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A Invenção do Cotidiano Michel de Certeau

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A Invenção do Cotidiano - Michel de Certeau
Podemos lembrar aqui a contribuição mais específica de Michel de Certeau, em especial o seu interesse pelos “sujeitos” produtores e receptores de cultura – o que abarca tanto a função social dos “intelectuais” de todos os tipos, até o público receptor, o leitor comum, ou as massas capturadas modernamente pela chamada “indústria cultural” (que, aliás, também pode ser relacionada como uma agência produtora e difusora de cultura). Agências de produção e difusão cultural também se encontram no âmbito institucional: os sistemas educativos, a imprensa, os meios de comunicação, as organizações socioculturais e religiosas. 
Estas instâncias – produção, difusão e consumo – e os papéis, respectivamente, de produtor, distribuidor e consumidor guardam naturalmente interações de todos os tipos, e é oportuno lembrar as reflexões de Certeau em seu livro A Invenção do Cotidiano (1980), nas quais o consumo é também descrito como uma forma de produção. Assim, a reinterpretação dos discursos e das propagandas pelas pessoas comuns, bem como as suas formas de escolhas e reapropriações em relação ao repertório de produtos que é oferecido pela indústria e pelo comércio inscrevem-se em operações criadoras que não fazem dos indivíduos comuns nem consumidores passivos nem espectadores alienados de propagandas. Ao se reapropriarem dos produtos impostos e reempreenderem reutilizações e deslocamentos diversos, bem como reinscrições desses mesmos produtos em novos contextos, o homem comum dá ensejo, através de operações diversas, ao que Certeau denominou “reinvenção do cotidiano”. 
 As “táticas” inventadas pelo indivíduo comum confrontam-se, dessa maneira, com as “estratégias” veiculadas pela indústria cultural e pelos grandes sistemas de manipulação e dominação do mercado consumidor. Ao rediscutir a invenção criativa de táticas por parte das pessoas comuns, por oposição à ideia de que estas sofrem passivamente a manipulação imposta pelas estratégias produzidas ao nível dos grandes sistemas culturais, Certeau ao mesmo tempo se reapropria e empreende a crítica da noção de habitus do sociólogo Pierre Bourdieu, com o qual estabelece um frequente diálogo teórico (BURKE, 2005, p.193). 
Reapropriação e experimentação são palavras chave de uma pesquisa empreendida por Michel de Certeau entre os anos de 1974 a 1978.
A organização proposta por Certeau nos faz percorrer um plano de análise que se baseia em estudar práticas cotidianas como modos de ação, como operações realizadas pelo indivíduo no processo de interação social.
O livro se divide em cinco partes (1 - Uma cultura muito ordinária, 2 - Teorias da arte de fazer, 3 - Práticas de espaço, 4 - Usos da Língua, 5 - Maneiras de crer), que, em conjunto, dizem sobre um ser - individual - social, que se reapropria de elementos de uma cultura preexistente, a fim de torná - la comum a sua própria vida ordinária.
Em vez de ter o indivíduo como centro e foco de análise, o autor parte do pressuposto de que é a relação social que determina o indivíduo e não o inverso, por isso, só se pode apreendê-lo a partir de suas práticas sociais. De modo analítico e sensível, Certeau percebe a individualidade como o local onde se organizam, às vezes de modo incoerente e contraditório, a pluralidade da vivência social.
Por isso, lhe interessa bastante estudar o processo de enunciação, as várias possibilidades e efeitos da língua em uma situação de interlocução, em que os indivíduos se reapropriam da Língua Materna a fim de utilizá-la para propósitos particulares, para efetivar um diálogo com o mínimo possível de ruído. Nas práticas cotidianas de ler, conversar, habitar e cozinhar se observam as “maneiras de falar” e as “maneiras de caminhar”, pelas quais o indivíduo pode seduzir, persuadir, refutar. Todo esse potencial enunciativo e criativo do indivíduo, durante a interação, remete ao que Certeau chama de antidisciplina, que vai de encontro à ideia de vigilância, de limites, de combinações restritas e previsíveis, desenvolvida por Foucault em Vigiar e Punir(1975).
Para afirmar o conceito de cotidiano como o conjunto de operações singulares que, às vezes, dizem mais de uma sociedade e de um indivíduo do que a sua própria identidade, Certeau ainda passeia pelas teorias de Kant, Freud e Bourdieu. A partir de um estudo dinâmico, que caminha entre grandes pensadores e entrevistas com pessoas comuns, Certeau exalta sentidos em práticas cotidianas que, outrora, passariam despercebidos. Mergulhar na Invenção do cotidiano é perceber que as “artes do fazer” sejam, talvez, o lugar por excelência da liberdade e da criatividade, dois elementos fundamentais para a sociedade contemporânea.
É que de tanto destacar as táticas e estratégias na tentativa de compreensão do seu objeto de estudo, Certeau transforma esses conceitos em método e usa astuciosamente essas categorias para abalar epistemologicamente tanto o campo da pesquisa em história, no qual é radicado, quanto da antropologia e comunicação social, ampliando tentáculos “silenciosos e quase invisíveis” nas diversas ciências humanas em geral. 
Sobre a tática: Enquanto que as pesquisas tradicionais acerca do consumo de artefatos culturais primavam (ainda não primam?) pela quantificação estatística, considerando os indivíduos apenas como consumidores passivos, Michel de Certeau propõe e investiga os usos que esses sujeitos fazem dos produtos culturais e o que eles “fabricam” a partir dessas práticas culturais, o que ele considera como “artes de fazer”. Desta perspectiva, os produtos culturais usados no cotidiano são apropriados e transformados pelos sujeitos a partir de táticas e astúcias milenares, produzindo novas práticas e novas artes de fazer. 
“esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante” (2014, p.39). Vem daí sua concepção de cotidiano como uma arte de fazer. E o termo arte, nesse contexto, é muito relevante, porque não está ligado a uma técnica, mas a uma (re)invenção, uma (re)criação com autoria; todavia, não é uma arte contemplativa, mas forjada nas práticas de resistência e sobrevivência diária. Assim, “O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (2014, p.38).
Lá onde Michel Foucault vê a onipresença dos mecanismos de micropoderes, que regulam e disciplinam a vida a partir das instituições da modernidade, Certeau vê focos de inconformismo dos mais fracos e oprimidos, inclusive diante do poder macroeconômico e seu condicionamento disciplinador, dizendo que “as astúcias de consumidores compõem, no limite, a rede de uma antidisciplina” (2014, p.41).
Neste ponto, vale uma distinção entre estratégias e táticas, sobretudo pela importância metodológica que Certeau lhes atribui. Do que se pode depreender desses dois conceitos, as estratégias estão ligadas ao campo de atuação, ao espaço, meio que vindo de fora, das condições com as quais se depara o sujeito; enquanto que as táticas se referem mais aos recursos do sujeito diante do jogo que se apresenta; é como um se virar diante das condições estratégicas (im)postas. Assim, a estratégia é o “cálculo (ou a manipulação) das relações de força” e “postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e os objetos da pesquisa etc)” (2014, p.93). 
Pode-se, para fins didáticos, dividir a abordagem teórica d’ A invenção do cotidiano em dois pares de conceitos fundamentais (LEITE, 2010) espaço/lugar e estratégia/tática. Enquanto o espaço corresponde à ausência de posições cristalizadas e, justamente por ser instável, propicia entrever distintas experiências espaciais da vida cotidiana; o lugar corresponde, inversamente, a certasconfigurações mais definidas de posições, “algo que resulta de uma demarcação física e/ou simbólica no espaço, cujos usos o qualificam e lhe atribuem sentidos diferenciados, orientando ações sociais e sendo por estas reflexivamente delimitado” (LEITE, 2010, p. 748). Ou seja, o que o primeiro, espaço, tem de provisório, o segundo, lugar, tem de permanente. Assim, enquanto o lugar corresponde às práticas do tipo estratégicas, o espaço corresponde às práticas táticas. Em outras palavras isso quer dizer que a estratégia é fundada sobre um “lugar próprio” que autoriza uma variedade de formas de domínio de saberes, conhecimentos e verdades, permitindo atribuir ao “outro” uma situação de dependência, estranheza, ausência de autonomia. A estratégia, portanto, é organizada sobre (e por meio) as relações de poder. A tática, por sua vez, é uma ação calculada determinada pela ausência de um “lugar próprio” e é justamente a carência dessa condição que permite transformar sua máxima debilidade em sua potencial condição de fortaleza. São as táticas que infiltradas na heterogeneidade social, esquivam-se, insinuam-se, contrapõem-se.

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