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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS 1° CURSO DE NEUROCIÊNCIAS E COMPORTAMENTO 27 de junho de 2008 www.ib.usp.br/labnec i Sumário Cognição ......................................................................................................................................... 1 Biologia da Cognição: Introdução .................................................................................................... 7 Construção de circuitos e sua modificação pela experiência ............................................................ 10 Integração entre circuitos: o modelo de redes .................................................................................. 11 Biologia da Cognição: Integração Neural ........................................................................................ 15 Percepção envolve ação ..................................................................................................................... 16 Organização e hierarquia no ciclo percepção‐ação ........................................................................... 17 Integrando percepção e ação: o sistema de neurônios espelho ....................................................... 18 Percepção ..................................................................................................................................... 21 Vias perceptuais ................................................................................................................................. 22 Visão ............................................................................................................................................... 22 Audição .......................................................................................................................................... 24 Memórias atentas ao contexto .......................................................................................................... 25 Ilusões e hemisférios cerebrais ...................................................................................................... 26 Sinestesia ............................................................................................................................................ 28 Concluir é um problema ..................................................................................................................... 30 Atenção ......................................................................................................................................... 32 Atenção e percepção .......................................................................................................................... 32 Falha na percepção ............................................................................................................................ 34 Teste de Posner .................................................................................................................................. 34 Efeitos das lesões do sistema nervoso na atenção ............................................................................ 36 Memória ....................................................................................................................................... 38 Aspectos comportamentais e evolutivos ........................................................................................... 38 O sistema nervoso como uma estrutura que suporta os sistemas de memória ............................... 39 Aspectos fisiológicos da memória ...................................................................................................... 40 Plasticidade Neural ............................................................................................................................. 42 ii Aquisição e manutenção da memória ............................................................................................... 43 Redes neurais e memória .................................................................................................................. 44 Modularidade e os diferentes processos de memória ...................................................................... 46 Modelos de memória ........................................................................................................................ 47 Memória de longa duração ........................................................................................................... 48 Memória Operacional ................................................................................................................... 49 Sistemas de memórias e seus aspectos evolutivos ........................................................................... 50 Tomada de decisões ...................................................................................................................... 51 Dilemas e Estratégias ......................................................................................................................... 52 Origens ............................................................................................................................................... 53 Interação ............................................................................................................................................ 54 Percepção temporal .......................................................................................................................... 55 Processos inconscientes .................................................................................................................... 55 Atenção .............................................................................................................................................. 56 Memória ............................................................................................................................................ 56 Controle executivo ............................................................................................................................ 56 Estudos clínicos .................................................................................................................................. 57 Livre‐arbítrio e determinismo............................................................................................................ 58 Emoção ......................................................................................................................................... 60 Introdução ......................................................................................................................................... 60 Emoção, cognição e comportamento ................................................................................................ 61 Neurobiologia das emoções .............................................................................................................. 63 Modelos animais................................................................................................................................ 66 Modelos e Cognição ...................................................................................................................... 68 Modelos sobre processos cognitivos ................................................................................................. 68 Exemplo 1 ‐ Memória .................................................................................................................... 69 Exemplo 2 ‐ Atenção ...................................................................................................................... 70 Modelagem Computacional .............................................................................................................. 72 iii Teoria da detecçãode sinais .............................................................................................................. 72 Dois fatores são fundamentais para a decisão: a aquisição de informação e o critério ............... 72 Exemplo 1 ‐ Memória e a Teoria de Detecção de Sinais ................................................................ 74 Exemplo 2 ‐ Atenção e a Teoria de Detecção de Sinais ................................................................. 75 Conclusão ........................................................................................................................................... 76 Bibliografia .................................................................................................................................... 77 1º Curso de Neurociências e Comportamento 1 www.ib.usp.br/labnec Cognição Wataru Sumi Laboratório de Neurociências e Comportamento wataru_sumi@yahoo.com.br Os animais exibem diferentes tipos de comportamento, uns mais simples, outros mais complexos. Os mais simples são as respostas reflexas, que são respostas estereotipadas e fixas a estímulos específicos (Dethier, 1973). A resposta à dor é um exemplo clássico de como um estímulo ambiental desencadeia uma resposta motora automaticamente (Fig. 1.A). Existem também respostas bastante elaboradas, que podem durar alguns minutos, desencadeadas por um único estímulo, como é o caso da resposta de fuga apresentada por algumas espécies de anêmonas-do-mar. Quando ela é tocada por uma estrela-do-mar, seus receptores são estimulados e assim, é iniciada uma sequência de movimentos estereotipados (Fig. 1.B) que a faz se desprender do substrato e iniciar o nado. Figura 1 - A. Reflexo a dor. B. Comportamento reflexo de fuga na anêmona-do-mar. Retirado de: 1. A http://scienceblogs.com e 1. B Dethier, 1973. Como exemplo de comportamento altamente complexo, podemos citar a habilidade dos corvos da Nova Caledônia para construir ferramentas, que são hastes manufaturadas a partir das folhas das plantas locais e utilizadas para retirar insetos de dentro das cascas das árvores ou troncos apodrecidos. Essas ferramentas possuem ganchos, uma característica observada apenas nesses animais e em humanos (Hunt ,1996). Além disso, essas ferramentas são altamente uniformes, porém, variando de acordo com as diferentes regiões onde vivem os corvos, sugerindo que o conhecimento para produzir essas ferramentas seja transmitido de um indivíduo para outro (Hunt e Gray, 2004). Um exemplo mais próximo de nós humanos é o uso de diferentes ferramentas por chimpanzés: eles são capazes de utilizar gravetos para “pescar” cupins ou formigas (Fig. 2); pedras fazendo papel de martelo e bigorna para quebrar nozes ou, ainda; galhos como 2 www.ib.usp.br/labnec lanças para espetar presas entocadas em buracos além do alcance de seus braços. Essas habilidades são aprendidas por observação e transmitidas de geração a geração (i.e. culturalmente) (Wilson, 2000). Figura 2 - Uso de ferramentas por chimpanzés. Um graveto é usado para “pescar” formigas. Retirado de Naish. Dentre os exemplos de comportamento apresentados até agora, todos concordariam que, no primeiro caso (resposta reflexa), o comportamento não envolveria processos cognitivos e, no segundo caso (uso de ferramentas), se trataria do mais genuíno exemplo de cognição observado na natureza. Porém, entre esses dois tipos bastante distintos de comportamentos, o reflexo e a capacidade de produzir e utilizar ferramentas, existe um grande repertório comportamental regido tanto pelo instinto como pelo aprendizado. Os instintos são padrões de comportamento estereotipados que aparecem em sua forma funcional desde a primeira vez em que são executados, mesmo que o animal não tenha experiência prévia com o estímulo eliciador do comportamento. A rede neural responsável pela detecção do estímulo e ativação do programa motor é denominada mecanismo de liberação inato (Alcock, 2005). Esses mecanismos inatos muitas vezes são modulados a partir das experiências vividas pelos animais, ou seja, o aprendizado pode modificar o comportamento inato. Os esquilos, por exemplo, que comem diferentes tipos de sementes e nozes, reconhecem-nas e abrem-nas instintivamente mas, dada a variedade de formatos de sementes, é necessária uma técnica específica para abrir cada uma delas. A habilidade de abrir um determinado tipo de noz é adquirida por tentativa e erro até que chegam à perfeição (Tinbergen, 1971). Vimos que existe um continuum de complexidade do comportamento. Como já mencionado anteriormente, nem todos eles são tratados como cognição. A partir de que grau de complexidade podemos dizer que um determinado comportamento é cognitivo? Essa resposta varia enormemente entre diferentes autores. Uma definição mais abrangente 1º Curso de Neurociências e Comportamento 3 www.ib.usp.br/labnec entende a cognição como sendo os mecanismos pelos quais os animais captam a informação do ambiente, a retêm e a usam para ajustar o comportamento às condições locais ou, simplesmente, como processamento da informação. Em uma definição mais estrita, cognição é tratada como o conjunto de processos que produzem o comportamento intencional (Heyes e Huber, 2000), ou manipulação do conhecimento declarativo (saber que), não sendo considerada cognição o conhecimento de procedimento (saber como) (McFarland, 1991). A definição adotada pela neurociência cognitiva é a mais ampla, ou seja, considera a cognição como o processamento da informação. Se pensarmos que, por exemplo, a memória pode ser dividida em explicita e implícita (Fig. 3), sendo que a memória explícita seria responsável pelo comportamento intencional, a adoção da definição mais restrita de cognição implicaria em estudar apenas parte desses processos. Figura 3 - Existem diferentes tipos de memória. A memória de longa duração pode ser dividida em: memória declarativa e memória não-declarativa (retirado de Gazzaniga e col., 2006). Como vimos até agora, a nossa definição de cognição não se restringe apenas a processos mentais mais elevados, aqueles que nos permitem filosofar, calcular etc.. Durante o dia, realizamos inúmeras atividades nas quais utilizamos a cognição. Conversamos com um amigo, lemos um jornal, vamos até a padaria da esquina, preparamos uma refeição, assistimos à televisão, andamos de bicicleta etc.. A maioria das nossas ações envolve cognição, ou seja, processos como percepção, memória, atenção, tomada de decisão e emoção. Então, qual será o papel dos processos cognitivos em nossas atividades diárias? Será que todos eles são utilizados? Veremos o “passo a passo” da recepção da informação 4 www.ib.usp.br/labnec e subsequente processamento. Antes de qualquer coisa, para interagir com o ambiente, precisamos de uma interface que faça a ligação do mundo exterior com o mundo interior, representada pelos diferentes receptores sensoriais (foto-receptor, quimio-receptor etc.), que transformam os estímulos do ambiente em potenciais elétricos transmitidos pelos neurônios. Após o recebimento das informações do ambiente, elas são processadas pelo sistema perceptual. Diferentes regiões do cérebro são responsáveis por processar as diferentes características dos objetos. Por exemplo, quando vemos um pintinho amarelo andando, essa informação é processada por três subsistemas distintos, responsáveis por forma, cor e movimento. Apesar dessas características dos objetos serem separadas durante o processamento da informação, elas são percebidas como uma unidade e não apenas como forma, cor e movimento separadamente (Gazzaniga e col.,2002). A qualidade da informação detectadado ambiente não recebe modulação dos receptores sensoriais, isso depende basicamente das características do estímulo. A quantidade de informações recebidas por nossos sistemas sensoriais é enorme. Para entender essa grandeza, imagine perceber todos os detalhes existentes de uma paisagem em alguns poucos segundos; isso é uma tarefa impossível. Nosso sistema nervoso é simplesmente incapaz de processar todas as informações ambientais simultaneamente. Isso fica evidente também quando tentamos realizar simultaneamente duas atividades distintas, por exemplo, conversar e ler um livro. O sistema nervoso, por meio da atenção, seleciona certos estímulos para serem adequadamente processados. Os objetos ou eventos escolhidos para posterior processamento variam de acordo com a sua relevância. Por exemplo, se queremos ler um livro, direcionamos voluntariamente a atenção visual para as letras e palavras. Há também, certos estímulos que atraem a atenção automaticamente. Esses estímulos se caracterizam por ser mais salientes do que outros, como por exemplo, a sirene e as luzes intermitentes das ambulâncias. Vamos supor que estamos engajados em uma conversa. A atenção seleciona as informações que julgamos relevantes e essas informações são processadas pelo sistema sensorial auditivo e posteriormente enviadas para áreas responsáveis pela linguagem. É importante ressaltar que o processamento da linguagem não envolve apenas o sentido auditivo, mas também o visual e o somático. Quando lemos um texto utilizando a visão (mais comum) ou o tato (leitura em braile), as informações desses diferentes sentidos são igualmente processadas nas áreas da linguagem. Para manter uma conversa, direcionar a atenção ou perceber o mundo como nós percebemos, é necessária, além dos processos já mencionados, também a memória. A memória nos permite lembrar a tabuada, o caminho para a faculdade, o rosto de nossas 1º Curso de Neurociências e Comportamento 5 www.ib.usp.br/labnec mães, nossos nomes, o significado das palavras etc. Para mantermos uma conversa precisamos da memória, caso contrário não nos lembraríamos da última palavra ouvida ou falada. A atenção sustentada, que é o comportamento de manter a atenção focada em um objeto ou situação por algum tempo, é possível graças à memória. Se mantemos a atenção voluntariamente direcionada para algo, é porque provavelmente isso é relevante para nós. Ou seja, as informações da memória influenciam o controle do direcionamento da atenção. Direcionar a atenção voluntariamente ou realizar qualquer outra atividade, envolve a tomada de decisão. A todo instante devemos decidir: continuamos a assistir TV ou começamos a estudar para a prova? Comer mais uma fatia de pão no café da manhã? Usar a camiseta vermelha ou a azul? Viajar para a praia ou para a montanha no feriado? A maioria dos nossos comportamentos envolve algum tipo de decisão. A decisão não é apenas uma simples escolha entre diferentes opções, mas uma escolha dependente de diversos fatores. Um deles é a memória: quando sabemos, por experiências passadas, que uma determinada opção pode nos trazer mais benefícios, é natural que essa escolha seja preferida em detrimento das outras. Outro fator importante na tomada de decisão é a emoção. Se tivermos medo de algo, certamente nos comportaremos de modo a evitá-lo. Em um experimento clássico avaliou-se o efeito da emoção no comportamento de risco. Eram apresentados a voluntários dois montes de cartas. Em um deles (A), ganhava-se uma recompensa de $50, correndo-se o risco de perder até $100. Por outro lado, no outro monte (B), podia-se ganhar $100, mas podia-se perder até $1200, ou seja, o risco de perder era muito maior comparado ao ganho. Sabendo dos riscos, os voluntários poderiam escolher livremente entre os dois montes. Voluntários controles evitavam as cartas do monte B e a simples cogitação de escolher a pilha mais arriscada desencadeava uma clara resposta emocional involuntária. Por outro lado, pacientes com lesões específicas no córtex cerebral, relacionadas à emoção, escolhiam sempre o monte mais arriscado e não apresentavam resposta emocional. Esses são apenas alguns exemplos de como os diferentes processos cognitivos atuam para produzir o nosso comportamento. Cada um desses processos pode ser mais ou menos utilizado de acordo com a situação, a atividade realizada. Isso fica bastante claro quando comparamos dois tipos de atividades como, por exemplo, fazer uma prova e assistir à TV. Em ambos os casos utilizamos a memória, mas esse processo cognitivo é muito mais ativo na primeira situação. Estudando o funcionamento de cada um desses processos e como eles se inter- relacionam, a neurociência cognitiva tenta entender como o sistema nervoso produz o comportamento. Nos capítulos seguintes estudaremos como os diferentes processos 6 www.ib.usp.br/labnec cognitivos atuam, além, é claro, do funcionamento do sistema nervoso propriamente dito, suas unidades funcionais e os mecanismos de integração e processamento da informação. 1º Curso de Neurociências e Comportamento 7 www.ib.usp.br/labnec Biologia da Cognição: Introdução Renata Pereira Lima Laboratório Neurociência e Comportamento rplim@usp.br No sistema nervoso, neurônios nunca funcionam isolados; eles estão organizados em circuitos que processam tipos específicos de informações. O sistema nervoso parece organizado em grupos de circuitos, i.e., módulos, cujas funções servem a um propósito comportamental específico. Desta maneira, sistemas sensoriais como a visão ou audição adquirem e processam informações a partir do ambiente, o sistema motor permite que o organismo responda a tais informações através da geração de ações. Há, entretanto, um grande número de células e circuitos que estão entre estas mais ou menos bem definidas aferências e eferências. Eles são coletivamente referidos como sistemas de associação e são responsáveis pelas mais complexas funções. Além destas amplas distinções, os neurocientistas têm convencionalmente dividido o sistema nervoso dos vertebrados, sob o ponto de vista anatômico, em componentes centrais e periféricos (Fig. 1). O sistema nervoso central (SNC) compreende o encéfalo e a medula espinal. O sistema nervoso periférico (SNP) inclui fibras de neurônios que conectam os receptores sensoriais na superfície do corpo ao SNC e a porção motora, que consiste em axônios de nervos motores que conectam o encéfalo e a medula espinal aos músculos esquelético, viscerais, cardíaco e glândulas. Figura 1. Arranjo anatômico do sistema nervoso em humanos. Em azul o sistema nervoso central (SNC) e em amarelo, o sistema nervoso periférico (SNP). Retirado de Bear, 1996. 8 www.ib.usp.br/labnec Embora o arranjo dos circuitos que compõem estes sistemas varie grandemente de acordo com suas funções, algumas características são comuns entre eles. As conexões sinápticas que definem um circuito são tipicamente realizadas numa densa malha de dendritos e terminais axonais. A direção do fluxo de informação em um circuito particular é essencial para se entender sua função. Células nervosas que transmitem informações em direção ao sistema nervoso central são chamadas de neurônios aferentes; já as que transmitem informações para fora do encéfalo e da medula espinal (ou para fora do circuito em questão), são chamadas de neurônios eferentes. Células nervosas que participam somente no aspecto local do circuito são chamadas de interneurônios. Estas três classes – neurônios aferentes, neurônios eferentes e os interneurônios – são os constituintes básicos de todos os circuitos neurais. De modo geral, podemos classificaros circuitos como: Convergentes: aqueles nos quais um grupo de neurônios recebe uma aferência (entrada) de um neurônio pré-sináptico e o circuito tende a se tornar concentrado. Para demonstrar este tipo de circuito, imagine que tenhamos os neurônios A, B e C e que cada um deles possua uma entrada diferente. Estes neurônios se projetam para um neurônio D e este se projeta para outro neurônio E, realizando uma eferência (saída). Circuitos convergentes são responsáveis, por exemplo, pela interpretação dos estímulos sensoriais (Fig. 2, à esquerda). Divergentes: são os circuitos que funcionam de maneira oposta aos circuitos convergentes. Em vez de concentrar as aferências, estas se projetam separadamente para diferentes neurônios. No caso do circuito divergente, o neurônio A possui uma aferência e se projeta para os neurônios B, C e D. A característica básica de um circuito divergente é o fato de que um único neurônio iniciará respostas de maneira crescente em outros neurônios. Tais circuitos são encontrados nos sistema motores e sensoriais (Fig. 2, centro). Reverberantes: o sinal de aferência é transmitido ao longo de uma série de neurônios e cada um destes fará sinapses com neurônios de uma porção da via previamente percorrida. O impulso reverbera sendo enviado ao longo do circuito continuamente até que um neurônio seja inibido. Então, uma aferência no neurônio A se projeta para o neurônio B, que se projeta para o neurônio C e então para o D e este se projeta de volta para o neurônio A (ou para o B) e o ciclo se repete até que um neurônio (que pode ser tanto A, quanto B, C ou D) seja inibido. Circuitos reverberantes estão envolvidos no ciclo de sono-vigília, atividades motoras, memórias de longa duração, etc (Fig. 2, à direita). 1º Curso de Neurociências e Comportamento 9 www.ib.usp.br/labnec Figura 2 - Esquema representativo dos modelos de circuitos. À esquerda, o modelo de circuitos convergentes, no centro o modelo divergente e o reverberante à direita. Além disto, circuitos podem funcionar paralela ou serialmente. No funcionamento paralelo, sinais aferentes são processados em vias distintas e as informações são analisadas de maneira analítica concomitantemente no tempo. Por exemplo, o sistema visual funciona em vias paralelas que processam a informação neural de forma simultânea e integrada. Sinais representando cores, movimento, forma e localização, por exemplo, são processados simultaneamente em diferentes regiões do encéfalo. Atividades concomitantes (e sincronizadas) nas vias visuais dorsal e ventral (que são anatomicamente distintas) são responsáveis pela percepção unitária da imagem. No funcionamento serial, os resultados dos processamentos de um circuito são necessários para que o próximo circuito possa contribuir para o processamento total. Isto é, um neurônio estimula outro neurônio, que por sua vez estimula outro neurônio e assim por diante. Um exemplo clássico de processamento serial é o arco reflexo, em que há produz uma reação involuntária rápida, na maioria das vezes inconsciente, que protege o organismo. Tal reação é originada a partir de um estímulo externo que gera uma resposta antes mesmo do indivíduo tomar conhecimento da existência do estímulo periférico e, conseqüentemente, antes deste poder comandá-la voluntariamente. Muitos reflexos motores são controlados por neurônios localizados na substância cinzenta da medula espinhal e do tronco encefálico (bulbo, ponte e mesencéfalo), independentemente da vontade, como por exemplo: • a retirada imediata da mão de uma panela muito quente; • extensão da perna após a percussão e estiramento do tendão patelar; • fechamento da pupila com o aumento da intensidade luminosa; • aumento da secreção gástrica com a chegada do alimento no estômago. Desta maneira, o ato reflexo é um mecanismo que gera uma reposta involuntária do organismo a um determinado estímulo (dor, estiramento, aumento da intensidade luminosa, variações da pressão arterial etc). Ocorrendo um estímulo, a fibra sensitiva de um nervo aferente (ou sensitivo) transmite-o até a medula espinhal passando pela raiz posterior, ou ao tronco encefálico, por meio de um nervo craniano. Na medula ou no tronco encefálico o neurônio aferente comunica-se com o eferente diretamente ou por meio de interneurônios associativos, gerando, no neurônio motor, a atividade que leva à ação. Os axônios eferentes que levam essa ordem da medula (pela raiz anterior) ou do tronco encefálico (por 10 www.ib.usp.br/labnec um nervo craniano) constituem as fibras eferentes motoras ou vegetativas que levam a informação ao órgão efetor (músculo estriado esquelético, glândula, músculo liso ou músculo cardíaco) que, por sua vez, executará a resposta ao estímulo inicial. É importante ressaltar que o processamento serial é a maneira mais simples por meio da qual um circuito pode funcionar. Este tipo de processamento está envolvido nas respostas mais simples e estereotipadas. Durante o processamento de funções mais complexas, de modo geral, os circuitos envolvidos, além de processar informações de modo serial, funcionam concomitantemente em paralelo com outros circuitos de maneira sincronizada. Construção de circuitos e sua modificação pela experiência A construção da circuitaria do sistema nervoso envolve processos ontogenéticos associados à interação do sistema com o ambiente. Assim, fatores químicos liberados por determinados neurônios em diferentes estágios do desenvolvimento ontogenético atraem projeções de outros neurônios intrinsecamente; paralelamente, essas projeções e conexões entre neurônios podem originar-se também em associação com a estimulação proporcionada pelo ambiente e/ou pela atividade de certos conjuntos de neurônios. Assim, os padrões macroscópicos básicos das conexões no sistema nervoso estabelecidas filogeneticamente podem ser microscopicamente alterados por padrões de atividade neuronal (isto é, experiência), modificando a circuitaria sináptica do encéfalo. A atividade neuronal gerada em decorrência de interações com o ambiente pré e pós-natal influencia a estrutura e a função do sistema nervoso, além da construção de sua circuitaria. A história de interação de um indivíduo com o ambiente, i.e., sua experiência acumulada, molda os circuitos neurais, determinando seu comportamento. Em alguns casos, as experiências funcionam primariamente como gatilhos que ativam alguns comportamentos inatos. Mais freqüentemente, entretanto, experiências desenvolvidas em períodos específicos no início da vida (referidos como períodos críticos) determinam um repertório comportamental no indivíduo adulto. Estes períodos críticos influenciam comportamentos diversos incluindo laços maternais, preferências sexuais e aquisição de linguagem, entre outros. Embora seja possível identificar conseqüências comportamentais de determinados estímulos que foram apresentados em períodos críticos para determinadas funções, suas bases biológicas ainda não estão completamente esclarecidas. Talvez o exemplo mais bem investigado relacione-se ao período crítico no estabelecimento da visão. Alguns estudos mostraram que a experiência é traduzida em padrões distintos de atividade neuronal que influenciam a função e a conectividade dos neurônios relevantes. No sistema visual (e em outros sistemas também) a competição entre aferências com diferentes padrões de 1º Curso de Neurociências e Comportamento 11 www.ib.usp.br/labnec atividade é um determinante importante na consolidação dos padrões de conectividade. Em um axônio aferente, padrões de atividade correlatos tendem a estabilizar as conexões. Quando padrões normais de atividadesão rompidos (experimentalmente, em animais, ou patologicamente, em humanos) durante um período critico na infância, a conectividade no córtex visual é alterada, assim como a função visual. Se não é feita a manutenção destes padrões até o final do período critico, estas alterações estruturais da circuitaria nervosa dificilmente se restabelecem posteriormente. A conectividade nervosa estabelecida ao longo do desenvolvimento normal possibilita ao encéfalo armazenar vasta quantidade de informações que refletem a experiência específica daquele individuo. Como esperado, a construção dessa conectividade que tanto influencia o desenvolvimento do sistema nervoso gera alterações maiores nos estágios iniciais de desenvolvimento. Assim, em um animal adulto, o sistema nervoso se torna gradativamente mais refratário a lições da experiência e os mecanismos celulares que medeiam as alterações da conectividade neuronal se tornam menos plásticos. Integração entre circuitos: o modelo de redes O conceito de que no córtex cerebral há domínios discretos dedicados mais ou menos exclusivamente a algumas funções cognitivas, tais como discriminação visual, linguagem, atenção espacial, reconhecimento de face, retenção de memória, memória operacional, etc., tem sido questionado devido à falta de evidências conclusivas que o apóiem. Em seu lugar, modelos de redes neurais têm sido apresentados como uma alternativa mais coerente com as evidências disponíveis sobre seu funcionamento. Em 1949, Donald Hebb hipotetizou uma forma de plasticidade sináptica proporcionada por uma continuidade temporal das atividades pré e pós-sinápticas. Além de acreditar que as conexões sinápticas eram as bases das associações mentais, ele foi além do simples conexionismo dos behavioristas. Primeiro, ele argumentou que uma associação não poderia ser localizada numa simples sinapse. Ao contrário, os neurônios estariam agrupados em “assembléias de células” e esta associação era distribuída nas suas conexões sinápticas. Segundo, Hebb rejeitou a noção de que a relação estímulo-reposta poderia ser explicada somente por um simples arco reflexo conectando neurônios sensoriais a neurônios motores. Assim, era necessário postular “um mecanismo central que explicasse o atraso existente entre o estímulo e a resposta que é tão característico do pensamento” (Hebb, 1949). Seguindo as idéias do neurofisiologista Lorente de Nó, Hebb acreditava que a estimulação sensorial poderia iniciar padrões de atividade neural que eram mantidas centralmente pela circulação em loops de feedbacks sinápticos. Tal “atividade reverberante” torna estes padrões possíveis para as respostas que são subseqüentes aos estímulos posteriores ao atraso. Em resumo, Hebb hipotetizou um “mecanismo com fundamentos 12 www.ib.usp.br/labnec duplos” da memória. A atividade neural reverberante era o fundamento da memória de curta duração, enquanto as conexões sinápticas eram o fundamento da memória de longa duração. Desta maneira, Hebb propôs que: “A persistência ou repetição de uma atividade reverberante tende a induzir mudanças celulares permanentes que promovem estabilidade no sistema” (Hebb, 1949). Esta proposição pode ser precisamente colocada da seguinte forma: quando um axônio da célula A repetidamente ou persistentemente dispara, alguns processos de crescimento ou mudanças metabólicas acontecem em uma ou em ambas as células (A ou B) de tal modo que a eficiência de A, uma das células que estão agindo sob B, é aumentada. Além disto, Hebb hipotetiza uma função específica para esta “sinapse hebbiana”: a conversão da memória de curta duração em memória de longa duração pela estabilização de padrões de atividade reverberante. Uma vez que este padrão de atividade foi armazenado nas conexões sinápticas, ele pode ser resgatado repetidamente a partir da excitação de neurônios sensoriais ou a partir de outros padrões de atividade reverberante. A hipótese de Hebb foi verificada décadas depois com a descoberta da potenciação de longa duração, LTP (do inglês, long-term potentiation) (Fig. 3). A LTP é um estreitamento da conexão entre dois neurônios que resulta de uma estimulação simultânea de ambos e pode ser induzida experimentalmente aplicando-se uma seqüência de pequenos estímulos de alta freqüência na célula nervosa. Este estreitamento pode durar de minutos a horas (in vitro) ou de horas a dias ou meses (in vivo). Pela eficiência aumentada da transmissão sináptica, a LTP aumenta a habilidade de dois neurônios, um pré-sináptico e outro pós-sináptico, de comunicarem-se através da sinapse. O mecanismo preciso para este aumento da transmissão ainda não é bem estabelecido, em partes porque a LTP é controlada por múltiplos mecanismos que variam de acordo com a região em que acontecem, a idade do animal em questão e espécie. Entretanto, nas formas de LTP mais compreendidas, a melhora desta comunicação é predominantemente feita através do aumento da sensibilidade das células pós-sinápticas em receber sinais das células pré-sinápticas. Estes sinais, na forma de moléculas de neurotransmissores, são recebidos por receptores presentes na superfície da célula pós- sináptica. Este aumento de sensibilidade é devido não somente ao aumento da atividade dos receptores já existentes na superfície, mas também por um aumento do número destes receptores. Interessantemente, a LTP compartilha muitas características com a memória de longa duração, o que faz dela uma candidata muito atrativa como um mecanismo celular do aprendizado. Por exemplo, a LTP e a memória de longa duração dependem da síntese de novas proteínas, possuem propriedades associativas e podem durar potencialmente vários 1º Curso de Neurociências e Comportamento 13 www.ib.usp.br/labnec meses. A LTP também pode responder por vários tipos de aprendizado, desde o relativamente simples condicionamento clássico presente em todos os animais, até respostas mais complexas, como a cognição observada em humanos. De acordo com essa concepção, a alteração estrutural leva ao armazenamento da informação podendo explicar o fenômeno da memória. Este modelo postula que todas as representações cognitivas consistem em redes de neurônios cuja atividade foi associada pela experiência (estímulos repetidos). Nesse contexto, pode-se assumir que memórias filogenéticas correspondem a redes que se consolidaram ao longo das gerações e não necessitam de experiência individual para serem funcionais, embora possam ser aprimoradas pela experiência individual. Figura 3 - Modelo representativo do funcionamento da Potenciação de Longa-Duração (LTP). Os receptores NMDA (vermelho) constituem a maquinaria molecular da aprendizagem. O neurotransmissor é libertado durante atividade basal e durante a indução de LTP (topo, à esquerda). A expressão de LTP pode dever-se à presença de mais receptores AMPA (receptores em amarelo, à esquerda, abaixo) ou à presença de receptores AMPA mais eficientes (à direita, abaixo). Disponível em www.braincampaign.org - 09/06/2009. Se considerarmos que um neurônio tipicamente recebe informações de cerca de 104 neurônios e, por sua vez, projeta-se para outros 104 neurônios e, que o encéfalo humano 14 www.ib.usp.br/labnec contém pelo menos 1011 neurônios, isto significa dizer que pelo menos 1019 conexões sinápticas são formadas no cérebro. Entretanto, a complexidade de seu funcionamento é evidentemente maior, em particular quando se considera os arranjos seqüenciais pelos quais uma informação pode viajar ao longo de seqüências de neurônios. Quanto mais freqüentes as exposições a estímulos relevantes, mais fortes tornam-se essas conexões. Como conseqüência, a informação tendea ser arquivada de maneira relacional. Isso permite entender porque a recordação envolve, usualmente, categorias. Por exemplo, ao pedirmos para uma pessoa listar todos os animais de que se recorda, não raro a lista conterá animais agrupados por categorias de similaridade, ou seja, quadrúpedes, aves, animais aquáticos, invertebrados etc. O mesmo ocorre em relação a alimentos; a recordação também será categórica (frutas, verduras, legumes, carnes etc.). Isso ocorre porque o aumento de atividade eletrofisiológica em determinados circuitos neurais (que levam à recordação de uma dada informação) tende a estimular a atividade em circuitos relacionados. Assim, quando aprendemos que determinado estímulo se refere a um determinado conceito, estamos na verdade fazendo associações com conceitos que já conhecemos (associando nós de uma rede com outros). Então, quando visualizamos a imagem de uma maçã caindo, integramos todas as informações disponíveis (cor, forma, contexto, movimento) com os circuitos já consolidados previamente e que em algum momento foram associados ao conceito “maçã”. O mesmo vale para uma outra modalidade de estímulo, ou seja, um som específico que atribuímos como característico de um determinado animal, o cheiro de uma comida que está intimamente ligado com o seu sabor etc. 1º Curso de Neurociências e Comportamento 15 www.ib.usp.br/labnec Biologia da Cognição: Integração Neural Renata Pereira Lima Laboratório Neurociência e Comportamento rplim@usp.br Todas as formas de comportamento adaptativo requerem o processamento de um fluxo de informação sensorial e sua transdução em uma série de ações direcionadas a um objetivo. Desde a mais primitiva espécie animal, todo o processo é regulado por feedbacks externos (ambiente) e internos (Fig.1). Esse padrão de funcionamento torna o organismo apto a forragear, fugir de predadores, lutar e reproduzir-se. Figura 1 - Uma das finalidades da percepção é permitir uma interação com o ambiente. Interações podem incluir andar de um lugar para outro, pegar um objeto, conversar com uma pessoa ou dirigir um carro. De modo circular, tais ações afetam diretamente nossa percepção do mundo. Esta interdependência entre ação e percepção é ilustrada pelo “Ciclo Percepção-Ação” da figura acima. A visão que temos na integração sensoriomotora é que em vários aspectos do comportamento, ações motoras e processos sensoriais estão conectados inseparavelmente e, desta forma, precisam ser estudados juntos. O sistema nervoso evoluiu, sobretudo nos mamíferos, de tal forma que uma grande complexidade estrutural e funcional foi alcançada não tanto pelas vias aferentes, responsáveis por canalizar as informações sensoriais, ou pelas vias eferentes, responsáveis por emitir as respostas motoras, mas por circuitos neurais que intermedeiam essas vias de entrada e saída. Os complexos circuitos neurais que se localizam entre as vias sensoriais e motoras são os principais responsáveis pela riqueza, flexibilidade e plasticidade de comportamentos observados. Isso se manifesta na enorme diversidade de estímulos que podem ser reconhecidos pelos sistemas sensoriais, na multiplicidade de graus de liberdade com que ações são organizadas pelos sistemas motores e, sobretudo, pela rica e plástica relação que se estabelece entre esses dois conjuntos. A progressiva elaboração dos circuitos neurais pode ser entendida como uma conseqüência da seleção de ações mais vantajosas (organizadas por circuitos “pré- 16 www.ib.usp.br/labnec motores”) em resposta à identificação seletiva de estímulos específicos (realizada por circuitos “perceptivos”), provavelmente pressionada por fatores ambientais. Podemos supor então que, ao tornar-se cada vez mais complexo, o funcionamento dos circuitos neurais que organizam a integração sensório-motora expressa aquilo que chamamos de “percepção”, “atenção”, “aprendizado”, “memória”, “ação” e, por fim, “consciência”. Esses rótulos estão longe, em sua maioria, de uma definição completa e consensual. Eles são, mais provavelmente, o resultado das limitações que ainda temos em compreender a essência do funcionamento do sistema nervoso, não se constituindo em entidades separadas e independentes da função neural. Desta forma, se considerarmos que a percepção do mundo, onde “perceber” algo, derivado do latim, significa “apoderar-se” dele, logo veremos que não há percepção sem que alguma forma de atenção esteja em jogo. E é só por meio da percepção atenta que temos de um estímulo que sentimos, de um evento que presenciamos ou de uma resposta que emitimos, que poderemos mais tarde nos lembrar desse objeto, desse evento ou dessa resposta, resgatando uma memória arquivada por meio de um processo de aprendizado. E, de forma um tanto óbvia, todo trabalho investido em se “apoderar” do mundo, “arquivá-lo” e “resgatá-lo”, seria inútil e sem sentido se não usássemos essa informação na organização e emissão de uma ação sobre o mundo, com ele interagindo de forma contínua e coerente, permitindo nossa permanência nesse mesmo mundo, apesar de seus constantes desafios. Percepção envolve ação Perceber algo geralmente requer alguma ação por parte de quem esta percebendo. Freqüentemente temos que olhar (direcionar os olhos) para ver, fazendo uma varredura visual do ambiente até que o objeto de desejo seja encontrado. Da mesma forma, para um som ser audível, temos que direcionar nossos ouvidos em sua direção. Quando tocamos um objeto, ele é mais facilmente identificado se for explorado pelos nossos dedos. Todos estes exemplos demonstram que a percepção é um processo ativo que funciona para direcionar e otimizar o comportamento através do seu refinamento. Além disso, uma vez que um objeto tenha sido percebido, podemos decidir se iremos nos aproximar ou nos afastar. Ao ouvir um barulho podemos responder a ele ou ficar quieto. Ao identificar um objeto pelo toque podemos descartá-lo ou mantê-lo conosco. Em cada um destes casos nosso comportamento depende do que é percebido. A orientação da percepção por meio de uma ação induz uma distinção interessante entre os vários sentidos que tem a ver com a proximidade do observador em relação ao objeto percebido. Tocar e saborear algo requer um contato direto entre o observador e a fonte de estimulação. Cheirar também é um certo contato com a fonte de estímulação; substâncias químicas voláteis são diluídas conforme a distância da fonte aumenta; desta 1º Curso de Neurociências e Comportamento 17 www.ib.usp.br/labnec forma, o cheirar funciona mais eficientemente para substâncias que estão próximas. Em contraste, ver e ouvir,não dependem tanto deste contato. Os olhos e os ouvidos podem capturar a informação originária de fontes remotas, neste sentido eles funcionam como um radar. Eles permitem que o indivíduo faça contato perceptual com um objeto que não está próximo, eles estendem a percepção para um mundo além dos limites dos dedos e do nariz. Estes dois sentidos substituem o deslocamento até a fonte de estímulo, permitindo que o indivíduo explore a vizinhança. Organização e hierarquia no ciclo percepção-ação Em todo o sistema nervoso central, o processamento de seqüências de ações guiadas sensorialmente segue um fluxo a partir de estruturas geralmente posteriores (sensórias), em direção a estruturas anteriores (motoras), com feedbacks em todos os níveis. Assim, no nível cortical, a informação flui de maneira circular ao longo de uma série de áreas hierarquicamente organizadas e entre conexões que constituem o ciclo percepção- ação (Fig. 2). Ações automáticas e/ou muito freqüentes em resposta a estímulos sensoriais são integradas em níveis mais inferioresdo ciclo, nas áreas sensoriais da hierarquia (perceptiva) e em áreas motoras da hierarquia (executiva). Comportamentos mais complexos, guiados por estímulos também mais complexos e distantes no tempo, requerem uma integração em níveis corticais mais superiores de ambas as hierarquias (perceptuais e executivas), basicamente áreas superiores de associação sensorial e córtex frontal anterior. Para garantir as interações entre as duas hierarquias corticais, longas fibras cortico- corticais conectam recíproca e topologicamente as áreas da hierarquia perceptual com as áreas equivalentes executivas. Assim, áreas pré-motoras se conectam com áreas sensoriais associativas relativamente inferiores (áreas inferiores de ambas as hierarquias), enquanto Figura 2 - O substrato cortical do ciclo percepção- ação. Em azul está representado o lado da percepção no ciclo e em vermelho o lado da ação. Os retângulos vazios representam áreas intermediárias ou subáreas do córtex. As setas representam vias anatomicamente identificadas em macacos e ressaltam a conectividade recíproca entre os córtices posterior e anterior. Retirado de Fuster, 2006. 18 www.ib.usp.br/labnec áreas frontais anteriores se conectam com áreas associativas superiores do córtex posterior (áreas superiores). Do mesmo modo, há evidências anatômicas de conexões ordenadas descendentes do córtex frontal anterior ao córtex pré-motor e deste para o córtex motor. Em cada estágio deste processo em cascata na hierarquia executiva, a próxima ação de uma seqüência é determinada por dois tipos de influências: 1) o processamento dos aspectos globais da seqüência nas áreas frontais superiores e 2) os sinais sensoriais que estão ocorrendo naquele momento. A ativação progressiva de áreas frontais inferiores que processam a ação é cumulativa. Da mesma forma, as entradas sensoriais associativas do córtex posterior são progressivamente mais concretas e mais dependentes de um contexto espacial e temporal imediato. Sinais que necessitam ser processados em um contexto temporal mais amplo (episódico) requerem ações que dependem de uma integração temporal em graus mais elevados. Estes sinais são processados no córtex posterior e concomitantemente nas áreas superiores do córtex frontal anterior (rostral). Em ambos os córtices, os sinais são integrados simultaneamente com as informações prévias (as regras de uma determinada tarefa e as instruções eventualmente dadas) antes mesmo de serem enviados para o processamento em estágios inferiores da hierarquia frontal. Sendo assim, o córtex frontal anterior integra as mais elaboradas associações da informação sensorial que estão armazenadas em redes dos córtices sensoriais e motores. Se considerarmos que a execução de uma ação não se limita, em geral, a uma única oportunidade, temos uma grande vantagem ao construirmos representações perceptivas do mundo e guardá-las na memória, podendo usar essa informação em uma próxima oportunidade em que ações semelhantes sejam requeridas. Esse aprendizado permite um refinamento a longo prazo de nossas ações, fornecendo subsídios para ações mais complexas, mais integrativas e de maior alcance adaptativo. Integrando percepção e ação: o sistema de neurônios espelho Quando temos que explicar uma ação humana, a neurociência tem duas abordagens maiores: a sensoriomotora e a ideomotora. Na abordagem sensoriomotora, tudo começa com uma estimulação, e as ações são consideradas uma conseqüência desta estimulação. De modo inverso, na abordagem ideomotora, tudo começa com uma intenção, e as ações são consideradas como o meio de realizar estas intenções, isto é, as ações são vistas como o meio para determinados fins que seguem a intenção. Assim como vimos acima, existe uma sobreposição e uma dependência entre as percepções e as ações, tanto nos seus sistemas quanto nas respostas comportamentais. Desde modo, fica difícil imaginar que nossas ações sejam meras escravas de nossas percepções. 1º Curso de Neurociências e Comportamento 19 www.ib.usp.br/labnec Em uma situação em que uma pessoa observa as ações de outra pessoa, a abordagem ideomotora oferece uma predição muito consistente. Considerando o fato de sermos seres sociais, nós humanos passamos boa parte do nosso tempo observando as outras pessoas, tentando entender o que elas estão fazendo e por que. Esta “comunicação primitiva” é essencial para estratégias de sobrevivência e sociabilidade do indivíduo. Contudo, como reconhecemos e entendemos as intenções das outras pessoas? Quais as bases neurofisiológicas desta habilidade? A recente descoberta de neurônios espelho tem inspirado uma série de estudos em busca destas respostas. O reconhecimento de uma ação foi inicialmente concebido como baseado apenas no sistema visual (abordagem sensoriomotora); isto é, numa análise dos componentes visuais da ação específica, do agente envolvido, do objeto ao qual a ação é direcionada e do contexto no qual ela está inserida. Assim, a interação de todos estes elementos identificados visualmente permitiria ao observador reconhecer e entender uma ação feita por outra pessoa. Uma hipótese alternativa admite que a observação de uma ação estimularia uma “representação motora interna” que envolveria as mesmas estruturas neurais envolvidas na execução da ação observada; de acordo com esta concepção, embora nenhum movimento efetivo seja executado, a representação motora evocada pela observação permitiria o reconhecimento do significado do que é visto. Com a descoberta de que há ativação de neurônios na região do córtex pré-motor durante a observação de ações, os assim denominados “neurônios espelho”, e considerando que esta hipótese não exclui a possibilidade de que outro processo cognitivo, baseado na descrição do objeto e do movimento, possa participar desta função, esta hipótese motora vem ganhando cada vez mais adeptos. Todavia, tem sido proposto que os neurônios espelho formam um sistema que combina observação e execução – percepção e ação. Neurônios espelho são um grupo particular de neurônios cuja atividade aumenta durante a execução de uma ação motora particular ou da observação da mesma ação desempenhada por outro indivíduo. Sua descoberta ocorreu durante experimentos com macacos envolvendo o controle motor de ações desempenhadas com as mãos, como por exemplo, pegar/manipular um objeto ou alimento. Os descobridores destes neurônios, entre eles Giacomo Rizzolatti, implantaram eletrodos no córtex frontal inferior de macacos (área F5) e registraram a atividade dos neurônios individualmente enquanto os animais alcançavam pedaços de alimentos. Eles observaram que alguns destes neurônios (situados no setor superior da área F5), disparavam não somente quando o macaco pegava o alimento, como também quando ele observava outro indivíduo (macaco ou humano) desempenhando esta ação, como se a mesma tivesse sido “refletida” no seu córtex motor (Fig. 3). Estudos posteriores mostraram que pelo menos 10% dos neurônios envolvidos no controle motor de ações desempenhadas com as mãos são “neurônios espelho”. 20 www.ib.usp.br/labnec Estes estudos mostram que além do reconhecimento da ação motora por meio de informações visuais, o sistema de neurônios espelho lida com informações mais abstratas, a fim de reconhecer o objetivo final da ação. Esta resposta, baseada também em outras modalidades, isto é, auditiva, sugere que a atividade espelho depende da riqueza das experiências próprias do observador e de ações presentes em seu repertório motor (memória de planos motores). Entretanto, aparentemente, o reconhecimento do objetivo final de uma ação baseado em exposição prévia do observador sóparece possível se houver dicas suficientes no ambiente acerca da intenção desse outro indivíduo. Isto é, uma ação implica em um agente e um objetivo. Conseqüentemente, o reconhecimento de uma ação implica no reconhecimento de um objetivo e, em outra perspectiva, o entendimento da intenção do agente: “João vê Maria pegando uma maça”. Vendo sua mão movimentando-se em direção à maça, ele reconhece o que Maria fará (pegará algo), e também reconhece que Maria quer pegar uma maça, isto é, o estímulo é ligado à intenção do agente. Desta maneira, o sistema de neurônios espelho oferece um modelo de integração entre percepção e ação bastante interessante. Através do reconhecimento de ações e, não apenas pelo sistema sensorial, mas também no próprio sistema motor do observador, ocorre uma integração online das informações recebidas do ambiente - a ação observada sendo executada por outra pessoa - e também entre informações presentes no sistema nervoso do observador - representação motora da ação observada. Figura 3 - Experimento feito com macacos em que ele executa uma ação (pegar o amendoim) e também observa esta mesma ação sendo feita pelo experimentador. À direita está um esquema que exemplifica a atividade dos neurônios espelho nas duas situações. Retirado de Rizzolatti,1996. 1º Curso de Neurociências e Comportamento 21 www.ib.usp.br/labnec Percepção Felipe Viegas Rodrigues Laboratório de Neurociência e Comportamento fvrodrigues@usp.br Percepção é um produto do sistema nervoso central que depende do entendimento dos sistemas sensoriais, mas vai além destes. Entender percepção é entender não somente como percebemos alguma coisa (seja vendo, ouvindo ou sentindo estímulos), mas também por que percebemos e quais as implicações para com outros aspectos da cognição, como a memória ou a atenção. Falar em percepção é falar sobre os córtices associativos. Esse campo de estudo lida com dois problemas: (1) como todos os aspectos de um estímulo sensorial são entendidos e processados (cor, forma, movimento para visão; intensidade, timbre, altura para audição, por exemplo) e (2) qual a relação com outros produtos da cognição, especialmente atenção e memória. Uma das principais diferenças entre a percepção e as sensações é a constância perceptual. Tome por exemplo a Fig. 1. Não importa qual a posição do carro mostrado na figura, sabemos que se trata do mesmo carro, apesar das quatro imagens serem distintas e provocarem estimulações diferentes nas regiões iniciais do sistema visual. O mesmo princípio é verdadeiro para a percepção de uma mesma nota musical tocada por instrumentos diferentes. Embora as frequências produzidas por eles sejam diferentes, com alterações dos harmônicos que compõem o som resultante (dando a cada instrumento seu timbre), a percepção de uma determinada nota é mantida. A constância perceptual só é possível pela integração da informação sensorial com a informação de outras regiões encefálicas, inclusive (ou talvez principalmente) das memórias adquiridas ao longo da vida. Esse mecanismo depende, portanto, de aprendizado e ele é possivelmente uma particularidade da espécie humana. Experimente colocar um capacete de ciclismo (que cobre apenas a parte superior da cabeça) e aparecer diante do seu cachorro. Ele seguramente o estranhará. Por outro lado, o reconhecerá pelo cheiro e voz, o que o fará parar de hesitar após algum tempo. Humanos são únicos em sua capacidade de abstração, capazes de ver um tronco cortado em uma floresta e imediatamente pensar: “Que bom! Um banco para descansar!”. Figura 1 – A imagem na retina é imensamente diferente para os quatro desenhos. Ainda assim, perceptualmente logo nos damos conta de que se trata do mesmo carro. Retirado de Gazzaniga, Ivry e Mangun (2006). 22 www.ib.usp.br/labnec O interesse pelos mecanismos de percepção veio a partir de casos clínicos de lesões cerebrais, em geral por acidentes vasculares cerebrais (AVC), em que os pacientes tiveram comprometimento da percepção. Tais pessoas se tornaram incapazes de reconhecer objetos ou pessoas que antes lhes eram muito familiares. Uma investigação minuciosa evidencia que tais pessoas podem descrever em detalhes o que lhes é pedido, o que descarta problemas de memória. Mais do que isso, a estimulação por outra modalidade sensorial resulta em imediata identificação do objeto ou pessoa em questão, levando ao entendimento de que o problema é perceptual e, em geral, associado a apenas uma modalidade sensorial. Ao conjunto de sintomas de incapacidade de percepção é dado o nome agnosia. Vias perceptuais As lesões cerebrais que levam a problemas de percepção frequentemente são aquelas que ocorrem em áreas dos córtices parietal posterior, temporal inferior ou face lateral do córtex occipital. Essas regiões encontram-se na confluência das áreas sensoriais e, como já mencionado, são parte dos chamados córtices associativos, pois recebem aferências corticais das regiões sensoriais e integram entradas múltiplas para desempenhar funções cognitivas supramodais e comportamentais específicas. Algumas dessas regiões são neoformações em primatas e elas constituem a maior parte do córtex cerebral, particularmente no caso da espécie humana (Preuss, 2006). Visão O sistema visual é a modalidade mais estudada de todos os sistemas sensoriais conhecidos. No capítulo sobre fisiologia sensorial foi possível entender como se dá o processo de transdução do estímulo luminoso em sinal elétrico e como essa informação é levada até o córtex. Vamos elucidar agora como essa informação é manipulada e integrada com informações de outras regiões corticais para, de fato, entender como percebemos. A informação que chega até o córtex visual não para em V1, muito pelo contrário, essa informação continua avançando por diferentes regiões, cada vez mais próximas dos córtices temporal inferior e parietal posterior, passando por populações de neurônios especializadas no processamento de características específicas de um estímulo visual. Uma particularidade desse sistema sequencial é que a cada sinapse que é realizada a partir de V1, mais fibras vão convergindo para um mesmo neurônio. Com esse arranjo, quanto mais adiante na sequência esteja um neurônio, mais específica é sua função no processamento visual: enquanto aqueles no início da cadeia de processamento disparam para simples estímulos em forma de barra (com populações específicas para as diversas angulações possíveis dessa barra), há neurônios mais adiante nessa cadeia que só dispararão para 1º Curso de Neurociências e Comportamento 23 www.ib.usp.br/labnec combinações dessas barras ou se o estímulo em questão tiver características de um móvel (Fig. 2). Apesar do arranjo sequencial, as evidências atuais apontam para um processamento em paralelo dessas diversas regiões. Casos clínicos de pacientes que tiveram um AVC em regiões muito específicas do encéfalo (nos córtices associativos) revelam a perda de percepção de algum componente da visão, como movimento ou cor, mas não de outras características, mesmo que estas sejam processadas mais adiante na sequência de processamento visual. O maior tempo de reação para detecção de um estímulo visual quando mais de uma característica precisa ser analisada em um teste perceptual (cor e forma, por exemplo) também reforça a ideia de processamento em paralelo. Se apenas uma das características for necessária para a detecção do estímulo, independente de qual delas, o tempo de reação é menor. Na Fig. 3 pode ser vista uma representação das diferentes regiões de processamento visual e opapel de cada uma delas na construção de um percepto visual. Vale ressaltar que o arranjo existente nos permite definir uma via dorsal e outra ventral de processamento. Através da via dorsal, podemos entender “onde” vemos um objeto, já que essa via nos trás informações sobre movimento e posição espacial de um objeto. Já a via ventral nos traz informações de “o quê” vemos, permitindo identificar características como cor e forma de um objeto. Figura 2 – Estrutura sequencial na organização dos córtices associativos do SNC. Quanto mais adiante na sequência, mais complexo é o estímulo para qual a população de neurônios irá responder. Modificado de Lent, 2006. 24 www.ib.usp.br/labnec Figura 3 – Vias paralelas de processamento do estímulo visual: via dorsal (córtex parietal posterior), para processamento de informações sobre localização espacial e movimento, e uma via ventral (córtex temporal inferior), para processamento de informações como cor e forma do objeto em questão. Retirado de Kandel e col. (2000). Evidências clínicas, mais uma vez, não deixam dúvidas de que essas vias colaboram de forma independente para a percepção de um objeto qualquer. Um paciente com lesão em regiões da via ventral poderá afirmar não existir uma caneta (objeto) sobre uma mesa diante dele. Apesar disso, se ele for instruído a imaginar um objeto sobre a mesa e demonstrar como seria o movimento para pegar esse objeto, esse indivíduo faria o movimento correto e até mesmo poderia pegar a caneta. A ativação de todas as regiões corticais é necessária para que possamos ter a “correta” percepção de um objeto à nossa frente; o uso de aspas justifica-se porque, falando-se em percepção, simplesmente não há “correto”, mas sim uma experiência pessoal que é fortemente influenciada pelas nossas memórias, emoções e a atenção deslocada a um dado estímulo do ambiente. Falaremos mais sobre isso nos tópicos seguintes. Audição O sistema auditório e seus córtices associativos adjacentes têm sido mais bem estudados nos últimos anos. Novos experimentos têm trazido evidências de que o processamento de diferentes características do som também ocorre em diferentes regiões corticais. Semelhantemente ao sistema visual, existiriam duas vias de saída para os córtices associativos: uma anteroventral, relacionada à percepção de características do som como timbre e tonalidade; e outra posterodorsal para a percepção de características espaciais e localização do estímulo. De fato, Bendor e Wang (2005) encontraram no córtex auditivo de saguis-comuns (na região anteroventral) neurônios capazes de perceber tons, isto é, que disparam para 1º Curso de Neurociências e Comportamento 25 www.ib.usp.br/labnec uma determinada frequência e também para seus múltiplos. Essa relação entre frequências é exatamente aquela encontrada entre duas oitavas musicais. Essa população de neurônios provavelmente existe também em outras espécies de primatas, incluindo os humanos. É possivelmente pelo disparo desses neurônios que identificamos as notas semelhantes entre dois instrumentos musicais diferentes. Como no carro da Figura 1, é a constância perceptual acontecendo para estímulos auditivos. Por outro lado (ou, melhor dizendo, por outra via...), morcegos são um exemplo brilhante da capacidade de localização por estímulos sonoros. Acredita-se que eles sejam capazes de estabelecer um mapa do ambiente por onde se locomovem tão preciso quanto aquele que estabelecemos pela estimulação visual. Tentar imaginar algo como isso é quase impossível, mas, novamente, isto é apenas um reflexo da forma como percebemos o mundo. Seria como tentar imaginar como um cego (de nascença) percebe o mundo. Embora você provavelmente tenha pensado em fechar seus olhos e prestar atenção aos sons, cheiros e pressões (táteis) ao seu redor, isto não é o que um cego percebe do mundo. Para ele a estimulação visual nunca existiu, logo, perceber o mundo não é “ver” uma imagem preta e atentar às outras sensações. Para ele, são apenas as outras sensações. Há casos bem documentados de pessoas que conseguiram desenvolver a capacidade de se ecolocalizar (como os morcegos) para se locomover. Essas pessoas parecem criar mapas rudimentares do ambiente, precisos o suficiente para se locomoverem sem maiores problemas. Memórias atentas ao contexto Em diversos mamíferos, após um estímulo percorrer todos os circuitos necessários à sua percepção (ainda que de forma inconsciente), invariavelmente ele chegará à região anterior do lobo frontal (ou estruturas homólogas). Essa região está envolvida com memória operacional e atenção, especialmente no caso de primatas (e possivelmente em outros mamíferos), e é onde o estímulo será integrado com memórias passadas e, se o estímulo tiver maior relevância para o organismo (ou simplesmente se for um estímulo muito forte – como um ruído muito alto), ganhará maior processamento neural destes circuitos, resultando em um fenômeno que chamamos comumente de atenção. É interessante notar que a definição de qual estímulo receberá atenção em um dado momento também dependerá do contexto em que se encontra uma pessoa. Imagine- se na sua rotina diária no colégio alguns anos atrás. Você consegue se lembrar com que facilidade você percebia o sinal da sua escola soar perto do horário de ir embora? Ou mesmo quantos “alarmes-falsos” você tinha durante essa espera? Da mesma forma, círculos vermelhos não devem significar nada para você neste exato momento, mas eles terão muita importância quando estiver dirigindo para algum lugar. Essas diferenças sutis 26 www.ib.usp.br/labnec naquilo que percebemos são produto de ativação de circuitos de atenção e das memórias que acumulamos ao longo da vida. Ilusões e hemisférios cerebrais Ter memórias significa aprender sobre o ambiente que nos rodeia. Quando essas memórias são integradas com nossa percepção, não é raro que tenhamos uma visão distorcida daquilo que está diante de nós. Tome por exemplo a Fig. 4A. Qual das duas barras horizontais é maior? À primeira vista, todos dirão que a barra superior é maior. Apenas alguns, após uma análise mais cuidadosa, dirão que ambas tem o mesmo tamanho. Isso não significa que falhamos em enxergar. Apenas nos deixamos levar pelo aprendizado que tivemos em toda nossa vida: ao longo dos anos, vemos que linhas de mesmo tamanho parecem diferentes quanto mais distantes elas estão de nós. As barras convergentes na Fig. 4 criam a ilusão de algo que se distancia. Assim, percebemos as barras paralelas como sendo de diferentes tamanhos. Olhe a Fig. 4B e isso ficará ainda mais claro. (A) (B) Nosso treino para perceber formas geométricas nos faz enxergá-las até mesmo onde elas não existem. A Fig. 5 sugere o formato de um triângulo, mas sem todas as suas bordas esperadas, de fato. A figura é conhecida como Triângulo de Kanisa. Algumas pessoas chegam a dizer que ele é mais branco que as áreas em volta! A explicação direta é que nos acostumamos a enxergar com mais luz algo que está em primeiro plano. As ilusões de óptica não se resumem apenas a fenômenos mnemônicos (que dizem respeito à memória). Há também efeitos causados pelos próprios receptores sensoriais. Você provavelmente já se deparou com imagens como as que estão na Fig. 6. A estimulação de um determinado receptor retiniano para cor por um período prolongado leva à percepção da cor complementar correspondente, o que faz com que, ao olhar para um fundo neutro (branco, preto ou qualquer tom de cinza), perceba-se cores trocadas na imagem. Figura 4 – Ilusão de Ponzo. As linhas paralelas em (A) parecem ter diferentes tamanhos, apesar de serem iguais. Em (B)uma possível explicação biológica para esse efeito. Figura 5 – Triângulo de Kanisa. 1º Curso de Neurociências e Comportamento 27 www.ib.usp.br/labnec Figura 6 – Efeito de pós-imagem. Uma ilusão criada pelos receptores sensoriais quando superestimulados por uma determinada cor. Olhe fixamente por cerca de 30 segundos para qualquer um dos pontos pretos nas imagens e, em seguida, para uma parede branca. O que você vê? Essa questão torna-se extremamente importante quando pensamos em contraste. A percepção de uma cor em um determinado momento é influenciada não somente pela cor em si, mas pelas cores em volta da mesma. Quão diferentes são as cores dos quadrados “A” e “B” na Fig. 7? A resposta correta é: nada diferentes! Não há modificações! Isso acontece porque as cores ao redor da cor atentada influenciam a percepção da mesma. De forma mais ampla, somos influenciados por diferenças entre nossos hemisférios cerebrais. Apesar de estes trabalharem sempre em conjunto, com ativações bilaterais, diferenças sutis na ativação refletem certas dominâncias inter-hemisféricas que podem também resultar em diferenças na percepção. Testes com pacientes que sofreram um AVC e estudos com animais lesionados sugerem que o hemisfério esquerdo se encarrega primordialmente da percepção de detalhes de uma imagem, enquanto que o hemisfério direito se encarrega das características globais. Veja na Fig. 8 como estes pacientes desempenham em um teste simples de cópia de uma figura. Essas diferenças manifestam-se também na percepção de figuras com conteúdo ambíguo. O que você percebe à primeira vista na Fig. 9? Figura 7 - Os quadrados “A” e “B” da figura são diferentes na cor? Não! Os quadrados não são diferentes! 28 www.ib.usp.br/labnec Sinestesia A sinestesia é um caso muito específico de percepção em que uma determinada modalidade sensorial gera a percepção de outra modalidade. Um dos eventos mais frequentes é a percepção secundária de cores após a estimulação primária por um grafema, seja um número ou uma letra (ou até mesmo palavras). A percepção induzida pelo estímulo primário é sempre muito específica e unidirecional (a estimulação pelo percepto induzido não gera a percepção do estímulo indutor pareado, isto é, se a palavra “casa” induz a percepção da cor amarela, o contrário não acontecerá). Um sinesteta pode repetir mais de centenas de pares de percepções com pouco ou nenhum erro. Frequentemente a percepção induzida é a de cores, seja por grafemas, como dito acima, ou por sons (palavras em geral); mas há relatos bem documentados de palavras gerando percepção de gostos, gostos gerando formas, cheiros para cores e, mais curiosamente, música (ou intervalos tonais ou simplesmente tons) para cores ou formas. As percepções secundárias de gostos e também cheiros são menos comuns, embora exista pelo menos um caso bem documentado de percepção secundária de gostos induzida por intervalos tonais (musicais). A mesma pessoa reporta possuir o caso mais comum de sinestesia entre tonalidades musicais e cores. A investigação sobre o fenômeno é ainda muito recente e algumas perguntas básicas sobre o assunto só agora começaram a ser respondidas. Em relação aos mecanismos neurais que possibilitam a sinestesia, duas proposições foram feitas: Figura 9 – O que você vê nesse quadro? Figura 8 – Desempenho de pacientes com hemisférios cerebrais paralisados em um teste de cópia de figura. Pacientes que tem apenas o hemisfério esquerdo funcionante, percebem os detalhes das imagens originais, mas perdem a forma global. Por outro lado, pacientes com apenas o hemisfério direito funcionante percebem a forma global, mas não se dão conta dos detalhes. Retirado de Lent, 2006. 1º Curso de Neurociências e Comportamento 29 www.ib.usp.br/labnec alterações estruturais e alterações funcionais. A Fig. 10 apresenta um resumo dos modelos de mecanismos possíveis. Figura 10 - Modelos de Sinestesia. Os modelos diferem na rota proposta de ativação cruzada (direta ou indireta) entre as regiões indutora e concorrente e nas diferenças subjacentes ao sinesteta (estruturais ou funcionais). Regiões em amarelo estão ativas (começando pela região indutora) e, em azul, inativas. Conexões excitatórias são mostradas como flechas e inibitórias como pontas em traço. Linhas pontilhadas representam conexões presentes estruturalmente, mas funcionalmente inativas. Modificado de Bargary e Mitchell (2008). As evidências de casos clínicos e fenomenologia da sinestesia apontam mais fortemente para alterações estruturais na conectividade cerebral, com ligações anormais entre as regiões indutora e induzida no cérebro de sinestetas (Bargary e Mitchell, 2008). Vale ressaltar que diferentes possuidores de uma mesma sinestesia (tons para cores, por exemplo) podem reportar associações diferentes para a cor induzida. Se um deles disser que um dó maior é azul, o outro poderá dizer: “Isto está errado!”. Não se sabe por que a indução de cores é muito mais frequente que a indução de outras percepções. Diferenças na manifestação da sinestesia ainda levaram à sugestão de uma classificação em dois tipos de sinestetas: (1) de ordem baixa e (2) de ordem alta (Ramachandran e Hubbard, 2003). Essa divisão leva em consideração o estágio de processamento em que ocorre o fenômeno perceptual. Sinestetas de ordem baixa tendem a ter o efeito de indução apenas com estímulos muito específicos, por exemplo: números escritos na língua de origem. Já os sinestetas de ordem alta têm o efeito de indução toda vez que o conceito que um determinado indutor sugere está presente. Tomando por base o exemplo anterior, nos sinestetas de ordem alta mesmo algarismos escritos em números romanos (que nada mais são do que letras) poderiam gerar a percepção induzida. 30 www.ib.usp.br/labnec A incidência da sinestesia na população mundial é de algo entre 1% e 4% (Simner e colaboradores, 2006), um valor bem diferente dos 0,05% anteriormente sugeridos. Estudos em primatas dão indícios de que essas conexões “anormais” estão naturalmente presentes no organismo durante a fase fetal e o período de lactância, mas após esse período essa hiperconectividade de regiões sensoriais tende a ser removida do cérebro. Isto ainda não fora comprovado em recém-nascidos humanos, mas observações comportamentais levam à sugestão de que há uma “confusão sinestésica” nas primeiras semanas de vida. A plena maturação perceptual e a segregação dos sentidos viriam apenas após alguns poucos meses de vida, portanto. De qualquer forma, não ouse afirmar que um sinesteta tem sentidos menos maduros ou perguntar a ele “como é viver assim?”. A resposta sempre presente após essa pergunta é: “Como você vive assim?!”. Concluir é um problema Uma das maiores questões ainda não respondidas com respeito à percepção é como geramos um percepto único das estimulações constantes à nossa frente se aspectos diferentes de um estímulo são processados em regiões distintas do córtex cerebral (e.g. cor, forma, movimento, etc., no caso da visão). É o chamado binding problem. Uma das possíveis explicações para a forma como geramos um percepto é a de que, pelo sequenciamento de neurônios no encéfalo, com cada vez mais neurônios se juntando em um próximo neurônio (e, consequentemente, complexando o estímulo processado), ao final do processamento, invariavelmente todas as informações sobre o estímulo estariam ali reunidas. A quantidade de regiões envolvidas e a divisão do processamento em duas vias (dorsal e ventral), porém, não favorece essa explicação. Parece mais plausível aos pesquisadores que o encéfalo forme um percepto único
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