade de dupla face é o signo linguístico. Ele está presente na fala, na escrita e na leitura como princípio da própria linguagem, mas se atualiza em cada um desses casos de maneira diferente. Essa procura das relações entre significado e significante é em outras palavras saber como uma língua funciona e quais os usos que tem. E isso não é tarefa fácil nem simples. Há uma imensa literatura linguística a respeito dessa busca, de seus achados e frustrações, e que é absolutamente ignorada pela escola que ensina português. A esse respeito falaremos mais adiante, abordando o assunto em detalhes. Também serão tratadas em detalhes questões específicas da fala, escrita e leitura. Gostaria agora de tão somente fazer alguns comentários gerais. 
	Uma criança que escreve disi não está cometendo um erro de distração, mas transportando para o domínio da escrita algo que reflete sua percepção da fala. Isto é, a criança escreveu a palavra não segundo sua forma ortográfica, mas segundo o modo como ela a pronuncia. Em outras palavras, fez uma transcrição fonética. Por outro lado, uma criança que leia a palavra disse dizendo duas sílabas de duração igual está transportando para a fala algo que a escrita ortográfica insinua (ou que faz lembrar a fala artificial da professora...). Se o aluno passar pela escola fazendo esse jogo de pular da fala para a escrita sem saber o que pertence à fala e o que pertence à escrita e por que as coisas são como são, ele terá dificuldades imensas em seguir seus estudos de português, porque o absurdo está presente a todo momento. 
	Por outro lado, como pode a escola explicar adequadamente como a fala e a escrita funcionam se não dispuser de um instrumental para fazê-lo, de uma ferramenta própria para a execução dessa tarefa?
	Como a escola priva o aluno desse instrumental, ele inventa o seu próprio; por isso, escreve o que quer, e, quando não sabe a forma ortográfica, usa das possibilidades do sistema de escrita de sua língua para escrever o que pretende. Quando ele não sabe ler um texto com propriedade, lê como pode e segue em frente com bastante dificuldade. 
Naturalmente existem outras razões pelas quais um aluno pode escrever 
(
И
) e
 
(
ᴤ
). 
Mas em primeiro lugar deve-se sempre verificar se, na verdade, o aluno não seguiu uma regra mais geral
 e se os casos em questão facilitam o erro por serem exceções dentro do sistema. 	O aluno que escreve errado o (И) ou inverte o esse (ᴤ) o faz não é porque é deficiente, ou tem problema de discriminação, problema motor, de lateralização ou outros que a escola inventa para entender esse erro. Ele pode escrever assim simplesmente porque lhe ensinaram,ou ele deduziu a partir de sua experiência como usuário do sistema de escrita, que se devem escrever as letras começando sempre (ou quase) pelo canto esquerdo de cima e depois descendo ou indo para a direita. A escola muitas vezes procura a causa do insucesso do aluno em lugares errados. Em vez de atribuir-lhe uma deficiência, por que não investiga melhor, antes, que tipo de reflexão a criança está fazendo quando comete seus erros? Pode ser que ela tenha simplesmente feito uma escolha errada, dentro do conjunto de possibilidades que se usam normalmente. 
	A criança que escreve disi escreve algo possível para o sistema de escrita da língua portuguesa, só que não escreve na forma ortográfica. A mesma coisa faz a criança que escreve patio (patinho), mecadio (mercadinho), qieasiora (que é a senhora). Se a escola distinguisse claramente os problemas de fala dos problemas de escrita, veria essas escritas como escritas de fala, e feitas com uma propriedade fonética tão grande que chega a ser comovente a consciência que as crianças têm do modo como falam. 
	A escola, naturalmente, deve fazer os alunos verem que eles falam não de uma única maneira, mas de várias, segundo os dialetos de cada um, e que, se todos escrevessem as palavras como as falam, usando das possibilidades do sistema de escrita como quisessem, haveria uma confusão muito grande quanto à forma de grafar as palavras, e isso dificultaria em muito a leitura entre falantes de tantos dialetos. Por isso, para facilitar a leitura, a sociedade achou por bem decidir em favor de um modo ortográfico de escrever as palavras, independente dos modos de falar dos dialetos, mas que pudesse ser lido por todos os falantes, cada qual ao modo de seu dialeto. 
	E, se a escrita funciona assim, ninguém está obrigado a ler as palavras de uma única forma. A escrita ortográfica foi feita para ser lida da maneira como o leitor achar que deve fazê-lo: no seu dialeto caseiro, num estilo formal, num dialeto da região onde se encontra no momento, seguindo um dialeto de outra região; isso vai depender da finalidade de sua leitura. 
Até o final do século XIX, havia, em uso, formas ortográficas diferentes para o português, sugeridas por autores de dicionários(cf. dicionário de Moraes) e gramáticos. Um grande debate surgiu então com a publicação da Ortografia Nacional por Gonçalves Viana, em 1904. Para uniformizar os modos de escrita de Portugal e do Brasil, foi necessária a intervenção dos governos, decretando qual deveria ser a forma ortográfica das palavras da língua portuguesa. Apesar disso, os dois países não conseguiram, na prática, aceitar as propostas oficiais, obrigando os governos a fazerem sucessivas "reformas ortográficas". Em 1990, foi firmado um acordo ortográfico de unificação das ortografias
 vigentes entre os países de língua portuguesa. No Brasil, o Decreto 6586, de 29 de setembro de 2008, implementou a reforma, que passou a ser obrigatória a partir de janeiro de 2009, com algumas exceções. Essa atitude perante a fala, a escrita e a leitura faz com que o alunos (e o professor) entendam o que acontece nas atividades escolares. Faz com que o aluno tenha sempre presente o fato de ser capaz de escrever qualquer coisa, mas também o de que há somente uma forma ortográfica: se ele não a souber, deverá procurar saber para não errar. Isso não impede, por outro lado, que as crianças escrevam textos tão logo aprendam as letras, sabendo-se, é claro, que vão começar cometendo muitos erros de ortografia e que esta no início não é tão importante quanto o fato de aprender a escrever propriamente dito. Mas vão ter que aprender a escrever ortograficamente, porque a escrita da fala serve para a fala e não para o sistema de escrita convencional usado pela sociedade. Dessa maneira, se aprende o essencial como sendo essencial e o acidental como sendo acidental. 
	A fala apresenta uma variedade de dialetos, a escrita tantas leituras quantos forem os dialetos, mas a escrita ortográfica é o único uso da língua portuguesa que não admite (por princípio) variação e que pela mesma razão não precisa ser reformado. Porém, quando a escola ainda não pode exigir o conhecimento ortográfico dos alunos alfabetizados, por que não aceitar a variação de escrita baseada em possibilidades de uso do sistema de escrita refletindo a variação da fala individual ou dialetal? 
	Sempre julguei que a escola deveria ter uma forma de transcrever a fala semelhante aos sistemas de transcrição fonética. Agora vejo claramente, aprendendo com as crianças, que isso se pode conseguir com muita facilidade na alfabetização, simplesmente deixando as crianças escreverem utilizando o conhecimento que elas dispõem dos usos das letras do alfabeto. O próprio uso que os alunos fazem pode servir de pretexto para a professora ensinar a distinção entre a fala e escrita, prestigiar a fala e a escrita convenientemente, mostrar as variações dialetais e por que se usa a forma ortográfica convencionada. 
	Isso pode e deve se estender por todos os anos do ensino para que o aluno mantenha sempre claras as ideias e distinções e para que, ao usar a ortografia exclusivamente, não venha a perder a consciência dos fenômenos de fala, de como ele pronuncia sua língua materna. A ortografia pode matar esse conhecimento que as crianças que estão se alfabetizando têm em alto nível de perfeição. 
	Dissemos antes que ensinar a língua portuguesa é ensinar como a língua funciona e quais os usos que tem e treinar os alunos nesses usos. O ensino de língua portuguesa na alfabetização difere do de outros anos não pelo objetivo em si, que deve ser o mesmo para todos os anos, mas pela especificidade desse primeiro momento, devido ao grau de desconhecimento que o aluno tem da escrita e da leitura. O aprendizado da escrita e da leitura, por outro lado, não termina no final do segundo ano nem do ensino fundamental 1. Há tantas coisas a respeito de escrita e leitura, e de dificuldades tão variadas, que se torna conveniente o seu ensino ao longo de todos os anos de estudo. 
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e Linguística. São Paulo: Scipione, 2010.

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